quarta-feira, 9 de maio de 2018

O Velho Lampião - Contos de andersen

Já ouviste contar a história do velho lampião da rua? Não pode se dizer que seja lá muito divertida, mas vale a pena ouvi-lá, pois é interessante.
   Era um velho lampião, um bom e honesto lampião, que durante muitos a, muitíssimos anos fizera o seu trabalho, e agora ia ser aposentado. Achava-se pela última vez sobre o poste, espalhando luz pela rua. E o lampião sentia o que deve sentir uma velha comparsa de bailados, que dança pela última vez e amanhã ficará esquecida na sua água-furtada.
   Sentia-se também amedrontado, porque no dia seguinte teria de comparecer pela primeira vez à Prefeitura, onde o prefeito e os conselheiros o inspecionariam, para decidir sobre a sua sorte: se ainda estava ou não em condições de prestar serviço.
   Ficaria então resolvido se dali em diante iria fornecer luz aos habitantes de um arrabalde, ou a uma fábrica do interior. Talvez o destino o levasse diretamente a uma fundição de ferro; atormentava-o uma dúvida atroz: se nesse caso conservaria a recordação de ter sido outrora lampião de rua. Mas, sucedesse o que sucedesse, de uma coisa tinha certeza: iam separá-lo do guarda-noturno e da mulher, que o consideravam como parte da família.
  Quando o lampião foi suspenso pela primeira vez, o guarda-noturno era um moço vigoroso. E assumia o cargo também justamente naquele momento. Sim!  Quão longe ia já o tempo em que um se tornara lampião e o outro guarda-noturno! Naquela época a mulher do guarda era um tanto arrogante; só se dignava a olhar para o lampião quando passava por ele à noite; de dia, jamais. Contudo, nos últimos anos, já envelhecidos todos - o guarda, a mulher e o  lampião - ela também lhe dispensava cuidados, polindo-o e enchendo-lhe o depósito. Era honestíssimo, aquele velho casal: jamais o defraudaram sequer em uma gota de óleo.
     E era esta a última noite que passaria na rua! E teria de ir no dia seguinte à Prefeitura! Duas ideias sinistras!Não admirava, pois, que não pudesse dar uma luz mais brilhante. Mas ainda muitas outras ideias lhe passavam pela cabeça. A quanta coisa não prestara sua luz! A quantas ocorrências assistira...talvez tantas como o prefeito e os conselheiros. Contudo, não manifestou essas ideias; era um lampião muito bom e honesto, que a ninguém desejava fazer mal e menos ainda às autoridades.
   Lembrava-se de tantas coisas, que de vez em quando sua chama bruxuleava. E naqueles momentos tinha a impressão de que havia alguém que se recordasse dele.
  - Sim, havia aquele belo rapaz...é verdade que já faz tanto tempo! Ele tinha na mão uma carta cor-de -rosa, dourada nas bordas. A letra era fininha, dir-se-ia da mão de uma dama. Leu-a ele duas vezes, beijou-a e erguem para mim os olhos, que diziam claramente:
   " Sou o mais feliz de todos os homens!"
    - E só nós dois sabíamos o que estava escrito naquela primeira carta da sua namorada. Sim...E há outro par de olhos de que me lembro. Que coisa estranha são estes saltos do pensamento! Houve um enterro na rua. Repousava a bela moça no mais rico de todos os carros fúnebres, encerrada em um féretro coberto de flores e coroas. Tantas eram as tochas, que desmaiavam a minha luz. Ao longo das casas acotovelava-se a multidão, que acompanhava o cortejo fúnebre. Mas quando perdi de vista as tochas, e olhei em roda de mim, vi uma única pessoa que derramava lágrimas, encostada ao meu poste. E jamais esquecerei o par de olhos dolorosos que se erguiam para mim naquele momento!
   E eram esses pensamentos e outros semelhantes, que ocupavam a mente do velho lampião, que ardia pela derradeira vez. 
