quarta-feira, 21 de novembro de 2018

CHÃO DE TERRA PRETA - CONTO - AMADEU QUEIROZ

              Antigamente, no tempo dos bugres, certo caçador que andava com outros pelo mato atirou a um macuco encontrado perto de um córrego sem nome. Daí por diante todas as vezes que os caçadores queriam se referir ao dito córrego, diziam: " O Córrego do Macuco". Por essa forma, o nome da ave passou para a água corrente, foi ficando e ficou até hoje.
               Tempos depois, um roceiro, que veio de longe, comprou terras servidas pelo Córrego do Macuco, e ali fez uma casa - casa de pobre - para sua abrigação: a  companheira e mais cinco crianças. À beira do córrego, pai e mãe, criaram a família - os filhos na enxada, as filhas na enxada e no fogão, e logo que deram conta da tarefa, os dois velhos morreram. Os herdeiro repartiram a terrinha entre si e como tocou quase nada a cada um, cada um vendeu a sua parte e gastou o dinheiro para começar a vida. As filhas se casaram, os filhos saíram mundo afora, procurando trabalho e mulher; menos o Chico, que se casou com  com gente da vizinhança e ficou  teimando no seu pedaço de chão, até o dia em que lhe nasceu o segundo filho, um menino.
                 Nessa quadra da vida, deu-lhe tanta doença em casa, a ponto de passar um ano sem trabalhar, e gastando. Por fim, quando os doentes sararam, viu-se endividado até os cabelos e teve de vender o chão e o rancho, para  pagar os empréstimos.
                  Do pouco que possuía, só salvou o crédito, o mais  perdeu tudo, até o nome que o pai lhe deixou: o córrego  pegou-lhe, para sempre, o nome que, por sua vez, recebera de um macuco. A princípio era chamado - o Chico, do Macuco: - depois - Chico Macuco, e por fim, só Macuco....
                   Mas de seu, ficou ainda com muita coisa - ficou com a obrigação e com a necessidade. Então, passou a mão na enxada, arrastou a  família, foi morar em casa alheia e trabalhar no chão dos outros...Foi dar a troco de um jornal de miséria, toda a força dos braços e tudo que é tempo de luz no dia, só guardando para si as sombras da ave-maria e o escuro da noite.
               E passaram muitas luzes e sombras, muita escuridão passou enquanto o jornal ia ficando no mesmo ser e a família nas mesmas privações. Mas, ao tempo que o camarada Macuco descansava um pouquinho, ia olhando à roda de si e, com o passar dos dias, foi à lavoura de todas as plantas, a conhecer a força das terras, a tirar proveito do ajutório do sol e da chuva.
             O fazendeiro gostou do camarada, lhe deu casa, lhe deu serviço, e pagava pontual. A casa era de sapé, ficava na vertente, numa chapada da grota, à beira de uma terra preta, gorda, em que ninguém nunca plantou. Não tinha horta nem arvoredo nem cercado em torno, tinha a bica d'água à porta da cozinha, perto do mamoeiro velho esgalhado. O mamoeiro fazia as vezes de galinheiro, a galinha de pintos deitava-se debaixo dele; o ninho de jacá estava pendurado nele; toda a criação dormia empoleirado nos seus galhos e se abrigava do sol ou da chuva embaixo da sua folhagem.
         A casa tinha dois quartos e cozinha; os quartos se encheram com as camas e com a canastra frasqueira, a cozinha ficou vazia, era maior, dava para o fogão e para se morar. Mas, porém, tudo era pobreza e pouquinho.
          De manhã cedo, a menina e o menino iam à fazenda buscar o que era preciso - leite, couve, cebola de folha. Leite vinha por paga, o mais era dado; ovo, sempre havia algum em casa.  A fazenda não ficava longe, as crianças iam sozinhas, mas era tão pequenas, que se sumiam no meio da estrada. A menina ia indo, carregando o calderãozinho, parava, olhava para trás e andava outra vez, arrastando os pés, sem brincar, sem falar,? o menino fazia a mesma coisa mascando a ponta dos suspensório de tira de pano...
          Nestas aperturas, o roceiro Macuco entendeu de dar um jeito na vida para poder vestir a família. O ganho não lhe deixava sobra: na vila só comprava mantimentos para a semana e, as vezes, um doce para as crianças: três biscoitinho de amendoim, duros e velhos, mas o roceiro não perguntava a idade deles, perguntava o preço.
          - Três por duzentos réis? Ota!
             - ...Mãe, o que é que tem em riba do doce?
           - Açucre.
               - Açucre antão é duro? Boba...
           Quando a precisão era grande, comprava também algum remédio, pouco porém. Se um bicho venenoso mordia as crianças e elas metiam as unhas, tostava um folha de mato chimango e punha em cima da inflamação: se as bichas alvoroçavam, aplicava na barriga das crianças um empacho de erva mentruz; se a mulher sentia dor de cabeça amarrava na testa um lenço molhado em pinga com alcânfor; se ele, Macuco, ficava mofino, amarrava só um lenço na cabeça e aguentava...Mas de qualquer jeito precisava vestir a família, então  pedia a Deus forças para trabalhar, mas a força brota da terra, entra pela boca, enche o peito, sai pelos braços, desce pelo cabo da enxada e entra na terra outra vez.
            Ao anoitecer, o roceiro Macuco voltava para casa, com a enxada no ombro, carregando o peso da canseira aí se encontrava com a mulher, que também ia indo com as crianças, cada uma carregando o seu feixe de lenha, e todos seguiam, juntos sem dizer uma palavra...
              De tanto maturar, teve uma ideia que dava esperança: plantar um fuma, na chapada da vertente, em redor da casa, de meias com o fazendeiro. Plantação alqueire de chão, pouco mais ou menos. Então, foi procurar o dono da terra, o fazendeiro, e explicou-lhe:
                O chão é de boa face; a terra é própria; está em roda da minha casa; a mulher me ajudando, nós dois podemos tratar vinte a vinte e cinco mil pés de fumo, que é mais que pode levar o dito chão. O senhor me adianta as despesas e, no fim, nós partimos. O lucro é bom, mas o seu há de ser melhor porque o fumo dá soca e, a terra sendo boa, a soca também é - dá bem e serve bem o que dá. Ainda, por cima, a terra do fumal fica mais estercada, mais macia; as folhas velhas do fumo, a bagaceira dos talos, das velhas, que a planta vai largando, tudo engorda a terra que, depois,dá com fartura, sem trabalho. Macuco fez a sua proposta, explicou tudo muito bem, induzindo o fazendeiro a experimentar a meação na lavoura do fumo. O dono só entrava com a terra e abria um crédito ao meeiro; mesmo assim titubeou, imaginou, perguntou tanta coisa, e deixou a resposta para mais tarde. Mais tarde aceitou com uma dose de interesse e um pouquinho de desconfiança.
    - O que for da fazenda, eu vou te fornecendo e assentando; para o que a família precisar - mantimento, remédio e roupa - eu te dou um crédito na vila; na apuração do negócio,você paga tudo o que comprou. Está combinado: é negócio a meias; tiradas as despesas, parte-se o lucro, a soca me pertence, fica de fora. Contrato escrito, não é preciso, nós somos de fiança um para o outro.
             Acertaram. Macuco deu parte à mulher e como já era mês de agosto caiu, sem demora, em cima da terra. Primeiro, formou os canteiros para a semeadura, depois, colocou por cima deles uma camada fina de gravetos, folhas secas e lenha miúda; ateou fogo em tudo e, logo que a queima se acabou, os canteiros ficaram cobertos com uma camada de cinza. Deixou esfriar a cinza, espalhou esterco de curral por cima e revirou a terra na fundura de meio palmo. Assim, a terra ficou pronta para a semeadura, livre de pragas e das sementes do mato daninho.
              Até chegar setembro - o que é o tempo de semear-se o fumo - Macuco voltou a capinar a roça, e capinou quatro semanas a fio. O tempo chegou, ele mexeu aplainou a terra, semeou a sementes nos canteiros, que a fechou a meia altura. para evitar o estrago das galinhas. Até passar dois meses - prazo que a planta pede para nascer e ficar no ponto de mudar-se - Macuco e a mulher levaram os dois meses no serviço da enxada, pois, quando iam chegando ao fim, voltava ao princípio, para repassar a capina.
         O chão era grande, o tempo curto, mas o mato era maneiro e a paciência muita, para aguentar a mesma labuta todos os dias, e todos os dias o mesmo tempo: solão desde manhã até de tarde, sem chuva para refrescar a terra, sem nuvem para tapar o sol..
           A noite já dava sinal, e o roceiro Macuco ainda lavrava a terra para a lavoura de meação. A mulher estava ao lado dele e batia enxada também, ajeitando a capina, ajuntando um monte num lugar, outro mais adiante. O menino e a menina trouxeram o fogo para queimar o cisco. O chão estava limpo em derredor, o céu também estava, a fumaça branca subia das fogueiras, acompanhando a viração.
               O roceiro trabalhava calado, reparando; só existia para a enxada e para o silêncio; a vida se lhe concentrava em torno, não tinha olhares distantes...Tudo quanto lhe pertencia estava a seu lado: a mulher, os filhos, o cachorro, o fogo e as galinhas ciscando adiante da sua enxada - seu lar vinha trabalhar com ele, e se espalhava pela terra da sua lavoura.
              Macuco suspendia o trabalho, deixava cair, a um lado do peito, o cabo da enxada na palma da mão - amarelo como cana de reino - cuspia na palma da mão - amarela e lustrosa - e olhava o ar... Todos os homens que trabalham a terra tem olhar sem vida;  os outros não. Uns tem olhar de espanto ou de mistério; outros de sonho ou da mágoa; outros de indiferença ou desengano; o trabalhador da terra tem olhar de espera...
             Quando o sol se escondia, as galinhas era as primeiras a se recolherem ao seu mamoeiro, depois, a mulher com as criança e o cachorro, e por último, o roceiro Macuco. Pela terra, a tarde espalhava as sombras, e os últimos ventos do inverno espalhavam a fumaça branca das fogueiras de cisco.
            A mulher acendia a lamparina de querosene, as crianças lavavam os pés na gamela d'água, comiam leite com farinha e iam se deitar na mesma cama, assim como vinham da capina; o roceiro e a mulher, lavavam os pés na mesma água, bebiam uma tigela de café com rapadura e farinha e iam dormir na mesma cama, assim com vinham da terra...O cachorro pulava para cima do fogão e ninguém ouvia o ressonar do homem nem o rosnar do cão, porque o roceiro cansado tem sono de pedra e o cachorro magro, esfomeado não rosna.
                    Daí a pouco clareava o dia; o roceiro Macuco abria a porta para a   luz entrar: as galinhas desciam do  mamoeiro; uma neblina rasteira cobria a terra preta da campina. O trabalhador bebia outra tigela de café com rapadura e farinha, batia a pedra, soprava na isca, acendia o cigarro, pegava na enxada e voltava para a terra. Ia sozinho, que os mais ficavam em casa - a mulher e as crianças - cada um com a sua a tigela, e o cachorro com um pedaço de angu frio; as galinhas, por sua conta, procuravam o que comer.
             O tempo estava firme, o sol subia, rendia o serviço do roceiro, e a mulher mexia o almoço. A menina permanecia de cócoras ao pé da porta da cozinha, imóvel e calada, depois, se levantava, coçava a cabeça, espreguiçava e ia se  acocorar mais adiante. O menino cortava um gomo de mamoeiro para fazer um pito comprido; neste meio, um pássaro preto cantava no pinheiro seco, o menino tirava o pito da boca, assobiava, arremedando o passarinho, e os dois ficavam cantando juntos.
            No caldeirão de ferro, desde cedinho, já se cozinhava o feijão, e a mulher punha ao lado dele a panela de barro, de fazer arroz. Mexia um pouquinho cada qual, dava uma voltinha, atiçava o fogo, espiava dentro das panelas e ia se encostar à porta do terreiro. Ficava olhando o Chico, parado no meio do terreno preto, descansando um pouco. O marido, com chapéu de palha rasgado, enfiado na cabeça, a roupa pendurada no corpo, mal comparando, imitava um judas de espantar passarinhos de arrozal...Voltava ao fogão, mexia outra vez a panela de arroz, picava as couves e ia buscar os torresmos.
