quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

José Veríssimo -O Crime do Tapuio

     Mal completara Benedita os sete anos, quando os pais, uns pobres caboclos do Trombetas, deram-na ao Filipe Arauacu, seu padrinho de batismo, que a pedira e fizera dela presente à sogra.
    - Aqui está -disse-lhe - que eu lhe trouxe pra dar fogo pra seu caximbo
    Desde esse dia começou  para aquela criança uma triste existência..
   A velha Bertrana, a sogra de Filipe, era mulher de mais de quarenta anos, baixa e magra como uma espinha de peixe. Tinha a cara comprida, muito branca, de uma alvura lavada, sem cor, emoldurada nuns cabelos duros, ainda todos negros, que habitualmente trazia soltos nas costas. Os dentes, apontados a faca, consoante o gosto das mulheres do sertão, perfeitos e claros, saltavam-lhe fora da boca desgraciosa, imprimindo no lábio inferior arrouxado e excessivamente fino, a sua forma de serra. Uma larga orla escuro-azulada, qual se vê nos ascetas ou nas colarejas cansadas, circulava-lhe os olhos miudinhos, negros, de má expressão. O nariz pequeno e afilado desenhava-se com muita pureza, fazendo singular contraste no seu feio semblante, onde todos o notavam logo com uma perfeição deslocada. Prezava-se de branca.
   Bertrana passava a vida na rede, uma rede fiada e tecida na terra, azul e branca, de largas varandas de chita encarnada, permanentemente atada, salvo o tempo apenas indispensável de mudá-la por outra, perfeitamente igual, a um canto da sala em que havia. Era um aposento suficientemente espaçoso, de paredes apenas embarreadas, o chão de terra batida, dura que nem cimento, e, embora sempre muito limpo, muito varrido e arrumado, com o cheiro particular às habitações de doentes.
         Meses decorriam sem dele sair; comia e dormia ali mesmo. Debaixo da rede fica-lhe um lindo tupé bordado a talas pretas e brancas, muito polidas, e sobre ele o seu cachimbo, uma antiga latinha de conserva portuguesa com tabaco migado, uma palmatória de couro de peixe-boi e uma rija vergasta, tanto ou quanto esgarçada na ponta pelo uso, de umbigo do mesmo peixe. È um açoite terrível peculiar à Amazônia, como o "bacalhau" ao Sul.
   De quando em quando gemia com um tom lastimoso. Arracanva do magro peito, cujos ossos pareciam querer furar-lhe o paletó de chita roxa, que assiduamente usava, um escarro pegajoso; deixava-o cair lentamente, fazendo um fio branco de gosma, para uma cuia pitanga que lhe ficava no tupé, à esquerda; limpava de leve, cautelosamente, os beiços a um lenço vermelho e gritava com uma voz esganiçada de tons falhados, muito cantada:
   - Benedita!...
   A rapariguinha acudia pressurosa, trêmula, a correr. Era para dar-lhe fogo para o cachimbo. Benedita vinha com o fogo e, encostando a brasa espetada em um velho garfo de ferro ou tição ao tabaco, acendia-o. Ela ficava fumando devagar, compassadamente, o cotovelo agudo especado nos joelhos, a mão aguentando o tubo do cachimbo com os olhos fitos num trecho do terreiro que aparecia pela porta aberta em frente da rede, batendo os beiços um no outro a chupar as fumaças, em uma posição indolente de vadiação satisfeita. Concluída aquela cachimbada, depunha de manso o cachimbo na esteira, junto da lata de fumo, arrancava do peito descarnado um grande suspiro doído e, com a sua voz comprida:
   - Benedita!...
   Agora era para dar-lhe um remédio dos muitíssimos que constantemente tomava, contidos nos vasos de barro que formavam, arrumados no chão por detrás da rede, uma espécie de bateria de botelhas elétricas. Em cada uma daquelas pequenas"chocolateiras" de bojo esférico e pescoço cilíndrico, havia um cozimento, uma infusão, um chá, uma droga qualquer, composta de vegetais. Suspensos das ripas das paredes por finos cordéis e embiras, pendiam vidros maiores e menores, contendo diferentes óleos e banhas de origem animal ou sucos lácteos de certas plantas. De uns bebia, com outros se fomentava ou emplastava por causa dos seus infinitos e variadíssimos achaques.
   Para as dores nas costas tinha leite de amapá e para as do peito tinha o de ucuuba. E mais, jarauassica e folhas de café para regularizar as funções; a milagrosa caamembeca por causa das diarreias, a que era atreita; moruré e manacã contra as dores de origem suspeita; sucuuba com mel-de-pau para a tosse; caferana e quina, de prevenção, por causa das sezões endêmicas no " Trombetas", caldo de jaramacuru, para o baço; paricá, urtiga branca e jutaí excelentes nas tosses, e na secura de peito  gordura de anta, boas fricções; salsa contra o reumatismo e maus humores; tajá membeca a fim de recolher os pulmões dos pés; banha de mucura aplicada nas erisipelas; guaraná para os intestinos, flatos, não sei o que; manteiga de tartaruga contra o cansaço, e ainda outros cuja simples enumeração fora fastidiosa, os quais não só usava numa cisma ridícula de ter não sei quantas moléstias, como aconselhava e dava oficiosamente com recomendações convencidas, persuasivas.
    Não casara nunca. Foi sempre feia e implicante. Em faro, donde era natural, os rapazes puseram-lhe a alcunha de "cara de peixe". Ao escárnio respondeu com o ódio, um ódio brutal que alcançava todo o mundo. De todos dizia mal: contava histórias malévolas das mulheres e desacreditava os homem. Por fim, quando entrava os trinta e estava em toda a plenitude da sua fealdade, um agregado do pai caiu doente, foi tratado em casa por ela e, por gratidão, amou-a um pouco. Daí por nove meses teve ela uma filha: essa foi a sua única e não mais repetida aventura de mulher, jamais houve ensejo de prestar os seus bons serviços  de enfermeira e ninguém tornou a querê-la. os desejos imprudentemente acordados e logo sopitados bulhavam-lhe o no peito em saltos de cabritos bravos; força era, porém, engoli-los com surda cólera e grande raiva dos homens, porque a não queriam, e das mulheres, porque eram preferidas; e lá dentro da sua  estreita carcaça de magricela os anelos de deleites transmutavam-se em fezes biliosas que a punham cada mais feia e mais seca. Repulsava a própria filha, porque saíra linda, como o pai, um mameluco esbelto.
