sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Contos de Andersen - Uma História das Dunas

    Passou-se esta história nos areais da Jutlândia. Ela não começa, porém, lá no Norte: ao contrário, principia a história bem longe, ao Sul, na Espanha. Transporta-te em pensamento para essa Espanha inundada de sol. Que ar quente, e que soberbo país! Por toda a parte viceja uma vegetação esplêndida: a folhagem leve e as flores vermelhas da romanzeira sobressaem no fundo sombrio dos maciças de loureiros. Vem das montanhas uma brisa fresca, que reanima a gente, e vai passar sobre os laranjais e sobre os palácios mouriscos, de cúpulas douradas. Vem pelas ruas uma procissão de crianças, que trazem tochas e bandeiras flutuantes. O céu, de um azul límpido, resplandece. Vem de mais longe o som de canções, o ruído de castanholas: moças e rapazes dançam e saltam à sombra das acácias em flor. Encostado a um mármore antigo, um mendigo os observa, enquanto vai comendo uma melancia: é feliz, lá a seu modo, goza a vida, e parece a meio mergulhado num sonho.
    É que a vida assemelha-se a um sonho suave nessa terra encantada. É só abandonar-se a gente a ele. E é o que fazia um jovem casal que possuía todos os bens deste mundo: saúde e alegria, riquezas e honras.
   - Nunca houve ninguém no mundo mais feliz do que nós! - diziam eles, do fundo do coração.
    Entretanto luzia ainda na sua imaginação um grau mais alto de felicidade: podiam ter um filho, um filho que a ambos se assemelhasse em corpo e alma. Com que transportes de alegria não seria recebida essa criança privilegiada! Que cuidados, que amor a esperavam! E haviam de cercá-la a opulência e alegrias sem fim.
   Para eles, os meses passavam-se como um dia de festa.
   Um dia a moça disse ao marido:
    - A existência é, só por si, um dom da graça divina, um dom maravilhoso e inapreciável(que, pela sua extrema importância, o seu sabido valor, é difícil de ser avaliado em dinheiro ou em apreço)"; e contudo, a existência não basta, e o homem quer ainda que sua felicidade vá aumentando sem cessar, aqui e lá em cima.
   - O orgulho humano não se contenta jamais. E é puro orgulho crer que viveremos eternamente; é o que prometia a Serpente, que é a mãe da mentira.
     - Não duvidas, contudo, da vida futura! - replicou a moça.
   Pareceu-lhe que, pela primeira vez, uma sombra lhe velava os pensamentos, desabrochados ao sol da alegria.
    - A Fé o proclama - respondeu o marido - afirma-o a Igreja. Mas é justamente a plenitude de minha felicidade que me obriga a reconhecer que semelhante esperança é uma presunção. É uma temeridade exigir além desta vida uma felicidade sem fim. Não recebemos já bastante aqui na Terra, e não nos devemos dar por satisfeitos?
  - Sim, nós. Mas há milhares de criaturas humanas para quem a existência não é mais que uma dura prova; que são votadas à pobreza, à doença, ao infortúnio. Se não houvesse mais nada para além do túmulo, os bens deste mundo seriam repartidos com muita desigualdade, e Deus não seria o que é: a própria justiça.
     - Talvez estejamos julgando as coisas de um ponto de vista muito pessoal. Aquele mendigo que lá está tem prazeres que ele aprecia tanto como os que goza um rei no seu trono. E depois, em virtude do teu raciocínio, a besta de carga que leva pancada, que sofre fome, que se arrasta penosamente para a morte, não teria o direito de reclamar também compensações depois da morte? Não se poderia dizer igualmente que é uma injustiça ter ela sido posta em um lugar tão baixo na criação?
    - Cristo disse: "Na casa de meu Pai há muitas moradas." O céu, como o amor divino, é infinito. Como o homem, o animal é uma crianção de Deus, e eu creio firmemente que nenhuma vida será perdida; cada criatura gozará de toda a felicidade que seja suscetível de receber.
   - Quanto a mim - disse o marido - basta-me este mundo.
   E, dizendo-o, olhava com ternura para a esposa, tão jovem, tão linda e tão amorosa. Levou-a para o terraço, e o fumo de seu cigarro erguia-se em espirais, no ar fresco e perfumado do cheiro das flores de laranjeira e dos cravos. Na rua ressoavam as guitarras e as castanholas, no azul do céu cintilavam as estrelas. Dois olhos mais brilhantes que as estrelas, dois olhos cheios de ternura, contemplavam o moço feliz.
    - Para viver um minuto assim- disse ele. - Vale a pena nascer, gozá-lo, e desaparecer para sempre.
   E sorria ao dizer isso; mas a jovem esposa ergueu o dedo, em sinal de doce censura. A sombra que tinha obscurecido sua felicidade, contudo, se desvanecera: eram felizes demais.
   Tudo parecia combinar-se de propósito para lhes acarretar cada vez mais honras, mais prazeres, mais riqueza.O moço foi enviado pelo rei como embaixador junto ao czar da Rússia. Seu nascimento e sua  cultura tornavam-no digno de tão elevadas funções. Dispôs-se a preencher brilhantemente a missão; sua grande fortuna, agora aumentada com a que trouxera a esposa, filha de um dos principais armadores da península, lhe permitiria representar nobremente seu país em Petersburgo.
   Estava de partida, justamente este ano, para Estocolmo, um dos mais belos navios do armador, e ele o destinou a conduzir o genro e a filha à Rússia. Determinou que tudo fosse preparado a bordo com se fosse para receber um rei; por toda a parte os tapetes mais ricos, ouro e sedas e tudo o que oferece o luxo mais requintado.
    Há uma balada antiga que diz que um príncipe da Inglaterra embarca em um navio cujo cordame é de seda, O navio em que embarcaram os espanhóis fazia lembrar o da balada antiga.
     E na partida, dizia-se, como na balada:

          Permita Deus que ainda um dia 
           Tornemos todos a ver-nos,
           Sempre na mesma alegria!

    Não seria longa a travessia; o vento era propício. Mas já no mar alto, cessou; o oceano ficou imóvel, as ondas adormeceram. O tempo continuava soberbo, e no belo navio tudo eram festas e alegrias.
   Enfim voltou a brisa e impeliu-os na boa direção. O navio avançava entre a Escócia e a Jutlândia. O vento ia soprando cada vez mais forte, e, sempre como na balada antiga:
  
     Desabou a tempestade
      As nuvens despejam água;
     O navio, desarvorado,
     Não acha onde aportar.
    Lança âncora de ouro.
   Mas, do vento arrebatado,
    Vai, levando seu tesouro,
    Na Dinamarca aportar.

