segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Contos de Andesen - O Trigo Mourisco

 Quando, depois de uma tempestade, a gente passa por um campo de trigo mourisco, nota que as plantas chamuscadas estão negras. Dir-se-ia que uma chama de fogo atravessou o trigal e os camponeses já sabem:
  - Foi o raio.
  Mas de onde veio esse raio?
  Vou contar o que me contou o pardal; ele ouviu esta história de um velho salgueiro que morava perto de um campo de trigo mourisco, e que ainda lá está de pé. É um salso-chorão, enorme, venerável, mas rachou ao meio, e na fenda crescem agora musgo e relva e até um espinheiro; a árvore curvou-se para a frente, e os galhos descem até o chão - parecem longos cabelos verdes.
 Em todos os campos dos arredores crescia o grão; não só o centeio e a cevada, mas também a aveia sim, e da melhor, daquela que, quando está madura, parece um bando de pequeninos canários pousados nas hastes frágeis. E os cereais erguiam-se, sorridentes. E quanto mais rica era a espiga, mais profundamente se inclinava, em piedosa humildade.
   Mas havia também ali um campo de trigo mourisco, e esse campo ficava exatamente em frente do salgueiro velho. O trigo mourisco não se curvava, como os outros cereais mas erguia-se, teso, cheio de orgulho. E dizia:
   - Sou tão rico como as outras espigas de cereal. Alem disso, tenho um porte mais bonito e minhas flores igualam em beleza as da macieira. É um prazer olhar para mim e para a minha família! Conheces gente mais bela que nós, velho chorão?
    E o salgueiro acenava com a cabe;a, tal qual como se quisesse dizer?
  - Sim, isso é verdade!
   Mas o trigo mourisco ia crescendo em presuncão e menosprezava o salgueiro:
   - Árvore decrépita! Está tão velha que a grama lhe vai trepando pelo corpo!
   Um dia estalou medonha tempestade: toda as flores do campo fechavam as pétalas, ou inclinavam as cabecinhas, enquanto passava o tufão. Mas o trigo mourisco continuava esticado, teso, cheio de orgulho.
    - Abaixa a cabeça como nós! - diziam as flores.
    - Não vejo razão para isso - respondeu o trigo mourisco.
   - Curva a cabeça como nós! - gritavam os outros cereais. - O tufão já vem descendo, vem voando...Ele tem asas que descem das nuvens até a terra, e te partirá em duas metades, sem te dar tempo de gritar por socorro!
   - Pois sim...mas eu não hei de abaixar a cabeça!
  - Fecha tuas flores e abaixa as folhas! - disse o salso velho. - Não olhes para cima, não olhes para o raio, quando a nuvem se fende! Nem os homens fazem semelhante coisa! Porque a luz do relâmpago a gente pode ver dentro do céu, mas o raio ofusca até a vista dos homens; que seria de nós então se ousássemos encará-lo - nós pobres plantas do campo, que valemos muito menos do que eles?
    - Valemos menos?! - gritou o trigo mourisco - Pois digo-te que vou olhar mesmo para dentro do céu!
   E olhou - tão cheio de orgulho e vanglória era o trigo mourisco! Mas foi como se o mundo inteiro tivesse incendiado!
   Depois que se acalmou a tempestade, as flores e os cereais ergueram-se no ar puro e tranquilo, que a chuva refrescara. Mas o trigo mourisco estava todo chamuscado, da cor do carvão queimara-o o raio, e agora não era mais que erva morta no campo.
  E o salgueiro velho agitava os galhos ao vento, e das folhas verdes caiam grande gotas d'água, como se árvore estivesse chorando.
  E o pardal perguntou-lhe:
   - Por que choras? Tudo aqui é tão lindo! Vê como brilha o sol; vê as nuvens que lá vão navegando no céu...Não sentes o perfume das flores e das folhas? Por que estás chorando, salgueiro?
   E o chorão contou-lhe o que sucedera ao trigo mourisco: como ele fora orgulhoso e presumido. E falou-lhe da punição que recai sempre sobre semelhante pecado.
 FIM

Campo de trigo Mourisco
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Árvore Salgueiro

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Plantação de aveia
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domingo, 19 de novembro de 2017

