sexta-feira, 23 de outubro de 2015

PEPITA DE LEÃO

Pepita de Leão, filha mais velha de José Salomão de Leão,professor e jornalista, e de sua esposa, Belmira da Costa Leão, nasceu em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, a 15 de dezembro de 1875. Cedo revelou sua vocação para o magistério e, quando se mudou com a família para porto Alegre, capital do  Estado, matriculou-se na Escola Normal, recebendo o diploma de professora em 1901. Depois de ensinar particularmente, submete-se, em 1904, a concurso de provas para ingresso no magistério público. Aprovada, foi nomeada para a escola de Estância Grande, no Município de Viamão. Por essa época o Ginásio do Rio Grande do Sul( hoje Colégio Estadual Júlio de Castilhos) decidiu aceitar estudantes do sexo feminino, e Pepita de Leão fez o curso de bacharel em Ciências e Letras, concluindo-o em 1907. Ensinou durante alguns anos no mesmo Ginásio, depois dirigiu grupos escolares em São Borja e Taquari. Voltando a Porto Alegre, dedicou-se novamente ao ensino particular até ser nomeada professora num dos grandes grupos escolares da capital. Em 1941 foi convidada a reger uma cadeira de português no curso ginasial do Instituto de Educação de Porto Alegre, cadeira que ocupou até agosto de 1945, quando adoeceu gravemente, vindo a falecer  dois meses depois, a 10 de outubro de 1945.
    A par de sua atividade docente, Pepita de Leão cultivou a literatura, tendo publicado vários livros traduzidos e alguns originais, além de trabalhos esparsos em jornais e revistas, sobre educação e especialmente literatura infantil. Entre os livros que traduziu, figuram obras de autores mundialmente conhecidos: Kingsley, Lewis Carrol, Joana Spyri, David Wyss, Robert Louis Stevenson, Charles Dickens, Hans Christian Andersen. Deste último, organizou a edição dos Contos, que a Editora Globo ora apresenta ao público brasileiro.

ROSWITHA WINGEN-BITTERLICH-

 A ilustradora deste volume, Roswita Wingen-Bitterlich, nasceu 24 de abril de 1920, perto do lago da Constança, Na Áustria Ocidental, próximo à Suiça. Seu pai era, naquela época, empregado do governo. Tanto o pai como a mãe descendem de famílias de funciónarios públicos e militares austríacos. Seus antepassados procedem, em parte, Da Holanda, da alta Itália e da região boêmio-morávia de língua alemã. Durante o primeiro ano de vida de Roswitha, sua família transferiu residência para a Boêmia alemã, na atual Checoslováquia, onde estavam radicados parentes de seu pai. Este abandonou o serviço do governo para ocupar um cargo de direção na indústria. Ali, a família passou a viver muito bem, e nasceram mais dois irmãos de Roswitha. As crianças tiveram uma infância maravilhosa.
    Muito cedo se manifestou em Roswitha a tendência a interpretar  ideias e sentimentos por meio do desenho. Em poder dos pais existem alguns trabalhos que a menina executou aos dois e três anos de idade. São desenhos que representam o pai, a mãe, os irmãos e ela mesma. O interesse, pela arte e o talento artístico, de seus pais, criaram uma atmosfera fecunda no lar paterno. A menina progredia com rapidez, revelando, claramente, acentuada inclinação para a arte.
   Roswitha contava oito anos de idade quando seus pais retornaram à Áustria. Esse fato representou uma modificação radical na vida da menina. Pela primeira vez conhece o que são privações. Daí por diante o tema social se repete sempre em seus trabalhos. Cria obras acentuadamente sombrias e lúgubres, que já não traduzem mais um espírito infantil.
   Aos dez anos Roswitha passa a frequentar o ginásio, e, quando atinge os doze, organiza-se na sua Cidade de Innsbruck, pela primeira uma pequena exposição de suas aquarelas e desenhos a bico de pena. Seus trabalhos despertam grande atenção . Dosi anos depois, realiza-se outra exposição onde são também apresentados quadros grandes a óleo. Em 1935, o Chanceler Schuschinigg inaugura em Viena uma exposição de proporções ainda maiores. A extraordinária repercussão que produz na imprensa do país e do esterior torna a joem artista conhecida, não só em sua pátria, como na europa e nas terras de ultramar. At;e o início da guerra seguem-se exposições na maior parte das cidades da Europa: Praga( 1936), Amesterdã, Roterdã, Copenague (1937), Zurique, Londres, Haia(1938), Munique e Stuttgart (1939). Todas as exposições são coroadas de grande êxito. Depois irrompe a guerra, que  faz cessar essas atividades.
    Após a sua formatura, no verão de 1938, Roswitha passa alguns meses estudando em Roma. No outono do mesmo ano vai para Stuttgart como aluna-mestra a fim de aprender as diversas técnicas da arte gráfica. A seguir frequenta por alguns anos a Academia de Arte da mesma cidade. Produz o ciclo Eulenspiegel, gravuras a água-forte profundamente melancólicas, em torno das quais, mais tarde, um escritor alemão desenvolveu um trabalho sobre a filosofia da arte. Há alguns anos, uma das editoras mais conhecidas da Alemanha publicou essa obra juntamente com as gravuras.
   Aos anos de estudo em Stuttgart segue-se mais uma nao na Academia de arte de Berlim, já bastante abalada pelos crescentes bombardeios aéreos. A partir de 1934, Roswitha passa o último período de guerra com sua mãe na Áustria, enquanto o pai e os irmãos se encontram nas linhas de frente. Logo após terminar a conflagração mundial, casa-se com um escritor alemão, que dois anos depois vem a falecer dos efeitos de sua detenção por motivos políticos num campo de concentração nazista. Sobrevëm uma longa interrupção em sua atividade artística. Entretanto, consegue recuperar-se e adaptar-se novamente à  vida, embora os tristes sucessos dos últimos anos hajam deixado vestígios profundos. Roswitha vive com sua filinha em Innsbruck e dedica-se quase exclusivamnete ã  arte religiosa. Por esse caminho, chega à pintura de afrescos. O primeiro mural de Roswitha, pintado em 1950, encontra-se numa igreja de Viena; mais tarde ela executa outros em diversas cidades.Sua inclinação e taento especiais para o desenho, como meio de expressão de concepções e vivências, persiste e se manifesta sempre de novo, assim como no desenho a cores.
    Em 1955 Roswitha emigra para America do sul. No Brasil contrai novas núpcias com o Prof. Hubert Wingen, e desse consórcio nascem dois filhos.
      Passa a trabalhar como ilustradora em Porto Alegre, onde inicia a sua coloboração para a Editora Globo ilustrando volumes de contos de Hans Christian Anderson.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