                                         II

    Isso foi há muito, muito tempo. Reinava então na Dinamarca o Rei Cristiano VII, que era ainda jovem, Quantas coisas aconteceram depois disso! Que mudança se operou, quando mais não seja no solo da Jutlândia: banhados e lagos foram convertidos em prados verdejantes; charnecas cobertas de urzes transformaram-se em terras fecundas. Abrigadas pelas cabanas, há até macieiras e roseiras. É certo que se precisa procurá-las, porque o vento terrível do oeste as obrigas a curvar-se até quase o chão.
    Mas, na ponta da Jutlândia tudo ficou como dantes. Estende-se a terra léguas e léguas, com seus túmulos de Gigantes, seus caminhos onde a gente se enterra na areia até os joelhos. Ao oeste, onde as ribeiras se escoam nas baías que o mar forma, vêem-se pantanais, turfeiras cercadas de dunas muito altas, de vértices desiguais e denteados, que formam uma cadeia de Alpes pequeninos. Mais além, erguem-se penhascos escarpados, roídos pelas ondas enfurecidas. Para aquela banda avançava o navio, levando os dois esposos, tão felizes.
  Era no fim de setembro, e em um domingo. O sol brilhava, o ar era puro. De todos os lados ouvia-se o repique dos sinos das igrejas que orlam a Baía de Nissoum. São essas igrejas construídas de pedra de cantaria, para que não as arrebate o mar, quando invade a terra. Não tem campanário: o sino suspenso entre dois postes, ao lado do templo.
   Terminado o serviço divino, saíram os fiéis da igreja, dirigindo-se, a maior parte, para o cemitério. Como ainda hoje, não se via nele nem árvore nem arbusto; nem uma flor, nem uma coroa nos túmulos: nada mais que montículos de areia, cobertos de ervas que, fustigadas sem cessar pelo vento, cortam como lanças. Em lugar de monumentos, viam-se aqui e ali blocos de madeira vomitados pelo mar, e talhados em forma de féretro. Mas dentro de pouco tempo, os furacões e a bruma carregada de umidade deterioravam até aquela madeira maciça.
  Sobre o túmulo de uma criança tinha sido posto um desses blocos, já todo embolorado coberto de areia, e a meio enterrado nela. Uma mulher ia andando para quele lado, e, sem procurar, foi direito à tumba, que ficou contemplando em silêncio, com os olhos cheios de lágrimas. Logo depois, reuniu-se-lhe o marido; não falaram, mas ele lhe pegou na mão e levou-a devagarinho para as dunas. Durante muito tempo andaram assim, em silêncio. Por fim, disse o marido:
  - Como pastor pregou bem hoje! Na verdade, se não tivéssemos Deus, estaríamos bem abandonados!
    - Sim...Mas o Senhor concede a alegria, depois envia a dor...Ele tem direito, sim. Amanhã o nosso rapazinho completaria cinco anos, se tivesse ficado conosco.
   - Por que pensas sempre assim na tua dor? A criança não está bem, no lugar onde pedimos todos a Deus que nos deixe ir ter um dia?
    Calaram-se de novo e foram andando para a sua casinha, oculta nas dunas. De repente, de uma daquelas colinas onde a erva não consegue reter a areia com as raízes, ergue-se uma nuvem, de fumo espesso. Era a areia, que um golpe de vento súbito arrebatava nos ares. Um seguir do pé-de-vento apanhou os peixes que secavam em cordas perto de casa elançou-os contra a folhas da janela. Depois tudo voltou à tranquilidade; o sol luzia como antes.
  Mas o sinal tinha sido compreendido. Marido e mulher apressaram-se a volta; vestiram suas roupas diárias e correram à praia. Já lá encontraram os vizinhos, e todos se ajudando entre si arrastaram as barcas para areia. Soprava agora de novo o vento, mais forte, mais áspero, mais frio. E, quando iam de volta para casa, ainda lhes lançou ao rosto turbilhões de areia e de pedregulhos. Já as vagas engrossavam; o vento cortava-lhes a crista de espuma e espalhava-a pelo mar, que ficava todo branco.
   Com a noite sobreveio a tempestade. Foi um crescendo de assobios, de uivos, de lamentos; pareciam os gritos de milhares de demônios saídos do inferno. Aquele fragor tremendo dominava o bramido da ondas; as vagas erguiam-se quase tão altas como as dunas. E de vez em quando o vento açoitava de tal sorte a casinha, que ela tremia quase até os fundamentos.
   Durante as primeiras horas, a obscuridade foi completa; tudo era negro. Por volta da meia-noite o ar aclarou um pouco e apareceu a Lua. Mas a tempestade continuava a remexer as profundidades do oceano.
   O valente casal tinha-se acomodado, ainda que fosse impossível pregar olho com um furacão daqueles. De repente batem à janela, e uma voz anuncia:
   - Um grande navio bateu no primeiro rochedo!
    Ambos saltam do leito, vestem-se a toda a pressa e correm ao mar.
   Havia luar bastante para que se pudesse ver ao longe, se os turbilhões de areia não obrigassem os olhos a se fechar. E foi somente se afastando por terra, pelo meio das dunas, aproveitando os instantes de espera entre dois golpes de vento, que os pescadores conseguiram chegar à praia. Lá, ao longe, via-se a espuma das vagas esvoaçando nos ares, como plumas de cisne. As ondas rolavam para a costa como imensas cataratas efervescentes. Apenas o olho experimentado dos marinheiros podia distinguir o navio: era um soberbo três mastros. De repente, o mar levantou-o, impelindo-o para a terra, a poucos passos do lugar conveniente. O navio deu com um segundo rochedo e imobilizou-se. Era impossível socorrê-lo. Vagas enormes cobriam-no quase por completo. Eles viam o esforço desesperado da equipagem; até julgavam ouvir os gritos de angústia dos náufragos. Veio enfim uma vaga que, caindo com tanto fragor como se fosse um gigantesco rochedo, arrancou a popa do navio. A proa ergueu-se no ar. Foi então que duas pessoas, estreitamente abraçadas, se lançaram ao mar; um minuto depois a onda atirou à praia um único corpo: era uma mulher.
   Julgaram-na morta os marinheiros dinamarqueses. Algumas mulheres a ergueram, e, julgando entrever nela sinais de vida, levaram-na para a casinhola do pescador.
  E como era bela, e ricamente trajada! Devia ser uma dama de categoria muito elevada.
  Deitaram-na no pobre leito: o calor reanimou-a, mas tomara-a, violentíssima febre. Não sabia nada do que acontecera, nem dava tino do lugar onde se achava. E isso era até um grande bem para ela, porque o que mais amava no mundo estava no fundo do oceano. Sempre como dizia na balada antiga:
   
 O navio, desfeito em cacos,
  Era horrível de se ver!

Foram ter à praia lascas de madeira, mas nem um só dos outros seres viventes.
  Instantes depois a senhora soltou um grito de dor e abriu os belos e grandes olhos. Disse algumas palavras em linguagem que ninguém compreendia. Deu à luz uma criança. 
    Aquela criança devera repousar em um berço dourado, entre cortinados de seda, no interior de um palácio magnífico. Todos os bens da terra lhe eram destinados; seu nascimento devia ter sido saudado pelos gritos de alegria de uma cidade inteira; e Deus fazia-a vir ao mundo naquele pobre recanto. Não chegou sequer a receber um beijo de sua mãe; puseram-na sobre o seu seio, contra o coração; o coração já não batia. Estava morta.
   A criança, que devera ter por amas a Riqueza e a Felicidade, foi assim lançada naquela terra rude, entre dunas desoladas, para partilhar a sorte dos pobres.
  Há muito tempo já não existia mais nas costas da Jutlândia o costume bárbaro de pilhar os náufragos. A infeliz criança teria encontrado por toda a parte quem tratasse dela; mas em lugar nenhum poderia ter sido tão amimada como na casa da pobre pescadora, que na véspera ainda chorava na sepultura do filho, que devia fazer cinco anos naquele dia. Foi ela quem o adotou.
   Ninguém soube quem era a dama estrangeira. Nenhum dos destroços que o mar atirou à praia trazia o nome do navio, nem a sua procedência.
  La na Espanha no palácio suntuoso, jamais chegou carta ou notícia contando a sorte da filha da casa nem de seu marido. Não tinham chegado ao seu destino; houvera tempestades violentas -foi tudo o que se soube. Enfim, depois de meses de incerteza, chegou do Norte a dolorosa notícia: o navio se perdera, corpos e bens.
   Nas dunas, perto de Hunsby, a cabana do pescador abrigava o rebento desconhecido da rica família espanhola. Jorge - Jorgen, em dinamarquês - foi o nome de que lhe deram.
   - Que pele morena tem ele - dizia a gente da aldeia - é certamente filho de judeu.
  - Ou de italiano, ou espanhol - retrucou o pastor.
   Mas a mulher do pescador, que o recolhera, essa não se preocupava de saber a que raça ele podia pertencer: amava-o de todo o coração.

                                    III
   A criança cresceu e se desenvolveu; seu sangue nobre conservou-se quente sob o céu frio da Jutlândia; e, apesar da magra nutrição, o menino tornou-se robusto. Falava o dialeto dinamarquês da região. A semente da Granada de Espanha se havia transformado no grão de aveia que brota nas costas  do Mar do Norte.
Que coisas podem suceder às criaturas humanas!
  
Um tempinho, uma paradinha para momentos em família!
 Continua em 2018 Feliz Natal e um Próspero Ano Novo. Muitos beijos para meus amigos! 

Retornando:

   Todos os liames da vida o enraizavam no solo onde nascera. Conheceu a fome, frio, as dores e as misérias daquela gente pobre; mas gozava também as suas alegrias.
    Quando queria divertir-se, tinha a costa semeada de brinquedos, até o infinito: pedrinhas vermelhas como coral, amarelas como o âmbar, brancas como bolas de neve, arredondadas e polidas como ovos de passarinho. Achava ali esqueletos de peixe, os longos fios brancos das evas marinhas dessecados pelo vento, mil coisas que lhe atraíam o olhar e o excitavam à reflexão. A criança tinha o espírito muito vivo; era maravilhosamente dotada
   Com que facilidade guardava na memória as histórias dos tempos antigos e as velhas canções - e como sabia recitá-las! Com pedrinhas e conchas, construía pequenos navios e outros objetos lindos, que dava à mãe adotiva para adornar a casa. Talhava na madeira de um cajado figuras originais. Qualquer trecho de música que ouvia, repetia-o com uma voz grave e vibrante. Havia naquele menino as cordas mais numerosas e mais ricas, que teriam talvez retinido ao longe, através do mundo, se ele não estivesse confinado naquela cabana, à beira do Mar do Norte.
   Um dia, outro navio soçobrou naquelas paragens. Uma caixa cheia de bulbos das tulipas mais raras deu à costa. Aquela boa gente, sem saber o que era aquilo, cozinhou alguns bulbos, que acharam afinal detestáveis. O resto ficou sobre a areia, e acabou por apodrecer; não chegaram a brotar e a desabrochar no brilho de suas cores magníficas. Seria assim também com Jorge? Estava destinado a se estiolar longe do clima em que teria podido atingir seu desenvolvimento completo?
   Enquanto isso, o menino crescia, em excelentes disposições. Não se apercebia da monotonia da vida naquele recanto esquecido do universo. Ajudava quanto podia, no trabalho, seus pais adotivos. Se queria repousar, bastava-lhe, para se distrair, olhar para o mar, sempre instável, passando da calma perfeita ao furacão.  De tempos a tempos sobrevinham náufragos, que serviam de assunto durante alguns meses. Além disso, Jorge era piedoso: ir à igreja, para ele constituía uma festa.
     De quando em quando havia  visitas, e a mais agradável de todas era o irmão de sua mãe adotiva, o pescador de enguias, que morava em Fjaltring. Vinha duas vezes por ano, no seu carrinho pintado de vermelho, com flores azuis e brancas. Era um carro fechado como uma caixa, e todo cheio de enguias. Puxavam-no dois bois vermelhos, e ele deixava Jorge conduzi-los à ponta da estrada.
   Era um sujeito alegre, o pescador de enguias. Trazia sempre um tonelzinho de aguardente. As pessoas grandes recebiam um cálice cheio. A Jorge davam um dedal cheio. E o pescador dizia:
   - Isto faz digerir a gordura da enguia.
   E contava depois uma história, sempre a mesma; se ela agradava ao auditório, repetia-a ainda. Aquele conto veio a ser, para Jorge, como outro Evangelho. E ele o aplicava muitas vezes aos acontecimentos de sua vida. Devemos, pois, ouvir também a história:
   "As enguias andavam passeando na baía, e pediram licença à mãe para subir mais um pouco, rio acima.
   "- Podem ir, sim - disse ela. - Mas cuidado! não vão muito longe; o perverso pescador poderia aparecer e roubá-las todas.
   " Elas foram, na verdade muito longe, e de oito que era, não voltaram senão três; e disseram à mãe:
   " - Mãe, nós só fomos um pouquinho mais adiante do nosso porto, mas o maldito pescador chegou e matou nossas cinco irmãs!
  "- Elas hão de voltar - disse a mãe.
  " - Como hão de voltar, se ele lhes arrancou a pele?
E partiu-as ao meio, e cozinhou-as!
  "- Elas voltarão, sou eu quem o diz!
  " - Mas o pescador comeu-as, mãe!
   "- Elas hão de voltar, mesmo assim.
   " - Mas ele bebeu aguardente em cima, mãe!
   " - Ai! Então não tornaremos a vê-las, não: a aguardente é o veneno da enguia!
   " E é por isso - rematava o pescador de enguias - que temos sempre de tomar um copinho dela depois da enguia."
   Bem desejaria Jorge, como as jovens enguias, sair um pouco além daquela baía, ir , fosse onde fosse, a qualquer parte; mas o que mais desejava era subir a um navio e percorrer os mares. Mas sua mãe adotiva e o pescador diziam-lhe:
  - Fica aqui conosco! Se tu soubesses como os homens são maus...
   Não poderia ao menos ir além das dunas, entrar pelas terra, ver um bocado da região? Enfim, seus desejos se realizaram. Teve quatro dias de alegria contínua, os mais belos de sua infância. Morrera um parente rico de seu pai adotivo, e no Norte subsiste o costume, vindo dos tempos do paganismo, de dar um grande banquete depois do enterro.
  A família dirigiu-se, pois, levando Jorge, para o lugar onde o parente rico residia, e que ficava a leste, a muitas léguas de distância. Saindo das dunas, atravessaram a charneca, depois os pantanais, e chegaram aos prados verdejantes em que ocorre o Skjaeruamaa, o rio das enguias que os homens cruéis apanham e cortam ao meio. Mas afinal, os homens não são muitas vezes menos cruéis uns com os outros...
   À beira do rio, erguiam-se a
s ruínas do castelo que o Cavaleiro Bugge edificou, há mais de quinhentos anos. O cavaleiro foi assassinado por salteadores. Mas ele próprio - a quem chamavam, aliás, o bom senhor - ele não tinha tentado matar o arquiteto que construíra o castelo e a alta torre de paredes tão grossas? Depois de pronta a construção, quando o arquiteto se retirou com o pagamento convencionado, disse o cavaleiro ao seu escudeiro:
   - Corre atrás dele e grita: " Mestre! A torre vacila!" Se ele se voltar, é que não tem confiança na sua obra: mata-o então e traz-me o dinheiro, que tão mal ganhou. Mas se continuar seu caminho , deixa-o ir em paz.
   Fez o escudeiro o que lhe ordenara o amo. O arquiteto não se voltou, mas respondeu, continuando a andar:
   - Não é verdade: a torre não se move mais do que se moveria um rochedo. Mas um dia virá do Oeste alguém, com um manto azul, que poderá deitá-la abaixo.
   E de fato, ao fim de cem anos, o mar invadiu as terras e a torre caiu.
  Foi reconstruído, e ficou um pouco mais alto. É o Norre-Vosborg. Os viajantes passaram ao lado dele, e Jorge, que ouvira contar as maravilhas que encerravam nos serões da casinha da praia, só tinha olhos para o belo palácio com seu duplo fosso, suas torres, seu parque. Havia lá árvores como ele jamais vira; altas tílias em flor, que enchiam o ar de perfumes, e em um canto do parque um bosquezinho de sabugueiros, também floridos. O menino
pensou que aquilo era neve no meio da folhagem. E jamais esqueceu aquele espetáculo, que à sua imaginação infantil, se apresentava como verdadeira magia.
   Foi preciso, contudo, arrancá-lo àquela visão encantadora. O caminho era agora mais fácil. Encontraram outros convidados que iam ao enterro; iam de carro, e Jorge e seus pais subiram para a traseira e se empoleiraram sobre uma caixa. Jorge não era menos feliz do que pode ser um rei, na sua carruagem tirada a seis cavalos.
  Iam andando pela charneca; os bois que puxavam o carro paravam de quando em quando ao avistarem alguma erva perdida no meio das urzes. Deixavam então os animais pastar. O sol era ardente, e viam-se ao longe nas nuvens de fumo transparente, onde a luz do sol se refletia de maneira estranha.
   - Aquilo é Loki, que guarda seus carneiros- disse um dos homens a Jorge.
   E o  menino julgou-se transportado ao mundo encantado dos velhos deuses escandinavos,
   E que tranquilidade! Até onde alcançava a vista, estendia-se a charneca, como um belo tapete, formado de urzes de flores rosadas, de zimbros de um verde sombrio, e azinheiros novos.
  Bem quisera Jorge correr, folgar naquele matagal; mas havia tantas cobras venenosas escondidas por toda a parte...Falaram-lhe também nos lobos que outrora infestavam a região. O velho que guiava o carro contou que 'no tempo de seu pai' os cavalos se viam mal com esses animais ferozes, que ainda não tinham sido exterminados, Um dia achara um cavalo com a patas dianteiras sobre um enorme lobo, que acabava de matar; mas na luta tivera toda a pele das pernas lacerada, feita em farrapos.
   Atravessaram- e, na opinião de Jorge, muito depressa - a charneca, depois areais profundos. Enfim, chegaram.
   A casa  está cheia de convidados; há gente dentro e fora da habitação. É um verdadeiro acampamento de viaturas. Cavalos e bois de canga formam um grande rebanho. E lá se vão, a toda pressa, procurar pasto entre as urzes. Atrás da granja erguem-se dunas de areia semelhantes às da praia. Estendem-se em grande extensão. Como se formaram tão adentro, no interior das terras? Seriam levadas pelo vento? Elas tem também a sua história. 
   Durante o serviço fúnebre foram cantados salmos. Todos estavam recolhidos, mas somente alguns velhos choravam. Grande parte dos assistentes não tinha conhecido o morto. Uma vez fora da igreja, todo o mundo estava alegre e bem disposto, exceto os velhos, sobre os quais a tristeza tem mais domínio. As mesas estavam sobrecarregadas de iguarias; os convidados tinham de que se regalar: carnes, peixes, bolos, hidromel, aguardente, para fazer digerir a enguia. Nada faltava.
  Jorge ia e vinha, saltando, cabriolando, admirando tudo; colhia flores, deitava-as fora, apanhava bagas de mirtilo e dançava de alegria, quando o suco vermelho lhe tingia as mãos.
   Ficava de boca a berta a contemplar os túmulos dos gigantes, cujas histórias impressionantes ouvira contar. À tardinha elevava-se, como colunas de fumo, o nevoeiro seco, que o sol coloria das cores mais belas.
  Passaram-se assim três dias, no auge do prazer. No quarto, porém, todos se despediam e voltaram para suas casas.
   Quando Jorge e seus pais tornaram a avistar as dunas da praia, o velho pescador exclamou:
  - Estas sim, são as dunas verdadeiras: só elas podem resistir ao vento!
   Contou então ao menino como se haviam formado as outras dunas, no interior das terras.
   Um dia alguns camponeses encontraram um cadáver e enterraram-no no cemitério. Mas o mar invadiu a charneca, e ia avançando e avançando, levando por diante montanhas de areia, e espalhando o terror por toda a parte. Foi então que um velho, cheio de sabedoria, aconselhou-os a desenterrar o morto:
    - Se o encontrarem a sugar o polegar, é um homem do mar; e as ondas não deixarão de invadir a terra enquanto não lho restituírem.
   Ora o morto tinha de fato, o polegar na boca. Os camponeses meteram-no em um carrinho, e foram a galope deitá-lo ao mar. E as águas pararam imediatamente e voltaram ao leito; mas as dunas que tinha levado, ficaram lá onde estão até hoje.
   Jorge gostou muito da história e não duvidava que fosse verdadeira; mas afinal o pescador que a contava também não tinha a menor dúvida a respeito de sua veracidade.
         
