segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O PORCO-MEALHEIRO - CONTOS DE ANDERSEN

  Havia muitos brinquedos espalhados pelo quarto das crianças. Mas sobre o guarda-roupa via-se um cofrezinho de barro, comprado no louceiro; tinha o formato de um porquinho, e, como é natural, nascera com uma fenda nas costas. A abertura tinha sido depois aumentada, por meio de um corte de faca, de modo que até moedas grandes, das de prata, podiam passar por ela. E de fato já por ali tinham entrado duas, além de grande quantidade de moedinhas pequenas. O porco, já abarrotado de moedas, nem tilintava mais, e é sabido que é esse o ponto culminante a que pode atingir um porquinho-mealheiro. E lá estava ele, em cima do armário, um lugar certamente eminente, a olhar de cima para tudo que estava no quarto. Sabia bem que com todo o dinheiro que trazia no ventre poderia comprar todas aquelas bugigangas: e isso é o que se chama, na verdade, ter consciência do próprio valor.
   Os outros pensavam do mesmo modo, ainda que não o dissessem: havia tantas outras coisa de que tratar...Lá dentro da gaveta da cômoda, agora entreaberta, aparecia uma grande e bela boneca, embora já não fosse nova, e estivesse com o pescoço colado. Ela olhou para fora, dizendo:
   - Agora vamos brincar de gente! assim ao menos fazemos alguma coisa.
   E foi um rebuliço. Até os painéis das paredes viraram-se, para mostrar que também tinham seu lado avesso - não que isso fosse um sinal de protesto.
    Era muito tarde da noite; o luar, que entrava pelas vidraças, fornecia a iluminação mais barata que pode haver. O jogo ia começar, e todos , até o carrinho de criança, que de algum modo entrava no rol dos brinquedos mais antigos, todos foram convidados para tomar parte.
    - Cada um tem seu valor intrínseco - disse o carrinho. - Nem todos podem ser nobres: é preciso que haja pessoas que trabalhem, como lá dizem.
  O único que recebeu um convite escrito foi o porco-mealheiro. Estava em um lugar muito alto, e os outros achavam que não aceitaria um convite verbal. Também, não respondeu, nem participou se iria ou não. E nem foi mesmo; se quisessem que tomasse parte na festa, as brincadeira todas deviam ser dentro de casa. E todos se conformaram com isso.
   Puseram então o teatrinho de marionetes de maneira que o porco pudesse ver o palco. Queriam começar com a comédia; mais tarde serviriam chá, e haveria ainda exercícios ou jogos de espírito. Mas depois resolveram começar logo com estes.
  O cavalo de balanço, falou sobre domadores e puro-sangues.  O carrinho discorreu a propósito da viação férrea e da força do vapor: eram coisas da sua especialidade, de sorte que lhe cumpria tratar desse assunto. O relógio de mesa falou sobre a política do tique-taque. Sabia bem a quantas andava, ainda que se murmurasse que não andava certo. A bengala de bambu lá estava, toda tesa e arrogante, orgulhosa da sua ponta de latão e do castão de prata. No sofá havia duas almofada bordadas, bonitas, mas sem gosto. E começou a comédia.
   Todos estavam sentados, para apreciar a representação. Houve um pedido - que estalassem, aplaudissem, fizessem barulho como bem lhes aprouvesse. Mas o chicote declarou que nunca dava estalos para gente velha- só para as moças que ainda não tinham noivo. Mas a bombinha de parede atalhou logo:
   - Pois eu cá estalo para todo o mundo...
   - A gente tem de estar em alguma parte - disse a cuspideira.
    Porque essas eram as ideias que podiam acudir a quem assistia àquele espetáculo. A peça não prestava, mas foi bem representada. Todos os atores voltavam o lado pintado para o público: eram feitos de maneira que só deviam ser vistos por esse lado, e não do avesso. Todos se houveram com tanto brilho que ofuscaram as luzes. A boneca colada ficou entusiasmada; de tão  entusiasmada, até descolou outra vez o pescoço. O porco-mealheiro, de tão encantado - lá à sua maneira, bem entendido - resolveu fazer alguma coisa em benefício de um dos artistas; por exemplo - declarar no testamento que aquele artista seria sepultado com ele no jazigo de família, quando chegasse o dia.
   E foi tão grande o prazer que sentiram com aquela festa, que resolveram todos desistir do chá, contentando-se com os jogos de espírito: é o que chamavam brincar de gente, mas era sem malícia, não passava de brincadeira. Cada um só pensava em si próprio, e naquilo em que o porco-mealheiro pudesse pensar. E ele pensou mais tempo que os outros, pois tinha de se ocupar do seu testamento, e do enterro, e da época em que este se realizaria. E o caso é que foi muito antes do que se poderia esperar.
   Pum! Lá caiu o porco do armário, caiu ao chão, e ficou reduzido a cacos. As moedas dançavam e saltavam que dava gosto ver! As menores giravam que nem piões, as maiores corriam, rolando sempre, sobretudo uma delas, que queria viajar pelo mundo. E realmente, partiu em viagem, e todas as outras moedas também partiram.
    Os cacos do porco foram atirados ao lixo. Mas no dia seguinte lá estava outro porco-mealheiro de barro em cima do guarda-roupa. Ainda não tinha nenhuma moeda dentro do ventre, de modo que nem podia tinir; e nisso se parecia com o outro porco.
   Já servia, ao  menos, para começar; mas nós vamos terminar por aqui.
   FIM
 

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