HANS CHRISTIAN ANDERSEN

De Esopo a Walt Disney, que longos e acidentados caminhos percorreu o homem! Quantas coisas novas surgiram, mudaram, desapareceram! Mas, em meio à voragem do Tempo, algumas coisas subsistem e se repetem; as crianças de hoje, por exemplo, são como as crianças de sempre. em todas elas, nas contemporâneas de Alexandre ou de Napoleão, como nas de hoje, o que ocorre é o mesmo interesse pelo mundo do faz-de-conta, pelo mundo da imaginação. por isso, como em todos os tempos houve crianças, em todos os tempos houve contadores de histórias. Pode-se até imaginar , já no período das cavernas, um peludo e selvagem troglodita a relatar, mais com os gestos que com palavras, sua luta, com um urso formidável, e as crianças, ao fundo, encolhidas de medo e fascinação, a acompanhar o fantástico desenrolar da peleja.
     A esse troglodita remoto sucederá, na antiguidade, o fabulista Esopo. Depois virão, na Idade Média, os anônimos compiladores das  Gesta Romanorum - com seus romances, narrativas de viagens, bestiários, que se  destinavam aos adultos, mas que a gente miúda disputava ávidamente.  Gente miúda que mais tarde, difundida a imprensa, se encantará com episódios da Bíblia, com histórias dos mártires e das perseguições romanas.
     As crianças foram exigindo histórias, fantasias; e elas foram surgindo. Assim, em 1654, em Nuremberg, o Bispo Comenius publica o primeiro livro ilustrado infantil de que existe notícia. Pouco depois, para aquietar as rebeldias de seu real discípulo, Fénelon escreve suas famosas Aventuras de Telêmaco, que ainda hoje se lêem com prazer. Quase ao mesmo tempo apareciam os Contos de Perrault ( entre eles a História  da Gata Borralheira) e passava a circular na Europa traduções dos fabulosos relatos das Mil e uma  Noites.

PRIMEIRA META CUMPRIDA

 O primeiro livro está salvo, pois meus queridos livros estão estragando, então eu resolvi transcreve-los , isto está preenchendo minha vida , com muita diversão e cultura.

