segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Tia Dor-de-Dentes - Contos de Andersen

  Queres saber onde tirei esta historia, não é? Pois escuta: tirei-a da barrica - da barrica de papel velho. Sim! Muito livro bom, muito livro raro já foi parar às mãos do vendeiro, ou do negociante de banha - não para que ele o leia, mas para aplicá-lo em fins mais importantes: ele precisa de papel para embrulhar o polvilho e o café, papel para os arenques, a manteiga e o queijo. E para isso, até folhas manuscritas podem servir.
    É muito comum entrar naquela barrica o que lá não devia ir ter. Conheço um aprendiz de caixeiro de botequim, filho de um negociante de banha, que subira do porão à loja do rés-do-chão, e que se ilustrou graças ao que leu no balcão - tanto folhas impressas como manuscritas. Possui uma coleção interessante desses papéis; ali se acham não poucos documentos importantes, tirados da cesta de alguns funcionários públicos, cheios de ocupações, ou muito distraídos... E também certas, cartas confidenciais, em que uma amiga narra historias pouco edificantes, que a destinatária a ninguém devia confiar. Aquele moço é um repositório vivo para a salvação de uma parte considerável da literatura, para o que tem à disposição um vasto distrito: a loja do pai e a do patrão. Foram salvos por ele muitos livros e páginas de livros que bem mereciam ser lidos duas vezes!
   Mostrou-me a sua coleção de folhas impressas e manuscritas, retiradas da barrica do negociante de banha. Havia ali algumas folhas de um grande diário, cuja letra, de tão bela e clara, logo me chamou a a tenção.
   - Isso foi escrito pelo estudante - disse-me ele. - Aquele estudante que morava em frente à nossa casa, e que morreu no mês passado. Como se lê nessas páginas, padecia muito de dor de dentes. é muito engraçado ler essas coisas. Só tenho algumas páginas do manuscrito, que formava primitivamente um livro inteiro, e  mais algumas páginas soltas. Meu pai deu por ele à senhoria do estudante, um quarto de quilo de sabão verde. Aqui está o que consegui salvar.
   Levei comigo, emprestado, o manuscrito, li-o e agora o dou a público, com o título original, que era A Tia Dor-de-Dentes.

                               I
     Quando eu era criança, a tia viva a me dar doces, que meus dentes suportaram muito bem, sem cariarem. Hoje, que cheguei à idade adulta, ela ainda me mimoseia com doces, dizendo-me que sou um poeta.
   Sim, tenho em mim qualquer coisa de poeta, não o suficiente, porém. Muitas vezes, andando pelas ruas da cidade, tenho a impressão de passear em uma grande biblioteca. As casas são as estantes, e cada pavimento é uma prateleira de livros. Num deles lemos uma historia é uma prateleira de livros. Num deles lemos uma história da vida cotidiana; noutro, uma boa comédia antiga. Há a seção de obras científicas; ali estão livros de leitura edificante; ao passo que além estão outros que só contêm má leitura. Mas todos esses livros me trazem à mente ideias filosóficas, ou levam-me a devanear.
   Há em mim qualquer coisa de poeta, mas infelizmente não é muita coisa...Certamente há de haver muita gente que traga consigo tanta poesia como eu; e contudo essas pessoas não ostentam uma placa, ou um colar, em que se veja gravada a palavra"poesia".
       Receberam eles, tanto como eu, uma dádiva divina, o dom de um talento, que, embora grande demais para o uso doméstico, e muito pequenino para ser dividido com outros. Vem como um raio de sol, enche-nos a alma e o pensamento; vem como um perfume de flor, como uma melodia: e, ainda que o percebemos, não sabemos de onde vem.
  Ontem à noite, sentado no meu quarto, deu-me o desejo de ler alguma coisa. Mas ler o que? Não tinha nada comigo: nenhum livro, nenhuma folha escrita. Eis que de repente cai da tília e entra janela adentro, uma folha fresca e verde. A brisa noturna levou-a para perto de mim.