             Pouca panela, pouca comida, trabalho pouco - logo o almoço ficava pronto. A mulher dava mais uma voltinha, empilhava três pratos de folha, à beira do fogão, e gritava pelo Chico. E assim que o marido chegava, cada um recebia o seu prato, a sua colher, cada um ia se acocorar num canto da cozinha, e ninguém dizia uma palavra. A mulher servia o prato seu, dela, e ficava de pé, encostada ao fogão, comendo. O cachorro, sentado sem se mexer, olhava o prato do menino, depois, olhava a menina; por fim, olhava só para a mulher e ficava, com os olhos compridos, esperando.
           Os pratos de folha se empilhavam de novo à beira do fogão; o roceiro Macuco puxava um tamborete, sentava-se, olhava a mulher e dizia:
           - Agora, vamos descansar um pouco...
            Lá fora, o joão-bobo cabeçudo vinha voando com a sua companheira, pousavam no mesmo galho da árvore e gritavam simultaneamente, um ao outro; " Currupiro!" "Currupiro!" Depois, se achegavam, corpo com corpo e ficavam imóveis, bem juntinhos...
            O roceiro Macuco não afrouxou na labutação nem perdeu a hora do dia, afora os domingos, que tinha de ir à vila buscar mantimento e querosene, tudo fiado. O fazendeiro respondia pelos seus gastos, é certo, mas precisava ter sempre dinheiro para comprar uma ou outra coisa de necessidade. Então, vendia frangos, ovos, juás, pinhão, fruta e tudo quanto o fazendeiro deixava tirar do mato, sem apagar.
              E foi indo nessa toada, até preparar a terra e chegar o tempo da plantação das mudas. Aí ele e a mulher não largaram mais o chão - abrindo cova e plantando, abrindo cova e plantando. Os dois ficaram tão mestres na abertura das covas, que conservavam, entre uma e outra, a distância certinha de cinco a seis palmos, o que era preciso ser feito, por via de ser a terra de boa qualidade.
             O plantio pedia muito cuidado: só se aperta, na terra, a raiz e não a haste; portanto, para ajudar, eles ensinaram os filhos, e os filhos plantavam com delicadeza e perfeição, que as mãos das crianças não tinham tamanho nem força para machucar as plantas novas.
            O tempo corriam bem todos os dias, e assim que o campo ficou plantado, choveu uma chuva mansa, fresca, criadeira, as mudas se firmaram nas covas, as folhas se aprumaram e principiaram a crescer à vista dos olhos.
           O roceiro e a mulher redobraram de cuidados e de interesse, tratando com enxada a terra da plantação, removendo a areia das covas e qualquer outra coisa que pudesse prejudicar o desenvolvimento da planta. Os filhos continuavam aprendendo e ajudando; sabiam apanhar as folhas que iam morrendo e secando, na parte inferir dos pés de fumo, a arrancar o mato com as mãos, sem ofender uma folha que fosse.
          Toda a gente pensava só no fumal, e ninguém viu que o fumal tomou conta da terra, cresceu, cresceu gordo, mole, viçoso: tinha pé do tamanho de um homem, tinha folha larga, de mais de gêmeo. Nem um pé falhado, nem um folha praguejada. A terra preta, macia e boa, criava, por igual, o fumo, planta que quer força do chão para vingar.
           O dono da terra foi ver a lavoura, andou abaixo e acima, espiando aqui e ali; calculou, com uma olhada, o valor da colheira, gostou do que viu mas não disse nada. O roceiro Macuco, que estava junto el, também e calava. Por fim, ao voltar para a fazenda, o homem disse isto:
      - Como é que vai o seu gasto, na vila?
    - Vai indo, eu compro só meizinha e mantimento...
   - É isso mesmo. As coisas estão ficando ruins, a gente precisa minguar as despesas...
              O fumal começou a apendoar; as flores tinham pressa de nascer; então, marido e mulher deixava o trabalho e se recolhiam, esperando que também os botões apontassem logo.
          O pai, a mãe, os filhos, levantavam-se ao romper do dia e iam para a desponta; almoçavam e iam para a desponta; de noite, deitavam-se para dormir, com os dedos doloridos de tanto despontar, de tanto arrancar um botãozinho tão mole e tão mimoso!
         E assim, despontaram muitos mil pendões; os dias foram passando, e chegou o tempo da desolha - que é o trabalho de se tirarem os brotos que nascem entre as folhas e a haste - trabalho incessante porque o fumo brota sempre. Enquanto o broto é novo, se quebra facilmente com os dedos por isso as mulheres e as crianças ajudam muito; mas é preciso se desolhar com cuidado, para não maltratar as folhas.
            As crianças aprenderam o serviço, e cedinho já iam para a lavoura. O fumal mandou na casa; levou a gente do roceiro para o seio da sua folhagem; governou a boca e a força da família; mandou em toda a gente, e toda a gente lhe mostrava respeito e amizade, porque não parava nem se cansava.
          A mulher e o marido já não trabalhavam pensando só no ganho, no lucro prometido; a ambição deles era também a ambição do pai que quer ver os filhos criados; do criador que quer criar o seu gado; do trabalhador que  deseja concluir sua obra. Macuco percorria o fumal, examinava pé por pé; todos eram irmãos, cresceram juntos, porque a força era igual naquela terra e tanto. E o roceiro quedava, olhando o chão preto, fincava no chão o dedo grande do pé e remexia, com ele, a terra fofa, como se fosse um porco foçando.
           A terra, ao redor das plantas, estava coalhada de borboletas arrancadas. A mulher e as crianças tosquiava, tosquiavam, até ficaram com as mãos amortecidas, com um mau jeito nos pulsos, com as unhas descarnadas, doídas, de tanto quebrar o brotinho...
               - Corta, gente! 
             -  Dói, mãe...
              - Corta, gente!
   Dessa maneira foram arrancadas milhares e milhares de borbulhas, até se acabar o ano e começar o outro. Mas antes que viesse a colheita, o meeiro Macuco tratou de construir o rancho, livre de sol e de chuva, com os seis andaimes para a seca das folhas do fumo. O rancho era coisa simples: quatro esteios de pouca altura, um pau de cumeeira, uma coberta de sapé, dos dois lados, até o chão, e dentro, os varais para se estenderam as folhas colhidas. Como na fazenda não havia sapé para a coberta, o fazendeiro mandou cortar no vizinho, e pôs na conta das despesas: a madeira - meia dúzia de varas - foi tirada ali mesmo...
            Chegou o mês de maio, As folhas da parte inferior dos pés de fumo começaram a amadurecer tomando uma cor amarelada ao mesmo tempo que a parte de cima- a feição da folha - ficava toda empipocada.
          Principiou a colheita. Enquanto o roceiro limpava a cultura - que a colheita se deve fazer no limpo - a mulher apanhava as folhas de vez, que as crianças iam transportando para o rancho...
    - Mãe, ocê é que nem formiga.
   - Ocê é que nem formiga-carregadeira...
   A colheita se faz aos poucos, e leva tempo - cada pé dá duas, três e mais apanhadas. As folhas vão sendo penduradas nos varais do rancho, onde ficam uns cinco dias, para depois se tirar, com todo o cuidado o talo de cada uma. O talo cai com facilidade, basta dobrar a folha sobre ele mesmo para logo se separar.
       Então se faz a torcida, o cordão e, por fim, o rolo, que se entrega ao fabricante.
        O fazendeiro foi passear na roça para ver a a colheita e, decerto gostou porque se mostrou conversando. Aí,o Macuco lhe disse que não podia dispensar o ajutório de camarada. O fazendeiro concordou, e resolveu mandar ver por conta da meação um prático no serviço de torcer e de encordoar o fumo.
          Logo depois, veio um prático trabalhador e diligente. A apanha levou um avanço; as crianças aprenderam, também, a estender e destalar as folhas e, desse modo, todo o mundo trabalhava em tudo, e tanto trabalharam que um dia a colheira se acabou, todas as folhas forma torcidas, encordoados, enroladas e entregues ao fabricante.
          O fumal ficou que era vara só...
            No mês de julho, o fabricante deu conta do fumo, preparado e enrolado, A quadra era boa; o fazendeiro aproveitou e vendeu bem  num lote só. Mandou tirar as contas do Macuco tanto as da vila, com as da fazenda; descontou as despesas feita; apurou a rendição e acertaram o trato. A parte que tocou a cada um foi de um conto e muito, quase dois. A do fazendeiro saiu inteirinha, e a do roceiro. Macuco, descontadas todas as despesas, deu-lhe para salvar um jornal de cinco mil e quinhentos - não se contando a o ajutório da mulher - com uma sobra de setenta e cinco mil réis...
           O fumal produzira com abundância de compensar, mas o trabalhador ficou na mesma. A meação só lhe deu para viver um ano, com jornal um pouquinho melhor que jornal de enxadeiro...Está certo. A mulher e as crianças ficaram doentes, a família teve de comer e o dinheiro num ano subverte-se.
          O fazendeiro não explorou trabalho de ninguém, com maldade ou com imposição, fez negócio limpo e tratado. Não lhe cabia culpa pelo sucedido; tanto que, vendo o meeiro desapontado, sem lucro no bolso e pior de miséria, ficou com dó e lhe deu uns cem mil-réis, do seu bolso.
        - Mas olhe que este dinheirinho que estou te dando não tem nada com o trato da meação. Trato é trato.
        O roceiro Macuco recebeu o dinheiro, com os olhos no chão, sem dizer uma   palavra; por fim, levantou a cabeça e disse:
   - E agora, o que eu hei de fazer?
   - Pois, uaí! você continua aí, vai trabalhando de jornal: cinco mil-réis a seco. E já pode pegar, amanhã, na corta do fumal, para a soca.
         O trabalhador não disse nada a ninguém, nem permitiu que ninguém lhe dissesse nada. De tarde, foi à bica, amolou a foice e, no outro dia cedo, principiou a cortar as hastes desfolhadas do fumal colhido. O fumal velho, podado em agosto, torna a se enfolhar, dá boa soca e seve bem o que dá...
               A poda se faz conservando cada pé na altura de três quartos, mais ou menos. A princípio, o roceiro não cortava na medida certa, depois, pegou a toada e a foice ia e vinha, cortando as plantas na mesma altura. O homem, sem se interromper, avançava para a frente, para a direita, para a esquerda, golpeando com braçadas largas. Olhando de longe, parecia um possesso, de foice em punho matando a torto e a direita. Dir-se-ia que o lavrador enfurecido se vingava da planta. Mas o roceiro Macuco não era homem para destruir os frutos da terra, ele reconstruía a sua obra de lavrador...
             Acabou-se a poda. quando a última vara caiu, o roceiro parou na orla do campo arrasado, cruzou os braços e, apoiando-se no cabo da foice, ficou matutando e contemplando.
            À sua frente estende-se o chão preto, a terra limpa, seca, ouriçada: nem um fiapo de capim, nem um olho de broto espiando; cada pé de fumo podado virou um estrepe agudo. Mas as raízes estão vivas no fundo da terra, esperando que voltem as chuvas criadeiras do tempo das brotas; então, tudo vai outra vez nascer e verdejar, crescer e ocupar a terra erma. A soca vai cumprir a promessa do roceiro Macuco...
         De repente a tarde entristeceu.
            Pelos ouvidos do roceiro passa zunindo o vento que vem trazendo de longe ma nuvem cor de chumbo. Macuco levanta a cabeça e acompanha com a vista a nuvem escura que vai lenta pelos ares...
             A ventania invade os matos, balanceia os pinheiros duros, fustiga desde a graminha até a perobeira que sobe céu acima, enche o espaço e vai levando, para mostrar mais adiante, a todos os trabalhadores da terra, a nuvem escura cor de chumbo, que prenuncia o tempo fecundo das águas.