   A sentinela que é rendida conhece ao menos o seu substituto, e pode trocar com ele algumas palavras. O lampião ignorava quem lhe iria suceder; e contudo poderia dar-lhe algumas indicações úteis a respeito de chuvas e cerração, por exemplo; e poderia ensinar-lhe o alcance dos raios lunares sobre o passeio, ou qual a direção que o vento costumava tomar - além de muitas outras coisas. 
  Na prancha que atravessava a sarjeta, achavam-se três pessoas, que queriam apresentar-se ao lampião, porque pensavam que ele mesmo podia transferir o cargo A primeira era uma cabeça de arenque, que também sabia luzir no escuro, e achava que se poderia economizar muito azeite, colocando-a no poste. Vinha depois um pedaço de madeira podre, que também cintila no escuro. E afirmava a sua origem: era rebento de um velho tronco, outrora adorno da mata. A terceira pessoa era um vaga-lume. Não compreendia o lampião de onde viera ele, mais ali estava, e também espalhava luz. Mas o pau podre e a cabeça de arenque juravam por tudo quanto para eles era sagrado que o vaga-lume só podia luzir em determinadas épocas, e por isso não devia ser tomado em consideração.
  Declarou o lampião velho que nenhum deles espalhava luz suficiente para ocupar o cargo de lampião de rua, mas ninguém, lhe deu crédito. E quando ouviram dizer que não era o lampião quem transferia o cargo, acharam isso muito acertado; já estava tão caduco que não podia fazer a escolha.
   Nesse instante chegou o vento, soprando da esquina; passou pelos respiradouros do lampião, dizendo-lhe:
  - Mas que é isso? Queres ir embora amanhã? Vejo-te então hoje ela última vez? Nesse caso quero fazer-te um presente de despedida. Vou assoprar no teu crânio de tal maneira que não só te lembrarás no futuro de tudo o que viste e ouviste, mas também terás tanta luz interior que poderás ver tudo quanto for lido ou narrado na tua presença.
   - Ah! - disse o lampíão - mas isso tem muito valor! Agradeço-te de todo o coração. Tomara que não tornem a me fundir!
  - Por enquanto não há perigo que isso aconteça - disse o vento. - Vou agora soprar-te na memória, e se receberes outros presentes assim, poderás ter uma velhice muito alegre.
   - Tomara que não me refundam! Mas - nesse caso conservaria também a memória?
   - Ora, lampião velho, não sejas tão curioso!
    E o vento continuava a soprar.
  Nesse instante surgiu a Lua do meio das nuvens.
  - E a senhora, que vai dar ao lampião! - perguntava o vento.
  - Nada! - respondeu ela. - Estou minguando, e os lampiões nunca me iluminam: pelo contrário, eu é que tenho de aluminá-los.
   E tornou a se esconder atrás das nuvens, para evitar novas importunações.
    Bateu então no lampião uma gota, que parecia ter caído do telhado. Contudo, declarou que acabava de chegar diretamente das nuvens cinzentas, e que era também um presente, e talvez o melhor de todos.
    - Vou molhar-te de tal maneira - disse a gota - que, se assim o quiseres, poderás converter-te em ferrugem em uma única noite, esvaindo-te em poeira.
   Mas o lampião achou que semelhante presente não valia nada, e o vento foi da mesma opinião. E soprou com toda a força, indagando:
  - Ninguém mais quer trazer presentes? Ninguem mais ?
    Caiu então uma brilhante estrela, deixando atrás de si uma longa fita luzente.
    - Que é aquilo? - gritou a cabeça de arenque. - Não era uma estrela cadente? Parece até que entrou no lampião...Mas então, se personalidades tão elevadas se interessam pelo cargo, gente como nós fará melhor indo para casa.
    E foi o que fizeram os três. Mas o velho lampião espalhou uma luz maravilhosa.