  A filha - ao invés do que lhe sucedera a ela- casou cedo, em companhia do marido, Filipe Arauacu, foi para o lago Iripixi, no Trombetas, onde ele tinha um sítio. A infeliz moça não durou muito; porque mais de uma ano  tinha de casada, quando a mataram as sezões ali reinantes endemicamente, com menos de vinte anos de idade. A mãe que por fugir à reciproca malquerença de Faro acompanhava-a de lá, ficou com o genro, um sujeito nulo a quem ela era indiferente como ele lhe era também. Já por esse tempo queixava-se de meia dúzia de achaques diversos, pouco saía da rede e nada fazia. A morte da filha e a subsequente concubinagem do genro com uma rapariga de um sítio próximo pondo-a e, quase absoluto isolamento, completaram a obra do seu péssimo caráter. Viveu desde aí em inteira mandrice, a fumar cachimbo, a tomar remédios, a dizer mal de tudo e de todos, com muito fel extravasado. Aumentavam-lhe as moléstias cada dia e raro se passava que não mandasse ao mato- a inesgotável drogaria do sertanejo - em busca de novas folhas, raízes ou cascas para outros medicamentos, as suas "pussangas", como ela dizia.
   Queixava-se do peito, de dores nas costas, suores noturnos, muita tosse, afora o cansaço que também a não deixava sossegar. Coitadinha dela, toda a santa noite o seu peito lhe levava a piar que nem pinto - e imitava - pio...pio...pio...Doíam-lhe igualmente as pernas, e a espinha dorsal, o ventre: tinha espasmos dolorosos no lombo, que lhe respondiam no fígado aqui- indicava. Os pés, tinha-os gretados com pulmões - e erguendo a beira da saia com recato afetado e pudico, mostrava-os muitos vermelhos, cobertos de emplastros. E se alguém, por mera polidez, perguntava-lhe pela saúde, ai do imprudente! tinha de ouvir a longa e nunca assaz repetida história dos seus padecimentos em geral e cada achaque em particular, com muita minúcia, com todas  as particularidades que ocorriam, e, ainda mais, a dos respectivos remédios, quem lhos ensinara, onde os havia, como se preparavam, de que modo se deviam tomar, a dieta que exigiam, o resguardo que requeriam, e mil outras miudezas com em pertinência enfadonha, insaciável.  E constantemente, invariavelmente, terminava o seu fastidioso aranzel, pela mesma fórmula lastimosa, para a qual arranjava a sua voz mais dolente, dando-lhe o tom débil, expirante, daquela com que o moribundo conta ao médico as angústias, as angustias da passada noite, que lhe será a derradeira.
     -" Aí! nem me fale...Não possozinho ir longe... Esta lua a modo que tenho passado pior, aprece que não à outra...Aí Jesus! Mãe Santíssima! Quase morri a noite passada, doía-me tudo - e apontava sucessivamente a cabeça, o peito, as pernas, o ventre - faltava-me o ar...Ai Meu Pai do Céu, valei-me a....a...ai!
   E, logo em cima do último e prolongado ai, gritava com voz fina de coruja constipada:
   - Benedita!...
   A rapariguinha acudia correndo. Queria um remédio; dizia-lhe um  nome indígena e recomendava-lhe, já de antemão irada., que olhasse, que não viesse frio nem quente. mornozinho. Agachando-se por debaixo da rede, Benedita ia buscar uma das "chocolateiras" com a droga indicada. Se acontecia tocar-lhe na rede ao passar, a velha soltava um grito agudo, como se a houvessem varado com um espeto, e levantando rápido o chicote de sobre a esteira, atirava-lhe uma forte rimpada. A pequena saía chorando, com grossas lágrimas a pingarem-lhe no líquido da vasilha. E Bertrana, como se o esforço feito lhe houvesse tirado o último alento, deixava cair o chicote, impotente para sustê-lo, e ficava ofegante,a boca aberta, exausta, pedindo baixinho desculpa, se estava alguém. Mas logo, sem demora, muito impaciente, bufava:
    - Benedita!
    E assim levava todo o dia. Batia-lhe por dá cá aquela palha, com um encarniçamento feroz contra a criança. Depois de jantar, ao meio-dia, dormia uma longa sesta até às três horas e a pequena ali ficava, em pé, com as magras mãozinhas no punho da rede - embalando-lhe o sono indolente - um sono profundo, a desmentir-lhe as contínuas queixa . Como era natural, ele lhe faltava à noite. Não podia dormir com dores, dizia ela. Carecia de ar, acordava Benedita, que dormia na esteira, sob a rede. A pequena levantava-se tonta, estremunhada, e vinha embalá-la. e a desoras saía dos seu quarto, com ringir sinistro, a guinchar fino e compassado do esse da sua rede, rangendo sobre a escápula de ferro.
    Vinha-lhe à cabeça tomar, àquela hora mesmo, qualquer chá e mandava-a fazer fogo para aquecer um  A cozinha ficava sob um rancho aberto,: ela ia tremendo, transida de medo, no escuro. Se acontecia demorar-se mais do que a impaciência irritadiça da velha previra, ouvia-se no silêncio absoluto da noite, como um grito, lúgrebe de ave noturna:
   - Benedita!...
   E não raro, daí  por pouco, ruído de pancadas e soluços de criança. Com o isolamento em que a pusera a sua desavença com o genro, por causa da rapariga que ele tomara para casa após a morte da mulher, refinou-se-lhe o mau gênio. A demais gente do sítio vivia afastada dela. Por aquelas paragens quase ninguém transitava, e esses poucos, mesmo se a conheciam, fugiam-lhe como à peste. Mais lhe azedava isto o fel, que se derramava sob a forma de maus tratos à tapuinha a quem votava um ódio felino, estúpido, como a onça odeia o jacaré que, inerte e quedo, a deixa descansadamente roer-lhe a cauda.
   Era devota e sentimental; rezava a miúdo, tinha um rosário de contas safadas no punho da rede, metia sempre os santos nas suas palestras, não bocejava sem fazer cruzes - para que não entrasse o demo- na boca aberta e chorava ouvindo referir alheios infortúnios. Quando de alguém dizia mal, batia nas faces encovadas palmadinhas beatas com as pontas dos dedos, que beijava em seguida murmurando compungida; - Deus me perdoe...Tinha particular devoção com São Gonçalo e com São Luíz Gonzaga; possuía-os ali no seu oratório de pau, pintado de azul e frisos encarnados.
   De manhã cedinho, tomando do punho da rede o seu rosário para rezar, começava a lida de inditosa Benedita, e às cinco horas da madrugada, quando os passarinhos espenejando-se à luz fresca do repontar do dia, acordavam nos arbustos rociados do orvalho noturno os ecos dos bosques próximos com seus gorjeios divinos, a voz dela, que nem pancada dissonante de pratos num concerto de violinos e flautas, cortava brutalmente a harmonia do coro jocundo a berrar:
  - Benedita!....
II