FIM -

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O Santo - Conto - Afonso Schmidt

 O noturno da capital só passa às 2 horas da madrugada, de modo que, se o senhor quiser descansar um pouco poderá entrar aqui para o depósito das encomendas e deitar-se no estrado, sobre os sacos de milho. Não tenha receio, que a mercadoria é da colheita deste ano e ainda não tem carunchos.
   Como o senhor está vendo, a estação é pobre e sem movimento; foi construída pela Companhia para servir ao desvio e à meia dúzia de casebres perdidos nessa colina. Aqui não há mais nada. são apenas 9 horas da noite e já desapareceram todas as luzes, a não ser as lanternas verdes e vermelhas no alto dos sinaleiros. De um lado e de outro, os trilhos se perdem no escuro e, nos charcos, por debaixo do pontilhão, só se escuta o sonolento coaxar das rãs.
  Mas não se sente no banco da plataforma porque o vento está friozinho e durante as cinco horas que terá de esperar o SP-16 apanhará certamente um defluxo... Não se espante...Essa longa e dolorosa lamentação que lhe está fazendo mal aos nervos é do gado, no desvio, a meio quilômetro da distância. A gente aqui já se habituou tanto a ela que nem escuta; mas no começo...   
  Nos primeiros tempos da minha remoção para este purgatório eu também senti a mesma coisa. A primeira noite foi danada! Dizem que esta localidade não progride por cauda dos gemidos dos bois engaiolados. E daí este cheiro de estrume, de amoníaco...não sente? Quando faz calor, parece que até as motucas fogem daqui. Vejo que o senhor aceitou o meu conselho e vai acomodar-se o melhor possível. Pite este cigarro de palha grossa enquanto eu acendo o meu velho cachimbo. Tem fogo? Esqueci a binga na mesa do telégrafo. Obrigado.
  Nesta estaçãozinha só aparece um passageiro de semana em semana de modo que, quando temos um homem como o senhor, a gente aproveita para conversar um pouco e sentir que ainda é um cristão como os demais. Olhe, agora, que estamos sentados um defronte do outro, neste canto agasalhado e aquecido pelo cereal, à luz mortiça do candeeiro de querosene, vou contar-lhe a história do santo. É para matar o tempo.
   Sim, senhor, do santo. Passou-se aqui mesmo, há por aí uns dois anos mais ou menos. Vejo que o senhor se interessa pelo caso. Pois então escute. Uma vez surgiu por aqui, vindo não seu de onde, um homenzarrão ruivo e de braços tão compridos que batiam pelos joelhos. Devia ter estado muito tempo na prisão, ou perdido no mato, porque parecia esquecido da linguagem dos homens. O andante chamou logo a atenção dos boiadeiros e da gente que estava à sua passagem. Nós o vimos sumir do lado do desvio e, no dia seguinte admirados do que nos contaram os trabalhadores da manobra. O senhor não conhece o desvio? Pois precisa conhece-lo.
   Para nós aquilo já tem significado: é coisa de todo dia. A  sua vizinhança endurece o coração. As crianças aqui, já se criam de maus instintos, por causa do desvio. Imagine o senhor que os bois destinados à capital e outras cidades mais distantes vem do Triângulo, em vagões estreitos a que chamamos gaiolas. As reses viajam atravessadas e unidas, de modo que muitas delas, as mais corpulentas se conservam em arco durante dias e dias....Acontece que a viagem é muito longa e interrompida a cada passo. Aqui é um dos pontos de pernoite.
 O trem do gado chega ao escurecer e é manobrado  para o desvio, até o dia seguinte, em que prossegue viagem, às 6:25. Quando o gado aqui chega, já se encontra engaiolado há vários dias e assim, ficara outros tantos. Ao cabo desse tempo, em consequência dos choques, das marchas e contra-marchas, ou mesmo por causa de fraqueza, cansaço ou doença, os bois já tombaram no carro,  ferindo-se uns aos outros.
  Muitos ficam de chifres partidos e olhos vazados; há também os que descalçam as unhas e se firmam no chão com a ponta de um osso sangrando. E os de pernas esmigalhadas...Não se admire. Antes procure completar o quadro, lembrando que durante o percurso não se dá água nem comida ao gado e que, nos dias de calor, atmosfera de dentro da gaiolas poderia cozer um pão-de-ló. Não há, pois, exemplo de tamanho suplício....
   O homem ruivo, passando pelo desvio e compreendendo a queixa que vai nos mugidos lancinantes dos bois, não teve coragem de abandoná-los e ali ficou entregue à obra de caridade de minorar os seus sofrimentos. Quando chegava o trem boiadeiro e a composição era manobrada para o desvio, ele, munido de um velho balde, punha-se a conduzir a água do riacho, e dar de beber aos animais. Ia de um a um dizendo coisas que os bichos pareciam entender. Em seguida, fazia distribuição do capim cortado durante o dia, de modo que horas depois cessava o mugido das reses e o desconhecido ia dormir ao pé de uma fogueira de gravetos que, ventasse ou chovesse, nunca se extinguia.
   Vivia não sei como. É verdade que os maquinistas dava-lhe o resto das marmitas e as crianças da escola atiravam-lhe da passagem as merendas. Ficou-se habituado àquele homem. Em uma espécie de santo protetor dos bois. Mas no ano atrasado, se não me falha a memória, ao abrir a estação de caça, desembarcou aqui uma turma de alegres caçadores da cidade. Armaram barracas nas proximidades do desvio. Falava-se até que apareceram mulheres. O ruivo foi o bode expiatório. Sua maluquice - que por maluquice tomara o seu devotamento pelos animais - deu motivo a uma engraçada farsa...
   Um dos caçadores disse:
   - "Se você fizer tudo quanto eu mandar, porei um criado para tratar de cada boi! Olhe que eu sou o dono do trem".
   O ruivo topou a parada. Ele era simples, simples que nem uma criança de peito. Então, foi uma noite divertida, uma farra que alarmou os caboclos da redondeza.
   Gritavam-lhe:
  - "Ruivo, ande com um pé só!"
   O gigante se punha a saltar como um bugio.
  - "O ruivo, atire-se no riacho!"
   Ele mergulhava no lodo.
   -" Ruivo, beba, sem pestanejar, este copo de pinga!"
  E ele emborcava até rolar sem sentidos pelo chão.
  No dia seguinte, a tropa fandanga de uns tiros pela mata e regressou à cidade, levando na cinta muitos  pássaros, os mais deliciosos cantores destes vales. Ao embarcarem, eram admirados pelos outros passageiros e recebiam felicitações.
   Depois da sua partida, o Ruivo sentou-se numa pedra, ao pé da fogueira e começou a esperar seriamente o que lhe haviam prometido. Esperou assim muito tempo. Um dia acharam-no morto. A turma da conserva fez um buraco a algumas braçadas do desvio e enterrou-o.
    Agora estão dizendo por aí que ele era santo. Sabe por quê? Venha até aqui, na porta, e olhe lá longe, no fundo da noite. O senhor está vendo aquela luzinha perdida? É a fogueira do Ruivo. Ele, como lhe disse, desapareceu há muito tempo, mas a luz que  deixou sobre a terra ainda não se extinguiu. Já se contam milagres. Bobagem de caboclos...  FIM
         ( O tesouro de Cananéia)