   Contemplei então as inúmeras artérias ramificadas. Uma lagarta pequenina andava de rastos pela folha, como se quisesse examina-la cuidadosamente. Isto me fez pensar na sabedoria humana. Também nós rastejamos por sobre uma folha; nada mais conhecemos além dela, e contudo arrojamo-nos a fazer uma conferência sobre a árvore inteira - raízes, tronco e copa - uma conferência sobre a grande árvore que chama Deus, o mundo, a Imortalidade...não conhecendo dela mais que folha pequenina!
   Ainda estava ali sentado quando entrou a Tia Mille.
   Mostrei-lhe a folha com a lagarta a rastejar e contei-lhe minhas divagações. Os olhos da Tia Mille luziram:
   - Tu é um poeta - talvez o maior que existe entre nós! Ah!Se me for dado ver isso, morrerei contente. Sim, desde o enterro do cervejeiro. Rasmussen, causou-me admiração a tua poderosa fantasia.
  E a Tia Mille deu-me um beijo.
   Mas quem é a Tia Mille? E quem era o cervejeiro Rasmussen?
  A tia da minha mãe era para nós, crianças, tia também. Nunca lhe demos outro tratamento.
   Dava-nos geleias e doces, embora isso nos fizesse mau aos dentes. Mas, conforme dizia, não tinha coragem de recursar nada às criancinhas. Seria crueldade negar-lhes as guloseimas que tanto apreciavam.
   E era a razão por que tanto estimávamos a Tia Mille.
   Era uma moça velha - sempre velha. Nunca a vi senão velha, mesmo nas minhas recordações mais longínquas. Mas também parecia que nunca ficava mais velha.
   Em moça padecera muito de dor de dentes. Falava nisso muitas vezes; e por isso o seu amigo Rasmussen, o cervejeiro, que era muito brincalhão, chamava-a de Tia Dor-de-Dentes.
   Havia já muitos anos ele não fabricava mais cerveja: vivia das rendas. Visitava muitas vezes a tia. Era mais velho do que ela, e já não tinha dente nenhum - restavam-lhe apenas alguns cacos escuros.
  Comera muito doce em menino, era ao que nos dizia, a nós, crianças; por isso ficara assim.
   A tia, essa certamente nunca comera doces na juventude, pois tinha os dentes mais alvos e mais lindos do mundo.
   Mas isso é porque ela os poupava, e nem dormia com eles, segundo dizia o cervejeiro Rasmussen.
    Uma manhã, à mesa do café, a tia contou um mau sonho que tivera naquela noite: perdera um dente. E explicou:
   - Isso significa que vou perder um amigo ou amiga.
  - Mas se era um dente postiço - interveio o cervejeiro, com um sorriso- só pode significar que a senhora vai perder uma amiga falsa.
   Ao que a tia retrucou, tão zangada como eu nunca a vira: 
   - O senhor é que é um cavalheiro pouco amável!
   Depois que ele saiu, a tia disse que seu velho amigo só queria caçoar com ela: na verdade era o homem mais distinto do mundo, e quando morresse se transformaria, lá no céu, em um anjinho de Deus.----
   Meditei muito sobre essa transformação, e tinha minhas dúvidas quanto a reconhecê-lo nessa nova configuração.
   Quando eram ambos moços, o cervejeiro pedira mão da tia. Ela, porém, levou muito tempo hesitando; ficou para tia, e veio a ser uma solteirona. Mas sempre lhe dedicou uma amizade leal.
   Pois o cervejeiro Rasmussen faleceu.
  Foi a mais caro de todos os carros fúnebres o que levou para a sepultura, acompanhado por um grande cortejo de homens de espada e uniforme.
   A tia, toda de preto, estava à janela, e com ela estávamos nós, as crianças; ali perto tinham colocado o berço do irmãozinho que a cegonha nos trouxera na semana anterior.
   Quando o féretro acabou de passar, a rua ficou deserta. A tia queria sair da janela, mas eu ainda teimava em olhar para fora. Estava à espera do anjo, do cervejeiro Rasmusssen. Pois ele não acabava de se tornar um filho de Deus, pequenino e alado? E não ia aparecer?