Contos de Andersen - A casa Velha

Era uma vez uma casa velha, que tinha quase trezentos anos. Podia-se verificar isso na trave onde estava esculpida a data da construção, entre tulipas e guirlandas de lúpulo. Liam-se ali também divisas escritas em caracteres antigos, e todas as janelas eram encimadas por carrancas. Cada andar ficava mais saliente do que o inferior, e a gárgula que rematava a goteira do teto era uma cabeça de dragão. A água devia escorrer pela boca aberta; mas como havia um furo na goteira, era por ali que ela se escoava.
   Todas as outras casas da rua eram novas e bonitas, com grandes vidraças e paredes bem lisas; e não era difícil ver que elas nada queriam de comum com a casa velha. E certamente diziam entre si:
   - Quanto tempo ainda ficará de pé este velho pardieiro vacilante, para nos envergonhar? Além de tudo, suas sacadas avançam tanto que de nossas janelas não podemos ver o que se passa do outro lado. A escada exterior é tão larga como uma escadaria de castelo, e tão alta, como se fosse dar em um campanário. Quanto ao corrimão de ferro, parece a porta de um jazigo da família; e a casa tem maçanetas de cobre, ainda por cima! Que falta de gosto!
   Ali mesmo, em frente, havia uma casa nova, que pensava como as outras. Mas à janela dessa casa estava sentado um meninozinho de belas faces rosadas e grandes olhos, claros e luminosos. Aquela casa velha - fosse ela iluminada pelo sol ou pelo luar- agradava-lhe infinitamente e quando ele considerava as velhas paredes, cujos ornatos já tinham em parte desabado, parecia-lhe ver, em imaginação, os quadros mais maravilhosos. Por exemplo, o aspecto daria, com todas as escadas exteriores que levavam outrora para as casa, com suas sacadas empenas pontudas. Via soldados armados de chuços, e goteira terminadas por um dragão, ou outro animal fabuloso. Era uma casa que ainda valia a pena ver!
    Na casa velha morava um senhor que usava calções, casaca de botões de cobre, e uma peruca, uma peruca de verdade, isso logo se via. Todas as manhãs vinha um homem idoso fazer a limpeza da casa e trazer provisões mas durante o resto do dia o cavalheiro dos calções ficava sozinho. As vezes ia para a janela, a olhar para a rua. Então o meninozinho lhe fazia um sinal com a cabeça, e ele respondia, de modo que travaram relações e se tornaram amigos sem trocar uma palavra, o que não era, afinal necessário mesmo.
  Um dia o menino ouviu, por acaso, os pais dizerem:
  - O velho cavalheiro da frente pode ser muito feliz...mas vive horrivelmente só e abandonado.
  No domingo seguinte, o meninozinho enrolou alguma coisa em um papel e foi postar-se a porta da casa. E quando o criado que fazia as compras apareceu, disse-lhe:
   - Escute..quer levar isto de minha parte ao velho senhor que mora ali em frente Eu só tenho dois soldados de chumbo e vou mandar-lhe um, porque sei que ele está sozinho e abandonado.
  O velho criado pareceu ficar muito contente; fez com a cabeça um sinal de aquiescência e levou o soldado para a casa velha.
   Pouco depois o menino recebeu um convite para ir visitar o cavalheiro, se o desejasse e lhe dessem permissão.
   E obteve licença. As maçanetas de cobre e as grades da escada brilhavam mais que nunca como se tivessem sido areados em honra ao visitante, e os trombetas esculpidos - porque havia trombetas esculpidos entre as tulipas, sobre a porta de entrada - sopravam com toda a força, e pareciam ter o rosto mais intumescido do que habitualmente. Dir-se-ia que sopravam:
   - Taratatá!...taratati! O meninozinho está aqui! Taratatá, taratati!...
   Enfim, abriu-se a porta.
   Na ante-sala, pelas paredes, havia velhos quadros, que representavam cavalheiros de armadura e belas damas de vestido de seda. Parecia que se ouvia o tinido das arma e o ruge-ruge dos estofos. Mais adiante havia uma escada, por onde se subia até muito alto; depois era preciso descer alguns degraus para chegar a uma galeria muito estragada: nos buracos e fendas brotavam ervas e trepadeiras. Esta galeria deitava sobre o pátio, e estava tão coberta de plantas, que parecia um pequeno jardim: mas era apenas uma galeria. Havia ali velhos vasos com caras ladeadas por enormes orelhas; as flores vicejavam nela à vontade. De um desses vasos escapavam-se cravos em todas as direções; balançavam-se ao vento e desbrochavam ao sol.
   Dali, passava-se para uma grande sala, forrada de couro, em que se viam grandes flores douradas. Dir-se-ia que aquelas paredes proclamavam:
  - Os dourados fana-se, mas o couro fica.
   Viam-se ali grandes cadeiras de braços, de lago espaldar esculpido. E também elas pareciam dizer:
   - Senta-te, senta-te! Oh! Como eu estalo! Eu vou ter reumatismo nas costas, certamente, como aconteceu com o armário grande!
   Enfim, o menino chegou à sala da sacada: lá é que estava o velho cavalheiro.
  - Agradeço-te teu soldado de chumbo, meu amiguinho - disse ele - e agradeço-te também esta visita.
  E todos os móveis a dar estalos, como se também quisessem dizer: " Obrigado! " E havia tamanha quantidade deles, que quase impediam a passagem, porque todos queriam ver o meninozinho.
  Na parede estava o retrato de uma moça muito linda; seus traços tinham alguma coisa de celeste; trajava um vestido antigo e severo. Ela não dizia nenhuma palavra de agradecimento, mas olhava com ternura para o menino, que perguntou:
    - De onde tiraste este retrato?
    - Do belchior - respondeu o cavalheiro. - Há lá muitos quadros; mas ninguém se importa com eles, porque representam pessoas que já morreram há muito tempo. Eu conheci esta senhora antigamente: há já meio século que ela está morta e enterrada. 
      Acima do retrato, em um quadrinho envidraçado, havia um ramalhete de flores secas, que também pareciam ter meio século de existência.
   E a pêndula do grande  relógio ia e vinham e os ponteiros giravam, e tudo na sala continuava a envelhecer, sem que ninguém o notasse.
   - Meus pais dizem que tu és sozinho, e tão abandonado...
   - Não! - disse o velho cavalheiro. - Os velhos pensamentos e as velhas saudades também me vem visitar, como tu. Além disso, estou muito contente.
    Foi buscar um livro de figuras. Representava uma longa fila de carruagens estranhas, como não se veem mais hoje em dia; soldados vestidos como valetes de baralho, e paisano levando bandeiras ondulantes. Na da corporação dos alfaiates, havia uma tesoura, mas na dos sapateiros, em vez de sapatos, havia uma águia de duas cabeças, porque o trabalho dos sapateiros é sempre feito aos pares. Era um livro de figuras verdadeiramente lindo.
   Depois, o velho cavalheiro foi à sala do lado buscar bolos, maças e nozes; e era muito agradável estar ali naquela velha casa.
   - Eu estou farto disto - gritou o soldado de chumbo, que estava sobre a cômoda; não posso mais ficar aqui: é muito solitário e muito triste. Não, quando uma pessoa está habituada à vida de família. é impossível viver assim. Não posso mais. Os dias parecem intermináveis, e pior ainda as noites! Aqui não é como na tua casa, onde teus pais conversam com tanta alegria, e tu e os outros fazem tanto barulho. Como é sozinho e abandonado este velho! Pensas que ele recebe alguma vez um beijo, um olhar afetuoso? Pensas que ele jamais terá uma árvore de Natal? Ninguém lhe dará mais nada, a não ser um túmulo! Eu não posso ficar aqui! 
- Não, não tomes as coisas assim, tão tragicamente- disse o menino. - Pois eu acho isto aqui bem bonito, e sei que os velhos pensamentos e as velhas saudades vem também aqui de vez em quando.
   - Eu não os vejo, nem os conheço; eu não posso ficar aqui mais tempo.
   - Mas é preciso que fiques - disse o menino.
   Voltou o velho cavalheiro, de rosto alegre, trazendo excelentes doces, nozes, maças...e o menino não se lembrou mais do soldado de chumbo.
   A criança voltou, encantada, para casa.
   Passaram-se os dias e as semanas, e o menino sempre fazendo pequenos sinais para a casa velha, sinais que o velho cavalheiro respondia.
    E fez nova visita. E os trombetas pareciam repetir:
   - Taratatá! O menino está aqui!...Taratati!
    E de novo parecia que se ouvia o retinir das armas, o ruge-ruge da seda, das tapeçarias e o ai-ai-ai dos móveis, sempre com reumatismo nas juntas. Tudo foi bem como da primeira vez, porque ali os dias eram todos iguais.
   - Eu não posso mais ! - repetiu o soldadinho. - Estou chorando chumbo...Aqui é muito triste. Antes eu queria ir à guerra e perder braços e pernas! Ao menos seria um a mudança. Não, não posso mais! Agora já sei o que acontece quando os velhos pensamentos e a saudade nos vem visitar...Porque os meus também tem vindo, e asseguro-te que não dão prazer nenhum! A gente tem vontade de saltar da cômoda abaixo. Eu via vocês todos, tão claramente, como se estivessem aqui nesta sala. Lembrei-me daquele domingo, em que a porta se abriu de repente, e tua irmãzinha Maria que ainda não tem dois anos, entrou e se pôs a dançar. Só o que acontecia é que ela não dançava no compasso, e ora se erguia num pé, ora no noutro, fazendo pequenas reverências: e todos ficavam muito sérios. Mas eu, eu ria, ria tanto, dentro de mim, que caí da mesa e fiz muito mal em rir assim! Pois bem: eu revejo tudo isso, e tudo o que vivi depois...É isso, é, os velhos pensamentos e as saudades...Mas dize-me: como vai meu camarada, o outro soldado de chumbo. Ele sim, ele é feliz! Mas eu não posso mais!
    Eu te dei de presente - disse o menino. - Não vês então que tens de ficar aqui?
   Nisto entrou um velho cavalheiro, trazendo uma caixa onde havia toda a espécie de curiosidades: peças de xadrez, frascos de perfumes e grandes baralhos antigos, dourados, com já não se vêem hoje em  dia. Foram abertos também grandes armários, para o menino ver o que guardavam; e até o piano, que tinha uma paisagem pintada na parte superior, foi despido da coberta. Mas quando o velho cavalheiro tocou, para acompanhar uma velha cançoneta que cantarolou, parecia que o piano estava rouco.