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

PEDRO BARQUEIRO - Conto - AFONSO ARINOS

"Eu lhe conto" - dizia-me o Flor, quase ao chegar à Cruz de Pedra. " Naquele tempo eu era franzinozinho, maneiro de corpo ligeiro de  braços e pernas. Meu patrão era avalentoado, temido e tinha sempre em casa uns vinte capangas, rapaziada de ponta de dedo. Eu tinha uma meia-légua, trochada de aço, que era meu osso da correia". E, consertando o corpo no lombilho, soltou as rédeas à mula ruana, que era boa estradeira. Inclinou-se para o lado, debruçando-se sobre a coxa, e apertou na unha polegar o fogo do cigarro, puxando uma baforada de fumo.
  "Estávamos, um dia, divertindo-nos com os ponteados do Adão, à viola. Eu estava recostado sobre os pelegos do lombilho, estendidos no chão.  A rapaziada toda em roda. Pouco tínhamos que fazer e passava-se o tempo assim.
  "Eis senão quando entra o patrão, com aquele modos decididos, e, voltando-se para um moço que o acompanhava disse: "Para o Pedro Barqueiro bastam estes meninos! " apontando-me e ao Pascoal com o indicador; não preciso bulir nos meus peitos largos. "O Flor e o Pascoal dão-me contado crioulo aqui, amarrado a sedenho".
  "Para que mentir, patrãozinho? o coração me pulou cá dentro, e eu disse comigo - estou na unha! O pascoal me olhou com o rabo dos olhos. Parece que o patrão nos queria experimentar. Éramos os mais novos dos camaradas, e nunca tínhamos servido senão no campo juntando a tropa espalhada, pegando algum burro sumido. Eu tinha ouvido falar sempre no Pedro Barqueiro, que um dia aparecera na cidade sem se saber quem eram nem donde vinha. Cheguei uma vez a conhecê-lo e falamo-nos. Que boa peça patrãozinho! Crioulo, alto, troncudo, pouco falante e desempenado. Cada tronco de braço que nem um pedaço de aroeira.
  "Estou com ele diante dos olhos, com aquela roupa azuleja, tingida no Barro Preto; atravessando à cinta um ferro comprido, afiado, aluminado sempre, maior que um facão e menorzinho do que uma espada. Esse negro metia medo de se ver, mas era bonito. Olhava a gente assim com ar de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter certeza de que, em chegando a encostar a mão num cabra, o caba era defunto. Ninguém bolia com ele, mas ele não mexia com os outros. Vivia seu quieto, em seu canto. Um dia, pegaram a dizer que ele era negro fugido, escravo de um homem lá lá das bandas do Carinhanha. Chegou aos ouvidos do patrão esse boato. Para que chegou, meu Deus. O patrão não gostava de ver negro, nem mulato de proa. Queria que lhe tirasse o chapéu e lhe tomassem a benção.
   "Daí, ainda contavam muita valentia do Barqueiro, nome que lhe puseram por ter vindo dos lados do rio São Francisco. Essas histórias esquentavam mais o patrão, que eu estava vendo de uma hora para outra estripado  no meio da rua, porque era homem de chegar quando lhe fizessem alguma.
  "Tanto eu como Pascoal tínhamos medo de que o patrão topasse Pedro Barqueiro nas ruas da cidade.
   "Subiram de ponto esse nosso receio e a ira do patrão, quando soube de uma passagem do Pedro, num batuque, em casa de Maria Nova, na rua da Abadia
 "Chegara uma precatória da Pedra-dos-Anjicos e o juiz mandou prender a Pedro. Deram cerco à casa onde ele estava na noite do batuque. Ah! meu patrãozinho! o crioulo mostrou aí que canela de onça não é assobio. Não é dizer que estivesse muito armado, nem por isso só tinha o tal ferro aluminando sempre; e com esse ferro  deu pancas. Quando cercaram a casinha e lhe deram voz de prisão, o negro fechou a cara e ficou feito um jacaré de papo amarelo. Deu frente à porta da rua e encostou-se a uma parede. Maria Nova estava perto e me disse que ele cochichou uma oração, apertando nos dedos um bentinho, que branquejava na pele negra de sua peitaria lustrosa. 
   "Chegaram a entrar a casa três homens da escolta e todos três ficaram estendidos. Pedro tinha oração, e muito boa oração contra armas de fogo, porque José Pequeno, o caboclinho atarracado, ao entrar, escancarou no negro o pinguelo de um clavinote e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou sobre ele na fumaça da pólvora e, quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como um boi sangrando.
   "Dois rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e pôs as tripas de fora a outro, que escaparam, é verdade, mas ficaram lá no chão gemendo por muito tempo.
   "Daí para cá, Pedro evitava andar pela cidade, onde só aparecia de longe em longe, e à noite. Mas  todo o mundo, tinha medo dele e vivia adulando-o.
   "Um dia, como já lhe contei, apareceu lá em casa um moço pedindo auxílio a meu patrão para agarrar o negro. Era mesmo escravo, O Barqueiro; mas há muitos anos vivia fugido. Já lhe disse que o patrão queria tirar o topete ao valentão,e, para isso, escolheu pobre de mim e Páscoal.
    - Que dizes, Flor? falou o patrão rindo-se.
  - Uai, meu branco, vossemecê mandando, o negro vem mesmo, e no sedenho.
   - Quero ver isso.
 - Vamos embora, Pascoal!
   "Quando íamos a sair, o patrão bateu-me no ombro e,voltando-se para o moço, disse muito firme: " Pode prevenir e escolta para vir buscar o Barqueiro aqui, de tarde. Hão de dar duzentos mil-réis a estes meninos".
   "Desci ao quarto dos arreios, passei a mão na  meia-légua e no facão e apertei a correia à cinta.
   " Pascoal já estava na port da rua, assobiando. Tinha por costume, nos momentos de aperto, assobiar sempre uma trova, que diz assim:

   "Na mata de Josué
     Ouvi o mutum gemê;
     Ele geme assim:
     Ai-rê-uê, hum! airê"