 Uma criança triste, magra, mirrada como as plantas tenras, expostas a todo o, ardor do sol, tal era Benedita. No seu corpinho escuro, coriáceo, em geral apenas coberto da cintura para baixo por uma safada saia de pano grosso, percebiam-se sobre as costelas à mostra, os sulcos negros do umbigo de peixe-boi, Na sua falazinha, rouquenha por contínuos resfriamentos, havia como que uma nota trêmula de choro. Não conhecera jamais as alegrias da infância livre e solta.
     Com pouco mais de sete anos, deram-na seus pais ao padrinho, que a pedira prometendo seria tratada como filha. Não possuíra nunca um desses brincos que fazem a felicidade das crianças, nem correra jamais atrás das borboletas loucas com agrande alegria da infância de fazer  mal a um inseto. Era a coisa, menos que uma coisa daquela mulher á. Ao redor de si apenas via ou ódio ou desamor, a traduzir em amus tratos de uns ou na indiferença quase hostil de outros. Até então, nesse pequeno mundo em que há dois anos já viúvia, e onde os mesmos cães famintos lhe rosnavam à passagem, uma única criatura tivera para ela um olhar piedoso e uma palavra compassiva.
  Era um índio; chamavam-lhe em cassa José Tapuio.
   Era caboclo escuro, membrudo, forte, mas de fisionomia, coisa rara neles, por vezes risonha. Vendido aos quinze anos por machado e uma libra de pólvora a um regatão do Solimões, entrar ana civilização pela porta baixa, mais amplíssima, da injustiça. Havia quinze  anos também que fora prisioneiro da tribo inimiga que o vendeu, quando Filipe o trouxe daquelas paragens, onde então se achava , com seu  agregado.
  Ali em casa do Arauacu feiçou-se por Benedita, coma fetos de pai. De volta da pesca ou do mato, raro er a não trazer-lhe um mimo qualquer, uma fruta, um mari-mari de beira-rio, ou um jutaí de mata virge> Apanhando-a só entregava-lhe às escondidas os eu presente, com um sorriso mal esboçado e estas palavras:
   - Toma pra ti...
   Estando em casa ajudava-a na cozinha, partia-lhe a lenha, lavava-lhe as vasilhas. Vendo-a chorar, seu  semblante ordináriamente impassível e carregando parecia  confranger-se, e, incapaz talvez de exprmir melhor oq ue porventura lhe ia na alma dizia-lhe em voz ríspida, ams interessada e a modo de suplicante:
   - Não chora....
   Sentia-se que ele odiava a velha Bertrana. De uma feita, que, ao passar-lhe pela porta da sala, a viu castigar barbaramente a rapariguinha, parou e seus olhos faiscarem coléricas ameaçadas à velha. Passou-lhe pela mente matá-la naquele momento, mas logo abandonou essa ideia assutado, porque a primeira ação do contacto da nossa sociedade com essas naturezas selvagens é torná-las pusilânime. A velha, porém, que lhe leu a ameaça no gesto irritado com que parara ele a fitá-la, não se livrou do medo. Interrompeu o castigo e vedo-o ir, praguejou-lhe atrás:
  - Cruz! o diabo do tinhoso do inferno!!!Vai-te. Ele, entretanto, dava, dava tratos à sua limitada imaginação, afim de descobrir um meio de furtá-la àquela miseranda existência que ali vivia. Essa sua afeição pela pequena não escapou aos da casa, e Bertrana, descobrindo-a, disse alguma coisa de obscenidade cruel.
   Benedita, como todas as pessoas desacostumadas da felicidade, desconfiava daquele interesse, que só passado algum tempo mostrou mais francamente aceitar. Sentindo então à roda de si esse afeto, que ali´s não compreendia, queria-o também, ao José, porém com uma sorte de receio, quasse com medo era, por fim, o seu sentimento dominante. Chamava-o"tio José" e tomava-lhe a benção, consoante o hábito de todas as crianças amazônicas, com a magra mãozinha estendida, aberta, na ponta dos braços espichados, e uma r medroso e tristonho:
   - S'a bença.
   Na sua vida lôbrega que nem a negrura de um caixão de ferro, a simpatia daquele tapuio era o como o pequeno e olvidado furozinho por onde penetrava a fina réstia de luz clara de polens dourados, como as asas das borboletas.
   Ele fizera no mais recôndito de seu pensamento o propósito firme de livrá-la da velha . A dificuldade estava apenas em que queria uma coisa que não deixasse rastro  fazê-la desaparecer de um momento para outro sem se saber como. Taciturno era, mais taciturno ainda o viram de tempos àquela parte.
   Uma manhã saiu, como de costume no verão, que então era, à pesca.  Sentado ao jacumã, dava grandes remadas espaçadas olhando distraído para a frente. Seguia rente à margem, sem dar fé de alguns peixes que saltavam por ali, ao alcance do seu arpão ou da sua flecha. De repente, em lugar no qual outros olhos que não os do matuto dificilmente descobririam solução de continuidade na espessa orla de mataria que corria pela margem, virou rapidamente a canoa, servindo-se de remo grande e chato à guisa de leme, e embicou-a para a terra escondida pelo mato, como se quisesse navegar por ela adentro. A impulso do seu braço robusto, a leve embarcação passou pelo meio da folhagem debruçada sobre a água, de modo a parecer emergir dela. Agachando-se no fundo da mataria deixara-o o índio correr com a força da remada.
   Varada a primeira e mais densa cortina de folhagem, achou-se num igapó - um grande estirão de mato alagado pelo lago na enchente e ainda não de todo abandonado por ele. Arvores alterosas, como são as das terras formes do Trombetas, direitas, de cascas pardacentas e rugosas, emergiam de dentro da água, escura e calma, como uma lagoa morta. Dos altos galhos pendiam, formando bambinelas pitorescas, fios de todas as grossura e feitios de cipós e lianas, a se refletirem naquelas águas paradas e negras, com sinuosidades intermináveis de serpentes. Outros atravessavam de galho a galho, de tronco a tronco, emaranhando-se n alto com a cordoalha de um navio. Pelas árvores apegavam-se vegetações parasíticas; musgos espessos punham grandes manchas verdes nas cascas pardacentas de muitas. De cima, da cerrada abóboda de verdura, descia uma grande sombra triste, que reunindo-se ao silêncio absoluto da sombria paisagem, dava-lhe não sei que tétrico aspecto de ruínas.