   - Tia, não achas que ele vai aparecer agora? Ou quem sabe se a cegonha, quando nos trouxer outro irmãozinho, vai trazer o anjo Rasmussen?
   Arrebatada pela minha imaginação, a tia exclamou:
    - Esta criança há de ser um grande poeta!
   Palavra essas que ela repetia sempre: ouvia-as nos meus tempos de escola e depois que cresci, e ainda agora me acompanham na minha vida de acadêmico.
   Para mim ela foi sempre - e continua a ser - a amiga mais compassiva, nas minhas horas dolorosas, tanto nas de produção poética, como nas de dor de dentes, pois que de ambos os males fui afligido.
    - Toma nota de todos os teus pensamentos - disse ela um dia - e guarda-os em uma gaveta da escrivaninha. Jean-Paul, o célebre romancista alemão, assim fazia, e não veio a ser um grande poeta? Não que eu goste dele: acho que não é empolgantes. Tu sim, deves escrever coisas empolgantes, e hás de faz-elo, disso estou convencida!
   Passei toda a noite, depois dessa conversa, acordado na cama; tinha o coração cheio de ânsia e de pesar; sentia-me ao mesmo tempo tomado de arrebatamento e de prazer, e animado do desejo ardente de vir a ser realmente o grande poeta que a tia antevia e sentia em mim. Eram as dores do momento poético, que eu padecia. Mas...ai de mim! Ha uma dor ainda mais atroz! a dor de dentes, que me atormentava e me esgotava, enquanto eu me estorcia como um verme, sob a ação dos saquinhos de farelo e dos emplastros.
  - Conheço bem tudo isso!
   Era a ti que, falava, com um sorriso melancólico a adejar-lhe na boca, que cintilava com a alvura dos dentes.
    É chegada, porém, a hora de iniciar novo capítulo da história da tia e da minha.
                              III

   Tinha mudado de casa, e já havia um mês habitava a nova morada, quando tive ocasião de falar dela à minha tia.
   " Estou morando com uma família silenciosa, que não se preocupa comigo, mesmo que eu toque três vezes a campainha. A não ser isso, a casa é realmente barulhenta; há sempre um estrondo de vento, de temporal de criaturas humanas em qualquer parte. Moro mesmo por cima do porão: cada carro que entra ou que sai agita os quadros nas paredes. É que o portão abala e sacode a casa como um terremoto. Quando já estou deitado, sinto o choque entre todos os membros; mas dizem que isso fortifica os nervos. Se sopra o vento - e o vento sopra sempre, nesta terra - as venezianas batem contra a parede, e tornam a bater. A sineta do portão do jardim do vizinho retine à menor rajada.
   "Os inquilinos vão voltando de um em um, desde a tardinha até a madrugada. Logo acima do meu quarto fica um professor de música, que durante o dia dá lições de trombone. É o último a entrar, e jamais se recolhe sem ter primeiro feito alguns passeios pelo quarto, e isso a passo pesados e calçado de sapatos munido de pregos na sola.
    "As janelas não tem postigos, mas em compensação há uma vidraça quebrada, que a minha senhoria remendou com papel. Mesmo assim o vento soprara pelas fresta, zunindo como um moscado: é essa a minha música de acalanto. E quando, afinal, adormeço, sou despertado logo pelo canto de um galo. A criação do morador do porão anuncia, lá da sua capoeira, que o dia vai apontar. Os pequeninos pôneis que não tem estábulo,e ficam amarrados à caixa de areia, debaixo da escada,batem nas portas e no madeiramento a qualquer movimento que fazem.
   " Raia enfim o dia. O zelador, que mora no sótão com a família, desce a escada com grande estrondo, com os tamancos a tocar castanholas. Fecha-se o portão com estardalhaço, e a casa estremece. E depois de ter uma criatura suportando tudo isso, eis que o morador do pavimento superior começa seus exercício de ginástica. Levanta em cada mão uma pesada bola de ferro, mas não tem força para segurá-la, de sorte que elas levam a cair no chão a todo instante. Já a juventude da casa que frequenta a escola sai aos gritos. Abro a minha janela, para aspirar o ar, que seria agradável e refrescante, se não estivessem as raparigas que moram nos fundos a lavar luvas com um líquido de tirar manchas: é o seu ganha-pão. 