"Quando Pascoal me viu, soltou uma risada.
 -Estás doido, rapaz! gritou-me.
 - Por quê?
- Queres mesmo enfrentar com o Pedro Barqueiro? Ele faz de nós paçoca. A coisa se há de fazer de outro modo.
 "Pascoal tinha tento e eu sempre tive fé nele. Era um cabritozinho mirrado. Saía-lhe cada ideia...Mandou-me guardar a meia-légua e o facão. Depois foi à venda, escolheu anzóis de pesca e veio para casa encastoá-los. Eu, nem bico! Ajudei a acabar o serviço certo de que Pascoal tinha alguma na mente.
  - Deixa a coisa comigo, ajuntava ele.
  "Isso ainda era cedo; o sol estava umas três braças de fora, no tempo dos dias grandes. Lá por casa madrugávamos sempre para ir ao pasto e trazer os animais de trato.
  - Vamos fazer uma pescaria, disse-me o Pascoal. - Ali para os lados do Batista, perto de um baruzeiro grande, há um poço, onde as curumutãs e os piaus são como formigas. O rancho do Pedro Barqueiro fica perto. Ele mora só e eu conheço bem o lugar. Pela astúcia havemos de prendê-lo. Quando eu gritar: " Segura, Flor!" - tua agarras o negro, mas segura rente!
   " E fomos. Nessa hora me veio bastante vontade de fugir ao perigo, de ir passear, porque tinha como certo suceder-nos alguma. "Que é lá, Flor!" - disse de mim para mim. "Um homem é para outro. " E, depois o Pascoal não me deixava nas embiras. Quando descemos meio sorumbático. Nesse tempo, eu andava arrastando a asa à Emília, filha do José Carapina. Era uma roxa bonita deveras e não estava muito longe de me querer. Posso dizer mesmo que na véspera olhou muito para mim, ao passar com a saia de chita sarapintada de vermelho, umas chinelas nova e de cordovão amarelo. Ah! que peitinho de jaó, patrãozinho! empinado, redondo, macio como um couro de lontra. Com o devido respeito, patrãozinho, eu estava na peia, enrabichado e foi nesse mesmo dia que ela me deu esta cinta de lã, tecida por sua mãos, que guardo até hoje.
  "Aí! roxa da minha paixão" - pensava eu - " como hei de morrer assim, fazendo cruz na boca?" - O diabo da ideia me atarantou pelo caminho e cheguei a dar tremenda topada numa pedra, no meio da estrada. Curvei-me sobre a perna, agarrei o pé  com as mãos estive dançando, sem querer, um pedacinho de tempo. Depois, levantei a cabeça. Pascoal sentara num barranco e encarava para mim, rindo. levantei a cabeça e olhei pra cima, assuntando. No céu galopavam umas nuvens escuras. Um vento áspero passava, arrancando do jenipapeiro as frutas maduras, que esborrachavam no chão assim - prof! - espantando os juritis que andavam esgaravatando a terra e comendo grãozinhos. Duas seriemas guinchavam, esgoelavam. depois, vi que estavam brigando - me lembra como se fosse hoje - e uma avançava para outra dando pulinhos, sacudindo as asas, com o cocuruto arrepiado e os olhos em fogo. O coração pareceu dizer-me outra vez - " olha, Flor, o que vais fazer". Nesse entretanto, o Pascoal, que me encarava sempre do ponto onde estava sentado, gritou-me:
   - Esqueceste a cabeça nalgum lugar? Vamos embora, que vai tardando já.
   "Fiquei descochado; cai em mim e fui marchando disposto. Daí em diante, fui brincando com o Pascoal, que era muito divertido e tinha sempre um caso a contar. Chegando embaixo, arrregaçamos as calças e descemos o córrego, cada um com seu anzol na vara, ao ombro.
   " Era preciso que ninguém desconfiasse do nosso concluio para prendermos o Pedro Barqueiro.
 "Aí, quase que tínhamos esquecido o perigoso mandado, tão diferente andava a conversa com as caçoadas do Pascoal.
   "Para encurtar a história, patrãozinho, achamos Pedro Barqueiro no rancho que só tinha três divisões: a sala, o quarto dele e a cozinha.
   "Quando chegamos, Pedro estava no terceiro debulhando milho, que havia colhido em sua rocinha ali perto.
   - "Vocês por aqui meninos? Olhem! vão ali àquele poço, para baixo da cocheira. Tem lá uma laje grande e de cima dela voçês podem fazer bichas com os piaus.
  - "Louvado seja Cristo, meu tio!' havia dito o Pascoal, e nisto o imitei.
   - "Se quiserem comer uma carne assada ao espeto, tirem um naco; está na fumaça, por cima do fogão, uma boa manta. Olhem a faca aí na sala, se vocês não tem algum caxerenguengue.
  Pascoal entrou, e viu recostado a um canto da parede  o ferro aluminando. Pegou nele, saiu pela porta da cozinha e escondeu-o numa restinga, ao fundo. Depois, me assobiou, eu acudi e fui procurar a lazarina de Pedro - boa arma, de um só cano, é verdade, mas comedeira.
   - Há alguma jaó por aqui, tio Pedro? perguntou Pascoal.
  - Nem uma, nem duas, um lote delas. Se você quer experimentar minha arma, vá lá dentro e tire-a. Não errando a pontaria, você traz agora mesmo uma jaó.
  - Quero matar um passarinho para fazer isca, meu tio
  - Pois vá, menino
  "E Pascoal descarregou a arma.
  "Pedro tinha-se levantado e falava com Pascoal do vão da porta da entrada.
"Era hora.
   "Pascoal me fez um sinalzinho, eu dei volta e entrei pela porta do fundo para agarrar o Barqueiro pelas costas. A combinação era essa. Enquanto Pascoal o foi entretendo, eu fui chegando soturno, quando ele gritou -"segura!" - eu pulei como uma onça sobre o negro desprevenido.
   " Conheci o que era homem, patrãozinho! saltando-lhe nas costas, dei-lhe um abraço de tamanduá no pescoço. Mas o negro não pateou, e, mergulhando comigo para dentro da sala, gritou:
    - " Nem dez de vocês, meninos! Ah! se eu soubesse..."
   "Patrãozinho, eu sei dizer que o negro me sacudia para cima como um touro bravo sacode uma garrocha. Mas eu via que, se o largasse, estava morto, e arrochei os braços.
   - "Chega, Pascoal", gritei.
  - "Eu quero manobrar de fora. Ânimo! Segura bem que nós amarramos o negro.
  "Que tirada de tempo! O negro, às vezes, abaixava a cabeça, dando de popa, e minhas pernas dançavam no ar, tocando quase o teto de rancho. Lutamos, lutamos até que Pascoal pode meter um tolete de pau entre as canelas de Pedro, de modo que ele cambaleou, e caiu de bruços. Nós dois pulamos em riba dele. Eu, triunfante gritava: "Conheceu , crioulo? Negro é homem?" Ele era teimoso, porque dizia ainda: " Nem dez de vocês, meninos! Ah! se eu soubesse..." Pascoal trazia à bandoleira um embornal para carregar peixe e veio dentro dele escondida uma corda de sedenho, comprida e forte. O Barqueiro estava no chão; e foi preciso ainda fazermos bonito para agarrá-lo.
  - Agora, puxe na frente, seu negro! - gritou-lhe o Pascoal.
   "Havíamos juntado os braços dele nas costas e apertamos com vontade. Ficou completamente tolhido.
   " Eu ia segurando a ponta de sedenho e levava o negro na frente. Mesmo assim, houve uma hora em que ele me deu um tombo, arrancando de repente a correr. Por seguro, a corda estava-me enrolada na mão e eu não a leguei. Nesse instante Pascoal tinha corrido atrás dele e lhe descarregando na nuca um tremendo murro, que o fez bambear um pouco e me deu tempo de endurecer o corpo e segurar firme a corda.
   " O Barqueiro, depois que saiu do rancho, não piou.
   "Chegamos à casa de tarde e o negro ia no sedenho.
   - " Eu não disse", gritava o patrão muito contente, " que só bastavam a esses dois meninos para o Barqueiro? Está aí o negro".
   "E o povo corria para ver  e a frente da casa do patrão estava estivada de gente.
  "Recebemos os duzentos mil-réis.
  - Tinha-me esquecido de contar-lhe que eu fizera uma promessa à Senhora da Abadia, de levar-lhe ao altar uma vela, se voltasse são e salvo. Cumpri a promessa no dia seguinte e arranjei uma festinha para a noite. queria um pé para estar com a Emília.
  "Comprei um trancelim de ouro para aquela roxa de meus pecados e um xale azul. Ela era esquiva. Fez u muito momo nessa noite, e não quis dar nem uma boquinha, com o devido respeito ao patrãozinho.
   "Saí da casa de José Mendes, onde deu a festa, quando os galos estavam amiudando.
   "A estrela-d'alva, no céu escuro, parecia uma graça lavando-se na lagoa. O orvalho das vassoura me molhou as pernas e eu estremeci um bocadinho. Entrei num beco beco que ia sair na rua deTrás, onde eu então morava.
   "Ia meio avexado e peguei a banzar. Emília! Emília do coração! por que me amofinas com esse pouco caso? E desandei a cantar, bem chorada, esta cantiga:
    
Ta  trepado no pau
De calça pra baixo,
com asas caídas
Gavião de penacho!

Todo o mundo tem seu bem,
Só obre de mim não tem!
Ai! gavião de penacho!

"De repente, pulou um vulto diante de mim. Quem havia de ser, patrãozinho? Era o Pedro Barqueiro em carne e osso. Tinha não sei como, desamarrado as cordas e escapado da escolta, em cujas mãos o patrão o havia entregado.
   "O ladrão do negro tinha oração até contra sedenho!
  "Sem me dar tempo de nada, o Barqueiro me agarrou pela gola e sujigou. levantou-me no ar três vezes, de braço teso, e gritou-me:
   - "Pede perdão, cabrito, desvergonhado, do que fizeste ontem, que te vou mandar para o inferno! Pede perdão, já!
   "A gente precisa de ter um bocado de sangue nas veias, patrãozinho, e um homem é um homem! Eu não lhe disse pau e nem pedra. Vi que morria, criei ânimo e disse comigo que o negro não me havia de por o pé no pescoço.
   " Exigiu-me ele, ainda muitas vezes, que lhe pedisse perdão, mas eu não respondi. Então, ele foi-me levando nos braços até uma pontezinha que atravessava uma perambeira medonha. A boca do buraco estava escura como breu e parecia uma boca de sucuriú querendo engolir-me. Suspendeu-me arriba do guarda-mão da ponte e balançou meu corpo no ar. Nessa hora, subiu-me um frio pelos pés e um como  formigueiro me passeou pela regueira das costas a té a nuca; mas minha boca ficou fechada. Então o Barqueiro, levantando-me de novo, me pousou no chão, onde eu bati firme.
  " O dia estava querendo clarear. O negro olhou para mim muito tempo, depois disse:
  - "Vai-te embora, cabritinho, tu é o único homem que tenho encontrado nesta vida!
  " Eu olhei para ele, pasmado.
   "Aquele pedaço de crioulo cresceu-me diante dos olhos e vi- não sei se era o dia que vinha raiando - mas eu uma luz estúrdia na cabeça de Pedro.
   "Desempenado, robusto, grande, de braço estendido, me pareceu, mal comparando o Arcanjo São Miguel, sujigando o Maligno. Até claro ele ficou essa hora! Tirei o chapéu e fui andando de costas olhando sempre para ele.
   "Veio-me uma coisa na garganta e penso que me ia faltando o ar.
  "Insensivelmente, estendi a mão. As lágrima me saltaram dos olhos, e foi chorando que eu disse:
  - "louvado seja Cristo, tio Pedro!
   " Quando caí em mim, ele tinha desparecido'.   FIM ( pelo sertão)




  

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Cunham Etá Maloca - Conto -Barbosa Rodrigues

 Dizem que havia outrora, no rio Uanauá, moças virgens que guardavam os talismãs e os atributos de Jurupari.
 Dizem que uma vez fugiu uma das moças e foi procurar marido.
 Chegando ao mato e anoitecendo, aí dormiu. De madrugada estava chorando quando ouviu homens falarem.
 Um deles estava dizendo:
 - Eu não me hei de casa; se encontrar uma moça bonita, então me casarei.
   Depois disso encontraram a moça, e o homem, vendo-a, achou-a formosa e ela também o achou bonito.
  O homem lhe disse:
 -Queres te casar comigo?
A moça disse:
 - Quero.
O homem era da nação Jacamim.
Os pais os casaram e depois de casados foram eles banhar-se no riacho e aí acharam a erva jacamim com a qual esfregaram o corpo e se lavaram.
Dizem que então ambos transformaram-se em jacamins.
  Depois disso sentiu que tinha ovos e a barriga cresceu a não pode mais andar.
 Dizem que a mulher dissera:
-Isto não são ovos, isto talvez sejam filhos. Alguns meses depois deu a à luz duas crianças, uma mulher e um homem.
 Foram crescendo as crianças.
 O menino, era formoso e dizem que gostava de frechar, pelo que a  mãe lhe disse:
   - Meu filho, em tempo algum tu frechararás Jacamins.
 A mãe deles nunca os vira quando dormiam; uma noite, porém, foi vê-los dormir.
  Olhando para seus filhos assustou-se.
  A menina, dizem que tinha sete estrelas na testa, e o menino uma cobra de estrelas enrolada no corpo.
 A mãe ficou assutada e chamou o marido para ver as crianças. 
Veio o pai  delas e assustou-se também. Falou:
 - Eu sou ave, como é que tenho crianças?
  Depois disso, dizem, foi ter com os pajés e disse-lhes:
- Que quer dizer isto: eu sou ave e minha mulher tem crianças?
  Os pajés disseram-lhe:
 - Também são teus filhos. Quando estiveste com tua mulher ela estava olhando para as estrelas e por isso saíram as estrelas neles.
  Enquanto o pai conversava com os pajés e a mãe foi também passear, o menino nas frechas e no arco e foi caçar.
 Encontrou Jacamins e matou todos.
 Depois de ter morto todos, vieram outros que também matou. Depois foi para casa.
Ele disse à mãe:
 - Minha mãe! Eu matei todos os Jacamins. Vamos ver? - Vamos.
Quando eles chegaram ela viu que o menino tinha morto o pai e todos os pajés.
  - Meu filho, tu mataste teu pai e bem assim os pajés; agora ninguém nos dá o sustento. Tu nos estragaste muito.
Então dizem que o menino respondera:
- não entristeça o seu coração, mãe; para isso estou eu; o que faltar eu lhe darei.
 Em caminho disse ao filho:
 - Meu filho, como chegaremos à terra de teus avós? Quando outrora de lá saí não tinha filhos, estava virgem, agora teu avô há de querer meter-me na casa tenebrosa para que não conheça homens.
  - Deixe estar, minha mãe, eu verei; quando eu chegar lá eu acabo com essas coisas.
  Quando eles chegaram na terra do avô, o menino pegou numa grande pedra e lançou sobre a casa e a achatou: as mulheres todas que lá estava fugiram. A pedra que caiu pelo seu próprio peso afundou-se pela terra.
 O avô quando viu aquilo teve medo do menino e toda aquela gente também teve dedo dele.
 Dizem que, então, o chefe falara:
 - Eu toda vida estimarei muito a vocês, mas só quero que consertem o que estragaram e ponham tudo com anteriormente estava.
 Disse então o menino ao chefe:
  - Eu também gosto de ver todas as coisas em seu lugar.
 Ficaram então bem na terra dos parentes.
 Depois disso, a menina por não ter marido adoeceu.
 O menino então disse a sua mãe:
- Dê para mim minha irmã para eu levá-la e curá-la, porque só eu sei onde onde está o remédio.
 Deste modo o irmão levou-a para o céu, por não querer que ela se curasse e é ela que agora vemos e chamamos as Sete Estrelas(Plêiades).
   Vendo depois disso, a mãe, que eles se demoravam foi-lhes no encalço a procura-los e quando passava por  um riacho a cobra grande a engoliu.
 Quando chegou o filho macho, não achando a mãe foi também  a sua procura.
 Foi por todas as terras e por onde foi passando deixou filhos ate encontrara sua mãe.
Depois de achar a mãe levou-a para o céu.
Ela é hoje aquela estrela que nós chamamos Pinon ou Cobra Grande.
 O que eu conto foi nosso princípio, na origem de nossos avós. FIM