   - La cantava muitas vezes esta romança - disse ele, lançando um olhar para o retrato comprado ao belchior.
   Mas seus olhos brilhavam.
   - Eu quero ir para a guerra! Quero ir para a guerra! - gritou o soldado de chumbo.
   E gritou com toda a força - gritou com quanta força tinha! - e precipitou-se no chão.
   Procuraram-no. Mas onde se teria metido? Procurou-o o velho cavalheiro; o menino procurou-o; mas o soldado de chumbo sumira-se, e não apareceu.
   - Eu hei de achá-lo - disse o velho.
   Mas tudo foi em vão! Nunca mais! Havia muitos buracos e fendas no soalho. Certamente o soldado caiu em uma delas, de ficou lá, como em um túmulo entreaberto.
  Passou-se o dia; o menino não saiu de casa; passou-se também a semana, e muitas outras semanas se passaram depois. Os vidros das janelas cobriram-se de flores de gelo, e o menino tinha de soprá-las, para poder ver a casa velha. A casa desaparecera sob a neve; havia neve em todos os ornatos, em todas as inscrições, e também na escada: era como senão fosse habituada. E já não o era mesmo: o velho cavalheiro tinha morrido.
   À tarde parou diante da porta uma carruagem, e puseram nela o esquife do velho, que ia ser sepultado no campo. E ele lá se foi assim, sem acompanhamento de ninguém, porque todos os seus amigos já estavam mortos há muito tempo. Só o meninozinho lhe atirou um beijo quando o carro passou em frente à sua janela.
   Alguns dias depois a casa foi vendida em leilão, e o menino, viu levaram os velhos cavalheiros e as belas damas, os vasos de flores de orelhas compridas, as velhas cadeiras e os armários velhos - uns para um lado, outros para outro. O retrato comprado ao belchior voltou para a casa do belchior, e lá ficou pendurado à parede, porque ninguém conhecia a dama, nem se importava de ficar com ele.
   Na primavera seguinte a velha casa foi demolida, porque " era uma construção antiga", diziam as pessoas. Da rua podia-se ver o interior da sala, cuja tapeçaria de couro caía em frangalhos. As plantas trepadeiras se enrolaram pelo balcão e pelos barrotes caídos, e por fim tudo foi varrido dali.
   - Ora, até que enfim! - diziam as casas vizinhas.
   Construíram no mesmo lugar uma linda casa com grandes janelas e paredes brancas, bem lisas, e na frente, onde ficava outrora a velha morada, havia agora um jardinzinho, para onde se debruçava a vinha virgem dos muros vizinhos. Na frente do jardim erguia-se uma grade de ferro, com um portão de ferro muito imponente; e todos quantos passavam, paravam para ver o jardim. Os pardais, que viviam agora a duzias na vinha virgem, gritavam lá entre si quanto podiam, mas não falavam da casa antiga, porque já tinha sido demolida há tantos anos, que não poderiam lembra-se dela.
  O meninozinho, durante todo esse tempo, ficara homem; um homem distinto, que dava muita alegria aos pais. Casara e fora morar justamente naquela casa.
   Um dia, estava ele no jardim, vendo sua mulher plantar uma flor do campo, que lhe agradara particularmente. Ela apertava de leve a terra em redor da planta, com os dedos delicado, e de repente soltou um gritinho: "Aí!" Alguma coisa lhe picara o dedo. Que poderia ser? Era...Oh! Quem havia de dizer! Era o soldado de chumbo que outrora se perdera em casa do velho cavalheiro; escorregara entre os escombros e tinha ficado enterrado no chão tantos anos!
   A moça limpou o soldadinho, primeiro com uma folha verde, depois com o seu fino lenço, de que recendia um perfume delicioso; e pareceu ao soldadinho que despertava de um longo sono.
   - Que é isto? - perguntou-lhe o marido.
   E, sacudindo a cabeça, pôs-se a rir.
    - Não - continuou ele. - Não é possível que seja o mesmo soldadinho de chumbo...Em todo caso, ele me recorda um episódio da minha infância.
  E contou então à esposa a história da casa velha, e do velho cavalheiro, e do soldado de chumbo que mandara de presente ao senhor, tão sozinho e tão abandonado, Contou tudo tão bem, que a moça sentou os olhos marejados de lágrimas.
   - Pode ser que seja o mesmo - disse ela, - Mas, seja ou não quero guardá-lo, em lembrança do que me contaste. E desejo ver também o túmulo do velho cavalheiro.
   - Não sei onde é, e ninguém acompanhou seu enterro. Eu ora, eu não era mais que um gurizinho.
   - Coitado! Como não devia se sentir só! - disse ela.
   - Sim! terrivelmente só! confirmou o soldado de chumbo. - Mas - continuou - como é bom haver alguém que se lembre da gente!
   - Sim, é bom, é...- repetiu uma voz junto dele.
   E o soldado reconheceu que vinha dos frangalhos da tapeçaria. As douraduras tinham desaparecido, o couro já parecia lama; mas ainda tinha a sua opinião, que continuava a enunciar:
   - Os dourados fanam-se, mas o couro fica!
   E contudo, o soldadinho de chumbo não lhe dava crédito.
Fim
   