    " A não ser tudo isso que acabo de narrar, é uma casa bastante simpática, e moro com uma família silenciosa."
   Foi esse o relatório que fiz à tia sobre o meu novo lar. Mas eu o fiz com mais animação, pois que a narrativa verbal dispões de tonalidades mais vivas do que a escrita. e quando acabei, a tia gritou:
   - Mas tu és mesmo um poeta! Não deixes de escrever esse conto, e vais ser um segundo Dickens. Para mim, é claro, vales muito mais, porque dás colorido ao que contas. Descreves a tua casa de tal maneira que é com se a gente a visse mesmo. Estou até com arrepios...Continua, continua a escrever! Enche tudo isso de vida, de gente, de gente simpática, ou  melhor - de gente infeliz!
   E de fato, foi descrita a casa, tal com aí está, com seu barulho e seus defeitos, mas um único personagem, que era eu, e sem a ação, que só mais tarde foi acrescentada.
          IV

   Era uma noite de inverno. Fazia um tempo horrível, e a nevasca quase que nos impedia de andar. Terminara o espetáculo que a tia assistira, e eu lá fora para acompanhá-la a casa.
   Ora, já era difícil andar sozinho, quanto mais conduzir uma pessoa. Todos os fiacre estavam tomados; a tia morava longe, para o centro da cidade, ao passo que a minha casa ficava perto. E foi uma sorte, porque a não ser assim, teríamos de nos abrigar em aluma guarita até que o tempo abrandasse.
          Íamos andando sobre a neve profunda, em volta de nós turbilhonavam os flocos, em fúria. Eu mantinha a tia, senão ela não poderia conservar-se de pé; segurava-se a mim, e eu a ia empurrando para diante. Caímos apenas duas vezes, mas ambas as quedas foram suaves.
   Chegamos por fim à minha morada. Sacudimos as roupas, e continuamos a sacudi-las enquanto subíamos a escada, e ainda assim, chegando ao vestíbulo, tínhamos neve bastante para lhe cobrir o soalho.
   Despimos tudo o que era possível dispensar. A senhoria emprestou à tia um par de meias e uma touca - coisas que ela achava absolutamente necessárias. Declarou ainda que a tia não poderia voltar para casa naquela noite, e disse-lhe que se acomodasse na sala. E ali, em um sofá, diante da porta sempre fechada que da para o meu quarto, ela se preparou para arranjar uma cama.
   E assim ficou tudo combinado.
   O fogo ardia na minha estufa de azulejos, e foram dispostos na mesa os petrechos para o chá. O ambiente era já mais acolhedor, embora não tanto como em casa da tia: no inverno ela dispunha cortinas espessas diante das portas, e forrava o chão com tapetes felpudos, estendidos sobre três camadas de papel, para manter o calor na sala. E a gente sentia-se ali como em uma garrafa bem arrolhada, cheia de ar quente. Mas, como já disse, o ambiente da minha casa também se tornou acolhedor, posto que lá fora o vento continuasse a uivar. 
        A tia não se cansava de conversar. Veio de novo à tona a infância; veio o cervejeiro Rasmussen; vieram as velhas recordação
  Lembrava-se ainda do tempo em que me nasceu o primeiro dente, e da alegria que esse acontecimento despertou na família inteira.
   O  primeiro dente! O dente da inocência! Um dente de leite. brilhando como uma gota de leite mesmo!
    Vem a princípio um só, depois vão brotando outros, uma fila inteira, uns ao lado dos outros - os mais lindos dentes de criança! E contudo, são eles apenas a vanguarda, e não os dentes verdadeiros, que hão de durar a vida inteira.
   Estes vem depois, e mais tarde o dente do siso, o pião da fileira, que traz consigo dores e tormentos.
   E um belo dia eles se vão! Somem-se, de um a um, antes e acabado o tempo de serviço. Vai-se até o último dente - e o dia em que desaparece o último, não é dia de festa, não: é um dia melancólico.