(Poranduba Amazonense)

Contos Brasileiros Antigos - Uma nova jornada!

Vou começar uma nova jornada de transcrições!A história é a seguinte. Fui levar meu filho ao homeopata e a secretaria muito querida sabendo que eu estava transcrevendo Contos antigos me ofereceu dois livros antigos de contos, fiquei tão feliz pelo fato de ter confiado a  mim dois exemplares de livros.

Contistas Brilhantes

O livro Obras-Primas do Conto Brasileiro.

Afonso Arinos(Nasceu em Paracatu, Minas 1/05/1868) Advogado - - Pelo sertão - Devem fazer parte das leituras das vindouras gerações de brasileiros.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Um tempo para cada coisa!

Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus. (Bíblia Sagrada)

Tempo para nascer, e tempo para morrer;
Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado;
Tempo para matar e tempo para sarar;
Tempo parar demolir, tempo para construir;
Tempo para chorar e tempo para rir;
Tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras e Tempo para ajuntá-las, e tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se.
Tempo para procurar, e tempo para perder, tempo para guardar, e tempo para jogar fora;
Tempo para rasgar e tempo para costurar, tempo para calar, e tempo para falar;
Tempo para amar, e tempo para odiar, tempo para a guerra e tempo para a paz.
 Fim

 O tempo de transcrever os contos de Grimm e Andersen acabaram, ficou uma lacuna no meu coração, pois há muito  tempo este objetivo me acompanhava. 
 Mas tenho muito outras meta, postar no You tube, todas os contos deste blog!  já comecei espero encontrar meus leitores e seguidores la´. Canal (Silvana Ramos) e (sil_asmr)

Me encontre no tiktok ( sil_asmr) no Instagram ( sil__asmr )no you tube (sil_asmr ) e silvana Ramos no Kwai (sil_asmr)


Amo muito isso tudo! Que Deus me dê a oportunidade de novos horizontes. Amém! Apoie meu trabalho através do PIX silasmr.contato@gmail.com

terça-feira, 5 de junho de 2018

O DUENDE PEDRINHO - CONTOS DE ANDERSEN ( ÚLTIMO CONTO, DIGITO DESDE 2015)


"OBRIGADA QUERIDO LEITOR QUE TEVE A PACIÊNCIA ! POIS DEMOREI MUITO PARA TERMINAR MAS FOI FEITO COM DEDICAÇÃO E AMOR. ESTE ÚLTIMO CONTO VAI SER SABOREADO COM TODO CARINHO!"VAMOS COMEÇAR COM A PRIMEIRA FRASE DO CONTO.


O DUENDE PEDRINHO

  Conheces o duende Pedrinho. Mas conheces também a senhora do jardineiro! Era dama letrada, sabia recitar versos, e até os -----escrevia com facilidade; só a rima"o forjar dos elos" é que lhe dava algum trabalho. Sim, tinha talento; talento de escritora e de oradora. E poderia ser até pregadora, ou pelo menos mulher do pregador.
    - Como a terra é encantadora nas suas roupas domingueiras! - dizia ela 
    E estilizando e " rebitando" essa ideia, fizera dela uma longa canção.
   O seminarista Kisserup - afinal o nome nem vem ao caso - o seminarista era filho da irmã da senhora do jardineiro; foi fazer-lhe uma visita e ouviu-a declamar o poema; disse então que o achava realmente edificante, um estímulo para o coração. E declarou:
   - A senhora tem espírito.
   Ao que o jardineiro retrucou logo:
   - Asneiras! Não lhe meta essas coisas na cabeça! Uma mulher deve ter é corpo, um corpo sadio; e deve  prestar atenção mas é às panelas, para que a comida não se queime.
   - Pois o queimado, retiro-o com brasa - respondeu ela. - E se fores tu quem estiver " esturrado", tiro-o logo com um beijo! Parece mesmo que ele só gosta de repolhos e de batatas, e no entanto adora as flores!
    E, dizendo isso, deu-lhe um beijo, acrescentando ainda:
   - As flores são o espírito!
   - Cuida das tuas panelas! - disse ele, dirigindo-se para o jardim.
   É que para ele era o jardim a panela que lhe interessava.
   Mas o seminarista ficou conversando com a senhora. Aquelas belas palavras que ela pronunciara - " A terra é encantadora!" - davam-lhe impulso para um sermão inteiro, sermão que fez à sua maneira.
   - A terra é encantadora. Dominai-a! E nós nos tornamos seus donos. Um, pelo espírito, outro, pelo corpo. Este foi posto no mundo como um ponto de admiração, pasmado: aquele, como um hífen, que desperta em todos esta pergunta: " Que pretende ele? " Um chega a ser bispo; outro não passa de um pobre seminarista. Mas tudo foi subitamente organizado; " A terra é encantadora, e está sempre endomingada!" É na verdade um poema que inspira ideias, senhora, um poema cheio de geografia, e de sentimento.
   - O senhor tem espírito. Sr. Kisserupp; muito espírito, digo-lhe eu! Quem, conversa com o senhor fica esclarecido a respeito de si próprio.
  Continuaram palestrando nesse tom, sempre com a mesma beleza e elevação; mas na cozinha havia alguém que também falava: e era o duende Pedrinho, o homenzinho vestido de cinzento, de carapuça vermelha à cabeça. Qualquer pessoa pode vê-lo. Estava o duende Pedrinho sentado na cozinha e espiando as panelas enquanto falava; mas ninguém o ouvia, a não ser a grande gata preta - a ladra de nata, como a chamava a senhora.
    O duende pedrinho estava muito zangado com a dona da casa, porque ela não acreditava, absolutamente não acreditava na sua existência! É verdade que ela jamais o vira; mas entendia o duende que mulher tão erudita devia saber que ele existia, e devia também tratá-lo com certa consideração. Mas o fato é que ele nunca se lembrava de lhe destinar na Noite de Natal nem se quer uma colherada de arroz-doce, como todos os seus antepassados tinham recebido - e note-se: de senhoras que não eram absolutamente eruditas! E arroz ressumando manteiga e nata! A gata. só de ouvir falar nisso, ficou com água nas barbas.
   - Diz que sou um símbolo - continuou o duende Pedrinho.- Isso é coisa que minha imaginação não pode alcançar! Para ela é como se  eu não existisse. É o que verifico, toda a vez que a ouço, como fiz neste mesmo momento. Lá está conversando com o seminarista - aquele professoreco! Pois eu digo, com o jardineiro: " Cuida das tuas panelas!" Mas a mulher não se importa, e agora vai ver como a panela derrama!
   E o duende pedrinho soprou o fogo e levantaram-se labaredas altas. 
 - Chichhhh...Chich...
   Lá derramou o leite
   - Vou agora furar as meias do jardineiro. Vou fazer um bom buraco nos dedos e outro no calcanhar. Então ela terá o que cerzir, e em vez de cesuras de versos, há de se ocupar com os rasgões da meia do marido. Fazer versos! Ora essa! Vá cerzir meias!
   Nisto a gata deu um espirro. Apanhara um resfriado, apesar de andar sempre de casaco de pele.
   - Eu abri a porta da despensa - disse o duende Pedrinho. - Vi lá uma nata fervida, tão grossa como um pirão...Se não queres saboreá-la, vou eu lambe-la.
   - Ora, de toda a maneira levo sempre as culpas e as pancadas: vou pois petiscar também a nata.
  - É isso, é: vai comer a nata. Enquanto isso vou ao quarto do seminarista: penduro-lhe o suspensório no espelho e ponho as meias na bacia. Ele vai pensar que o ponche estava forte demais e que se embriagou! Esta noite sentei-me no monte de lenha, ao pé do canil. Gosto tanto de enraivecer o cão de guarda..Lá fiquei, bamboleando as pernas. O cachorro não podia alcança-las, por mais pulos que desse, e ficou fora de si. Ladrou  sem cessar, e eu sempre sacudindo as pernas...Foi um belo espetáculo! O seminarista acordou; levantou-se três vezes e foi olhar à janela. mas ele não me viu, apesar de  estar com os óculos no nariz. Ele até dorme de óculos!
   - Quando a senhora vier, grita" Miau!" - disse a gata. - Não ouço muito bem hoje: estou doente.
 - Tua doença é gula! - respondeu o duende Pedrinho. - Mas vai, vai petiscar. Lambisca até curares a tua doença. E enxuga bem as barbas depois, senão a nata fica grudada nelas! Eu fico à escuta.
    E o duende Pedrinho pôs-se à porta, que estava apenas encostada. Não havia mais ninguém na sala, além da senhora e do seminarista. Conversavam sobre o que o seminarista chamava, com tanto acerto " as coisas  que em todas as casas deviam ser postas acima das panelas e dos prato- os dons o espírito".
    SR Kisseruppp - dizia a senhora - agora vou aproveitar a ocasião para lhe mostrar uma coisa que nunca mostrei a alma vivente, e menos ainda a um homem: vou mostra-lhe meus poemas, alguns dos quais saíram bem meu agrado. Intitulei-os Sons de Harpa de uma Alma de Mulher, porque gosto muito de palavras poéticas.
   - Sim, é isso mesmo que devemos fazer; e também devemos eliminar da língua os estrangeirismos.
  - Pois é o que faço. O senhor jamais me ouvirá dizer bebê, ou constatar: digo sempre - " criança de peito" ou " verificar".
    Dizendo isso, ia retirando de dentro de uma arca um diário de capa verde, com duas manchas de tinta.
   - Este livro contém muito poema sério -disse ela. -
  O que sinto com mais intensidade são as coisas tristes. Aqui temos, por exemplo, o Suspiro o noturno, Meu arrebol, e Quando conquistei Klemm - quero dizer meu marido. Esta poesia o senhor pode deixar de lado sem a ler, posto que esteja cheia de sentimentos e ideias. Os deveres da dona de casa é o melhor de todos os meus poemas. São todos muito melancólicos, porque é esta a linha do meu talento. Há uma única poesia humorística cheia, de pensamentos alegres, como ocorre mesmo à gente, de vez em quando... Mas o senhor não deve zombar de mim! São pensamentos concernentes ao fato de ser eu poetisa. Só eu e minha mesa de trabalho - e agora também o senhor- conhecemos estes escritos, Sr. Kisserupp! Eu adoro a Poesia. Ela se apodera de mim, agita-me, domina-me, governando-me como soberana. Foi isso mesmo o que escrevi aqui,, sob o título: O duende Pedrino. Conhece certamente a velha crença dos campônios a respeito do duende Pedrinho, que sempre anda  a fazer travessuras pela casa inteira. Veio-me a ideia que era eu a casa, e que a poesia, o sentimento que existe em mim, o espírito que me domina, é o duende Pedrinho, cujo poder e grandeza celebro no poema a que dei esse nome. Mas o senhor vai prometer-me que não falará disto a ninguém, nem sequer a meu marido...Agora peço-lhe que o leia em voz alta, para eu ver se decifrou a minha letra.
   O seminarista começou a ler e a senhora o escutava.
   O duende pedrinho também ouvia, pois, como já disse se pusera à escuta; e chegara à fresta da porta justamente  no momento em que se pronunciava o título: O duende Pedrinho.
   - Isso é comigo! - disse o homúnculo. - Que terá ela escrito a meu respeito? Pois não há de se ver! Não! Essa ela há de me pagar! Vou chupar todos os ovos, roubar todas as galinhas e perseguir o terneiro até que ele fique bem magrinho! Vejam só esta dama! 
   E continuo escutando; espichou um grande bico e abriu bem os ouvidos.
   Mas dali a pouco, ouvindo assim falar na magnificência, no poder e no domínio que o duende Pedrinho exercia sobre a senhora- sabes bem que ela se referia à Poesia, mas o homenzinho tomou as coisas ao pé da letra...aplicando tudo aquilo a si próprio - pouco a pouco ele foi ficando risonho: já lhe resplandeciam os olhos de alegria. E já um que de nobreza lhe ia pontando nas comissuras da boca. Levantando bem os tacões, pôs-se nas pontinhas dos pés e chegou a ficar uma polegada mais alto. Estava encantado com as coisas que se diziam acerca do duende Pedrinho.
    - A senhora tem espírito e uma vasta cultura! Como eu tinha julgado mal essa mulher! Ela me incluiu nos seus Sons de Harpa, que vão ser impressos e lidos! Pois de hoje em diante a gata não lhe lamberá mais a nata: isso fica exclusivamente comigo! Um só lambisca menos que dois, é claro; e assim posso contribuir para certa economia - em honra da patroa, que quero respeitar e venerar.
  - Mas este duende Pedrinho é tal qual um homem - pensava consigo a gata velha. - Basta um doce "miuau" da senhora, um único"miau" que ela lhe dedique, e imediatamente muda de opinião. É! A patroa é muito esperta!
   Mas aquilo não era esperteza da dama, não: a natureza do duende Pedrinho é que era igual à humana... 