   Com a habilidade de tapuio, José seguia avante, fazendo singrar a piroga em verdadeiros ziguezagues por entre aqueles troncos, sem tocar em nenhum. Deixara o remo no fundo da canoa, e pegando ora num cipó, ora numa rama que descia mais baixo, ora num tronco, puxava daqui, empurrava dacolá, quase deitando-se às vezes para livrar a cabeça. De súbito, uma coisa que dir-se-ia um daqueles cipós mais grossos por ali pendidos, e no qual a beira da mataria acabava de tocar, desenroscou-se de sobre o tronco apodrecido de uma velha árvore derrubada pela ação das águas, e silvou no ar na direção do Índio, Era uma surucuju enorme. José, que só a vira no ato do bote, apenas teve tempo de fincar a mão no tronco mais perto e empurrar a canoa para trás. Este impulso fê-lo perder o equilíbrio e caiu sentado no banco da popa. Fora bem dado o bote da cobra: ele sentiu passar-lhe o corpo quase rente à face. Mal. porém, lançara os olhos na direção em que ela seguira como que voando, viu-a assanhada o pescoço ingurgitado,  a língua bífida fora das fauces, fitá-lo ameaçadora,  já de cauda firmada sobre o dorso de outro pau caído, pronta para o novo ataque. José pegou no remo, afim de safar-se mais depressa. A cobra, vendo-o tomar aquele pau, sentiu talvez uma ameça, e mais irada ainda atirou a toda a força o bote, sibilando no ar. Quando o atirou, porém, já a canoa ia impelida pelo remo, de sorte que apenas lhe apanhou a impelida pelo remo, apanhou a borda com a boca, donde logo firmada lançara a cauda na direção do tapuio, colhendo-lhe o braço esquerdo e o remo, com os quis fora ele ao seu encontro. Então levantou a cabeça e arpoou furiosa, a boca rasgada, o próprio pescoço de José, que, metendo a mão direita em defesa da cara, conseguiu segurar-lhe logo abaixo da cabeça o corpo escorregadio que se debatia furiosamente por desprender-se dos seus dedos possantes, aos quais o perigo multiplicava as forças, dando-lhes um vigor de rijas tenazes. Ele sentia, porém, que a cobra mudava de tática e que largando-lhe o braço esquerdo, a cauda ia enroscar-lhe ao pescoço os seus anéis de ferro e estrangulá-lo sem custo. Rápido como o pensamento, mal presentira afrouxar-se o laço com que lhe prendia aquele braço, fez um heroico e supremo esforço e conseguindo trazer-lhe a cabeça hedionda até embaixo ao fundo da canoa, calco-lhe em cima o pé, rijamente. Era tempo, que a cauda da cobra caíra-lhe no pescoço mergulhando a extremidade sob o sovaco e esquerdo donde logo ela o retirou para melhor apertar o nó. antes que o fizesse, porém, a compressão da cabeça fazia-a perder a força e José ainda pudera tirar de sob o banco a sua faca curta de pescador, com a qual lha decepou de um golpe. Aquele primeiro anel feito desprendeu-se, o tronco rolou inerte para a água e a cabeça ficou palpitando com a língua fora, no fundo da canoa.
     Terminado este incidente, José seguiu tranquilamente  a sua derrota através dos embaraços do igapó, que todos salvou com admirável perícia. chegando ao cabo, saltou em terra, puxou a canoa por sobre a areia escura da margem e tomando de dentro a cabeça da sucuruju jogou-a por sobre a mata, o mais longe que pode. Era uma precaução, para que o tronco da cobra se não viesse juntar à cabeça e se refizesse, com ele o acreditava ingenuamente; isto feito, tomou a faca e embrenhou-se na densa floresta, calcando fortemente o espesso tapete de folhas e gravetos secos, que estalavam com um som cru sob os seus pés de índio.
   Essa noite, mal acabara de cair o dia, já todos do sítio do Arauacu, como aliás é costume do sertão, estavam recolhidos. entretanto, não dormiam ainda, pois que pelas frestas das portas e dos japás, saíam réstias de luz vermelha de candeia.
  Bertrana tinha um mau anoitecer, carregado tristes presságios de uma noite horrível. As suas dores todas entravam em afirmação. Dava  gemidos baixinhos, doloridos, de cortarem o coração. Também ela, com  sua teimosa gulodice habitual, cometera uma gravíssima imprudência; sobre o seu jantar do meio-dia, de mixira de peixe-boi -  uma comida carregada, conforme era ela a primeira a reconhecer - bebera uma cuia de vinho de tucumã - um outro veneno. Metia dó vê-la.
   Exasperada pelas dores, irada pela insônia, não pode levar à paciência que Benedita cabeceasse, dormitando, ao punho da rede onde estava a embalá-la desde o fim  do jantar. E erguendo do chão, com os seus movimentos rápidos de fera, o  vergalho, zurziu-o sobre a rapariguinha berrando:
       - Ah! s'a vadia! Eu aqui quase a morrer e esta preguiçosa a dormir. Já, pegue na chocolateira e vá-me fazer um chá de vassourinha. - E gemeu: - Aí, meu São Luíz Gonzaga, valei-me.
   Benedita saiu a chorar, com o vaso na mão, toda trêmula. Lá fora escondido por detrás  do forno de farinha, topou com o José, que lhe surgiu ao encontro, assustando-a muito. Antes, porém, que lhe escapasse da garganta o grito que ela ia soltar amedrontada, ele disse, esforçando-se por ameigar a voz:
    - Não chora...
   E pegando-lhe a mão falou-lhe baixinho ao ouvido. Ao cabo deste colóquio, que foi rápido, levantou-a nos braços vigorosos, e deu o andar acelerado para a floresta escura que levava, por detrás do sítio, no céu claro estrelado, o seu encontro, o seu enorme perfil negro, na qual se embrenhou.
    Daí por pouco as outras pessoas do sítio ouviram a voz áspera da velha a bradar repetidas vezes, colérica:
   - Benedita!...Benedita!....
  Acostumados àquilo, não fizeram caso. o tapuio corria no entanto pela mata a dentro com a pequena ao colo. ela agarrava-se a ele, espavorida, os olhos fechados com medo de abri-los à lúgrebe escuridão do bosque. Ao cabo de uma chegaram à beira do igapó, onde ele deixara a canoa pela manhã. sentou a rapariguinha no fundo e partiu remando de manso, ajudando-se com as mãos, dirigindo-se, apenas por instinto por sua ciência inata e hereditária de selvagem, que outra luz não tinha, às apalpadas, por entre os grossos troncos e finos cipós. Quando se pilhou fora do igapó, a sua grosseira fisionomia quadrada, naturalmente impassível, iluminou-se com um leve sorriso de satisfação, que lhe  arreganhou ironicamente a comissura dos grossos lábios, mostrando-lhe os dentes alvos e fortes, e, metendo decido o remo n'água, silenciosa e calma, lançou a canoa para frente, fazendo-a voar como a flecha se seua rco.
       No sítio, depois de esbofar-se em gritos, a velha Bertrana arquejava, com os beiços brando de espuma, ardendo em descomedida raiva, pedindo às pessoas que afinal acudiram aos fritos que lhe fossem buscar Benedita. E quando, após uma curta revista, lhe voltaram sem ela, pegou a berrar, possessa, que se a apanhasse outra vez, matava-a.