    - Que presente magnífico! - exclamou ele. - As estrelas claras, que sempre vi com tanto prazer, e que luzem tão esplendidamente como eu nunca consegui luzir, por mais que empregasse nesse empenho todo o meu sentir, todo o meu pensar- as estrelas me descobriram, a mim, o pobre lampião velho, e enviam-me um presente! E agora, todas as coisas que tenho na memoria, e vejo com tamanha nitidez como se estivessem diante dos nossos olhos, poderão ser também vistas por todos aqueles a quem amo. E é nisso justamente que consiste a verdadeira alegria: a alegria que não podemos repartir com outros, é apenas meia alegria.
    - Honra-te essa maneira de pensar - disse o vento. - Mas para isso seria preciso que tivesses velas de cera. Se elas não forem acesas dentro de ti, que tua estranhas faculdades de nada servirão aos outros. Estás vendo?Oh! As estrelas não se lembraram disso.. Pensam que tudo quanto serve para a iluminação é vela de cera - até tu! Mas vou sossegar agora.
   E sossegou mesmo. E quando isso suspirava o lampião velho:
   - Ah! Deus nos acuda! Velas de cera! Nunca as possuí, e certamente jamais hei de possuí-las...Tomara que não me refundam!
   No dia seguinte...
  Bem, será melhor saltar o dia seguinte. Na noite seguinte descansava o lampião em uma cômoda poltrona. Adivinhem onde! Ora, em casa do velho guarda-noturno. Em consideração aos seus longos anos de serviços, solicitara do prefeito e dos conselheiros o favor de ficar com aquele lampião velho, que acendera pela primeira vez no dia em que vinte e quatro anos antes,assumira o cargo. Considerava-o como um filho, porque não tinha outro. E atenderam o seu pedido.
   Agora se achava o lampião sobre a cômoda poltrona ao  lado da estufa acesa. Até parecia maior, assim sozinho em cima da cadeira.
      O velho casal jantava, lançando olhares cheios de simpatia para o velho lampião ao qual teriam dado com prazer um lugar à mesa.
  É verdade que habitavam apenas um porão, que penetrava duas braças na terra. Para chegar ao quarto, era preciso atravessar um corredor lajeado. Mas lá dentro tudo era agradável e quentinho. Para conservar o calor, tinham pregado tiras de pano na porta. Tudo era limpo, asseado. A cama tinha dossel, e as portas e janelinhas estavam guarnecidas de cortinas. No peitoril viam-se dois estranhos vasos, que o marinheiro Cristiano trouxera das Índias Orientais - ou Ocidentais. Eram potes de barro comum, e representavam dois elefantes, mas sem costas: no lugar delas brotavam, da terra que os enchia, ótimos alhos porros, no que servia de horta, e um grande tufo de gerânios, no que era jardim. Pendia da parede um grande quadro colorido: o Congresso de Viena. E nesse quandro tinha o casal de velhos, reunidos, todos os reis e imperadores. Um relógio de parede, com pesos de chumbo, fazia tique-taque. Estava sempre adiantado, mas eles achavam melhor assim: antes adiantado que atrasado.
   O casal estava jantando, como já disse, e o lampião da rua achava-se na cômoda poltrona, junto da estufa. Parecia-lhe que todo o mundo estava revolucionado. Mas quando o velho guarda o olhou e falou das coisas que tinham visto juntos - das chuvas e nevoeiros, das noites de verão, tão curtas e tão claras, e também das longas noites de inverno, com sua nevada, aquelas noites em que a gente sente saudades do conchego da casa - o lampião começou a ambientar-se e tornou a tomar pé. Enxergava com tanta nitidez como se tudo aquilo estivesse acontecendo naquele instante. Sim! O vento acendera nele uma boa luz!