                            FIM!



Quero agradecer cada letra digitada cada palavra interpretada cada sonho realizado, de aprendizado e evolução espiritual.
Obrigada aos autores destes contos pela dedicação, de nos legar sonhos que mexem com a imaginação e nos faz viajar pelos livros de Grimm e Andersen. Obrigada, obrigada!
 Foram 3 anos resgatando os Contos que não li no momento em que ganhei, mas guardem os volumes com muito carinho pois inconscientemente sabia que um dia eu valorizaria-os com toda o meu amor e dedicação.
Estou feliz por atingir o objetivo tão sonhado, esse trabalho me ajudou muito a ser melhor como pessoa. Sem pressa de atingir o final, minha ansiedade foi controlada em todos os campos da vida, se refletiu essa paz em toda esfera do meu ser. Minha eterna gratidão. Obrigada!

Agradecimentos pelo termino do projeto " Transcrevendo os Contos de Griim e Andersen" dos meus livros que ganhei há 50 anos atrás!

E com muita emoção que anuncio a transcrição do último conto da minha coleção, meu filho passou por mim e perguntou : 
- Já começou a chorar mãe?
Tu és a pessoa mais emotiva que eu conheço mãe.
Adorei ouvir essa observação do meu anjo Rafael, meu filho!
 Estou feliz pois desde 2015 tenho tenho trabalhado neste projeto pessoal que se tornou público através do blog.
  Quero agradecer à minha família que valorizou este trabalho.
 Aos meu pais que me deram esta coleção de livros.
 Estou realizando um grande sonho, li e transcrevi cada letra dos meus livros. Obrigada mãe e pai vocês não tem ideia da riqueza que me passaram através deste presente.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