                      IV

  Depois de ver tanta coisa magnífica, ele desejava mais que nunca correr mundo. Aos quatorze anos era grumete em um navio. Mas que foi encontrar? Mau tempo, mares encapelados, homens maus e duros, pão seco, noites de frio, bofetadas. À primeira que sentiu no rosto, o nobre sangue espanhol que lhe corria nas veias se revoltou. Sentiu-o ferver e subiram-lhe aos lábios palavras amargas; mas reteve-as a tempo; o bom-senso levou a melhor. Compreendeu que só resultaria da revolta pior tratamento. Naquela cólera contida, experimentou o que deve sofrer a enguia, quando lhe arrancam a pele e a cortam ao meio para a lançar na frigideira:
    - Não é nada- disse consigo - hei de voltar, como a enguia!
     Chegaram às costas da Espanha. Por uma ironia da sorte, o navio ancorou no mesmo porto onde os pais de Jorge tinham vivido no seio da riqueza. O pobre grumete estava sempre de guarda a bordo. Entretanto, no último dia, mandaram-no à terra, a fazer compras.
    Via pela primeira vez uma grande cidade Que altas lhe pareceram as casas! As ruas estavam cheias de pessoas atarefadas - citadinos, camponeses, monges, soldados - e toda a quela gente corria e gritava. E que ruído! Ouvia-se o tilintar das sinetas das mulas, cantos, sons de instrumentos, e ainda o barulho dos martelos mais oficinais. O sol era ardente, o ar pesado. Parecia tudo aquilo um forno cheio de moscas, de abelhas e de besouros, e tudo zumbia. Atordoado, Jorge não sabia para que lado se virar. Olhava de vez em quando para sua pobre roupa, que parecia ter sido mergulhada na lama e seca depois ao calor da chaminé, e isso lhe aumentava ainda mais a timidez e o embaraço.
   De repente avistou a catedral, cujas portas estavam abertas. Nas abóbodas sombrias ardiam centenas de luzes, e sentia-se o cheiro de incenso. Os mendigos mais esfarrapados entravam no santuário, e ele pediu ao marinheiro que o companhava que o deixasse subir os degraus do pórtico. Entrou na igreja e viu quadros soberbos, sobre fundo de ouro. No altar, a Madona com o Menino Jesus, toda cercada de flores, iluminada pela luz dos círios. Os padres, vestidos de ouro e seda, cantavam enquanto os meninos do coro agitavam os incensórios de prata. Que esplendor! Que magnificência! O menino sentiu a alma penetrada, aniquilada. A fé de seus pais parecia despertar nele, e desatou a chorar.
   Mas teve de sair dali, teve de ir ao mercado, comprar provisões. Depois seguiu para o porto. Carregado de pacotes, meio morto de fadiga, depois de tão longa marcha, sentia-se cansado de corpo e alma. Todas aquelas impressões nova, e tão variadas, o acabrunhavam. Avistou um palácio magnífico, ornado de estátuas, de colunas de mármore. Sentou-se num degrau da ampla escadaria, para descansar um momento. Mas surgiu o porteiro, todo agaloado, brandindo um bastão encimado de prata, e expulsou-o dali, cobrindo-o de injúrias - a ele o filho da casa, o herdeiro do palácio e de todas as suas riquezas! Porque era a morada do seu avô que, no meio daquele luxo, se consumia de desgosto, por ter perdido a filha única.
    O navio fez-se ao mar, e Jorge voltou à mesma vida: palavras duras, sono insuficiente, trabalho excessivo. Sabia agora o que custa ver o mundo. Dizem que é bom passar trabalho, quando moço; assim...talvez: contanto que na velhice haja felicidade.
   Voltou o navio a Ringkjobing, na Jutlândia. Terminado seu tempo de serviço, Jorge voltou a Huusby para ver os pais, e as queridas dunas. Mas, na sua ausência, morrera-lhe a mãe adotiva, e essa notícia perturbou-lhe toda a alegria do retorno.
   Passou o verão. Veio o inverno, um dos mais rigorosos, trazendo tempestades de neve, que varriam tudo, na terra e no mar. Jorge admirava-se de ver as coisas repartidas com tanta desigualdade sobre a face do globo: aqui o frio, os furacões; na Espanha o sol radioso, o ar calmo e ardente. Por algum tempo lhe pareceu que o Meio-Dia era melhor; mas quando caía uma bela geada, e via os alvos bandos de cisnes nadar para os rios, gostava mais do norte. Pois o estio não tem também ali seus encantos, sua beleza? E ele revia em imaginação o Castelo de Vosborg, as tílias, os sabugueiros e mirtilos da charneca; e preferia tudo aquilo aos esplendores das regiões meridionais.
  Voltou a primavera e começou a pesca. Jorge crescera muito; era um rapaz forte, cheio de vida, sempre pronto para o trabalho; e ajudava com zelo seu pai adotivo. Era destro na natação, e zombava das ondas com um peixe. Quando se demorava muito no mar, o velho pescador dizia-lhe que tivesse  cuidado com os bandos de cavalas: elas vencem o melhor nadador, cercando-o; arrastam-no então e o devoram. Mas não era seu destino ser presa das sardas, isso não   
   Um dos vizinhos, tinha um filho, Martim, que era muito amigo de Jorge. Engajaram-se ambos como marinheiros em um navio que ia à Noruega e à Holanda. Nunca tinham brigado, mas uma querela pode sobrevir inesperadamente. Jorge era violento, e dado à cólera, em razão da sua  raça. Um dia surgiu entre eles uma discussão, por motivo fútil. Jorge empalideceu  e seus belos olhos mudaram de expressão; não tinham nada de belos naquele momento! Chegou a puxar a faca. Mas Martin disse-lhe tranquilamente:
  - Ora essa! Então queres brigar comigo?
   Jorge nada disse; sua mão abaixou-se como por encanto; e foi cuidar do seu trabalho. Mas deu volta e foi de novo em busca de Martim, dizendo-lhe:
   - Bate-me no rosto, pois que o mereço. Sinto dentro de mim alguma coisa que está sempre fervendo, e que transborda de vez em quando.
   - Não falemos mais nisso - respondeu o amigo. Depois dessa altercação, sua amizade aumentou ainda mais; e quando, de volta à aldeia. Jorge contou o que se passara. Martim acrescentou que seu camarada era colérico, mas tinha bom coração.
   A moça com quem Jorge mais gostava de conversar na aldeia chamava-se Elisa. Ela era tão clara como ele moreno; tinha o cabelo louro como o linho, e os lhos tão azuis  como o mar, quando brilha à luz do sol. Passeavam juntos um dia, quando ela disse:
   - Tenho um pedido a fazer-te, Jorge: a mulher que cuidava da casa de teu pai foi embora, e peço-te que me dês esse lugar. Sou forte e destra, e vais ver como sei preparar a cerveja quente que vocês tomam quando voltam fatigados da pesca, e como limpo e preparo bem o peixe! Desejo muito ir para casa de teu pai. Estimo-te como um irmão. Martim quer que eu vá para a casa de seus pais, mas isso não é possível, porque estamos noivos.
   Ao ouvir essas palavras, pareceu a Jorge que estava sobre areia movediça: vergaram-lhe as pernas, o chão lhe fugia, e não achou uma palavra para dizer. Apenas inclinou a cabeça, em sinal de assentimento. Sentiu, no fundo do coração, que não poderia mais suportar a vista de Martim. E desde aquele momento não pensou senão em si próprio e em Elisa, a quem, entretanto, não tinha dedicado, até ali, grande atenção. E quando mais pensava naquilo,quanto mais se consumia, mais evidente lhe parecia que Martim lhe roubara única coisa que lhe importava neste mundo; o amor de Elisa.
  No dia seguinte foi à pesca com o pai de Martim. O velho apanhou uma febre, e tiveram de voltar mais cedo. O mar estava revolto, e não era fácil nessas ocasiões evitar os três recifes que ficam à entrada da baía. Um dos marinheiros fica de pé, quando chegam em frente do rochedo, e observa as ondas; os outros remam com se fossem para o largo, até que o companheiro dá o sinal de que se aproxima a vaga que deve erguer o barco acima do rochedo. Então remam para terra; o barco é assim erguido na crista da onda, e torna a cair com ela. Some-se todo inteiro, de modo que, da praia, não se vê sequer o mastro, e pode parecer que a embarcação submergiu. Um instante depois ela reaparece, erguida pela vaga: diz-se-ia um caranguejo monstruoso que saiu do mar. Recomeça-se essa manobra segunda e terceira vez - nos dois outros escolhos;e, terminada a última, passou o perigo. Diante dos  rochedos, porém, o menor atraso, a minima hesitação da parte de quem comanda a manobra, pode ocasionar a perda do barco, que se reduzirá a cacos.
   Acercavam-se do primeiro recife quando Jorge adiantou-se de repente, dizendo:
  - Pai, deixa-me passar e ficar de pé na frente.
   É que um pensamento infernal acabava de lhe morder o coração.
  - Depende de mim - dizia consigo - que eu e Martim moramos aqui!
   E olhava alternativamente para o rochedo e para o companheiro. Chega a vaga; mas eis que Jorge dá com o rosto pálido e adoentado do pai adotivo; com um vigoroso esforço de vontade, afasta a tentação, dá o sinal a tempo e chegam à praia.
   Não o abandonam os pensamentos sinistros. Procura na memória as faltas que Martim podia ter cometido contra a amizade recíproca, desde que se conheciam; não encontrava, porém, agravos suficientes para lhe querer mal. Contudo, uma coisa ficava sempre de pé: é que Martim o despojara do seu mais caro tesouro, e isso era o bastante para lhe votar um ódio de morte. Alguns pescadores notaram a modificação das maneiras de Jorge para com o camarada, mas Martim, esse, nada via; era, como sempre, amável e complacente.
    O velho pescador ia cada vez pior; ficou de cama e afinal morreu, deixando sua casinha a Jorge. Não era muita coisa, mas Martin não possuía nem isso.
    - Agora- disse um dos vizinhos a Jorge - não tornarás a ser marinheiro: ficas conosco, a pescar.
   Todavia não era essa a intenção do moço, que pensava de novo em correr mundo. o pescador de enguias tinha um primo na Velha-Skagen, um negociante rico, armador, e homem excelente. E Jorge pensou em entrar para o serviço de sua casa, Fica bem longe de Huusby, Skagen: era isso precisamente o que  mais lhe agradava.
   Resolveu partir antes do casamento de Martin, que devia realizar-se dentro de poucas semanas. Quando soube desse projeto, disse-lhe o vizinho:
   - Mas por que te vais assim? É uma ideia insensata. Tens agora uma casa: Elisa há de te preferir a Martim.
   Jorge respondeu apenas algumas palavras incoerentes. O vizinho foi ter com a moça; custou um tanto fazê-la falar, mas afinal ela acabou por dizer.
  - Ele tem uma bela casinha; isso merece reflexão.
  Por sua parte, Jorge também refletiu muito. As ondas do mar são tumultuosas; não tanto, porém, como os pensamentos do homem, não tanto como os que atravessavam o espírito de Jorge, sacudindo-o, de todos os lados. Afinal disse à moça:
   - Escuta: se Martim tivesse também uma casa, qual de nós preferirias?
   - Mas é que ele não tem, nem terá jamais uma semelhante à tua.
  - Supõe contudo, por um instante, que ele venha a achar uma.
    - Nesse caso eu casaria com Martim; meu coração pertence a ele: mas é certo que não se vive de amor...
   Separaram-se; Jorge não dormiu um só instante.Tinha a alma violentamente agitada, mas uma ideia brotou-lhe repentinamente no cérebro, e foi crescendo pouco a pouco, e chegou a dominar seu amor por Elisa. De manhã voltara a calma ao seu coração; foi procurar Martim, e cedeu-lhe a casa por pouco mais de nada, dizendo-lhe que só o dominava um desejo: voltar a navegar no mar.
  Não era uma cabeçada, não: era uma resolução bem meditada. Quando soube do caso, Elisa abraçou-o, muito contente: Jorge lhe permitia casar com Martim, que ela preferia a qualquer outro.
  Jorge queria partir na manhã seguinte. À noite teve a lembrança de ir ver Martim, para levar consigo a recordação da antiga amizade. Ao atravessar as dunas encontrou aquele prestativo vizinho, que de novo lhe falou de Martim; e observou-lhe ainda como era extraordinário que aquele rapaz fosse tão bem-visto das moça. Jorge interrompeu-o bruscamente, dirigindo-se para a casa do camarada. Chegando à porta, ouviu conversas e risadas, e percebeu a voz de Elisa, que não desejava tornar a ver. Deu volta sem entrar, dando-se por feliz de não ter de ouvir os agradecimentos de Martim, e, principalmente, de escapar a tempo, para não ver a felicidade do outro.
                              