domingo, 5 de novembro de 2017

CONTOS DE ANDERSEN - A AGULHA DE CERZIR

  Era uma vez uma agulha de cerzir, tão cheia de si, que se supunha uma agulha de bordar.
    - Cuidado - dizia ela aos dedos que a manejavam.- Segurem-me bem! Não me deixem cair! Se eu cair ao chão, vocês nunca mais me acharão, porque sou tão fininha!
   - Faz-se o que se pode -diziam os dedos, perfurando-a com  toda a força.
   - Vejam, que grande comitiva trago!
   E dizendo isto, a agulha  de cerzir puxava um fio comprido, mas sem nó na ponta.
   Os dedos dirigiam a agulha para o chinelo da cozinheira. Rompera-se a gáspea, e era preciso costurá-la. Mas a agulha de cerzir disse logo:
   - Isto é um trabalho muito grosseiro! Eu não vou passar por esse couro! Eu me quebro! Eu me quebro! 
    E quebrou-se mesmo.
   - Não disse? Sou tão fina!
   - Agora não presta mais - disseram os dedos.
   Mas tiveram de segurá-la, e com força, ainda algum tempo; porque a cozinheira a pingou umas gotas de lacre na agulha e pregou-a no peito, segurando o fichu.
    - Então! Agora sou um alfinete de gravata! Eu bem sabia que havia de ter honras: quando a pessoa é alguma coisa, chega a alguma coisa mesmo!
  ----E ria - mas ria à socapa, porque a gente nunca pode ver uma agulha rir-se. E lá ficou ela espetada, tão enfunada, como se estivesse sentada em uma carruagem real, e olhando para todos os lados.
     Afinal disse a um alfinete, seu vizinho:
   - Com licença...Desejava saber se és de ouro...
 Tens uma bela aparência, e tua cabeça é interessante, mas tão pequenina! Deves procurar crescer, porque não é todo o mundo que se pinga lacre!
   E a agulha de cerzir esticou-se tanto ao dizer isso, de puro orgulho, que caiu do fichu e foi parar direito no cano de esgoto, que a cozinheira estava lavando.
   - Agora vamos de viagem - disse a agulha. - Contanto que eu não me perca!
    Mas perdeu-se mesmo.
   - Sou muito fina para este mundo aqui - dizia ela, deitada no cano de esgoto. - Mas eu sei quem sou, e isso sempre serve de consolo!
   E ela não mudou de proceder, nem perdeu o bom humor.
   Por cima dela navegavam coisas de toda a espécie: aparas de papel, palhas, e restos dos jornais velhos.
    - Olhem só como navegam! - dizia a agulha de cerzir. - Nem sonham o que está debaixo deles! Eu estou aqui, e aqui fico firme. Olhem, lá vai uma apara de papel, que não pensa em mais nada no mundo senão em si própria - uma apara de papel! Agora é uma palha. Como se vira  e revira! Como gira! Não corras assim, pensando só em ti mesma, senão podes ir de encontro a uma pedra! Agora vem nadando em pedaço de jornal. O que está escrito nele há muito tempo que foi esquecido, e ainda assim ele se dá uns ares...Eu aqui fico, sossegada e tranquila. Sei bem quem sou, e permanecerei o que sou!
   Um dia veio parar ao lado dela uma coisa que brilhava esplêndidamente. A agulha pensou que havia de ser uma diamante; mas era apenas um caco de garrafa. E como brilhava assim, a agulha apresentou-se-lhe, dizendo que era uma alfinete de gravata. E observou:
     - Suponho que és um diamante.
      - Mas sim...pouco mais ou menos.
    Cada um atribuía ao outro um grande valor, e começaram a conversar; falavam do orgulho deste mundo.
   - Eu morava no estojo de uma dama -disse a agulha de cerzir - e a dama era cozinheira. Tinha cinco dedos em cada mão, e nunca vi nada tão arrogante com aqueles dedos. E contudo seu único destino neste mundo era tira-me da caixinha e tornar a colocar-me lá dentro.
    - Eram então de alto nascimento? - perguntou o caco de garrafa.
   - Não, não; mas eram muito orgulhosos. Eram cinco irmãos, todos da família dos dedos. Viviam todos sempre juntos, apesar de serem de comprimentos diversos: o de fora, por exemplo, o polegar, era gordo e curto; andava em frente da fila, e só tinha uma única junta nas costas e não podia fazer mais que uma curvatura. Mas dizia que se fosse arrancado da mão de um homem, este não poderia ir par ao exército! O vizinho, um guloso, metia-se em tudo, fosse doce ou azedo, apontava para o Sol e para a Lua, e formava as letras, quando escreviam, todos juntos por sinal. Mestre Comprido, que é o de meio, olhava por cima do ombro para todos os outros. O quarto, Gola de ouro, usava um círculo em volta do corpo, e o pequeno, o Brincalhão, esse nada fazia, e tinha muito orgulho disso! Eram uma súcia de fanfarrões, e por isso abandonei-os.
   - E agora aqui estamos brilhando! - disse o caco.
   Naquele instante derramaram mais água no cano, que transbordou, e o caco de garrafa foi arrastado na corrente. 
   - Ora, ele foi embora! - disse a agulha. - Eu, eu aqui fico; sou muito fina. Mas essa é mesmo a razão da minha altivez, e isso tem muita importância.
   E ela ficou, altivamente, onde estava, sempre com a mais alta ideia de si.
   - Eu acho mesmo que nasci de um raio de sol - sou tão delicada! Parece até que os raios do sol estão  sempre me procurando debaixo d'água. Ah! Sou na verdade tão delicada, que nem minha mãe era capaz de me achar! Se eu ainda tivesse meu velho olho, que se quebrou, creio bem que choraria...Mas isso  não é fino, chorar!
    Um dia andavam dois moleques patinhando na água do cano, onde achavam de vez em quando pregos velhos, moedinhas de cobre e outros tesouros semelhantes. Era um trabalho pouco asseado, mas pareciam gostar daquilo. De repente, um deles sentiu uma picada da agulha de cerzir e gritou logo:
    - Olha quem está aqui! Olha este sujeito!
    - Eu não sou sujeito; sou uma dama! - disse a agulha.
   Mas ninguém a ouviu. A cabeça de lacre tinha desaparecido, e ela estava  negra; mas como a  cor negra faz a gente parecer mais delgada, julgava-se mais fina do que nunca.
   - Olha! lá vem uma casaca de ovo navegando! - disseram os meninos.
   E eles espetaram a agulha de cerzir na casca de ovo.
  - Paredes brancas e vestido preto combinam muito bem - disse a agulha - agora posso ser bem vista! Tomara que não enjoe! Era capaz de me quebrar!
   Mas a agulha não enjoou, e não se quebrou.
  - Para não enjoar é bom a gente ter um estômago de aço, e também não esquecer que é alguma coisa mais que uma criatura comum! Acabou-se o meu enjoo de mar! Quanto mais fina é a pessoa, mais força tem para resistir.
   - Craque!- disse a casca de ovo.
  Um carro lhe passara por cima.
   - Justos céus! Que peso! - exclamou a agulha de cerzir. - Estou ficando mareada! Já estou com enjoo de mar! Assim eu me quebro!
   Mas aquilo não era enjoo de mar; nem ela se quebrou. Ficou ali estendida na estrada, de todo o comprimento - e deixem-na ficar! 
FIM