   Eram muito ativos e diligentes os dois velhos. Não estavam nunca ociosos. domingo à tarde tiravam livros da gaveta, de preferência livros de viagem. E o velho lia coisas a respeito da África, das vastas selvas, dos elefantes selvagens; escutava-o a mulher, muito atenta, deitando olhares de esguelha para os outros, os de barro, que serviam de canteiros. E dizia:
  - Eu imagino, eu imagino!
   E o lampião desejava de tudo o coração que houvesse acesa nele uma vela de cera. Porque nesse caso a velha poderia ver tudo distintamente, com todos os pormenores, como o via ele: as altas árvores, os ramos emaranhados, os negros nus, a cavalo; os elefantes, em multidões, pisoteando os juncos e arbustos com as pesadas patas.
 - De que me servem todas as minhas faculdades, se não encontro uma vela de cera? - suspirava ele. - Os coitados só tem azeite e vales de sebo, e isso não basta!
  Um dia, afinal, foi ter ao porão uma grande  quantidade de tocos de vela de cera. Os maiores foram queimados, e os menores serviram para encerar a linha da costura da velha. Portanto não faltava agora vela de cera mas ninguém se lembrou de por um pedaço no lampião.
   - E aqui estou eu com faculdades tão raras - pensava ele - e completamente inúteis. Trago tudo comigo, e não consigo fazê-los aproveitar essas vantagens. E nem sabem que tenho o poder de transformar as paredes brancas nas tapeçarias mais esplêndidas, nos bosques mais lindos - em tudo, enfim, quanto se possa desejar.
     Contudo, cuidava muito do lampião; conservavam bem areado, e sempre em um lugar onde era logo visto. Achavam as visitas que aquilo era um traste velho, mas os donos da casa não se importavam com a opinião dos outro: queriam bem ao lampião.
   Um dia - era  o aniversário natalício do guarda - a mulher aproximou-se sorrindo do lampião e disse:
   - Hoje vais iluminar a casa, em homenagem ao meu marido.
   E o lampião chiava, nos seus enfeites de folha, pensando:
  - Ora até que afinal alguém acenderá a vela!
   Mas foi azeite o que puseram nele O lampião ardeu a noite inteira. Percebia, porém, agora que o presente das estrelas permaneceria inaproveitado toda a vida.
   Um dia teve um sonho - porque não era difícil sonhar, era um lampião que possuía todas aquelas faculdades. Sonhou que os dois velhos tinham morrido, e que ele fora levado para a fundição de ferro, a fim de se refundido. Teve tanto medo como naquele dia em que tivera de ir à Prefeitura, para ser inspecionado pelo prefeito e por todo o conselho. Mas, embora senhor do poder de se desfazer, quando lhe aprouvesse, em ferrugem e pó, não fez. Meteram-no em um cadinho e transformaram-no em um castiçal de ferro, o castiçal de ferro mais bonito que se possa desejar. Deram-lhe a forma de um anjo, com um grande ramalhete. No meio do ramalhete é que se colocava a vela de cera. O castiçal achou um lugar em uma secretária verde, num gabinete de luxo. Havia em redor dele muitos livros, e nas paredes quadros belíssimos, e todas aquelas coisas pertenciam a um poeta. Tudo quanto este pensava ou escrevia, aparecia ao redor dele. O ambiente transformava-se em matas densas e tenebrosas, em prados amenos, onde se pavoneavam cegonhas, no convés de um navio em alto mar, no firmamento recamado de estrelas.
   - Quantos donos tenho em mim! - disse o velho lampião ao despertar. - Quase que desejo ser refundido...Mas ainda não! Não quero  que isso aconteça enquanto viveram os dois velhos. Eles me estimam tanto por causa da minha personalidade; poliram-me, encheram-me de azeite. Seja como for, tenho tão boa aparência como todo aquele Congresso, cujo aspecto também lhes causa tamanho prazer.
    E dali em diante viveu sempre em perfeita tranquilidade interior - e era isso mesmo o que merecia o velho lampião da rua, tão bondoso e tão honesto.
FIM