A COTOVIA- CONTOS DE GRIMM

Era uma vez um homem que ia fazer uma viagem muito grande. Ao despedir-se de suas três filhas, perguntou o que desejavam que lhes trouxesse. A mais velha pediu pérolas; a segunda diamantes; a terceira disse:
    - Pai querido, desejo que me tragas uma cotovia que saiba cantar e saltar.
     - Se eu a encontrar , será tua! - E, beijando as três filhas, partiu.
      Quando  chegou a época de regressar, tinha já comprado os diamantes e as pérolas para as duas filhas mais velhas, mas quanto à cotovia que lhe pedira a mais moça, não havia podido encontrá-la em lugar algum e isso lhe fazia pesar a consciência, pois aquela filha era a sua preferida.
      Aconteceu que seu caminho passava por uma floresta, no meio da qual havia um palácio maravilhoso. Perto dele se erguia uma árvore. E eis que no alto dessa árvore o homem descobriu uma cotovia que lá estava cantando e saltitando.
      - Vens muito  a propósito! - exclamou alegremente. Chamou o criado e mandou que subisse à copa da árvore para apanhar o passarinho. No entanto, ao acercar-se, um leão que estava deitado à sua sombra, saltou, feroz, sacudindo a juba e rugindo de tal maneira que a folhagem das árvores em redor chegou a tremer.
   - Devorarei quem tentar roubar minha cotovia.
     O homem, então, desculpo-se, dizendo:
    - Ignorava que o pássaro fosse teu; repararei minha falta e te pagarei bom preço em dinheiro. Peço, apenas, que me poupes a vida.
    Respondeu-lhe o leão:
   - Nada poderá salvar-te, exceto a promessa de me entregares o que primeiro venha a teu encontro quando chegares à tua casa. se te serve esta condição, eu te pouparei a vida e ainda te darei o pássaro para tua filha.
    Mas o homem negou-se, argumentado:
    - Poderia ser minha filha mais moça, que é a que mais estimo. Ela sai sempre ao meu encontro quando volto para casa.
     O criado, louco de medo, interferiu:
    - Não há de ser, precisamente, sua filha que irá ao seu encontro; talvez seja um gato ou um cachorro.
  O   homem acabou se convencendo e, apanhando a cotovia, prometeu dar ao leão que primeiro lhe viesse ao encontro quando chegasse em casa.
    De regresso ao seu país e chegando à sua moradia, quem primeiro saiu a recebê-lo? Precisamente a sua filha querida! Correu, logo, a beijá-lo e, vendo a cotovia, não cabia em si de contente. O pai, no entanto, em vez de alegrar-se, começou a chorar, dizendo:
    - Filhinha querida, pagarei bem caro por esta pequena ave, pois devo entregar-te a um leão feroz que irá te estraçalhar e comer. Depois contou o que sucedera, pedindo-lhe que não fosse, acontecesse o que acontecesse. A jovem, porém, consolou-o.
    - Paizinho querido, deves cumprir tua palavra. Irei e estou certa de que vou conseguir amansar o leão e regressar sã e salva.
    Na manhã seguinte, pediu que lhe indicassem o caminho e , depois de despedir-se de todos, entrou, confiante, na floresta. Acontecia, porém, que o leão era  um príncipe encantado, o qual durante o dia  tinha a forma daquele animal , bem como os seus criados, mas à noite todos eles recobravam suas figuras humanas. Quando a moça chegou, foi acolhida amavelmente e conduzida ao palácio, e, ao anoitecer, viu à sua frente um belíssimo jovem, com quem se casou em meio de grande pompa. Viviam, assim, muito felizes, acordados durante a noite e dormindo de dia. Certa ocasião, quando voltava ao palácio, lhe disse o príncipe:
     - Amanhã tua irmã mais velha casa-se e haverá festa no teu lar; se quiseres tomar parte , meus leões te acompanharão.
     Ela respondeu que sim, que muito lhe agradaria tornar a ver seu pai, e logo seguiu caminho, escoltada pelos leões. Em sua casa todos a receberam com imensa alegria, pois acreditavam que o leão a houvesse  estraçalhado e, portanto, que ela estava morta há muito tempo. Mas a moça lhes contou que belo marido tinha e como viviam felizes. ficou com os  seus até o fim da festa e depois retornou ao bosque. Quando a segunda filha ia, também casar-se, naturalmente a princesa foi convidada e disse ao leão:
    - Não quero ir só. Desta vez deves acompanhar-me.
    Mas o marido lhe explicou que seria extremamente perigoso. pois logo que o tocasse um raio de luz procedente de um fogo qualquer, ele se transformaria em pomba sendo, então, obrigado a voar durante sete anos como aves.
    - Nada temas! - exclamou a moça.- Vem comigo que eu te resguardarei de qualquer raio de luz.
     Partiram os dois, levando seu filhinho. A princesa, ao chegar em casa, ordenou logo que construíssem um muro ao redor de uma das salas, tão forte e espesso que nenhum raio de luz fosse capaz de atravessá-lo. seu esposo permaneceria ali enquanto estivessem acesas as luzes da festa. Mas aconteceu que a porta, que era de madeira verde, rachou, abrindo-se uma  pequeníssima fresta da qual ninguém se deu conta. A cerimônia foi realizada com grande esplendor e quando a comitiva, de regresso, passava diante da sala com suas tochas e velas acesas, um raio luminoso, fino como um cabelo, atingiu o príncipe. No mesmo instante o jovem transformou-se e sua esposa, ao entrar na sala, não viu senão uma pomba branca, que lhe falou:
   - Durante sete anos terei de voar, errante pelo mundo . Entretanto, de quando em quando, deixarei cair uma gota vermelha de sangue e uma pena branca que te mostrarão o caminho. Se seguires essa pista , poderás libertar-me.
    A pomba saiu voando pela porta e a princesa a seguiu. A cada sete passos que ela dava, caíam uma gotinha de sangue vermelho e uma peninha branca, indicando-lhe o caminho. A moça continuou a andar pelo vasto mundo, sem olhar para trás nem cansar-se nunca. Assim o tempo foi passando e quando já quase haviam passado os sete anos, a princesa pensou, alegremente, que em breve estariam libertados do encanto. A pobrezinha nem supunha como ainda estava longe de alcançar o seu propósito. Certa vez, já pronta para prosseguir sua caminhada, notou, de repente, que as gotinhas de sangue não caíam mais, nem as peninhas brancas. E, quando ergueu os olhos, não viu nem sinal da pomba. A princesa, chegando à conclusão de que os humanos não poderiam ajudar, subiu ao encontro do Sol e lhe disse:
    - Tu, que iluminas todas as  frinchas e todos os recantos, não terás visto uma pomba branca?
     - Não - respondeu-lhe o Sol- não vi nenhuma, mas faço-te presente de um cofre que deverás abrir quando te achares em grande dificuldades.
     A princesa agradeceu ao Sol e seguiu caminhando até cair da noite. Quando saiu a Lua, dirigiu-se a ela, preguntando:
    - Tu, que brilhas toda noite e iluminas campos e florestas, não terás visto uma pomba branca?
     - Não - retrucou a lua- não vi; mas faço-te presente de um ovo. Quebra-o quando te encontrares em grandes dificuldade.
    A jovem agradeceu à lua e continuou sua jornada até que a brisa noturna começou a soprar. Dirigiu-se, também, a ela, indagando:
   -  Tu, que sopras sobre todas a s árvores e sobre todas as folhas, não viste uma pomba branca?
    - Não- respondeu-lhe a brisa- não vi nenhuma, mas perguntarei aos outros três ventos; talvez eles a tenham visto.
    Veio o vento leste e o vento oeste, mas nenhum deles tinha viso nada; depois surgiu o vento sul, que disse:
    - Vi a pomba branca; voou até o Mar Vermelho e la´voltou a transformar-se em leão, pôs os sete anos já passaram . ali ele está em combate feroz com um dragão, porém, é uma princesa encantada.
     A brisa noturna, então, falou:
   - Vou dar-te o meu conselho. Vai até o Mar Vermelho. Em sua margem direita há umas varas muito grandes. Conta-as e corta a décima-primeira; com ela golpeia o dragão. em seguida o leão o vencerá e ambos retomarão a forma humana. Logo depois, olha ao redor e verás a ave chamada grifo, que habita as paragens do Mar Vermelho. Tu e teu amado deverão montar nela e o animal os levará de volta para casa, voando por cima do mar. Aqui dou-te uma noz. Quando te encontrares sobre o mar, solta-a; brotará logo e da água surgira uma nogueira grande, onde a ave poderá descansar. Se não puder fazê-lo, não terá força suficiente para transportá-los até a margem oposta. Caso te esqueças de soltar a noz, o grifo os lançará no mar.
    Partiu a jovem princesa e tudo se sucedeu tal como dissera a brisa noturna. contou as varas da beira do mar, cortou a décima-primeira e com ela golpeou o dragão. Em seguida o leão venceu o combate e, no mesmo instante, ambos recuperaram suas respectivas figuras humana. Mas, logo que a outra princesa- a que estivera encantada em forma de dragão- ficou livre do feitiço, tomou o jovem pelo braço, montou com ele no grifo e levantou vôo, abandonando a desventurada esposa, que ficou a chorar, amargamente. por fim, criando coragem, pensou:- "Enquanto o vento soprar e o galo cantar, continuarei andando, até encontrá-los."
     Percorreu longo, longos caminhos, e chegou , finalmente, ao palácio onde os dois moravam . Ali ficou sabendo que iria ser celebrada a festa de seu casamento. Disse ela:" Deus me ajudará" e, abrindo o cofre que lhe dera o Sol, viu que havia dentro um vestido brilhante como o próprio astro-rei. Vestiu-o e entrou no palácio, onde todos os presentes, inclusive a própria noiva, ficaram olhando para ela, assombrados. O vestido agradou tanto à noiva que pensou em comprá-lo para seu casamento. Assim, perguntou  à forasteira se não o queria vender.    - Por dinheiro não- respondeu ela- mas troco-o por carne e sangue.
      A  noiva perguntou o que queria dizer com aquelas palavras e ela lhe respondeu:
     - Deixa-me dormir uma noite no mesmo quarto em que dorme o noivo.
      De início a princesa negou-se. No entanto, como desejava muito o vestido, acabou concordando. Mas mandou a camareira dar secretamente ao príncipe alguma coisa que o fizesse adormecer. Chegada a noite, quando ele já dormia profundamente, introduziram a jovem no aposento. esta sentou à beira do leito e falou:
    - Eu te segui durante sete anos; fui ao Sol, à Lua e aos quatro ventos perguntar por ti e ainda te ajudei contra o dragão. E, agora, vais esquecer-me?
    Mas o príncipe, em sono profundo, só percebeu um ligeiro rumor como o do vento passando entre os pinheiros.
    Pela manhã, a  jovem foi despedida e entregou o vestido. Ao ver que tudo aquilo de nada servira, dirigiu-se para o campo, onde , triste e amargurada, sentou-se a chorar. Nisto se lembrou do ovo que a Lua lhe havia dado. Quebrou-o e pareceram uma galinha e doze pintinhos, todos de ouro, que corriam, ligeiros, piando e voltavam a refugiar-se embaixo das asas da mãe. Era um espetáculo sem igual no mundo. Levantou-se e deixou-os correr pelo campo, até que a noiva os viu de sua janela e, agradando-se dos pintinho, desceu para  perguntar se ela queria vendê-los.
      - Por dinheiro não- respondeu a jovem . - Só os darei em troca de carne e sangue. Permite que eu passe outra noite no quarto do noivo?
       A princesa consentiu, pensando em enganá-lo como da vez passada. Mas  o príncipe, ao ir deitar-se, perguntou a seu camareiro que rumores eram aqueles  que haviam agitado seu sono na outra noite. O criado, então, contou tudo o que acontecer: que lhe haviam mandado dar-lhe uma bebida para dormir porque uma moça queria passar a noite em seu quarto e que agora estava incumbido de administrar-lhe nova dose. Disse-lhes o príncipe:
    - Derrama o narcótico ao lado da cama.
     E, novamente, sua esposa foi introduzida no aposento. Quando começou a contar sua triste sorte, ele  a reconheceu pela voz e, erguendo-se de um salto, exclamou:
    - Agora estou livre de todo o feitiço. Tudo isso foi um como um sonho para mim, pois a princesa estranha me encantou e  obrigou a esquecer-te. Deus, porém, veio libertar-me, em tempo, da perda de minha memória.
      E os dois esposos partiram, em segredo, do palácio, auxiliados pela escuridão da noite, pois temiam o pai da princesa, que era bruxo. Montaram no grifo, que os levou através do Mar Vermelho e , quando chegaram na metade, a princesa soltou a noz. Em seguida surgiu das águas uma nogueira muito grande onde a  ave pode descansar, levando-os depois à sua casa. Lá encontraram seu filinho, já crescido e lindo, e viveram felizes até o fim de seus dias.
FIM