O Velho Lampião - Contos de andersen

Já ouviste contar a história do velho lampião da rua? Não pode se dizer que seja lá muito divertida, mas vale a pena ouvi-lá, pois é interessante.
   Era um velho lampião, um bom e honesto lampião, que durante muitos a, muitíssimos anos fizera o seu trabalho, e agora ia ser aposentado. Achava-se pela última vez sobre o poste, espalhando luz pela rua. E o lampião sentia o que deve sentir uma velha comparsa de bailados, que dança pela última vez e amanhã ficará esquecida na sua água-furtada.
   Sentia-se também amedrontado, porque no dia seguinte teria de comparecer pela primeira vez à Prefeitura, onde o prefeito e os conselheiros o inspecionariam, para decidir sobre a sua sorte: se ainda estava ou não em condições de prestar serviço.
   Ficaria então resolvido se dali em diante iria fornecer luz aos habitantes de um arrabalde, ou a uma fábrica do interior. Talvez o destino o levasse diretamente a uma fundição de ferro; atormentava-o uma dúvida atroz: se nesse caso conservaria a recordação de ter sido outrora lampião de rua. Mas, sucedesse o que sucedesse, de uma coisa tinha certeza: iam separá-lo do guarda-noturno e da mulher, que o consideravam como parte da família.
  Quando o lampião foi suspenso pela primeira vez, o guarda-noturno era um moço vigoroso. E assumia o cargo também justamente naquele momento. Sim!  Quão longe ia já o tempo em que um se tornara lampião e o outro guarda-noturno! Naquela época a mulher do guarda era um tanto arrogante; só se dignava a olhar para o lampião quando passava por ele à noite; de dia, jamais. Contudo, nos últimos anos, já envelhecidos todos - o guarda, a mulher e o  lampião - ela também lhe dispensava cuidados, polindo-o e enchendo-lhe o depósito. Era honestíssimo, aquele velho casal: jamais o defraudaram sequer em uma gota de óleo.
     E era esta a última noite que passaria na rua! E teria de ir no dia seguinte à Prefeitura! Duas ideias sinistras!Não admirava, pois, que não pudesse dar uma luz mais brilhante. Mas ainda muitas outras ideias lhe passavam pela cabeça. A quanta coisa não prestara sua luz! A quantas ocorrências assistira...talvez tantas como o prefeito e os conselheiros. Contudo, não manifestou essas ideias; era um lampião muito bom e honesto, que a ninguém desejava fazer mal e menos ainda às autoridades.
   Lembrava-se de tantas coisas, que de vez em quando sua chama bruxuleava. E naqueles momentos tinha a impressão de que havia alguém que se recordasse dele.
  - Sim, havia aquele belo rapaz...é verdade que já faz tanto tempo! Ele tinha na mão uma carta cor-de -rosa, dourada nas bordas. A letra era fininha, dir-se-ia da mão de uma dama. Leu-a ele duas vezes, beijou-a e erguem para mim os olhos, que diziam claramente:
   " Sou o mais feliz de todos os homens!"
    - E só nós dois sabíamos o que estava escrito naquela primeira carta da sua namorada. Sim...E há outro par de olhos de que me lembro. Que coisa estranha são estes saltos do pensamento! Houve um enterro na rua. Repousava a bela moça no mais rico de todos os carros fúnebres, encerrada em um féretro coberto de flores e coroas. Tantas eram as tochas, que desmaiavam a minha luz. Ao longo das casas acotovelava-se a multidão, que acompanhava o cortejo fúnebre. Mas quando perdi de vista as tochas, e olhei em roda de mim, vi uma única pessoa que derramava lágrimas, encostada ao meu poste. E jamais esquecerei o par de olhos dolorosos que se erguiam para mim naquele momento!
   E eram esses pensamentos e outros semelhantes, que ocupavam a mente do velho lampião, que ardia pela derradeira vez. 
   A sentinela que é rendida conhece ao menos o seu substituto, e pode trocar com ele algumas palavras. O lampião ignorava quem lhe iria suceder; e contudo poderia dar-lhe algumas indicações úteis a respeito de chuvas e cerração, por exemplo; e poderia ensinar-lhe o alcance dos raios lunares sobre o passeio, ou qual a direção que o vento costumava tomar - além de muitas outras coisas. 
  Na prancha que atravessava a sarjeta, achavam-se três pessoas, que queriam apresentar-se ao lampião, porque pensavam que ele mesmo podia transferir o cargo A primeira era uma cabeça de arenque, que também sabia luzir no escuro, e achava que se poderia economizar muito azeite, colocando-a no poste. Vinha depois um pedaço de madeira podre, que também cintila no escuro. E afirmava a sua origem: era rebento de um velho tronco, outrora adorno da mata. A terceira pessoa era um vaga-lume. Não compreendia o lampião de onde viera ele, mais ali estava, e também espalhava luz. Mas o pau podre e a cabeça de arenque juravam por tudo quanto para eles era sagrado que o vaga-lume só podia luzir em determinadas épocas, e por isso não devia ser tomado em consideração.
  Declarou o lampião velho que nenhum deles espalhava luz suficiente para ocupar o cargo de lampião de rua, mas ninguém, lhe deu crédito. E quando ouviram dizer que não era o lampião quem transferia o cargo, acharam isso muito acertado; já estava tão caduco que não podia fazer a escolha.
   Nesse instante chegou o vento, soprando da esquina; passou pelos respiradouros do lampião, dizendo-lhe:
  - Mas que é isso? Queres ir embora amanhã? Vejo-te então hoje ela última vez? Nesse caso quero fazer-te um presente de despedida. Vou assoprar no teu crânio de tal maneira que não só te lembrarás no futuro de tudo o que viste e ouviste, mas também terás tanta luz interior que poderás ver tudo quanto for lido ou narrado na tua presença.
   - Ah! - disse o lampíão - mas isso tem muito valor! Agradeço-te de todo o coração. Tomara que não tornem a me fundir!
  - Por enquanto não há perigo que isso aconteça - disse o vento. - Vou agora soprar-te na memória, e se receberes outros presentes assim, poderás ter uma velhice muito alegre.
   - Tomara que não me refundam! Mas - nesse caso conservaria também a memória?
   - Ora, lampião velho, não sejas tão curioso!
    E o vento continuava a soprar.
  Nesse instante surgiu a Lua do meio das nuvens.
  - E a senhora, que vai dar ao lampião! - perguntava o vento.
  - Nada! - respondeu ela. - Estou minguando, e os lampiões nunca me iluminam: pelo contrário, eu é que tenho de aluminá-los.
   E tornou a se esconder atrás das nuvens, para evitar novas importunações.
    Bateu então no lampião uma gota, que parecia ter caído do telhado. Contudo, declarou que acabava de chegar diretamente das nuvens cinzentas, e que era também um presente, e talvez o melhor de todos.
    - Vou molhar-te de tal maneira - disse a gota - que, se assim o quiseres, poderás converter-te em ferrugem em uma única noite, esvaindo-te em poeira.
   Mas o lampião achou que semelhante presente não valia nada, e o vento foi da mesma opinião. E soprou com toda a força, indagando:
  - Ninguém mais quer trazer presentes? Ninguem mais ?
    Caiu então uma brilhante estrela, deixando atrás de si uma longa fita luzente.
    - Que é aquilo? - gritou a cabeça de arenque. - Não era uma estrela cadente? Parece até que entrou no lampião...Mas então, se personalidades tão elevadas se interessam pelo cargo, gente como nós fará melhor indo para casa.
    E foi o que fizeram os três. Mas o velho lampião espalhou uma luz maravilhosa.
    - Que presente magnífico! - exclamou ele. - As estrelas claras, que sempre vi com tanto prazer, e que luzem tão esplendidamente como eu nunca consegui luzir, por mais que empregasse nesse empenho todo o meu sentir, todo o meu pensar- as estrelas me descobriram, a mim, o pobre lampião velho, e enviam-me um presente! E agora, todas as coisas que tenho na memoria, e vejo com tamanha nitidez como se estivessem diante dos nossos olhos, poderão ser também vistas por todos aqueles a quem amo. E é nisso justamente que consiste a verdadeira alegria: a alegria que não podemos repartir com outros, é apenas meia alegria.
    - Honra-te essa maneira de pensar - disse o vento. - Mas para isso seria preciso que tivesses velas de cera. Se elas não forem acesas dentro de ti, que tua estranhas faculdades de nada servirão aos outros. Estás vendo?Oh! As estrelas não se lembraram disso.. Pensam que tudo quanto serve para a iluminação é vela de cera - até tu! Mas vou sossegar agora.
   E sossegou mesmo. E quando isso suspirava o lampião velho:
   - Ah! Deus nos acuda! Velas de cera! Nunca as possuí, e certamente jamais hei de possuí-las...Tomara que não me refundam!
   No dia seguinte...
  Bem, será melhor saltar o dia seguinte. Na noite seguinte descansava o lampião em uma cômoda poltrona. Adivinhem onde! Ora, em casa do velho guarda-noturno. Em consideração aos seus longos anos de serviços, solicitara do prefeito e dos conselheiros o favor de ficar com aquele lampião velho, que acendera pela primeira vez no dia em que vinte e quatro anos antes,assumira o cargo. Considerava-o como um filho, porque não tinha outro. E atenderam o seu pedido.
   Agora se achava o lampião sobre a cômoda poltrona ao  lado da estufa acesa. Até parecia maior, assim sozinho em cima da cadeira.
      O velho casal jantava, lançando olhares cheios de simpatia para o velho lampião ao qual teriam dado com prazer um lugar à mesa.
  É verdade que habitavam apenas um porão, que penetrava duas braças na terra. Para chegar ao quarto, era preciso atravessar um corredor lajeado. Mas lá dentro tudo era agradável e quentinho. Para conservar o calor, tinham pregado tiras de pano na porta. Tudo era limpo, asseado. A cama tinha dossel, e as portas e janelinhas estavam guarnecidas de cortinas. No peitoril viam-se dois estranhos vasos, que o marinheiro Cristiano trouxera das Índias Orientais - ou Ocidentais. Eram potes de barro comum, e representavam dois elefantes, mas sem costas: no lugar delas brotavam, da terra que os enchia, ótimos alhos porros, no que servia de horta, e um grande tufo de gerânios, no que era jardim. Pendia da parede um grande quadro colorido: o Congresso de Viena. E nesse quandro tinha o casal de velhos, reunidos, todos os reis e imperadores. Um relógio de parede, com pesos de chumbo, fazia tique-taque. Estava sempre adiantado, mas eles achavam melhor assim: antes adiantado que atrasado.
   O casal estava jantando, como já disse, e o lampião da rua achava-se na cômoda poltrona, junto da estufa. Parecia-lhe que todo o mundo estava revolucionado. Mas quando o velho guarda o olhou e falou das coisas que tinham visto juntos - das chuvas e nevoeiros, das noites de verão, tão curtas e tão claras, e também das longas noites de inverno, com sua nevada, aquelas noites em que a gente sente saudades do conchego da casa - o lampião começou a ambientar-se e tornou a tomar pé. Enxergava com tanta nitidez como se tudo aquilo estivesse acontecendo naquele instante. Sim! O vento acendera nele uma boa luz!
   Eram muito ativos e diligentes os dois velhos. Não estavam nunca ociosos. domingo à tarde tiravam livros da gaveta, de preferência livros de viagem. E o velho lia coisas a respeito da África, das vastas selvas, dos elefantes selvagens; escutava-o a mulher, muito atenta, deitando olhares de esguelha para os outros, os de barro, que serviam de canteiros. E dizia:
  - Eu imagino, eu imagino!
   E o lampião desejava de tudo o coração que houvesse acesa nele uma vela de cera. Porque nesse caso a velha poderia ver tudo distintamente, com todos os pormenores, como o via ele: as altas árvores, os ramos emaranhados, os negros nus, a cavalo; os elefantes, em multidões, pisoteando os juncos e arbustos com as pesadas patas.
 - De que me servem todas as minhas faculdades, se não encontro uma vela de cera? - suspirava ele. - Os coitados só tem azeite e vales de sebo, e isso não basta!
  Um dia, afinal, foi ter ao porão uma grande  quantidade de tocos de vela de cera. Os maiores foram queimados, e os menores serviram para encerar a linha da costura da velha. Portanto não faltava agora vela de cera mas ninguém se lembrou de por um pedaço no lampião.
   - E aqui estou eu com faculdades tão raras - pensava ele - e completamente inúteis. Trago tudo comigo, e não consigo fazê-los aproveitar essas vantagens. E nem sabem que tenho o poder de transformar as paredes brancas nas tapeçarias mais esplêndidas, nos bosques mais lindos - em tudo, enfim, quanto se possa desejar.
     Contudo, cuidava muito do lampião; conservavam bem areado, e sempre em um lugar onde era logo visto. Achavam as visitas que aquilo era um traste velho, mas os donos da casa não se importavam com a opinião dos outro: queriam bem ao lampião.
   Um dia - era  o aniversário natalício do guarda - a mulher aproximou-se sorrindo do lampião e disse:
   - Hoje vais iluminar a casa, em homenagem ao meu marido.
   E o lampião chiava, nos seus enfeites de folha, pensando:
  - Ora até que afinal alguém acenderá a vela!
   Mas foi azeite o que puseram nele O lampião ardeu a noite inteira. Percebia, porém, agora que o presente das estrelas permaneceria inaproveitado toda a vida.
   Um dia teve um sonho - porque não era difícil sonhar, era um lampião que possuía todas aquelas faculdades. Sonhou que os dois velhos tinham morrido, e que ele fora levado para a fundição de ferro, a fim de se refundido. Teve tanto medo como naquele dia em que tivera de ir à Prefeitura, para ser inspecionado pelo prefeito e por todo o conselho. Mas, embora senhor do poder de se desfazer, quando lhe aprouvesse, em ferrugem e pó, não fez. Meteram-no em um cadinho e transformaram-no em um castiçal de ferro, o castiçal de ferro mais bonito que se possa desejar. Deram-lhe a forma de um anjo, com um grande ramalhete. No meio do ramalhete é que se colocava a vela de cera. O castiçal achou um lugar em uma secretária verde, num gabinete de luxo. Havia em redor dele muitos livros, e nas paredes quadros belíssimos, e todas aquelas coisas pertenciam a um poeta. Tudo quanto este pensava ou escrevia, aparecia ao redor dele. O ambiente transformava-se em matas densas e tenebrosas, em prados amenos, onde se pavoneavam cegonhas, no convés de um navio em alto mar, no firmamento recamado de estrelas.
   - Quantos donos tenho em mim! - disse o velho lampião ao despertar. - Quase que desejo ser refundido...Mas ainda não! Não quero  que isso aconteça enquanto viveram os dois velhos. Eles me estimam tanto por causa da minha personalidade; poliram-me, encheram-me de azeite. Seja como for, tenho tão boa aparência como todo aquele Congresso, cujo aspecto também lhes causa tamanho prazer.
    E dali em diante viveu sempre em perfeita tranquilidade interior - e era isso mesmo o que merecia o velho lampião da rua, tão bondoso e tão honesto.
FIM