                                             v
Ao raiar do sol afivelou o saco de viagem e partiu; seguiu ao longo da praia, em direção a Fjaltring, onde faria uma visita ao pescador de enguias.
   Era belo o mar, de um azul muito puro. A areia estava coalhada de conchinhas de toda a espécie. Elas lhe lembravam os dias da infância, pois eram o seu brinquedo favorito. Erguia algumas, deitava-as fora e apanhava outras; afinal, de tanto se curvar assim, pôs-se a deitar sangue do nariz: a agitação em que vivia desde a véspera lhe fizera subir o sangue à cabeça. Sentiu depois disso o cérebro mais livre; mas algumas gotas tinham respingado na manga da camisa.
     Prosseguiu seu caminho, mais alegre agora, e mais livre. Colhia flores onde as encontrava e punha-as no chapéu. Via o vasto universo aberto diante de si, e, como as jovens enguias do velho pescador, lá ia em busca de alegria. Não esquecia, contudo, as palavras sábias da mãe enguia:
    - Minhas filhas, cuidado com os homens, tão maus e tão cruéis!
    - Mas - dizia consigo - que tenho a temer? Sou corajoso, e nunca fiz mal a ninguém.
    Já ia alto o sol quando chegou à Baía de Nissoum. Lançou um último olhar para Hunsby, e avistou dois cavaleiros que se dirigiam para aquele lado, seguidos de outros homens a pé.
    Aquilo não lhe interessava; continuou seu caminho. Na embocadura do rio chamou o canoeiro. Quando iam em meio da travessia chegaram os dois cavaleiros à beira do rio e dali deram ordem ao canoeiro, em nome do rei, que voltasse. Jorge não compreendia seu tom ameaçador mas achou que devia obedecer,e tomou um remo para ajudar o canoeiro.
      No momento em que a canoa tocava e terra, os dois homens lançando-se sobre Jorge, ligaram-lhe as mãos com uma corda, dizendo-lhe:
    - Teu crime te custará a vida; ainda tivemos a sorte de te alcançar!
     O pobre rapaz não pode proferir uma palavra, de tão assombrado. Soube afinal, que o acusavam de ter assassinado Martim, que fora encontrado morto, com uma facada na garganta.
   Lembram-lhe então na véspera à noite, o vizinho o encontrara a caminho da casa de Martim; e que, noutro tempo, já tinha levantado a faca contra ele; E, quando lhe descobriram na manga as manchas de sangue, ninguém mais pôs em dúvida que tivesse sido ele o assassino. E tudo quanto pode alegar em prova de sua inocência foi inútil.
    Como deviam ir por mar a Ringkjoobing, onde morava o juiz, e o vento era contrário, um dos cavaleiros propôs que levassem Jorge ao Castelo de Vosborg. Havia lá uma prisão onde a boêmia, a grande Margarida, fora encerrada durante os últimos dias que precederam a sua execução.
      Sentindo-se forte na sua inocência, Jorge resignara-se à sorte. Passaram diante das ruínas que vira quando ia com o pai e a mãe àquele enterro memorável, que lhe proporcionara os dias mais felizes de toda a sua infância. Tornou a ver no parque de Vosborg as tílias que perfumavam o ar e os sabugueiros em flor.
      Desta vez penetrou no castelo, mas não como tanto desejara outrora, para lhe admirar as maravilhas. Atrás de uma das alas da velha construção, fizeram-no descer para a sombria cava que servira de reclusão à famosa boêmia. Ela havia matado cinco crianças, para lhes comer o coração, e estava persuadida de que se tivesse podido devorar mais dois, teria adquirido o poder de se tornar invisível, e de voar nos ares.
     Havia lá apenas uma enxêrga (colchão grosseiro, rústico,.colchão grosseiro, rústico,..)miserável e dura. Contudo, amparado pela consciência, Jorge poderia dormir nela tranquilamente, se não viesse perturbar-lhe os pensamentos a lembrança da feiticeira. Vinham-lhe à memória s histórias de bruxedos, de arte diabólicas, que ouvira contar, e o menor ruído fazia-o estremecer. Acalmava-o a lembrança das tílias e sabugueiros floridos, da sua infância tranquila, de seus corajosos e honestos país, cujo exemplo sempre seguira.
 No dia seguinte, conduziram-no à cidade e o encerraram em uma prisão que não era melhor do que a de Vosborg. Naqueles tempos era a justiça muito severa com a gente humilde. Por um delito insignificante, o infeliz era muitas vezes moído a pancadas ou arruinado pelas multas. Por sorte, o juiz que instruiu todo o processo de Jorge não o levou muito depressa a julgamento, apesar das aparências, tão acabrunhantes. E, enquanto esperava ficava o detido naquele retiro, tão frio e tão sombrio. Tinha assim tempo de sobra para refletir, e perguntava de si para si por que lhe fora reservada semelhante sorte, uma vez que nenhuma falta cometera. Chegou, afinal, à conclusão de que o enigma lhe seria decifrado na outra vida, e esse pensamento acalmou-o. A fé na imortalidade, que haurira na pobre cabana de pescadores jutlandeses - e que seu pai, o grande senhor espanhol repelia - foi para ele, no meio das trevas, no seio das tristezas, do desânimo e do desespero, um facho, uma consolação, uma força, uma graça de Deus, desse Deus que não engana jamais.
   Tinha, ainda assim, horas de angústia pungente. Escutava, então, o silêncio lúgubre que o cercava, interrompido somente pelos rugidos do mar nas tempestades da primavera. Era um rolamento acima de uma abóboda. Aquele rumor parecia a Jorge uma doce melodia, pois lhe recordava o tempo em que vogava, livre, no oceano,
    - Ser livre, mesmo descalço, mesmo coberto de farrapos!
    E batia-lhe o coração a esse pensamento; e ele da punhadas na porta do calabouço.
   Enfim, depois que enlanguescera meses e meses, quase um ano, na prisão, seu infortúnio teve um termo. Um vagabundo, um aventureiro, conhecido por Nil, o ladrão, foi preso em virtude de um leve delito, e, no decorrer do processo, descobriu-se que fora ele o matador de Martim.
   Na noite do crime, Martim tinha ido dar uma volta pelo botequim, para dar parte da sua felicidade aos camaradas. Ofereceu-lhes muitos copos de aguardente, e ele próprio bebeu mais que de costume. Assim animado, pôs-se a tagarelar e a se gabar. Anunciou que tinha agora uma casa.
    - Mas como a conseguiste? - indagou Nils, que estava no grupo.
   -  Ora essa!Com o meu dinheiro!
    E, dizendo isto, Martim batia no bolso, todo entonado como um ricaço. E foi esse gesto vaidoso que o perdeu. Quando voltava a casa, Nils seguiu-o, atirou-se a ele, cortou-lhe a garganta com a faca. Mas a vítima apenas tinha no bolso algumas moedas de cobre.
    Todos esses fatos ficaram provados diante da justiça, e Jorge foi posto em liberdade. O juiz apresentou-lhe algumas desculpas. Jorge lamentou os longos meses de cativeiro e de sofrimento que padecera. O juiz então olhou-o de cima e disse-lhe que ainda devia dar-se por muito feliz de ter saído quite, porque teriam podido julga-lo mais cedo, diante das presunções singulares que o acusavam, e condená-lo à morte.
   Recebeu, porém, demonstrações de simpatia. O burgomestre deu-lhe dois escudos para começar a viagem, e um burguês bondoso levou-o para jantar em sua casa. Naquele mesmo dia chegou à cidade o negociante de Skagen a cuja casa se dirigia Jorge quando foi detido.Chamava-se Bronne. Soube de que sucedera, e compadeceu-se da infelicidade do moço. Resolveu fazê-lo esquecer aquelas provas cruéis e mostrar-lhes que há gente boa no mundo. E disse-lhe:
   - Esquece tudo isso; enterra essa lembrança. Vamos passar um traço sobre este ano mau - ou antes - vamos atirar ao fogo o seu almanaque. Irás comigo para a linda Cidade de Skangen.