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

CONTOS DE ANDERSEN - UMA HISTÓRIA

  Todas as macieiras estavam em flor. Tinham-se apressado em produzir flores antes que viessem as folhas verdes. No pátio passeavam os patinhos, e o gato tomava um banho de sol, lambendo os raios que lhe brincavam sobre as patas. E lá nos campos se erguia, magnífico, o trigal, ostentando um verde esplêndido, incomparável. Por toda a parte pipilavam e trinavam passarinhos, como se fosse dia de grande festa; e realmente era dia de festa; era domingo: repicavam os sinos, e todos iam para a igreja, com os seus melhores trajes todos de rosto alegre.
   Era um dia tão cheio de calor e de benção, que bem podiam todos dizer:
   - Deus é extremamente bondoso para conosco!
    Mas lá dentro, na igreja, o pastor estava no púlpito; e falava, com voz forte e irada. Dizia que todos os homens são ímpios, que Deus os castigaria por isso, e que todos os maus, depois de mortos, iriam ter ao fogo eterno do inferno. Levantava a voz contra eles, e vaticinava:"jamais morreria o verme que havia de roê-los, nem se apagaria o fogo que lhes era destinado, de sorte que jamais encontrariam repouso nem tranquilidade".
   Era horrível ouvir assim aquelas palavras, proferidas com tamanha convicção. E ele descrevia o inferno como uma antro pestífero, onde se reúnem os rios de fezes do mundo inteiro. A atmosfera que ali pairava era o bafo abrasador da chama do enxofre. Não havia ali chão, nem fundo, Os maus mergulhariam no abismo cada vez mais profundo, num eterno silêncio.
   Era na verdade terrível, sim, ouvir falar daquelas coisas que o pastor dizia do imo do coração. Toda a gente na igreja ficou apavoradas.
   E enquanto isso, lá fora, os passarinhos cantava, alegremente e o sol brilhava, ardente e belo. Era como se todas as flores dissessem:
   - Oh! Senhor Deus! Como és bom para conosco!...
   Sim! lá fora, nada era como pregava o pastor.
   Naquela noite, antes de se recolher, o pastor viu a esposa sentada, a cismar, absorta em meditação. E perguntou-lhe:
   - Que tens?
   - Que tenho? É que não me sinto capaz de concentrar as ideias. Não posso compreender o que disseste hoje na igreja, " que havia tanta gente ímpia e que todo os ímpios hão de arder no fogo do inferno". Eternamente! Ai de mim! Quanto tempo! Não sou senão uma criatura humana, uma pecadora diante de Deus, mas eu não seria capaz de deixar arder eternamente o pior dos pecadores. Como então, poderia fazê-lo. Deus, cuja bondade é infinita, e que sabe como a maldade nos vem de dentro e de fora? Não! Não posso imaginá-lo, por mais que tu afirmes!