 

 



 

O POBRE E O RICO - CONTOS DE GRIMM

Há muitíssimos anos, quando Nosso Senhor andava pela Terra, aconteceu que certa vez, ao entardecer, sentiu-se cansado e a noite veio surpreendê-lo antes de chegar a uma hospedaria. Encontrou em seu caminho duas casas, uma em frente à outra: a da esquerda era grande e luxuosa; a da direita era pequena e humilde. A primeira pertencia a um homem rico  e a segunda a um pobre. Pensou Nosso Senhor: " Se me hospedo na casa do rico, isso não lhe saíra pesado; vou passar a noite ali."
      Quando o homem ouviu que batiam à porta, abriu  a janela e perguntou ao forasteiro o que desejava. Respondeu-lhe Nosso Senhor:
     - Peço pousada por uma noite.
    O rico fitou o viajante dos pés à cabeça. Viu que trajava modestamente e não tinha a aparência de pessoa com os bolsos cheios de dinheiro. Sacudiu a cabeça, dizendo:
   - Não posso acolher-te ; todas a peças estão  repletas de plantas e sementes e, se fosse abrigar todos os que batem à minha porta, em breve teria eu mesmo de pegar num bastão e mendigar. terás de pedir hospedagem noutra parte.
     Fechou a janela e deixou parado Nosso Senhor. Este, voltando-se, encaminhou-se para a outra casa. Mal havia batido, o pobre abriu a porta e o convidou a entrar.
    - Passa aqui a noite- disse-lhe o dono da casa.- Já escureceu e hoje não poderás ir adiante.
    Tal acolhida agradou a Nosso Senhor e ele entrou. A mulher do pobre estendeu-lhe a mão, deu-lhe as boas-vindas e lhe disse que se considerasse como em sua casa; pouco tinham , mas de bom grado lhe ofereciam. Em seguida pôs a cozinhar umas batatas e nesse meio tempo ordenhou a cabra, para terem, também, um pouco de leite. Quando a mesa estava posta, Nosso Senhor sentou-se e comeu com eles. A refeição frugal agradou-lhe muito , pois a satisfação refletia-se no rosto dos que o cercavam. Terminada a janta e sendo já hora de deitar, a mulher chamou o marido à parte e lhe disse:
    - Escuta, marido: esta noite poderíamos dormir na palha para que  o pobre forasteiro possa descansar em nossa cama. Caminhou todo o dia e deve estar exausto.
    - Estou plenamente de acordo - respondeu ele.- Vou dizer-lhe.
     E, aproximando-se do Senhor, ofereceu-lhe a cama onde poderia descansar comodamente. Nosso Senhor não quis tirar o conforto dos dois velhos e recusou a oferta, mas eles tanto insistiram que, por fim, teve de aceitar. O casal, então, ajeitou um leito na palha e ali dormiram.
    Na manhã seguinte, bem cedo, prepararam uma refeição, a melhor possível, para o forasteiro. E quando o sol entrou pela janela, Nosso Senhor despertou, comeu de novo, com eles e se dispôs a seguir seu caminho . Na porta, voltou-se e disse:
    - Já que se mostraram tão compassivos e piedoso, podem fazer três pedidos que eu os atenderei.
    - Que outra coisa poderíamos desejar senão a salvação eterna e que, enquanto vivermos, não nos falte saúde e um pedaço de pão?
     E disse Nosso Senhor:
   - Não lhes agradaria ter uma casa nova em lugar desta velha?
     - Oh, sim! - exclamou o homem. - Se isso fosse possível, é claro que me agradaria.
     E Deus Nosso Senhor satisfez os seus desejos; transformou a casa velha em nova e partiu, depois de dar-lhes a benção.
    O sol já estava alto quando o rico se levantou. Foi à janela e viu em frente uma linda casa nova, coberta de telhas vermelhas, no lugar onde antes estava uma velha choupana. Arregalou bem os olhos e foi chamar a mulher, exclamando:
    - Não podes me dizer o que houve? Ontem à noite ainda havia uma choupana velha e miserável, e hoje vejo uma casa bonita, completamente nova. corre lé e indaga como isso aconteceu.
     A mulher saiu para indagar do pobre e este lhe contou:
   - Ontem à noite chegou um viajante à procura de albergue e esta manhã, ao despedir-se, atendeu a três pedidos que nos concedeu: a salvação eterna, saúde e o pão de cada dia; além disso, transformou nossa choupana nesta bela casa.
    A mulher do rico correu a relatar ao marido o que ouvira, este exclamou desesperado;
    - Gostaria de me arrancar os cabelos e de me esbofetear a mim mesmo! O forasteiro esteve aqui, pedindo-me que o deixasse passar a noite em nossa casa, e eu o mandei embora!
    - Pois não perca tempo,- disse-lhe a mulher.- Monta a cavalo e ainda alcançarás o homem. Faz com que também te conceda três graças.
    O rico seguiu o bom conselho da mulher e partiu a cavalo, Não tardou em alcançar Nosso Senhor e, dirigindo-se a ele, com toda a lisura e cortesia, pediu que não levasse a mal não tê-lo acolhido logo, mas que, enquanto entrara para apanhar a chave, ele se havia ido. Portanto, se quisesse dar volta , o acolheria, de muito bom grado, em sua casa.
   - Bem- disse-lhe Nosso Senhor- se algum dia eu voltar a estas terras, assim farei.
    O rico, então, perguntou se não poderia formular três desejos, como o seu vizinho. Nosso Senhor respondeu-lhe que sim , mas aconselhou que não o fizesse, pois seria para o seu mal. Mas o rico disse-lhe que não se preocupasse porque escolheria algo que, na certa, o tornaria feliz, contanto que lhe fosse concedido.
    - Pois então volta à tua casa e verás realizados teus três desejos- falou o Senhor.
   O rico, tendo conseguido a promessa, deu volta e começou a pensar sobre o que poderia  pedir. Mergulhado em seus pensamentos, soltou as rédeas e o cavalo pôs-se a dar pinotes, fazendo-o perder, a cada instante, o fio de seus pensamentos.
     - Calma! Calma! - disse, batendo no pescoço do animal; mas este seguiu com suas travessuras. O homem acabou perdendo a paciência e esbravejou:
    - Tomara que quebre o pescoço!
     Mal havia pronunciado essas palavras- pluft!- foi jogado ao chão e o cavalo caiu morto a seu lado. Com isso o seu primeiro desejo estava cumprido. Avarento como era, ele não quis abandonar ali a sela. Tirou-a do animal, colocou-a nos ombros e seguiu a pé. " Ainda te  restam dois desejos" - pensou, consolando-se com essa ideia. Caminhava, devagar, pela areia, pois o sol estava a pino e já era meio-dia, o calor começou a tornar-se insuportável e ele a sentir-se cada vez  mais impaciente. Pesava-lhe a sela e, por outro lado, não acertava com que seria mais conveniente pedir. " Ainda que desejasse todos os tesouros e riquezas da terra" - dizia para os seus botões- " sei que depois me ocorreriam outras mil coisas. Devo, pois, arranjar tudo de maneira que, ao formular meus desejos, não possa ambicionar mais nada. " E , suspirando, disse me voz alta:
     - Sim, se eu fosse aquele camponês que um dia , podendo também pedir três graças, desejou; primeiro beber muita  cerveja; depois tanta cerveja quanta fosse capaz de beber , e finalmente mais um barril de cerveja...
   As vezes creditava haver encontrado algo que pedir, mas logo aquilo lhe parecia muito pouco. Então, de repente, lhe veio o pensamento de que, enquanto ele se cansava daquele jeito, sua mulher, bem instalada em casa, numa sala fresca, estava passando muito bem! A idéia o enfureceu tanto que, sem dar-se conta, resmungou:
     - Tomara que ela estivesse montada nesta sela não pudesse desmontar , em vez de estar eu carregando este trambolho às costas.
     No que acabou de pronunciar a última palavra , a sela desapareceu de seus ombros e o homem compreendeu que acabava de se realizar seu segundo desejo. Aí mesmo é que começou a sentir mais calor. Deitou a correr para chegar  rapidamente em casa e meter-se numa sala a fim de pensar, com calma, em algo bem importante para o seu terceiro pedido. Mas quando lá chegou  e abriu a porta, a primeira coisa que viu foi sua mulher montada nas sela, gritando e chorando porque não podia descer. Disse-lhe o marido:
    - Acalma-te ; eu te conseguirei todas as riquezas do mundo, mas fica sentada aí.
     A mulher , porém, chamou-o de idiota e gritou:
    - De que me servirão todas as riquezas do mundo se não posso descer desta sela? Já que me puseste aqui, tira-me agora.
    O marido, quisesse ou não, teve de formular o terceiro desejo, para que sua esposa pudesse apear da sela. No mesmo instante o pedido foi satisfeito. Como resultado de tudo isso, o rico não teve mais que aborrecimentos, fadiga, insultos e um cavalo perdido. Os seus vizinhos pobres, ao contrário, viveram felizes e tranquilos até o fim da vida.
   FIM