                         VI
     E puseram-se a caminho. O Sol e o ar livre fizeram bem depressa esquecer a Jorge o calabouço úmido e sombrio. Naquela região a charneca estava coberta de giestas em flor. Sentado no vértice de um túmulo de Gigante, um pastorzinho tocava árias rústicas em uma flauta que ele mesmo fizera de um osso de carneiro. De tempos em tempo, os mais belos efeitos de miragem faziam aparecer florestas e jardins suspensos.
    Atravessaram a região onde habitaram os lombardos, na época em que, sendo muito grande a população para viver num espaço tão estreito, o Rei Snio resolveu mandar matar os velhos e os jovens, até dezoito anos;m as a boa Rainha Gambarouck aconselhou-o a deixar emigrar toda a juventude. Partiram pois, os jovens, e seus descendentes atravessaram os Alpes e fundaram o reino poderoso de Lombardia.
     Ao ouvir essa história, não teve Jorge, dificuldade em imaginar o que seria aquele país do Sul, onde se tinham implantado os dinamarqueses. Não vira a Espanha, aquela cidade igual a uma colmeia, onde a população zumbia; aqueles soberbos monumentos, aquelas laranjeiras, aquelas romanzeiras, aquelas árvores desconhecidas, todas as riquezas e as magnificências do Meio-Dia Mas esses esplendores não lhe deixaram saudades; achava-se melhor na Dinamarca: não era a sua verdadeira pátria?
    Enfim chegaram os viajantes a Vendilskagá, como é chamada Skagen nas sagas islandesas. Começa no farol que fica na ponta da Jutlândia, tão temida do marinheiros. Nessa extremidade as casas são dispersos nas dunas, que se somem e tornam a se formar, ao favor do vento. A um quarto de légua assenta a Velha-Skagen, onde ficava a morada do rico mercador.
   Era toda de madeira a grande casa, e pintada de alcatrão. O teto das dependências fora feito de velhas barcas viradas. Não havia muro. Nem jardim nem bosques, coisa que as areias não permitiam. A casa estava toda cercada de cordas estendidas, onde secavam ao vento milhares de peixes.
    A pesca ali tinha muito maiores proporções que em Huusby. Mal se lançavam as redes, recolhiam-se arenques às toneladas.
   A esposa do mercador, a filha, toda a gente da casa correu ao encontro dos viajantes. E eram abraços, apertos de mão, perguntas, um nunca acabar, enfim, de narrações. Que lindo era o rosto da moça e que suave o seu olhar!
    Ia Jorge de surpresa em surpresa. Não tinha visto nunca uma casa assim. Todos os dias havia banquetes como aquele do enterro, que nunca lhe saíra da memória - e até mais e suntuosos. Ali serviam peixe, com na mesa de reis e os vizinhos traziam a marca dos vinhedos mais célebres da França.
   Recebeu o moço o mais cordial acolhimento. Quando souberam quanto padecera injustamente, a senhora apertou-lhe a mão com ternura, e nos olhos de Clara, a filha do casal, brilharam lágrimas. E foi assim que ele sentiu ir-se diluindo depressa o resto da amargura que ainda lhe ficara no coração. Clara devia partir dentro de três semanas em um navio de seu pai, para a Noruega: ia passar alguns meses com uma tia, em Christiansand.
   No domingo que precedeu a partida foram todos a igreja para receber a comunhão. Era um belo templo, o maior de toda aquela província, e fora construído por um arquiteto holandês, na Idade Média. Ficava longe da cidade, e o caminho, coberto de areia profunda, era muito penoso de percorrer. Mas naqueles tempos de piedade ninguém olhava esses sacrifícios.
    No altar estava uma imagem a Virgem, como uma coroa de outo; tinha nos braços o Menino Jesus. Ao redor do coro viamse as estátuas dos antigos burgomestres da cidade. O Sol mandava seus raios até o santuário, e  fazia resplandecer os candelabros de prata. Jorge sentiu-se tomado de profunda emoção - como naquele dia em que entrara na nova catedral da grande cidade espanhola. Clara ajoelhara-se a seu lado, mas ele estava tão absorto no pensamento de seu que não viu a moça senão quando se levantaram. Observou então que lha caíam dos olhos lágrima de puro fervor.
   Dali a dois dias partia Clara para a Noruega. E ele lá ficou; tornou-se útil à casa, fazia os trabalhos da pesca. Quanto peixe havia naquelas paragens! Encontravam-se bancos de cavalas, que reluziam à noite, como fósforo. Também abundava la o coró ou roncador, que ronca quando é apanhado. De fato, nem sempre é justo o provérbio" Mudo como um peixe". Contudo, podia ser aplicado a Jorge e ao silencio que guardava sobre o que se passava no seu coração.
   Todos os domingos, na igreja, ia-se-lhe o olhar para o sítio onde Clara se ajoelhara a seu lado, e ali ficava preso. Também não esquecia quanto a jovem se mostrara sempre bondosa e amável om ele.
   Veio o inverno com suas chuvaradas, suas nevadas, suas tempestades, que amontoam areia ao redor das casa a tal altura, que os habitantes muitas vezes se veem obrigados a sair pela chaminé. Mas  em casa do rico negociante não se faziam sentir os rigores da má estação. Tudo lá era bem aquecido; a turfa e a madeira dos navios naufragados crepitavam na lareira. À noite o mercador  lia, em voz alta, velhas crônicas. Falava-se ali do Príncipe Hamlet, que viera da Inglaterra com uma frota e um exército até as costas da Jutlândia, e da grande batalha que ali se ferira. Seu túmulo era perto de Ramme, dizia o livro, no meio dos túmulos de Gigantes que lá existem às centenas. O mercador sabia-o, vira o lugar. Jorge cantava de boa vontade, e de preferência a balado do filho do rei da Inglaterra, que embarcou em um navio dourado a toda a roda, e em cuja proa se via sua própria imagem esculpida, com a noiva nos braços. Chegando a essa passagem, a voz do cantor ficava mais penetrante, e seus grandes olhos negros despediam clarões.
  E enquanto o furacão assobiava, viviam todos ali sossegadamente. A casa regurgitava de provisões: do teto pendiam presuntos e salsichas; havia montões de salmão defumado. E quando chegavam visitas, então a alegria subia ao cúmulo. Ainda hoje reina a hospitalidade nas costas da Jutlândia, como na tenda do árabe.
    Jamais na vida Jorge vira correr dias tão alegres; não se esquecia, porém de Clara. Também, que alegria quando, em abril, foi encarregado de ir buscá-la, em um navio do mercador! Tinha-se tornado um homem; era grande e robusto, e a mulher do negociante dizia:
   - Dá gosto ver um rapaz assim tão belo!
    - Sim - retrucava o marido - Jorge trouxe vida e alegria aos nossos serões de inverno.
   Desse modo ambos se regozijavam com a presença do moço.
   Afinal embarcou ele para ir buscar Clara na Noruega. Ventos favoráveis levaram-no em breve a Christiansand.
                            VII
Uma manhã o mercador subiu ao farol que se ergue na ponta extrema da Jutlândia. A uma milha, mar adentro, ficam os escolhos e os bancos de areia, tão temidos dos navegantes. Naquele dia muitos navios passavam diante dos recifes, Entre eles o mercador julgou reconhecer o seu, que ele esperava. Examinou-o com o óculo de alcance e viu que era a sua embarcação.
    Na ponte estavam Jorge e Clara. Farol e igreja apareciam-lhes como se saíssem do mar - uma cegonha e um cisne. Poderiam estar em terra dentro de uma hora, sentiam ambos no coração uma alegria antecipada.
   Nisso o navio bateu violentamente num escolho. Entrou água aos borbotões no porão. A equipagem correu para as bombas; tentaram tapar a brecha: tudo em vão. Içaram as velas. Fizeram sinais de perigo. O vento soprava para terra, a corrente levava-os em sua direção, mas sem a velocidade necessária. Não havia na costa senão barcas de pesca, lentas na partida, lentas na carreira.
   O navio soçobrou. Jorge tomou Clara com o braço direito, e, segurando-a conta o peito, lançou-se ao mar. No olhar que lhe dirigiu, nesse momento, ela lhe mostrou que o amava. E leu também, nos olhos de  Jorge, que não a abandonaria; havia de salvá-la, a menos que ele próprio soçobrasse.
  Como o príncipe da balada, tinha a noiva nos braços. Apesar daquele peso, nadava como um peixe. Poupava as forças, para não a esgotar antes de alcançar a terra. As ondas às vezes os cobriam, às vezes os lançavam ao ar. Ele, habitualmente tão intrépido, e que nada temia abaixo do céu, não tinha agora todo o sangue frio preciso; estava perturbado, via fantasmas; pareceu-lhe que avistava um leviatã, que ia devorá-los. Dez vez em quando se sentia jogado para o meio dos patos bravos, que dormiam sobre a água, e que levantavam voo, espantados; e os gritos dos patos, e o ruflar de suas asas, lhe cerravam o coração.
   De repente ouviu Clara soltar um suspiro, e viu-a a agitar-se em um estremecimento convulsivo; apertou-a com mais força, mas seu braço já amortecia, as forças iam diminuindo de minuto em minuto. E, contudo, estavam bem perto da terra; aproximava-se uma barca.
   Nisso avistou na água uma figura branca que o olhava fixamente, com ar ameaçador. Erguido pela vaga tornou a ver a figura de olhos imóveis. Fez-se a noite em seu espírito Tudo desapareceu a seus olhos. Mas seu braço não abandonou a moça.
    A figura branca não era um fantasma criado pela imaginação do moço: era uma escultura que decorava o beque de um navio naufragado, contra o qual a vaga o lançara violentamente.
   Àquele choque, perdeu os sentidos. A onda trouxe-o à superfície e os pescadores, que vinham socorrê-lo, levaram-no no barco. Corria-lhe sangue do rosto, e julgaram-no morto. Mas segurava a moça com tanta força, que não foi fácil arrancá-la do seu braço.
   Chegados à terra, todos os meios foram empregados para reanimar Clara; ela sucumbira  e jorge ouvira seu último suspiro: tinha ele feito todos aqueles desesperados esforço para salvar uma morta.
   Jorge ainda respirava; mas seu cérebro estava profundamente abalado. Tomou-o um delírio furiosos; soltava gritos roucos  e selvagens. No terceiro dia, caiu no leito, abatido e acabrunhado, como se a sua vida só dependesse de um fio.
   - Mais valia - disse o médico - que esse fio se rompesse de todo. Não tornará a ser o Jorge que nós conhecíamos.
   Não foi cortado o fio de seus dias, mas sim o da memória e da inteligência. E não pode haver visão mais triste do que a daquele moço tão belo, tão vigoroso, deslizando como um espectro mudo, afastado dos outros homens.
    O rico mercador conservou-o em casa, prodigalizando-lhe os mais ternos cuidados. E dizia à esposa:
     - Bem podia ele ter saído são e salvo da catástrofe, se não tivesse querido salvar nossa filha: agora é ele o nosso filho.
   O mundo considerava-o idiota, mas Jorge não o era. Parecia antes um instrumento cujas cordas afrouxaram, e não ressoam mais. As vezes, as cordas retesavam-se um instante, e faziam soar alguns compasso de uma melodia antiga. Jorge revia então algum incidente de sua vida passada. Mas no momento em que suas recordações se desprendiam do nevoeiro que as envolvia, o véu tornava cair, mais espesso que nunca. E ele voltava ao aniquilamento, olhar fixo, sem ideias, sem nenhuma chama nos grandes olhos, outrora tão brilhantes.
     E era aquele que, no seio materno, parecia destinado a uma sorte tão feliz, a tamanha ventura neste mundo, que seu pai reputava temerário desejar outra existência além do túmulo! Aquelas belas faculdades que trouxera ao nascer estavam para sempre extintas. Em recompensa de uma vida corajosa e devotada, era ferido de uma desgraça sem nome. Tudo aqui na terra está então entregue ao cego acaso?
    - Não!
   É a mãe de Clara quem repete a palavra do salmista: "O Senhor é bom para todos, e a misericórdia está em todas as suas obras." Não! Jorge achará lá em cima a compensação de tudo o que tem padecido!
   E ela orava, rogando a Deus que o chamasse bem cedo para o seu lado.
    Clara repousa no cemitério de Skagen. De vez em quando levam Jorge àquele lugar; e quando lhe dizem que é ali a última morada da moça, não o compreende ele. As raras recordações que lhe atravessam o espírito remontam a uma época mais recuada.
   Acompanha todos os domingos os velhos à igreja. Fica sentado, com o olhar fixo. Um dia, seus olhos voltaram-se para o lugar onde se ajoelhara ao lado de Clara. Soltou um suspiro; dilataram-se-lhe os olhos, brilhantes;empalideceu e disse m voz alta o nome da moça, derramando lágrimas. Tiraram-no da igreja; mas ele disse às pessoas que o cercavam que não era nada, que se sentia bem, que não reparasse nele. Era a noite, que lhe velava de novo a inteligência.
   E durante esse tempo, na Espanha no palácio suntuoso, um velho se consumia de desgosto, no meio de suas riquezas, no meio de todos os esplendores da natureza. Que lhe importava o ar cheio do perfume das laranjeiras? Que prazer encontraria naqueles bosques de loureiros, misturados com as romanzeiras em flor: Que alegria lhe proporcionava todo o ouro que possuía? Teria dado tudo para apertar nos braços o filho de sua adorada filha.
   Que pensaria ele, se pudesse vê-lo? Era bem um filho, que teria tornado a achar, um neto, posto que Jorge tivesse já trinta naos.
   O velho mercador e sua mulher morreram e repousam ao lado da filha.
   Seus herdeiros continuam a cuidar do pobre"maluco".