   E nesse dia...estamos velhos! Sim, nem que o coração se conserve jovem - estamos velhos.
   Não são ideias nem palestras que inspirem alegria; e contudo, falamos de tudo isso, Tornamos atrás, aos anos da infancia, recordando, recordando...
   Já o relógio tinha dado duas horas, quando a tia se recolheu ao seu quarto, dizendo-me:
   - Boa noite, meu querido menino. Agora vou dormir como se estivesse na minha cama.
   E ela recolheu-se. Mas o que não havia era tranquilidade, nem dentro nem fora de casa. 
  O vento sacudia as janelas, fazia estalar os longos gatos de ferro, e tinir a sineta do portão do jardim do vizinho. Já o locatário de cima voltara pelo quarto. Afinal atirou longe os sapatos e deitou-se. E, quando pegou no sono, roncava com tanta força, que se ouvia o ruído mesmo através do forro do teto.
   E não achei sossego nem sono. A tempestade não amainou; pelo contrário, parecia cada vez mais animada. O vento cantava e zunia, e meus dentes, por seu lado, também deram para se mostrar animados, zunindo e cantando lá a seu modo. E entoaram os acorde da dor de dentes violenta. 
  Vinha da janela uma aragem fria. O reflexo de luar ia e vinha, como as nuvens que a tempestade levava e trazia. Era uma vaivém de luz e sombra. e por fim a sombra criou forma. Vi que alguma coisa se movia, e senti um sopro gelado.
   Sentado no chão estava um vulto delgado e comprido, como os que as crianças desenham na lousa, quando querem representar uma criatura humana. O corpo não é mais que uma linha; outra linha representa os braços. Linhas são também as pernas, e a cabeça é um círculo cheio de ângulos.
  Mas o vulto ia-se tornando mais nítido, Já tinha agora uma espécie de vestimenta, fina e vaporosa, que indicava pertencer ele ao sexo feminino.
  Ouvi um zumbido. Era o vulto ou o vento quem cantava na vidraça quebrada, como um zangão.
   Não! Era Dona Dor-de-Dentes em pessoa! Era Sua Horribilidade, Satania Infernalis! Deus nos libre dela  e nos proteja contra a sua visita!
   - Aqui a gente está bem - murmurou ela. - Uma habitação confortável...O solo é pantanoso! Já aqui zumbiram mosquitos de ferrão empeçonhado. Mas agora quem temo ferrão sou eu e vou afiá-lo em dentes humanos! E como brilha a sua alvura ali na cama...Até agora tem resistido a coisas doces a azedas, quentes e frias; a cascas de nozes e caroços de ameixas. Mas eu vou sacudi-los e abalá-los, vou saturar-lhes a raiz de correntes de ar, até que fiquem geladas!
   Que horror! Palavras horrendas! Visita execrável!
   -  Então, és poeta? - continuou ela. Pois espera um pouco: vou ensinar-te a fazer poesia - vou ensinar-todos os metros da dor! Derramarei ferro e aço no teu corpo; atarei fios na extremidade de todos os teus nervos!
   E foi como se uma broca em brasa me perfurasse as mandíbulas; e eu me retorcia e em revolvia.
   - Uma excelente dentadura! - dizia ela. - Um belo orgao em que vou tocar. Dará um concerto magnífico, um concerto de gaita de boca, acompanhado de timbales e pistões, de pífaros e trombones no dente do siso. Para um grande poeta - grande música!
   Pois sim, senhoras! Ela se pôs a tocar. o aspecto era pavoroso ainda que não se visse nada, a não ser as mãos, aquelas mãos glaciais, cinéreas, como sombras, com os longos dedos finos que pareciam brocas. O polegar e o indicador eram munidos de acicates e parafusos; o médio terminava em sovela pontiaguda; o anular tinha forma de uma broca, e o mínimo era uma seringa, cheia de veneno de mosquito.
  - Vou ensina-te a versificação - disse ela. o grande poeta deve ter grande dor de dentes e o pequeno poeta uma dor pequena.