domingo, 18 de outubro de 2015

OS MENINOS DE OURO- CONTOS DE GRIMM

Havia, certa vez, um homem e uma mulher muito pobres, que nada possuíam além de uma choupana e apenas se alimentavam com o que ele pescava. Um dia, ao tirar a rede da água, o pescador encontrou um peixe todo de ouro. Enquanto o olhava, o peixe, para maior surpresa sua, começou a falar:
    - Escuta, pescador! Se me devolveres à água, transformarei tua choupana num palácio maravilhoso.
    - Que  me adianta um palácio- respondeu-lhe o homem- se nada tenho para comer?
    E o peixe tornou a falar:
    - Tratarei disso, também. No palácio haverá um armário e, sempre que o abrires, estará cheio de pratos com manjares deliciosos, tantos quantos desejares.
     - Se assim for - disse o  homem- poderei atender teu pedido.
     - Bem - continuou o peixe- mas há uma condição. A ninguém neste mundo, seja quem for, poderás  contar de onde veio a fortuna. Se disseres uma só palavra, tudo  desaparecerá.
     O homem atirou o peixe maravilhoso na água e voltou para casa. E ei que, onde antes se erguia sua choupana, haviam agora, um grande  palácio. O pescador arregalou os olhos de espanto, e, ao entrar, viu sua mulher toda enfeitada, com vestido novo, sentada num salão magnífico! Ela indagou, radiante:
    - Como aconteceu isso, marido? Confesso que tudo me agrada muitíssimo.
    - Sim - respondeu-lhe o homem - e a mim também; mas estou com fome. Dá-me algo para comer.
   - Nada tenho - afirmou ela- e nada consigo encontrar na nova casa.
      - Que isso não seja empecilho! - exclamou o homem. - Vejo ali um armário grande . Abre-o.
      Ela abriu o móvel e apareceram bolo, carne, frutas e vinho; tudo tão apetitoso que era um gosto ver.
    - Coração, que mais podes desejar? - exclamou, alegremente, a mulher.
     Sentaram-se e comeram e beberam à vontade. depois de satisfeitos, ela indagou:
    - Mas de onde vem toda essa fartura, marido?
     - Não me perguntes- respondeu ele. -Não posso dizer-te. Se eu te disser, nós perderemos tudo.
    - Bem - concordou a mulher. - Se não devo saber, não insisto.
    Mas só dizia isso da boca para fora; daí por diante tanto insistiu e incomodou o marido que este, perdendo a paciência, acabou revelando que tudo aquilo lhes vinha de um peixe de ouro, prodigioso, que ele tinha pescado e ao qual devolvera a liberdade.
    Mal terminou de pronunciar as últimas palavras, o belo palácio, com seu armário e tudo o mais, desapareceu e os dois se viram, novamente, na velha choupana de pescadores.
    O homem não teve outro remédio senão prosseguir na sua profissão, a pesca. mas a sorte não o abandonava e ele tornou a apanhar o peixe de ouro.
   - Escuta! - disse este. - Se me jogares outra vez à água, eu te devolvo o palácio com o armário cheio de assados e cozidos; mas deves ficar firme e não revelar de que modo isso aconteceu; caso contrário, perderás tudo.
   - Terei toda a cautela - prometeu o pescador e jogou o peixe à água.
     Quando chegou em casa, encontrou tudo, de novo, em grande esplendor, e sua  mulher encantada com a sorte. Mas a curiosidade não a deixava sossegada e, passados alguns dias, já estava ela indagando, outra vez, como acontecera aquilo e a quem deviam aquela felicidade. Por algum tempo o homem manteve firme, mas, por fim, exasperado com a insistência da mulher, não se conteve e revelou o segredo.
       No mesmo instante o palácio , desapareceu e ambos se viram, novamente, dentro da velha choupana.
     - Estas vendo?! - gritou o homem.- Agora tornaremos a passar fome!
     - Ora exclamou a mulher. - Prefiro não ter riquezas se não posso saber de onde vem elas!
     O homem voltou à pesca e, passado algum tempo- o destino assim havia disposto- apanhou o peixe de ouro pela terceira vez.
     - Escuta aqui! - falou o peixe.- Vejo que hei de cair sempre em tuas mãos. Leva-me para tua casa e corta-me em seis pedaços. Dois deles darás à tua esposa para comer; outros dois a teu cavalo e os restantes dois, enterrarás no quintal. de todos eles hás de conseguir coisas que nem imaginas!
     O homem levou o peixe para casa e fez como lhe havia ordenado. pouco depois aconteceu que, dos dois pedaços plantados no quintal, brotaram dois lírios de ouro; a égua teve dois potrilhos de ouro e a mulher deu à luz dois menino, também de ouro.
    As crianças cresceram, tornando-se uns belos rapazes e, como eles os lírios e potros também se desenvolveram. Certo dia os dois jovens disseram:
      - Pai, vamos montar nossos cavalos de ouro e sair a correr mundo.
     O pescador ficou muito triste e lhes respondeu:
    - Que será de mim se forem embora e eu ficar sem notícias de vocês?
      - Os dois lírios de ouro ficarão aqui- disseram os rapazes. - Por meio deles saberás como passamos; enquanto estiverem viçosos, estaremos gozando de boa saúde; se murcharem. é que estamos doentes e, se caírem do galho , é sinal de que morremos.
     Puseram-se a caminho e chegaram a uma hospedaria cheia de gente. Quando viram os jovens de ouro, começaram a rir e divertir-se à custa deles. Um dos irmãos, ao ouvir  as pilhérias, envergonhou-se e, desistindo de correr mundo, voltou à casa paterna. O outro, porém, seguiu adiante e chegou a uma floresta imensa. Dispunha-se a passar por ela, quando as pessoas do lugar lhe avisaram:
     - Não te aventures a travessar essa floresta. Está cheia de bandidos que te atacarão e, se virem que és de ouro e teu cavalo também, na certa liquidarão contigo.
     O rapaz, no entanto, não se deixou amedontrar e disse:
     - Preciso passar pela floresta e passarei.
     Adquiriu umas peles de urso, com as quais se cobriu e à sua montaria, de modo que nada se enxergasse. Assim disfarçado, entrou, confiante, na floresta. Tendo cavalgado por algum tempo, ouviu um rumor nos arbustos e murmúrio de vozes. Alguém disse:
    - Aí vem um homem!
    Outro respondeu:
    - Deixa que passe. É um caçador de ursos, pobre e tão pelado como rato de igreja. Que poderíamos tirar dele,
      E assim o moço de ouro atravessou o bosque são e salvo.
      Certo dia chegou a uma aldeia, onde avistou uma jovem, tão bela que achou não ser possível haver outra mais linda no mundo inteiro. E como se sentisse grandemente atraído por ela, dirigiu-se a seu encontro e lhe falou:
    - Amo-te de todo coração. Queres ser minha esposa?
      A moça, que também gostou dele, respondeu aceitando seu pedido.
     - Sim, quero  ser tua esposa e te serei fiel a vida toda.
      Ao se casarem, quando estavam em plena festa, chegou o pai da noiva que, ao ver sua filha casando, indagou:
    - Onde está o noivo?
     Mostraram-lhe o jovem de ouro que continuava coberto de peles de urso. O homem ficou furioso e exclamou:
    - Não permitireis que minha filha case com um caçador de ursos!
    E, investindo contra o rapaz, quis matá-lo. Sua filha, porém, se desfez em súplicas:
    - Ele é meu marido e eu o quero de todo coração.
    Finalmente conseguiu apaziguar o pai. Mas este não pode esquecer sua preocupação e, na manhã seguinte, levantou-se de madrugada, disposto a saber se o genro era, de fato, um mendigo. Entrou no quarto e viu, então, um jovem belíssimo, todo de ouro, deitado na cama e as peles de urso espalhadas pelo chão. Enquanto se retirava pensou: " Que sorte ter reprimido minha cólera; teria cometido uma grande injustiça."
    Enquanto isso, o jovem sonhou que andava caçando um cervo magnífico e, ao acordar, disse à sua esposa:
       - Vou caçar na floresta.
     Apreensiva, ela lhe implorou que ficasse a seu lado.
     - Facilmente poderá acontecer-te uma desgraça! - disse.
      Ele, porém, insistiu:
     - Devo ir e irei.
      Encaminhou-se para floresta e, pouco depois , descobriu, a certa distância, um cervo belíssimo, igual ao que vira em sonho. Fez pontaria para disparar a arma, mas o animal escapou. Lançou-se em sua perseguição, saltando valos e atravessando moitas, sem jamais cansar. Ao anoitecer, porém, o cervo desapareceu. Olhando em redor, o jovem avistou à sua frente uma casa pequenina onde vivia uma feiticeira. Bateu à porta e a velha aparaceu, perguntando:
     - Que procuras a esta hora da noite, em meio desta floresta imensa?
       - Não viste um cervo? - indagou ele.
      - Sim - retrucou a velha - conheço bem o cervo.
      Enquanto ela falava, um cãozinho, que também saíra da casa se pôs a ladrar, furiosamente, para o forasteiro.
     - Cala-te, maldito cachorro- gritou o rapaz- se não queres que eu te dê um tiro.
    Aí a velha gritou:
   - Como? Pretendes matar meu cãozinho? - e, no mesmo instante, o transformou em pedra.
      Em casa, sua esposa ficou esperando por ele em vão.
     " Na certa - pensou ela- aconteceu o que eu receava e o que tanto vinha me pesando no coração!"
     Quanto ao outro irmão, que ficara na casa do pai, e sempre observava os lírios de ouro, viu quando , de repente , um deles murchou.
    - Meu Deus! - exclamou.- Aconteceu uma desgraça a meu irmão. Devo sair para ver se posso salvá-lo.
    - Não vás- pediu-lhe o pai.- Que serás de mim se perco a ti também?
    Mas o jovem lhe retrucou:
    - É preciso que eu vá, e irei.
     Montou seu cavalo de ouro, pôs-se a caminho e chegou ao bosque onde estava  seu irmão, transformado em pedra. A feiticeira saiu da casa e o chamou, com a intenção de encantá-lo também. Mas  o rapaz gritou de longe:
    - Se não devolves a vida a meu irmão, eu te mato a tiros, velha bruxa.
     Embora a contragosto,a  velha tocou a pedra com os dedos e logo o rapaz recuperou a forma humana. Os dois jovens sentiram uma grande alegria ao se reverem e depois de se terem abraçado, saíram juntos do bosque. Um deles dirigiu-se à casa de sua esposa e o outro à de seu pai. Ao vê-lo chegar, o velho exclamou:
    - Já sabia que havias salvo teu irmão, pois o lírio de ouro tornou a erguer-se e continuou com vida.
    E, desse momento em diante, todos viveram contentes e felizes até ao fim de seus dias.
FIM