III

   O juiz de direito - um homem gordo, baixo, calvo solenemente encasacado  - entrou na sala, foi sentar-se entre o promotor público e o escrivão, no meio da mesa atravessada na largura  da sala junto à parede, mesa comprida e estreita, coberta inteiramente por um pano verde desbotado, debruado de galão amarelo. Tomando de sobre ele a campainha de cobre azinhavrado, bimbalhou-a com força, enchendo a sala de tilintações finas, agudas, tanto ou quanto falhadas.

    Tinha a testa vincada, num grande ar aborrecido. Havia cinco dias que o faziam vestir o seu fato preto tão fatal aos seus achaques hemorroidários, a sua velha e coçada casaca do dia de  grau, para vir ali, àquela maçada do júri, inutilmente. Até então não fora possível reunir o número de jurados exigidos por lei; apareciam apenas os da cidade, que os roceiros estavam às voltas com a safra do cacau e não vinham.
   Colocou a campainha em seu lugar no tinteiro de metal amarelo, e relanceou um olhar em torno da sala, uma sala fria em cujas pares caiada, a umidade punha grandes manchas bolorentas, cor de cinza. pareceu-lhe haver mais gente nas pesadas cadeiras de fábrica portuguesa, enfileiradas rente às paredes. de um lado ficavam os da cidade, com um ar desembaraçado de quem está em sua casa, rindo e conversando entre si, fazendo sinais familiares ao promotor, a pedir-lhe os recusasse, cumprimentando o juíz com leves acenos de cabeça. Seus fraques e paletós tem formas mais corretas e vestem-nos sem enleio, useiros em trazê-los. As calças da maioria são brancas, muito engomadas, com grande vinco no meio, de cima a baixo, a vir morrer no peito das botas, muito engraxadas. Do outro lado tinha-se sentado os roceiros, facilmente reconhecíveis pelo seu ar contrafeito e o estapafúrdio do seu trajar. Perfilados nas cadeiras, duros, as pernas pendidas direitas, mostravam-se visivelmente quanto não lhes custava o terem de vestir a roupas com as quais apenas em dia de festa, de júri ou de eleições apareciam na cidade. Os paletós e pano preto luzidio ou de lustrosa alpaca, amarrotados dos baús, os coletes vistosamente ramalhudos, sobre alguns dos quais estadeavam-se grossas corrente de prata ou de ouro falso, comprado por verdadeiro, cheias de berloques, as camisas de morim e as calças de dril branco ou pardo, engomado e fortemente aniladas, os sapatos grossos, acalcanhados, limpos de fresco, espalhando na sala o cheiro ativo da graxa, davam-lhe o aspecto alvar dos matutos endomingueirados. Para assentarem os indomáveis cabelos rijos que nem piassaba, tinham-nos empastado de sebo-de-holanda, cujo perfume desagradável misturava-se no ambiente com o da água-florida, o extrato dos roceiros. Não podendo suportar por mais tempo os grossos sapatos e botas, alguns os tinham tirado e escondiam debaixo das cadeiras os pés calçados em grosseiras meias. Suavam copiosamente sob o fato dos grandes dias, enforcados nas gravatas multicores, atadas em laços extravagantes sobre os quais caíam moles, ensopados de suor, os grandes colarinhos. De instante a instante, enxugavam-se nos lenços de chita que em seguida, dobrados cuidadosamente sobre os joelhos, eram guardados dentro do chapéu, virados de copa para cima embaixo das cadeiras.
     De uma é doutra banda, olhava-se para um homem, o réu sentado nem pequeno banco entre dois soldados, mal amanhados em fardinhas curtas de brim pardo e vivos encarnados, à beira de uma pequena mesa, coberta com um safado retalho de lã verde, à guisa da colcha. E, cochichando entre si, os jurados apontavam-no uns aos outros.
        Aquele sujeito era o José Tapuio, que ali estava tranquilo, indiferente no meio do aparato do tribunal. Apenas quando não sabia mais o que fazer das mãos, coçava a cabeça ou os pés, visivelmente contrariado, com quem estando habituado à vida de selvagem sente-se de repente limitado aos dois palmos de um banco.
   O juiz,bem acomodado na sua velha cadeira de braços, voltou-se para o sujeito magro, vestido com um rapado paletó de alpaca à sua esquerda, e disse-lhe:
   - O senhor escrivão, faça a chamada.
    O escrivão levantou-se, abriu um caderno de papel já sórdido, e depois de passar a mão descarnada, a direita em cujos dedos cresciam unhas amarelas, nos pelos duros e esparsos que a modo de barba lhe cresciam no mento*, pôs-se a ler em voz alta, roquenha, uma série de nomes banais, com apelidos devotos, Espírito Santo. Encarnação, Amor Divino, apanhados aqui e ali, na cartilha ou na folhinha, para o uso jornaleiro e pelas exigências da vida social. De entre os jurados partiam gritos " presente" e "pronto", em tons discordantes. Enquanto isto, o juiz contava maquinalmente uns papelinhos dobrados em quatro, que extraia de uma caixa de folha-de-flandes, de forma lúgrebe de urna, pintada de verde, com frisos amarelos, e lá pachorrentamente arrumando em fileiras sobre o pano da mesa, enodoado de tinta preta.
    Concluída a chamada e verificado o número legal, disse, metendo de novo os papelinhos na urna, um a um.
    - Estão quarenta e oito cédulas: vai-se proceder ao sorteio.
  Mal o havia dito, surgiu de uma pequena porta um oficial de justiça,um mulato esguio de alta gaforinha erguida em trunfa, com  um pé doente calçado em uma chinela de tapete, trazendo pela mão um menino de seis anos, todo vestido de brim pardo, engomadinho, o cabelo encharcado de óleo de camaru empastado na cabecinha pequena, franzina, anêmica. o juiz apresentou-lhe a boca da urna, e depois de remexê-la bem, disse-lhe:
   - Tire, ioiô.
    O menino já afeito àquela cerimônia, pois não era a primeira vez que ali vinha, meteu a mãozinha magra até o fundo da caixa e entrou a tirar as cédula e entregá-las ao juiz, que as ia lendo em voz alta, à proporção que as recebia. A certos nomes, o promotor, um bacharel novo, recentemente formado, de "pince-nez" de ouro no nariz fino, ou o advogado da defesa, um magricela de olhos fino, ou o advogado da defesa, um magricela, de olhos pequenos e vivos, gestos canados, diziam brevemente:
  - Recuso.
   Os roceiros observavam entre si, invejosos e ciumentos, que os recudados eram só "gente graúda" da cidade . Coitados deles/ que aguentavam com toda a carga do juri. Efetivamente, o conselho de jurados se formara de doze sujeitos d e modesta aparência, e ares esquerdos de "gente de sítio". Os da cidade retiravam-se alegres, com sorrisos irônicos aos que ficavam e gestos agradecidos ao promotor ou a o advogado, àquele enfim que os havia recusado.
  Os escolhidos pela sorte e aceitos pelas partes iam tomando assento numa mesa comprida d meio da casa, sobre a qual alguns estendiam os braços, sem respeito. Outros faziam-se sérios e graves e, compenetrados da sua missão de juízes, olhavam atenta e fixamente o réu, como a querer arrancar-lhe a prova do crime à cara inexpressiva e bronzeada.
   O juiz chamou-se para prestarem o juramento d estilo. Estava erguido entre o promotor e o escrivão, ambos também de pé, solene e sisudo, estendendo uma pequena Bíblia de Nova York, roída de baratas, pronunciando as palavras sacramentais: "Juro de pronunciar bem e verdade, só tendo diante dos meus olhos Deus e alei e proferir o meu voto segundo a minha consciência....."
    Cada um por sua vez, acercavam-se os jurados da mesa e, pondo as mãos grossas e escritas sobre o livro, proferiam, obedecendo a uma intimação murmurada do juiz:
   - Assim, juro.
   E voltavam a sentar-se cheios de gravidade, esbarrando uns no outros, arrastando os pés.
  Concluída esta cerimonia e reassentados todos, fez o juíz um aceno ao réu, dizendo-lhe:
  - Venha cá.
   José levantando-se, acanhado e contrafeito, e veio até junto da mesa do juíz.
   - Você - disse o magistrado - via responder às perguntas que eu lhe vou fazer. Não se atrapalhe, não se aperte, nem minta. Veja lá....
   E começou o interrogatório.
   - Como você se chama?