  - Aí! Seixa-me ser então um poeta menor! Deixa que eu seja poeta! - supliquei-lhe. -Eu não sou realmente poeta...Tive apenas um ataque de poetite, um ataque como este que tenho agora de dor dentes...Vai-te! Vai-te! Deixa-me!
    Reconheces agora que sou mais poderosa que a poesia, a filosofia, a matemática, e toda a música? Mais poderosa que as sensações pintadas ou esculpidas em mármore? Eu sou mais antiga do que todas elas: nasci junto ao Jardim do Paraiso - lá fora, onde silvava o vento e cresciam na umidade os cogumelos. Induzia Eva a vestir-se por causa do frio - e também a Adão. Ah! podes crer que a primeira dor de dentes teve força!
   - Acredito em tudo, tud; mas vai-te! Vai-te daqui! 
   - Sim: se deixares de ser poeta; se nunca mais te meteres a escrever versos, em papel nem na lousa nem em qualquer outro material de escrita, eu te abandonarei! Mas aqui estarei de volta, assim que recomeçares a poetar! 
   - Juro! -gritei então. - Mas some-te, que eu não te sinta mais!
   - Ainda hás de me ver , mas sob uma forma mais nutrida, mais simpática: ver-me-ás sob a aparência da Tia Mille, e hei de te dizer: "Faze versos, meu menino! És um grande poeta e tornares a fazer poesias, hei de te instrumentar a letra, e hei de tocá-la na tua gaita de boca,querido menino! ...Lembra-te disto, quando vires a Tia Mille!
   E sumiu-se.
  Como aduis, senti ainda uma picada de sovela ardente na mandíbula; mas logo depois a dor aplacou. E eu sentia que ia deslizando sobre a amplidão das águas, onde se balouçavam os nenúfares alvos de lagas folhas verdes. Via-se afundar na água abaixo de mim e murchavam e se desfaziam; e com eles eu também me afundava, confundindo-me com a paz e a tranquilidade.
   E as vozes das águas cantavam:
  - Morrer, diluir-me como a neve...Evaporar-me, transformando-me em nuvem ! Singrar no espaço como as nuvens!...
    Através das águas descia té onde eu me achava o brilho de grandes e ilustres nomes, de legendas inscritas em bandeiras vitoriosas,de títulos de imortalidade, escritos sobre as asas de uma efêmera.
 O meu sono era profundo - um sono sem sonhos não ouvia o zunido do vento, nem o bater da porta, em o tinido da sineta do vizinho, nem os vigorosos exercícios ginásticos do locatário de cima.
   Era a bem-aventurança!
   Mas nisto uma rajada de vento abre a porta que dava par ao compartimento da tia, que se levantou de um pulo e foi ao meu quarto, já vestida e calçada.
    - Dormiste como um anjo de Deus; não tive coragem de te acordar.
  Eu despertara, entretanto. Ao abrir os olhos, tinha-se-me apagado inteiramente da memória a presença da tia em minha casa; mas lembrei-me imediatamente desse fato, de mistura co a visão da dor de dentes: sonho e realidade se confundiam.
  - Creio que ontem, depois que nos despedimos,não escreveste mais nada, não? Que pena! Porque tu és e dicas sendo sempre o meu poeta!
   Pareceu-me que ao dizer essas palavras errava-lhes nos lábios um sorriso pérfido. Eu já não sabia se aquela era a minha boa Tia Mille, que tanto me estimava, ou o vulto medonho que, durante a noite, me arancara a promessa.
  - Escreveste alguma poesia, querido menino?
  - Não! Não ! -gritei logo. - Mas...a senhora é realmente a Tia Mille?
  - Pois quem havia de ser?
   E de fato era ela mesma.
  Deu-me um beijo, embarcou no fiacre e voltou para casa. Enquanto ela lá ia indo, escrevi estas páginas. Não são verso e nunca serão impresso...
   Está morto o cervejeiro; morta a tia; morto o estudante, cujas faíscas de espírito foram acabar na brrica.
  Tudo acaba na barrica! 

E este é o fim da história - a história da Tia Dor-de-Dentes.
FIM