   Era outono. As árvores iam perdendo as folhas. O pastor estava sentado à beira do leito de uma moribunda: uma alma piedosa e leal estava a ponto de cerrar os olhos - a esposa do pastor.
  - Se há alguém que possa encontrar repouso no túmulo e graça diante de Deus, és tu essa pessoa- disse o pastor, juntando-lhe as mãos, antes de ler um salmo ao pé da morta.
   Enterraram-na.
   Duas grandes lágrimas rolam pelas faces do homem de luto. A casa está silenciosa e deserta, agora que se extinguiu, que desapareceu o sol do lar.
  Era noite. O pastor sentiu um vento frio que lhe passou sobre a cabeça. abriu os olhos e pareceu-lhe que a luz da lua caía dentro do quarto; mas enganara-se, não era a luz. Havia um vulto em frente da cama- o fantasma da mulher morta, que o olhava com carinho e pesar. Parecia que tinha alguma coisa a dizer-lhe.
   O pastor soergueu-se no leito, estendendo os braços em direção à esposa:
   - Será possível que nem a ti fosse dado o repouso eterno? Tu, a melhor de todas, a mais piedosa, estarás padecendo também?
   A defunta acenou com a cabeça, para dizer que sim, e pôs a mão no peito.
  - E eu poderei obter para ti o descanso eterno?
   - Sim.
   - E de que maneira?
   - Dá-me um fio de cabelo, um único fio de cabelo da cabeça de um pecador; de um pecador que há de ser entregue por Deus ao eterno tormento do inferno!
   - Mas é a coisa mais fácil, redimir-te assim - a ti que és tão pura, tão piedosa!
   - Então segue-me - disse a morta. - Isso nos será permitido. Adejarás a meu lado e iremos onde quer que te levem teus pensamentos. Invisíveis para os mortais, penetraremos nos seus aposentos mais secretos. Mas com mão certeira deves encontrar aquele que está destinado ao eterno tormento: e isso será antes que cante o galo!
   Então, transpondo o espaço tão céleres com o pensamento, chegaram à grande cidade. Nos muros e nas paredes das casas luziam em letras chamejantes os nomes dos pecados mortais: soberba, avareza, intemperança, luxúria - finalmente, todas as cores do arco-íris do pecado.
  - É então exatamente como eu pensava - disse o pastor.
     Achava-se diante de uma porta deslumbrante de iluminação. As amplas escadarias ostentavam tapetes e flores, e nos salões festivos ressoavam as músicas de dança. Coberto de sedas e veludo, estava postado à entrada o porteiro, empunhando o grande bastão de castão de prata. E, olhando desdenhosamente para a multidão de espectadores que se acumulara na rua, dizia:
  - O nosso baile pode competir com o do rei!
  E, de seus gestos e expressão, bem se podia inferir o que pensava:
   - A ralé, que vem para aqui olhar!... Vocês são todos gentalha, comparados comigo!
   A soberba - disse a morta. - Está vendo?
    - Aquele coitado? Ora, ele não passa de um pobre toleirão; e não ficará eternamente no fogo dos tormentos.
  - É apenas um tolo! - ressoou pelas salas da casa da soberba.
  E todos que lá estavam eram semelhantes àquele.
  Voaram então até as quatro paredes desnudas que abrigavam o avarento. Macilento como um esqueleto, esfaimado, tiritando de frio, o velho agarrava-se ao dinheiro, sem pensar em mais nada. Viram-no levantar-se de um salto do leito miserável e retirar da parede uma pedra solta. Ali, dentro de uma velha meia, estavam escondidas algumas moedas de ouro. Viram-no apalpar temerosamente o casaco esfarrapado, em cuja bainha ocultara alguns ducados; e os dedos úmidos tremiam.
  - Esse homem é um doente. Isso é loucura; uma loucura despida de alegria, que vive acossada pelo medo e pelos maus sonhos.
   Afastaram-se rapidamente e dirigiram-se para os catres dos criminosos. Dormiam ali em longas filas, os infelizes, ao lado uns dos outros. Um deles levantou-se sobressaltado, lançando uma imprecação abominável. Parecia uma fera. deu violento empurrão no companheiro que se voltou, sonolento, e disse-lhe:
   - Cala a boca, animal! Vai dormir! todas as noites é isso, essa estupidez...
  - Todas as noites...- repetiu o outro. - Sim, todas as noites ele vem me atormentar. Eu fiz isto, e mais aquilo...Sim! Nasci com má índole, e foi isso o que me trouxe aqui pela segunda vez. Mas se pequei, estou agora sofrendo o castigo. E contudo, há uma coisa que não confessei: quando fui solto, há pouco, passava pela quinta do meu antigo patrão e senti não seu o que ferver dentro de mim porque me vieram muitas coisas à memória. Esfreguei um fósforo, muito de leve, no muro; provavelmente ficava perto da cobertura de palha...Pegou fogo e queimou tudo. E que o calor apoderou-se dos coisas, como se apodera as vezes de mim. Eu mesmo ajudei a salvar animais e coisas. Não pereceu nenhum ente vivo, a não ser a um bando de pombas que voou para dentro das chamas, e cão de guarda, do qual não me lembrei. Ouviram-se uivos, saídos do meio do incêndio, e...ainda os ouço, quando quero dormir! Assim que adormeço vem o  cachorro, grande e rude; deita-se em cima de mim e uiva, e me aperta, e me tortura...Afinal...mas escuta o que estou te contando! Só o que sabes é dormir: roncas a noite inteira, e eu mal consigo dormir um quarto de hora!
    Os olhos do colérico prisioneiro injetaram-se de sangue, e ele se atirou sobre o companheiro de novo! - gritaram os outros presos.
  E seguraram-no, dobrando-lhe o corpo de tal maneira que a cabeça foi ficar entre os joelhos. Amarraram-no então firmemente. e aparecia que lhe ia saltar sangue dos olhos e dos poros.
    - Vocês estão matando o infeliz! - gritou o pastor.
    Mas quando estendia a mão para proteger  aquele que já sofria demais pelos seus pecados, mudou a cena.
   E voaram através de salas suntuosas e de quartos humildes. A luxúria, a inveja, todos os pecados mortais desfilaram diante deles. Um dos anjos do dia do julgamento lia-lhes a acusação e a defesa que não era brilhante, umas fôra feita perante Deus; perante Deus, que lê nos corações, que tudo sabe e a todos conhece: tanto o mal que vem de dentro como o que vem de fora. Perante Deus, que é a própria graça, que é só amor!
   Tremia a  mão do pastor. Não se atreveu a estende-la; não ousou arrancar um só fio de cabelo da cabela do pecador. Brotaram-lhe as lágrimas dos olhos, como um rio de graça e de amor, cujas águas refringentes extinguem o eterno fogo do inferno.
   Nisto cantou o galo.
   - Deus todo misericordiosos! Dá-lhe a paz, que eu não consegui alcançar para ela!
   - Tenho-a agora comigo - disse a morta. - Tuas palavras cruéis, teu desespero em face da humanidade, tua fé sombria em Deus e na Sua criação - tudo isso foi o que me impeliu a ir ter contigo. Aprende pois a conhecer o mundo e os homens! Até no pior deles vive uma partícula de Deus, uma partícula capaz de extinguir e vencer a chama do inferno! 
     Sentiu o pastor um beijo nos lábios. Luzia uma auréola em redor dele. A luz clara do sol de Deus entrava no quarto, onde sua mulher, viva, suave e carinhosa, o despertava de um sonho que Deus lhe enviara.
Fim