   O tapuio ficou interdito, como quem não compreendia a questão.
   - Como é o seu nome? - tornou o juíz.
   - José.
   E o juiz fez-lhe sucessivamente as perguntas de praxe.
  _ Sabe de que oa cusam e por que está você aqui?
   - "E~e",
  - Sabe?
   - "Eê", sei.
   -Sabr que é acusado de ter - disse a data e oslugares -"feito mal" e depois matado a menor Benedita, afilhada do seu patrão Filipe Arauacu?
   - "Eê..."
    - É verdade?
   - "Eê..."
   - Diga ao tribunal como o fato se deu.
   O tapuio esteve alguns instantes calado, os olhos pregados no chão, um leve riso envergonhado nos lábios grossos, voltado o chapéu nas mãos em todos os sentidos. Por fim, sem mudar de postura, disse com ar de uma criança obrigada a confessar alguma fala venial:
   - Eu já contei pro "outro branco".
    O "outro branco" era o juiz formador de culpa.
    - Sim, mas é preciso contar outra vez.
   Ele calou-se de novo, sempre com o mesmo sorriso vexado no rosto abaixado. À nova intimidação do juiz para que falasse, disse, após, mais alguns momentos de silêncio:
   - Eu queria ela pra mim...furtei ela de noite...no mato ela gritou...antão eu amtei ela e fui levá o corpo na minha canoa pra enterrá no Úrua-tapera.
   - E enterrou?
  - ê, eu enterrei, pus cruz na cova pra siná.
    - Que o levou a praticar este crime?
    José, não compreendendo a pergunta,fitou interrogador o juiz que a tradudiu:
    - Por que você matou a rapariguinha?
   Ele calou-se e apesar das repetidas intimidações do juiz não foi possível arrancar-lhe u ma resposta. descoroçoado, cessou este o interrogatório, que fez ler pelo escrivão e assinar rogo do réu, que voltou ao seu banco.
   O escrivão, de pé, passando as unhas amarelas pelos raros fios da barva, principiou a leitura do processo, às carreiras, sem pontos nem vírgulas, cuspinhando de perdigotos os autos.
  No dia tanto de tal mês do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e tantos, no distrito de tal, o índio José, conhecido por José Tapuio agregado de Filipe Arauacu, raptara da casa deste uma menor de nove ou dez anos de idade, afilhada do dito Filipe Arauacu, estuprara-a e matara-a em seguida no lugar, Uruá-tapra, vizinho daquele no qual se dera o crime, tudo segundo confessou o sobredito réu José Tapuio.
   Os jurados, voltado par ao escrivão, procuravam perceber as palavras que lhe saíam em borbotões por entre um chuvisco de perdigotos. Tinham fincado os cotovelos às mesas e com as cabeças um pouco apoiadas nas palma das mãos dobradas num meio tubo acústico, escutavam atentos, com as bocas semi-abertas. Cada vez mais apressado, precipitando as palavras, o escrivão lia os depoimentos das testemunhas, sem virgulas sem pontos, engolindo estes inofensivos sinais d envolta com as partículas, os mais, os como, só porém, etec. As testemunhas eram Filipe Arauacu, que não dizia mais do que os leitores sabem, nem mesmo tanto; a moça com quem ele vivia, que também não dava novidades conquanto se referisse de leve às impertinências de D. Bertrana; uma tapuia de meia-idade, do serviço da casa, que não adiantava ideia; um tapuio pescador, domiciliado nas cercanias do sítio do Filipe Arauacu, o qual fora a causa da prisão do réu, declarando em casa do mesmo Arauaci que na tarde do dia em que Benedita desapareceu, tendo ela testemunha ido pescar tambaquis no igapó, perto do dito sítio, conheceu a montaria de José Tapuio, no fundo do  dito igapó puxada em terra, sem o menor sinal de ter andado à pesca, sendo para estranhar que tendo o referido José Tapuiu partido de madrugada estivesse à tarde ainda tão perto de casa. Isto tudo dissera ela testemunha no depoimento que o escrivão lia agora.
   As testemunhas eram unânimes em asseverar que a rapariga era bem tratada pelo padrinho, a cujos costumes diziam todos "nada", e também declaravam que não lhes escapara nunca que o réu "gostava de Benedita". A velha Bertrana não pudera ser ouvida porque as suas muitas doenças não lhe permitiam vir a Óbidos, onde fora instaurado o processo, para cujo andamento, julgou-se a justiça, com a confissão do réu, dispensada de ir proceder a inquéritos e exames no lugar do crime.
    O escrivão, no entanto, prosseguia a sua leitura, enchendo a sala do ruído monótono de sua voz rouquenha. O juiz conversava com o promotor, uma palestra alegre, a julgar pelas boas risadinhas patuscas que de vez em quando soltavam ambos, com um recíproco piscar de olhos brejeiro. Afora os jurados não havia mais na sala senão uns dois ou três indivíduos, dos quais um com a cabeça pendida, o queixo fincado no peito, a boca aberta, babando o peitilho da camisa, dormia numa das cadeira enfileiradas em derredor da sala. Cabeças metiam-se pelas portas, espiavam curiosas e recolhiam-se prontas. Cansados pelo esforço na sua ímproba atenção, os juízes de fato viravam as contas ao escrivão e, a exemplo do magistrado presidente do júri, puseram-se  também a falar baixinho uns com os outros, da safra do cacau do preço do pirarucu, de política. Moscas zumbiam doidejantes no ar. de fora, vinha um calor pesado, e dois largos retalhos de sol, entrando pelas janelas, chispavam nos tijolos vermelhos da sala, fazendo-lhe uma temperatura de forno. O moço pálido que servia de advogado do réu, sentado junto à sua mesinha modesta, olhava fixamente o escrivão e, ou fossem vencidos pela fixidez do olhar ou oprimidos pelo calor doa r, o certo é que os seus olhinhos fecharam-se malgrado seu, e o lápis que tinha na mão, soldados de sentinela ao tribunal, cochilavam encostados às ombreiras das portas, abraçados às espingardas descansadas no chão. O réu, muito alerta, ouvia com uma expressão indecifrável no rosto, as palavras que ia lendo o escrivão.
   Este por fim terminou. Cessando o rumor monólogo, com sua voz enchera até aí a sala, houve um súbito e fundo silêncio cortado por uns restos de frases dos jurados e dos magistrados. mas logo todos se aprumaram arrastando os pés e as cadeiras. para mudar deposição, e o juiz, passando na calva lustrosa o seu lenço recendente de água-de-colônia. perguntou às partes e aos jurados se queriam ouvir as testemunhas.
   - Que não, que bastavam os depoimentos da formação da culpa que acabavam de ouvir - respondeu o promotor. Os outros assentiram nisso, e a palavra foi dada ao "órgão da justiça pública!.
   Ele levantou-se, puxou o lenço do bolso e pôs-se a limpar a luneta, olhando para a frente, os jurados à roda da mesa, com os olhos apertados numa contração de míope. Depois de haver verificado a clareza dos vidros, chegando-os à altura dos olhos, pôs a luneta com gesto lento na nariz, com as mãos ambas, e, arregaçando o bigode com o lenço para cima dos lábios e enxutas as costas das mãos, principiou:
   - senhor doutor juiz de direito! Senhores juízes de fato! Ilustrado auditório!
   O sujeito que dormia com o queixo escorado no peito, sentindo-se interpelado, acordou. Uma meia dúzia de pessoas que estavam nas sala e corredores da Câmara Municipal, onde se efetuava o júri, entraram pisando nas pontas dos pés com cautela e um pequeno ringir de botas e foram sentar-se nos lugares do público, com o propósito de ouvir o promotor, novo na terra e que, segundo se dizia, era um moço ilustrado. outros limitaram-se a chegar até às portas, donde se puseram a escutá-lo. Ele sentiu que por sua causa vinham, tratou de justificar a expectativa pública e de firmar a sua reputação no lugar. Após meia dúzia de palavra tabelioas de um exórdio conciso, leu o libelo no qual afirmou provaria que o réu José, por alcunha Tapuio - citou datas e lugares- assassinou a menor Benedita; provaria que o fez por motivo reprovado, depois de cometer nela estrupo; provaria mais que houve abuso de confiança e de força; provaria ainda que perpetrou o crime com todas as circunstâncias agravantes mencionadas no artigo dezesseis, números um, quatro, seis, oito, nove, dez,doze,quinze do Código Criminal; provaria também que o crime fora ainda agravado pelas circunstâncias do artigo dezessete do mesmo, e  provaria finalmente, que o réu incorrera nas penas do artigo 192 do Código Criminal.