                       VIII
    Voltara a primavera, e com ela as tempestades. O mar estava furioso, os naufrágios se repetiam sem cessar contra a Ponta de Skagen. A areia elevava-se nos ares, em imensos turbilhões. Por cima das dunas passavam bandos de aves silvestres, soltando gritos.
   Num dia assim tempestuoso estava Jorge sozinho no seu quarto. Aquele tumulto dos elementos pareceu despertá-lo do torpor habitual. Penetrou-lhe uma luz no espírito.
    Tomou-o aquele sentimento de inquietação, aquela necessidade de movimento, que o tinham arrancado de Huusby e de suas dunas. E ele exclamou:
   - Vou para o meu país! Para o meu país!
   Ninguém o ouviu. Saiu , e foi direito às dunas. O vento lançava-lhe ao rosto areia e pedregulhos, mas ele ia andando, sem hesitar, para a igreja. A areia tinha-se amontoado ao longo das paredes, e já subira até o meio dos cruzeiros, mas a porta estava aberta e ainda oferecia passagem livre. Jorge entrou. A tempestade ululava, o mar rugia. Era um furacão como ninguém se lembrava de ter visto outro igual. Reinava a obscuridade em pleno dia. Mas na alma de Jorge fazia-se uma luz. Sentou-se no seu banco. A igreja iluminou-se como a catedral que ele vira na Espanha. Os velhos burgomestres desceram de seus quadros. O órgão soou, em concertos sublimes. Acorreram os mortos, trajando suas roupas de festa; lá estavam os velhos pescadores de Huusby, seus pais adotivos, o rico mercador, sua mulher, sua filha Clara. A moça estendeu-lhe a mão; eles se ajoelharam como outrora, e o padre os abençoou. Então recomeçou a música, com novos acordes, terna e melodiosa, levando a alma a um encantamento que não é deste mundo; era uma música a um tempo sonora e retumbante.
   Um pequenino navio, suspenso como ex-voto no coro da igreja, desceu, colocou-se diante dos desposados, Foi crescendo, crescendo maravilhosamente. As velas eram de seda, o cordame de ouro trançado; a âncora de ouro maciço. Jorge e Clara embarcaram nele com os que ali estavam, todos cheios de alegria. As paredes da igreja transformaram-se em tílias e sabugueiros floridos, que enchiam o ar de perfume, e o navio foi se elevando, vogando no espaço, enquanto os ventos tocavam a música que todos os fiéis entoavam em coro:
   " Nenhuma vida se perderá e o céu será cheio de alegria!
  Jorge cantava essas palavras divinas; nesse instante rompeu-se o laço que retinha cativa sua alma imortal. Na igreja, que a tempestade enchia de areia, jazia um morto.
   No dia seguinte era domingo. O pároco dirigia-se à igreja como os fiéis. Tiveram muito trabalho para abrir caminho, no meio do montões de areia. Quando chegaram diante do templo, viram-no já quase sepultado. Porta e janelas estavam inteiramente obstruídas. Só se via ainda o teto com a torre. Os fiéis rezaram e entoaram cânticos ao ar livre e voltaram à cidade. Ficou assentado que se construíra uma nova igreja mais abrigada contra o vento.
   - Deus - disse o sacerdote - fechou pelas próprias mãos o seu templo.
   E ninguém tentou abri-lo.
   Procuraram Jorge por toda a parte. Julgaram que se tinha perdido no meio da tempestade e que as vagas o arrastaram.
   Seu corpo estava em um grande e belo sepulcro. Deus mesmo lançara terra sobre aquele féretro. E ainda hoje ele lá repousa.
   A areia foi se amontoado sempre em redor da antiga igreja. O teto desapareceu, e só a torre ficou visível; avista-se longe: é o monumento funerário de Jorge. Porventura o terá algum rei mais magnífico e sobretudo mais inviolável?
   Ninguém sabia onde viera ele; ninguém soube como partiu.
   Se eu cheguei a sabê-lo, é que escutei o que diz o furacão, quando sopra através das dunas.
    
  FIM


    A Jutlândia é uma península da Dinamarca e o extremo norte da Alemanha. A porção dinamarquesa tem 29 775 km² e uma população de 2 513 601 habitantes.

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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Contos de Andersen - Bom Humor