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Contos de Andersen - O DIA DAS MUDANÇAS

 Ole, o guarda da torre, é um velho amigo meu.
   Costumo subir até lá pelo Ano Bom; mas resolvi ir visitá-lo agora, no dia da mudança geral: o ambiente embaixo não está nada agradável, naquelas ruas atulhadas de lixo, de cacos e de outras coisas semelhantes. E isso sem falar nos montões de palha, escapada dos colchões rasgados...A gente vai tropeçando naquilo. Vi algumas crianças que brincavam naquela palha: brincavam de "ir para a cama". Acharam convidativo o brinquedo: entravam de rastos nos montes de palha, cobriam-se com pedaços de papel de parede, velho e rasgado, que faziam as vezes de coberta. Ah! Aquilo era demais! Afastai-me dali e subi para a torre de Ole.
   E eis o que ouvi do meu amigo:
   - É, hoje é dia de mudança. As ruas e o becos hoje servem de latas de cisco- enormes latas de cisco. Para mim uma só carroçada é bastante: tiro dali muita coisa, como aconteceu em que a gente apanha facilmente um resfriado. O lixeiro estava parado coma  carroça cheia - mostruário das ruas da cidade no dia das mudanças. Do lado de trás, erguia-se um pinheiro ainda verde, e com os galhos cobertos de ouropel. Servira na noite de Natal, e depois ao atiraram à rua. O lixeiro espetou-o no meio do cisco, e aquilo lhe dava um aspecto divertido- ou talvez triste: isso depende das ideias da gente. Pois eu tive cá as minhas ideias ao vê-lo, e certamente os objetos que se achavam no caminho também tiveram as suas - ou poderiam tê-las, o que vem a dar no mesmo. Lá estava uma luva de senhora...que pensaria ela? Queres que te diga? pois a luva apontava com o dedo mindinho na direção do pinheiro. É que ela pensava lá consigo:
   - Estou com tanta pena dessa árvore! ...Porque eu também estive em fuma festa, e tudo lá eram luzes...Minha vida cifrou-se em uma noite de baile, um aperto de mãos, e rebentei...Depois...minhas recordações param aí. Não me lembro de mais nada: já não tenho razão de viver.
   Era isto o que pensava a luva - ou o que poderia ter pensado.
   Mas os cacos diziam:
  - Que história estúpida essa do pinheiro!
   Os cacos acham sempre tudo estupido. E Eles continuaram a falar:
  - Quando a gente vai ter à carroça de lixo, não deve se pavonear assim, nem usar mais ouropéis. Nós sim, sabemos bem que fomos úteis no mundo- muito mais úteis do que essa vara verde!
   Ora, afinal , era a opinião deles. E talvez haja muita gente que pense assim. E contudo, era belo o aspecto do pinheiro, que dava um ar de poesia àquele montão de lixo.
  Já me ia sentido fatigado, porque o trajeto não era fácil lá embaixo, no meio dos trastes velhos que enchem as ruas nos dias de mudanças. Tratei de sair dali; subi para a torre, e aqui fiquei , olhando para baixo com certo senso de humor, como agora.
  Lá andam os homenzinhos, a brincar de "trocar as casas"! Lá andam carregados, a se esfalfar com seus bens; e os mexericos domésticos, as querelas de família, as preocupações e os pesares mudam-se com eles da velha morada para a nova. E no fim, que resultado tiram eles, ou tiramos nós de tudo isso? A resposta está contida no verso antigo, que diz:
  
    Lembre-se do grande dia de mudanças da Morte!
  