    Depois na mesa o libelo e, passando o lenço pela testa, tirou do peito, com um som trágico, estas palavras:
    - Meus senhores!
   Fez ainda uma breve pausa e começou deveras. Foi eloquente retórica e fofa dos adjetivos pavorosos, horríficos e sofrivelmente que o zelo irresponsável dos "órgãos da justiça pública" atira com mal usada coragem à cara de um infeliz que lhes dá azo -ingratos! - de assombrar um público simples com a rançosa e cansada facúndia das promotorias públicas. A dar-lhe crédito, não havia ente mais perigosos do que José Tapuio. Aquele homem, que um cidadão generoso e prestante arrancara às mãos ávidas dos exploradores sem consciência e da selvageria, e recebera no seio da sua família, no santuário augusto do lar doméstico, aquele homem e, com uma perversidade horrível, aquela perversidade referida pelos cronista, tirou de casa, alta noite, uma menina, um anjo de candura, uma criança de poucos anos, que era os enlevos doe seu protetor e padrinho dela e - fez aqui um longo e fecundo silêncio - custava-lhe dizê-lo declarou - levou-a para o recesso escuro da floresta, donde esta fera - apontou o réu - nunca devera ter saído, e lá, com uma concupiscência horripilante, subjugou, forçou a pobe menina e cevou pela os seus instintos ferozes de tigre carniceiro! Sim, senhores não tinha duvidado fazer aquilo, o malvado perigoso que ali estava  - e cheio de ira, a santa ira da justiça paga, apontava o José Tapúio, que o olhava com uma seriedade cômica. Não duvidara - continuou - arrancar com suas garras aduncas dos braços carinhosos de uma matrona respeitável, como a sogra do Sr, Alferes Arauacu, uma criança que era par aquela carinhosa senhora a alegria da sua honrada velhice, a consolação a do seu isolamento, o sol que aquecia o gelo das suas cãs, apra violá-la, matá-lá, e , coragem inaudita, enterrá-la!!!
   E neste tom continuo, irado, zeloso da moral, e da segurança da sociedade, colérico pelo amor da justiça e agitando no ar em gestos descompassados os seus braços finos como o legendário arcanjo agitaria às portas do Èden a sua espada flamejante, terminando por pedir a condenação do réu, " daquele celerado de que se devia expungir a sociedade" no máximo ds penas do artigo 192 do Código Criminal, à morte!
     E sentou-se com mostras afetadas de fatigado, triunfante, sorrindo aos espectadores, que lhe davam sinais mudos, mas evidentes de aprovação. A palavra foi dada ao advogado do réu. o moço levantou-se e principiou, com a sua vozinha doce. O promotor saiu enrolando um cigarro nos dedos, para ir fumar lá fora, nos corredores. O da defesa era um ex-aluno do Seminário do Pará. Da sua educação ali ficaram-lhe um acanhamento postiço e um vêzo hipócrita de olhar para o chão. O semblante, porém, quando o levantava para a gente, revelava inteligência, ou, pelo menos vivacidade. Não negou o fato, nem teve entusiamo de defensor: cumpria apenas um dever imposto pelo magistrado que o nomeara curador do réu- por cuja defesa a municipalidade lhe daria trinta mil-réis.Falou friamente, num pobre filho das selvas que mal recevera as águas lustrais do batismo sem as grandes liçoes de moral cristã, da divina moral dos ublime mártir do Gólgota, a única - aafirmou - verdadeira, a única capaz de livrar o homem dodomínio do crime.
    Da sua estrada no seminário, entre padres, restava-lhe uma fraseologia teológica, não pouco admirada em òbidos, onde exercia a profissão de advogado, depois que negócios de família o obrigaram a interromper seus estudos quando ia tomar as primeira ordens.
   Observou que nos autos não havia provas para a condenação do réu e que sem a franca confissão deste os depoimentos das testemunhas não seriam suficientes para provar o crime. Chamava portanto, a atenção do tribunal para o artigo 94 do Código do processo criminal, o qual leu devagar ecentuando a última parte: "A confissão do réu em juízo competente, sendo livre e coincidindo com as circunstâncias do fato, prova o delito; mas no caso de morte, só pode sujeitá-lo à pena imediata, quando não haja outra prova". E sobre isto repisou dois ou três minutos. Pedia aos senhores jurados que, segundo a palavra evangélica, tivessem misericórdia, e que se não esquecessem que quem perdoasse seria também perdoado. E terminou: - Em que nome deo Deus de Misericordia e de Amor, em nome de Nosso Senhor Jesus Crsito, eu peço a absolvição do acusado! E deixou-se cair na cadeira visivelmente fatigado, mas de fato satisfeito por ter dade conta dqquela tarefa maçadora.
   O juiz, que ouvira o pró e o contra debruçado sobre a mesa, ocupado em rabiscar, com o seu nome escrito por extenso em todos os sentidos, uma folha de papel aprumou-se e após um curto resumo dos debates, apresentou aos jurados os quesitos que pouco antes ditara ao escrivão, explicando-lhes minunciosamente como deviam respondê-los.
   Daí por meia hora os juízes de faro voltaram à sala: tendo respondido afirmativamente aos quesitos principais: José Tapuio tinha primeiro violentado, deflorado e depois matado a pequena Benedita, com todas as circunstâncias agravantes do código. À vista da resposta do júri, o juiz condenou-o ao médio da pena do artigo 192, a galés perpétuas, visto não haver, como reconheceram os jurados, outra prova além da sua confissão.
   E às cinco horas da tarde saíram todos do tribunal fatigados, aborrecidos, com fome, um grande apetite para jantar, dizendo acordemente:
   - Safa! Que maçada!
   Daí a dois ou três dias, uma manhã, correu na cidade, um boato extravagante. Em uma canoa do Trombetas acabava de chegar uma rapariguinha que, segundo diziam, era a mesma Benedita, por cuja morte fora naquela semana condenado o José Tapuio. Alguns curiosos desceram ao porto para vêla. Já lá não estava, que o  juiz, ao chegar-lhe aos ouvidos o boato, mandara-a ir à sua presença, com as pessoas que a acompanhavam. Entre estas vinha o próprio pai, que declarou que no dia em que se julgava ter sido cometido o crime, já ao amanhacer, José chegara ao  seu sítio situado a um bom estirão dode Filipe, e lhe entregou a filha dizendo-lhe que a levava porque a " branca" com a qual ela estava, maltratava-a muito. Por suas palavras e pelo seu corpo, zebrado pelas marcas azuis do chicote, a rapariguinha confirmou o dito do índio. Agradecidos, os pais ofereram-lhe café e cachaça. Ele bebeu e partiu em seguida e nunca mais souberam dele. Tal foi a narração resumida do pai de Benedita. Interrofada, também ela contou a triste vida que levava com Bertrana, aprotetora afeição de José, como ele a furtou de noite para levá-la à canoa que os esperava no fundo do igapó sem lhe fazer o menor mal.
   O juiz mandou autuar estes depoimentos e fez vir o condenado à sua presença. Vendo Benedita, apenas um boms orriso iluminou de relance a larga cara osca do tapuio. O magistrado perguntou-lhe:
  - Conhece esta rapariguinha?
   - Eê...Benedita...
   - Você não idssse que a tinha matado e enterrado na Uruá-tapera?
   - ê...
   E por que disse isto mentindo e expondo-se a ser, como foi, condenado?
   - Porque eu queria "fazê bem pra ela".
   É acusado dizer que houve recurso de praça, perdão, e José Tapuio não cumpriu a pena. Ignoro o fim dele; do que firmemente estou convencido, porém, é de que morreu, se já morreu, na mais bem-aventurada ignorância sobre os moveis ou a sanção do alto moral que praticou, como talvez aconteceu àquele lobo histórico, que no meio do destroço dos seus caiu varado pela bala humana, quando arrastava para fora do perigo outro velho lobo cego, ao qual servia de guia, pondo-lhe a cauda  na boca, à guisa de bastão.