  Recebi de meu pai a melhor parte da herança: um bom humor.
   Mas quem era meu pai? Ora, isso nada tem a ver com o caso do humor. Era um homem vivo, cheio de corpo, gordo mesmo; e redondo. Tanto o seu exterior como o interior estavam em desacordo completo com o ofício que exercia.
    Mas que era ele - em razão do ofício e da sua posição na sociedade?
   Ah! Se tudo isso estivesse escrito e impresso logo no começo de um livro, muita gente, mal o abrisse, tornaria a fechá-lo, dizendo:
   - Que coisa sinistra!...Não, não gosto disso!
    Todavia meu pai não era carrasco, nem esfolador. Pelo contrário: em razão do ofício, ficava à frente dos homens mais ilustres da cidade. E tinha todo o direito de ocupar esse lugar: tinha de ser o primeiro, tinha de ir antes do bispo, antes dos príncipes reais. E ia mesmo à frente de todos eles: era o cocheiro do carro fúnebre.
   E agora, que a história saiu a lume, posso bem dizê-lo: quando a gente via meu pai sentado lá no alto da boleia do ônibus da morte, envergando a ampla e longa capa preta, touçado como unicórnio guarnecido de preto, e exibindo, a despeito de tudo isso, um rosto que se parecia com um desenho do sol, redondo e risonho - oh! então não podia a gente pensar em luto e nem em túmulo: aquela cara dizia:
    -Não faz mal, não faz mal.Tudo há de acabar melhor do que a gente pensa.
    - Vê-se, pois, que dele  herdei o meu bom humor, assim como o hábito de frequentar o cemitério. É muito divertido, quando a gente lá vai com bom humor. Além disso, sou assinante da Gazeta da Inteligência, como ele mesmo o era.
      Já não sou moço; não tenho mulher nem filhos; nem possuo biblioteca. Mas, como já disse, assino a Gazeta da Inteligencia  e isso me basta. É par mim o melhor jornal, e também o foi para meu pai. É de grande utilidade, traz tudo o que um homem precisa saber: quem prega nas igrejas, e quem ensina nos novos livros. E a quantidade de atos de beneficência, e a multidão de versinhos inocentes e amáveis que a gazeta contém! Casamentos que se solicitam, encontros que se arranjam! Tudo tão simples, tão natural! Realmente, agente pode viver uma vida boa e feliz, quando assina a Gazeta da Inteligencia! E sem contar ainda que ao fim da existência tem tanto jornal que poderá repousar agradavelmente sobre uma camada de papel, se não gosta de um leito de serradura.
    Assim é que a Gazeta da Inteligencia e o cemitério foram sempre para mim passeios que despertam o espírito, espécie de estabelecimentos de banhos para o meu bom humor.
    E agora quem quiser, pode ir sozinho dar um passeio pelas colunas da Gazeta da Inteligencia. Mas acompanhem-me ao cemitério. Vamos até enquanto o sol brilham e as árvores estão verdes! Andemos por entre os túmulos...Cada um é um livro fechado, com a lombada para cima. Podemos ler o título que, embora indique o que contém o livro, nada diz verdadeiramente. Mas eu sei mais alguma coisa nesse sentido. Aprendi-o de meu pai, e também por mim mesmo. E escrevi tudo isso no meu livro de túmulos, um livro feito por mim, para meu uso e gozo. E aí é que jazem todo eles, e mais alguns.   
   Pois bem: estamos no cemitério.
   Ali, por detrás daquela grade pintada de branco, onde outrora se enlaçava uma roseira - agora ela já não existe, mas algumas sempre-vivas do túmulo vizinho introduzem lá dentro seus rebentos verdes, para que não fique de todo desordenado - ali repousa um homem muito infeliz. E, contudo, enquanto vivia, passava bem, como se costuma dizer. Tinha recurso para viver folgadamente, e até na abastança. Mas o mundo, isto é, a arte, preocupava-o demais. Quando se achava à noite no teatro, para apreciar uma peça que lhe agradava, ficava fora de si, só porque o técnico dirigia uma luz muito forte sobre uma das faces da lua; ou porque as bambolinas ficavam suspensas diante dos bastidores, em vez de ficarem atrás, ou ainda quando aparecia uma palmeira em um parque berlinense, ou um cacto no Tirol; ou faias nas montanhas da Noruega. Mas acaso tudo isso não vem a dar no mesmo? Quem se preocupa com essas coisas? Aquilo não é mais que uma comédia para divertir a gente. E o público, que ora plaude demais, ora de menos...
   - Hoje estão como a lenha úmida - dizia o homem - não querem, inflamar-se!
   Voltava-se, para ver quem estava no teatro; e quando riam em um passo que não era para rir, exasperava-se - atormentando-se mais ainda. Era, pois, um homem infeliz, o que agora descansa naquele túmulo.
   Naquele outro, entretanto, jaz um homem afortunado - o que quer dizer, um homem distinto, de alta linhagem, o que constituía a sua felicidade. Sem ela, jamais teria chegado a ser coisa alguma, mas a natureza arranja todas as coisas com tamanha inteligência, que dá prazer pensar nelas. O homem pavoneava-se todo, cheio de bordados na frente e nas costas, e ficava instalado no salão de festas, tal qual como está fixado à parede um preciso puxador de campainha, coberto de pérolas, por detrás do qual há sempre uma boa e sólida corda, para fazer o trabalho. Aquele homem tinha também atrás de si uma boa corda, isto é, um substituto que fazia o trabalho - e continua a fazê-lo, atrás do novo puxador bordado. Tudo isso está tão sabiamente organizado, que a gente não pode eximir-se a uma dose de bom humor...
   Lá jaz - devo dizer agora que isto é na verdade muito triste - lá jaz um homem que durante sessenta e sete anos quebrou a cabeça em busca de uma pilheria; só vivia para esse fim. Finalmente encontrou uma, segundo lhe pareceu, e alegrou-se tanto com ela que morreu - morreu de alegria, da alegria de a ter descoberto. Assim ninguém aproveitou o excelente chiste, ninguém o ouviu. E não é difícil imaginar que por causa dele o homem não há de ter encontrado paz nem mesmo no túmulo! Sim: porque suponhamos que foi um desses chistes que só se podem aplicar para que produzam efeito completo à hora do almoço; ora, ele, morto como está, e segundo a opinião geral, só pode aparecer à meia-noite, hora para a qual não se presta a pilheira. E ninguém se divertiria com ela, e o homem teria de voltar ao túmulo com a sua pilheira cheia de graça. Não pode deixar de ser uma sepultura muito triste!
   Lá, mais longe, descansa uma mulher muito avarenta. Quando viva, levantava-se de noite e miava, para que os vizinhos pensassem que ela sustentava um gato - de tão avarenta!
   Adiante, é uma senhorita de boa família. Nos saraus musicais, costumavam pedir-lhe que se fizesse ouvir. Cantava então Mi manca la você!, e era esta a única verdade que ela proferiu em toda a vida.
   Acolá jaz uma rapariga de outra espécie. Quando o canário do coração se põe a cantar, a razão tapa os ouvidos com os dedos. É uma história comum: deixamos em paz os mortos!"
   Aqui repousa uma viúva que tinha na boca a voz do cisne e no coração a bílis da coruja. Andava procurando entre as famílias, à cata dos defeitos do próximo, tal qual como o guarda que, dantes, passava pela rua, para ver se faltava alguma pinguela sobre o arroio.
   Isto aqui é um jazido de família. Cada um dos membros da progênie apegava-se aos outros nesta convicção: ainda que todo o mundo diga, e o jornal também, que uma coisa é assim -se o caçula da família ao voltar da escola disser: " Sei que é assado !" prevalecerá a sua opinião, pois que ele faz parte da família.
   E nenhum deles punha em dúvida que a manhã estivesse raiando quando o galo da família cantava, ainda que o guarda-noturno e todos os relógios da cidade anunciassem a meia-noite.
   O grande Goethe terminou seu Fausto com estas palavras: " Pode ser continuado." O nosso passeio ao cemitério também poderia. Vejo-o muitas vezes neste caso: quando um ou outro de meus amigos - ou não amigos - passa dos limites, saio e venho para aqui, procuro um canto coberto de grama e consagro-o - a ele ou a ela, a qualquer pessoa que desejo sepultar. Enterro-a logo, e ali ficam todos eles, mortos e impotentes, até que voltem, como criaturas novas e melhores. Sua vida e seus feitos, que considero cá à minha maneira, eu os descrevo no meu livro de túmulos. Acho que todos deviam proceder assim sem se exasperar quando alguém se excede. Melhor é enterrá-lo imediatamente, conservar o bom humor, e também ler a Gazeta da Inteligência, esse jornal escrito pelo próprio povo, tantas vezes com "mão inspirada".
    E quando chegar o dia em que eu mesmo, mais a minha biografia, tivermos de ser encadernados na sepultara, que gravem nela esta inscrição:
                              BOM HUMOR
       E é essa a minha história.
FIM

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Contos de Andesen - O Trigo Mourisco

 Quando, depois de uma tempestade, a gente passa por um campo de trigo mourisco, nota que as plantas chamuscadas estão negras. Dir-se-ia que uma chama de fogo atravessou o trigal e os camponeses já sabem:
  - Foi o raio.
  Mas de onde veio esse raio?
  Vou contar o que me contou o pardal; ele ouviu esta história de um velho salgueiro que morava perto de um campo de trigo mourisco, e que ainda lá está de pé. É um salso-chorão, enorme, venerável, mas rachou ao meio, e na fenda crescem agora musgo e relva e até um espinheiro; a árvore curvou-se para a frente, e os galhos descem até o chão - parecem longos cabelos verdes.
 Em todos os campos dos arredores crescia o grão; não só o centeio e a cevada, mas também a aveia sim, e da melhor, daquela que, quando está madura, parece um bando de pequeninos canários pousados nas hastes frágeis. E os cereais erguiam-se, sorridentes. E quanto mais rica era a espiga, mais profundamente se inclinava, em piedosa humildade.
   Mas havia também ali um campo de trigo mourisco, e esse campo ficava exatamente em frente do salgueiro velho. O trigo mourisco não se curvava, como os outros cereais mas erguia-se, teso, cheio de orgulho. E dizia:
   - Sou tão rico como as outras espigas de cereal. Alem disso, tenho um porte mais bonito e minhas flores igualam em beleza as da macieira. É um prazer olhar para mim e para a minha família! Conheces gente mais bela que nós, velho chorão?
    E o salgueiro acenava com a cabe;a, tal qual como se quisesse dizer?
  - Sim, isso é verdade!
   Mas o trigo mourisco ia crescendo em presuncão e menosprezava o salgueiro:
   - Árvore decrépita! Está tão velha que a grama lhe vai trepando pelo corpo!
   Um dia estalou medonha tempestade: toda as flores do campo fechavam as pétalas, ou inclinavam as cabecinhas, enquanto passava o tufão. Mas o trigo mourisco continuava esticado, teso, cheio de orgulho.
    - Abaixa a cabeça como nós! - diziam as flores.
    - Não vejo razão para isso - respondeu o trigo mourisco.
   - Curva a cabeça como nós! - gritavam os outros cereais. - O tufão já vem descendo, vem voando...Ele tem asas que descem das nuvens até a terra, e te partirá em duas metades, sem te dar tempo de gritar por socorro!
   - Pois sim...mas eu não hei de abaixar a cabeça!
  - Fecha tuas flores e abaixa as folhas! - disse o salso velho. - Não olhes para cima, não olhes para o raio, quando a nuvem se fende! Nem os homens fazem semelhante coisa! Porque a luz do relâmpago a gente pode ver dentro do céu, mas o raio ofusca até a vista dos homens; que seria de nós então se ousássemos encará-lo - nós pobres plantas do campo, que valemos muito menos do que eles?
    - Valemos menos?! - gritou o trigo mourisco - Pois digo-te que vou olhar mesmo para dentro do céu!
   E olhou - tão cheio de orgulho e vanglória era o trigo mourisco! Mas foi como se o mundo inteiro tivesse incendiado!
   Depois que se acalmou a tempestade, as flores e os cereais ergueram-se no ar puro e tranquilo, que a chuva refrescara. Mas o trigo mourisco estava todo chamuscado, da cor do carvão queimara-o o raio, e agora não era mais que erva morta no campo.
  E o salgueiro velho agitava os galhos ao vento, e das folhas verdes caiam grande gotas d'água, como se árvore estivesse chorando.
  E o pardal perguntou-lhe:
   - Por que choras? Tudo aqui é tão lindo! Vê como brilha o sol; vê as nuvens que lá vão navegando no céu...Não sentes o perfume das flores e das folhas? Por que estás chorando, salgueiro?
   E o chorão contou-lhe o que sucedera ao trigo mourisco: como ele fora orgulhoso e presumido. E falou-lhe da punição que recai sempre sobre semelhante pecado.
 FIM

Campo de trigo Mourisco
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Árvore Salgueiro

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Plantação de aveia
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