  É certamente um pensamento grave, mas talvez não te desagrade. A Morte é e sempre foi o funcionário mais pontual, a despeito de seus pequeninos encargos, que são incontáveis. É ela o condutor do caminhão, é o escrivão dos passaportes: é ela quem  nos reconhece a caderneta de viagem; é ainda o diretor da grande Caixa Econômica da vida. Compreendes? Todas as ações que praticamos na nossa vida terrena vão para essa Caixa Econômica; e aparece a Morte com o seu caminho de mudanças, e embarcamos nele, viajando para a Eternidade, é ela que, nos entrega lá na fronteira a caderneta de viagem, que serve de passaporte. Para o farnel de viagem, tira da Caixa uma ou outra ação realizada pelo passageiro, a que for mais característica: o resultado pode ser divertido, mas também pode ser terrível! 
   Ainda não houve homem algum que escapasse a essa viagem. Contam, é verdade que houve um a quem foi vedado" o embarque - o judeu errante, Asvero, que se viu obrigado a correr atrás do caminhão. Se lhe houvessem permitido embarcar, não teria fornecido assunto aos poetas...Deita um olhar do teu olho interior para aquele grande caminhão! Lá verás, sentados, alto a lado, reis e mendigos, gênios e idiotas - e todos tiveram de partir sem bens nem dinheiro, levando penas o salvo-conduto e o farnel tirado da Caixa.
  Mas qual será a ação retirada dali, para nos acompanhar? Talvez seja alguma bem pequenina, tão pequenina como uma ervilha...Mas isso não importa! Todo o grão de ervilha tem o poder de fazer brotar uma trepadeira em flor!
    Àquele pobre que lá ficava num cantinho, sentado em um banco, e que só recebia pancadas e injúrias, talvez lhe deem o mocho como insignia e farnel; e quem sabe se ele não se transformará, no caminho, em uma carruagem, que o leve para o país da Eternidade? E, lá quem sabe se não virá a ter um trono, luzente como o ouro, florido como um caramanchão?
   Aquele outro, que bebeu sempre na taça de todos os prazeres, para esquecer as façanhas que aqui praticou, recebe um barril de madeira; é dele que deve beber durante a viagem. A bebida é pura, de sorte que as ideias se lhe vão purificando também, e ele sente despertar no seu íntimo toda a espécie de sentimentos bons e nobres; vê pois, agora, o que antigamente não podia, ou não queria ver, e lá tem no interior o castigo, o verme roedor, que não morre nunca! E, enquanto na taça havia a inscrição: " Esquecimento" - no barril está escrito: " Recordação"!
   Sempre que leio um bom livro, uma monografia histórica, por exemplo, imagino logo a personagem ali descrita embarcada já no carro da Morte. Sinto-me levado a meditar, a procurar qual seria, dentre suas ações, a que a Morte retirou da Caixa, qual o farnel que lhe deu, na entrada do país da Eternidade. Era uma vez um rei de  França, cujo nome esqueci..às veze a gente esquece o nome das criaturas boas; mas acho que ainda hei de me lembrar desse. Pois bem: era um rei que durante uma época de fome foi o benfeitor do seu povo. E esta erigiu-lhe um monumento de neve, com esta inscrição:" Teu auxílio veio a nós em menos tempo do que este monumento precisa para se dissolver. " Suponho que A Morte, em consideração àquele monumento, lhe teria dado um único floco de neve, que jamais se derreterá: há de esvoaçar, qual uma borboleta branca, acima da cabeça do rei, entrando com ele no país da Eternidade,
   E houve também Luís XI. Sim! Guardei-lhe o nome pois a gente nunca esquece o que é mais mau. Há na sua história um traço que nunca me sai da memória - eu bem desejara que isso fosse mentira! Pois o rei mandou executar o seu condestável'. E ele tinha o direito de assim proceder, com justiça ou sem ela. Mas o pior é que mandou postar os inocentes filhinhos do condestável no patíbulo, para que os salpicasse sangue ainda quente do pai! Dali foram condizidos à Bastilha, e encerrados em uma gaiola de ferro, sem um cobertor, ao menos, para se abrigarem. De oito em oito dias, o rei Luís mandava lá o carrasco, que arrancava um dente de cada um - para que não achassem a vida boa demais...Um dia, o mais velhinho disse ao carrasco: 
    - Minha morreria de desgosto se soubesse que meu irmãozinho tem de padecer tanto... Arranca-me dois dentes e poupa-o! 
     O carrasco sentiu os olhos se lhe encherem de lágrimas, mas as ordens do rei podiam mais!
    E todas as semanas o rei recebia dois dentes de criança, em uma taça de prata, conforme ordenara.
  Suponho que a Morte há de ter tirado da Caixa da vida aqueles dois dentes, dando-os ao rei Luís XI, para a viajem que empreendia para a Eternidade. E que eles haviam de ir voando a sua frente, como duas moscas de fogo, ardendo, queimando-o e mordendo-o -aqueles dois dentes de inocentes crianças. 
  Sim, meu caro: É uma viajem séria, essa do caminhão, no grande dia das mudanças! E quando chegará essa dia
    Pois é justamente isso o que há de mais sério nesta história: É que agente pode esperar o caminhão em qualquer dia, a qualquer hora, a qualquer instante.
    E então - qual das nossas ações será retirada, pela Morte, da Caixa Econômica, para nos servir farnel? 
    Vale a pena pensar a gente nisso!
    O dia das mudanças não figura no calendário.
FIM
  
















  judeu errante, também chamado AasveroAsvero,[1] AhasverusAhsuerus ou Ashver,[2] é um personagem mítico, que faz parte das tradição oral cristã. Diz a lenda que Ahsverus foi contemporâneo de Jesus e trabalhava num curtume ou oficina de sapateiro, em Jerusalém, numa das ruas por onde passavam os condenados à morte por crucificação, carregando suas cruzes. Na Sexta-feira da PaixãoJesus Cristo, passando por aquele mesmo caminho, carregando sua cruz, teria sido importunado com ironias ou agredido verbal ou fisicamente, pelo coureiro Ahsverus. Jesus, então, o teria amaldiçoado, condenando-o a vagar pelo mundo, sem nunca morrer, até a sua volta, no fim dos tempos.

Em Portugal o título de Condestável do Reino ou Condestável de Portugal foi criado pelo rei Fernando I em 1382, para assumir as funções militares do antigo cargo de Alferes-mor, constituindo a segunda personagem da hierarquia militar nacional, depois do Rei de Portugal.

    FARNEL: saco ou bolsa em que se colocam provisões para uma jornada.