(CENAS DA VIDA AMZÔNICA)

Leite de Amapá: Benefícios, Indicações, Como Preparar, Propriedades Terapêuticas

Leite de Amapá – A planta medicinal Amapá é nativa da Amazônia. A árvore, conhecida como amapazeiro, é encontrada nos estados do Pará, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Goiás (Brasil) e Guiana Francesa.
O amapá é considerado um remédio poderoso, o “fortificante da Amazônia”, usado por muitos e muitos anos pela população rural e urbana para o tratamento de problemas pulmonares, gastrite, fraqueza e cicatrização.

Também é usado como tônico por pessoas que sentem fraqueza, especialmente mulheres após o parto.

A coleta do “leite de amapá” é simples, basta um corte em diagonal na casca do caule com um machado e deixar cair o líquido em uma vasilha. Esse produto é utilizado pelas comunidades da região Norte como fonte alimentar e medicinal.
Pedaços da casca do caule de espécies de Brosimum são utilizados como estimulante do sistema nervoso e têm também demonstrado atividades antissifilíticas, anti-inflamatório e antirreumático.
Nas feiras e lojas de plantas medicinais de Belém (PA) são encontradas garrafadas, óleos e resinas nas cores vermelha, laranja, amarela e branca.
O potencial da Ucuuba foi identificado pela Natura em 2004, durante o mapeamento de várias espécies para o desenvolvimento de óleos e manteigas a partir de matérias-primas encontradas na Amazônia. 
O grande diferencial dos produtos é o toque seco que a manteiga proporciona, acompanhado de uma hidratação de até 48 horas, consequência da alta concentração de compostos que promovem esse efeito prolongado. A manteiga de Ucuuba ainda estimula a produção de colágeno e elastina.

CAFÉ (FOLHAS)

PROPRIEDADES MEDICINAIS – O chá das folhas do cafeeiro tem ação analgésica, antidepressiva, digestiva, estimulante, revigorante e tônica.
PARTE UTILIZADA – Folhas
USO CULINÁRIO – Dos grãos secos, torrados e moídos do fruto do cafeeiro obtém-se a matéria prima para uma das bebidas mais consumidas no mundo todo: o Café. Possui aroma e sabor intenso e peculiar, normalmente é servido quente, mas pode ser servido frio ou gelado e ser usado como ingrediente em receitas doces e salgadas.




lôbrega: Que é triste, assustadora ou pavorosa.


recôndito - que se conhece pouco ou nada; desconhecido, ignorado.


Debruado

adjetivo
  1. 1.
    a que se pregou fita dobrada.
    "vestido branco d. de azul"
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    cujo contorno se ornou com filete ou similar.
    "retrato d. com fio de ouro"
           
azinhavrado -bAquilo que está coberto de azinhavre, a camada esverdeada que se forma em alguns objetos devido a umidade.
Esse latão está todo azinhavrado, acho melhor descartá-lo.
Vassourinha-doce uma planta que “varre” muita doença!

Não é a toa que essa planta tem o nome de vassourinha-doce, pois, ela “varre” mesmo muita doença do corpo e faz uma limpeza no organismo, deixando a vida mais doce!
  • dores de ouvido
  • erisipela
  • febres intermitentes
  • hemorroida
  • infecção urinária
  • malária
  • nervos
  • ovário
  • paludismo
  • parasitas da pele
  • pernas inflamadas e varizes
  • regularizar a menstruação
  • tosse
  • uralgias
  • vaginite
  • afecções gastrointestinais
  • digestões lentas
  • cólicas
  • constipações
  • brotoeja
  • coceiras
  • afecções cutâneas e catarrais
  • bronquite
  • corrimento vaginal
  • catarros pulmonares
  • pernas inflamadas e varizes
  • asma
  • catarro pulmonar
  • coceiras
  • cólicas
  • constipações
  • diabete e digestões lentas

Mento


substantivo masculino
  1. 1.
    ANATOMIA GERAL
    parte inferior e média da face, abaixo do lábio inferior.
  2. 2.
    ANATOMIA ZOOLÓGICA
    nos vertebrados, região que corresponde à porção inferior e mediana da mandíbula.
Semelhantes
queixo