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A PASTORINHA DOS GANSOS- CONTOS DE GRIMM

Vivia, certa vez, uma velha rainha. Seu marido falecera há muitos anos. E sua filha única, muito linda, ao tornar-se moça, foi prometida em casamento a um príncipe de um pais remoto. Chegada a época de celebrarem-se as bodas e quando a jovem princesa ia iniciar a viagem ao reino de seu noivo, a rainha mãe lhe preparou um rico enxoval com peças de ouro e prata, vasos e jóias preciosas; numa palavra: o dote era digno de uma princesa, pois a rainha amava muito a sua filha. Deu-lhe, também, como companhia, uma camareira encarregada de apresentar a princesa ao noivo. para viajar, cada uma recebeu um cavalo, sendo que o da princesa chamava-se Falado e tinha o dom de saber falar. Na hora da despedida, a rainha mãe apanhou um punhal e deu um corte no dedo, fazendo jorrar sangue; depois recolheu três gotas num lencinho branco, que entregou à princesa, dizendo:
     - Querida filha, guarda-as com todo carinho; poderás necessitar durante a viagem.
     A seguir, mãe e filha se despediram tristemente. A princesinha guardou o lencinho branco no seio e, depois de montar a cavalo, iniciou a viagem à corte de seu noivo, Tendo já cavalgado durante uma hora, ela começou a sentir sede e ordenou à camareira:
    - Apeia e enche de água do arroio o copo de ouro que trouxeste para mim. Estou com sede.
     - Se estás com sede- respondeu a camareira- desce do cavalo , ajoelha-te à beira do riacho e bebe água ali mesmo. Não sou tua criada!
     A princesa, que estava com uma sede muito grande, não teve outro remédio senão apear do cavalo e beber da água do arroio, sem poder utilizar-se de seu copinho de ouro.
    - Meu Deus! -suspirou ela, com tristeza.
    E as três gotas de sangue responderam:
    - Se tua mãe soubesse disso!
     A princesinha, porém, que era boa e humilde, calou-se tornou a montar seu cavalo.
    Prosseguiram durante alguma léguas e, como o dia era muito quente e o sol  abrasador, a jovem tornou a sentir sede. Quando chegaram a outro arroio, ordenou, novamente , à sua camareira:
    - Apeia e me alcança água no meu copinho de ouro - pois já havia esquecido a insolência da camareira.
   Esta, porém, lhe respondeu com palavras ainda mais ríspidas!
    - Se quiseres beber, serve-te tu mesma; não sou tua criada!
    Como sentia muita sede, a princesinha apeou, debruço-se sobre a água corrente e exclamou chorando:
    - Meu Deus do Céu!
    E as três gotas de sangue tornaram a responder:
    - Se tua mãe soubesse disso!
    Enquanto estava ali , abaixada, bebendo , caiu-lhe do seio o lencinho branco com as três gotas, e a água o levou, sem que ela percebesse nada, aflita como estava. Mas a camareira viu o que tinha acontecido e alegrou-se, por que daí por diante teria todo o poder sobre a princesa, a qual, sem as gotas de sangue, se tornaria fraca e submissa.
    Quando a princesinha se dispôs a montar de novo a criada lhe disse:
    - Quem vai montar Falado sou eu; tu seguirás a viagem no meu cavalo.
    E a princesa teve de obedecer. Depois a camareira ainda lhe ordenou, com palavras ásperas, que trocasse as vestes reais com as suas inferiores, e, por fim, exigiu-lhe que jurasse não dizer uma palavra a ninguém sobre o que acontecera, quando chegassem à Corte. Se a pobre princesinha não jurasse o que aquela malvada exigia, teria sido morta ali mesmo. Falado, porém, presenciou tudo; e tudo guardou na memória. A seguir, a camareira montou Falado e a verdadeira noiva teve de cavalgar o outro animal. Assim prosseguiram caminho até  chegarem ao palácio real. Houve então grande regozijo na Corte  e o príncipe correu-lhes ao encontro, ajudando a camareira a descer do cavalo na suposição de que era a sua noiva. Conduziram-na com toda a pompa, pela escadaria, enquanto a verdadeira princesa teve de ficar parada embaixo. Quando o velho rei olhou pela janela e a viu no pátio do castelo, tão delicada, distinta e linda, encaminhou-se aos aposentos da noiva e indagou dela quem era aquela jovem que a estava acompanhando.
    - Tomei-a a meu serviço durante o caminho, para que me acompanhasse. De-lhe trabalho, afim de que não fique vadiando por aí.
     O velho rei, porém, não tinha serviço para dar-lhe e só lhe ocorreu dizer;
    - Temos aqui um rapazola que cuida dos gansos. Ela poderá ajudá-lo.
    O menino chamava-se Joãozinho e a noiva verdadeira foi obrigada a  ajudá-lo a cuidar dos gansos.
    Pouco tempo depois, a falsa noiva dirigiu-se ao príncipe, dizendo:
    - Meu amado, quero pedir-te um favor.
    - Eu te atenderei com todo o prazer, - respondeu ele.
     - Manda então cortar a cabeça do cavalo em que vim montada. Esse animal me aborreceu durante todo o caminho.
     Na realidade ela temia que Falado revelasse o seu procedimento com a verdadeira noiva. Quando ficou resolvido que o cavalo seria morto e a princesinha soube disso, ela prometeu, secretamente, ao açougueiro, dar-lhe uma moeda de ouro em troca de um pequeno favor. Havia na cidade  um portão grande, antigo,  por onde ela e Joãozinho passavam todas as noites e todas as manhãs. Pediu, pois, ao homem, que ali pregasse a cabeça de Falado, para que pudesse vê-la seguidamente. O açougueiro assim prometeu e, depois de ter cortado a cabeça do cavalo, pregou-a no portão.
    Quando, de madrugada, a princesa e Joãozinho passaram pelo portal, ela disse:
     - Ó, Falado, que aí estas degolado!
     E a cabeça respondeu-lhe:
    - Ó, tu que aí vais, jovem princesa!
      Se tua mãe soubesse o que se passa,
      Na certa morreria de tristeza.
    Depois ela e Joãozinho seguiram adiante, conduzindo os gansos para fora da cidade. Quando chegaram ao campo, a princesinha sentou-se sobre a relva e começou a pentear os cabelos que eram de ouro puro. Joãozinho, vendo como brilhavam ao sol, entusiasmou-se e quis arrancar-lhe alguns fios, mas ela disse logo:
     - Sopra bem forte, ventinho
     Leva o chapéu de Joãozinho!
      Força-o a correr pelo campo
     Até que eu me tenha penteado
      E de novo levantado.
    No mesmo instante, começou a soprar um vento tão forte que levou o chapéu de Joãozinho, obrigando-o a correr atrás, durante muito tempo. Quando o menino voltou, a princesa já havia arranjado o cabelo e ele não conseguiu um só fio. Joãozinho zangou-se e não falou mais com ela; e assim ficaram cuidando dos gansos até anoitecer,quando, então, regressaram à casa.
     Na manhã seguinte, ao passarem, outra vez, pelo portal antigo, a jovem repetiu:
    - Ó Falado, que aí estás degolado!
     E Falado respondeu-lhe:
    -Ó, tu que aí vais, jovem princesa!
     Se tua mãe soubesse o que se passa,
    Na certa morreria de tristeza.
    No campo, ela sentou-se, novamente, sobre a relva, para pentear os cabelos. Joãozinho correu  para arrancar-lhes uns fios, mas a princesinha disse depressa:
     - Sopra bem forte, ventinho
      Leva o chapéu de Joãozinho!
     Força-o a correr pelo campo
    Até que eu me tenha penteado
     E de novo levantado.
    O vento logo pôs-se a soprar e levou para longe o chapeuzinho do menino; tão rapidamente ele teve de correr atrás. Quando voltou, a princesa há muito tinha penteado o cabelo e ele não conseguiu obter um só fio. Juntos, continuaram a cuidar dos gansos até escurecer.
      Á noite, depois de terem voltado para casa, Joãozinho apresentou-se ao velho rei e lhe disse:
    - Não quero mais cuidar dos gansos com a moça.
     - E por que não? - indagou o rei.
    - Ora, ela me aborrece o dia inteiro.
     O rei, então, ordenou que ele falasse, e o menino pôs-se a contar:
      - Todas as manhãs, quando passamos pelo portão antigo, ela fala com uma cabeça de cavalo que está ali, pregada. Diz assim:
     - Ó Falado, que aí estas degolado!
     E a cabeça responde:
    - Ó, tu que aí vais, jovem princesa!
    Se tua mãe soubesse o que se passa,
     Na certa morreria de tristeza.
     Joãozinho continuou contando o que sucedia depois, lá no campo , e como era obrigado a correr atrás do seu chapéu.
   O velho rei ordenou-lhe que no dia seguinte saísse, novamente, com os gansos. E ele, próprio rei, de madrugada, escondeu-se atrás do portal e ali ouviu quando a princesa falou com a cabeça de cavalo. Depois foi ao campo e escondeu-se atrás de uma árvore, para ver o que acontecia . Presenciou, então, com seus próprios olhos, quando o rapaz e a moça vinham trazendo os gansos e como, pouco depois, ela se sentava na relva e soltava os cabelos que rebrilhavam como ouro. Em seguida, a jovem ordenou:
     - Sopra bem forte, ventinho
       Leva o chapéu de Joãozinho!
     Força-o a correr pelo campo Até que eu me tenha penteado
     E de novo levantado.
      Imediatamente uma lufada de vento carregou o chapéu de Joazinho, obrigando-o a correr para longe enquanto a jovem penteava e arranjava os anéis dos seus cabelo. O velho rei assistiu a tudo e depois, sem ser visto, retirou-se. Quando, ao anoitecer, a pastora dos gansos regressou ao palácio, ele a chamou, indagando-lhe a razão de seu procedimento.
    - Não posso dizer nada nem revelar minha desgraça a ninguém, - respondeu ela; mas vendo, afinal, que não conseguia arrancar-lhe uma palavra, acabou dizendo:
     - Se não podes contar nada a mim, então confia o teu segredo a esse velho fogão de ferro. - E afastou-se e, entre lamentos e lágrimas , desafogou seu coração, dizendo:
    - Aqui estou abandonada do mundo inteiro e, entretanto,sou filha de um rei. Uma camareira falsa me obrigou a entregar meus trajes reais e tomou o meu lugar junto ao meu noivo. Agora sou forçada a servir como pastora de gansos. Ai, se minha mãe soubesse disso!
     Nesse meio tempo, o velho rei se postara junto ao cano da chaminé e por ali ouvira tudo. Entrou, novamente, no aposento e ordenou que ela saísse de dentro do fogão. Mandou que lhe dessem trajes suntuosos, os quais, depois que ela vestiu, realçaram maravilhosamente sua beleza. O rei, então, chamou sue filho e lhe revelou a falsidade de sua noiva, que não passava de uma camareira vulgar, enquanto a verdadeira era aquela que ali estava e que havia cuidado dos gansos e tempo todo.
     O jovem príncipe sentiu-se feliz ao vê-la tão bela e modesta e mandou preparar um banquete para o qual convidou muita gente e todos os seus amigos. O noivo sentou-se à cabeceira da mesa, tendo de um lado a princesa e de outro a camareira, que de tão deslumbrada, não reconheceu sua rival naqueles trajes magníficos. Depois de terem comido e bebido e quando grande animação reinava entre os convidados, o velho rei dirigiu-se à camareira e deu-lhe uma questão a resolver: o que merecia uma pessoa que havia engando a seu senhor de tal e tal maneira e, depois de relatar todo o caso, perguntou:
     - Que sentença merece essa pessoa?
      E a falsa noiva respondeu:
    - Merece que lhe tirem as roupas e a metam num barril todo crivado por dentro de pregos e que, puxado por dois cavalos brancos, seja arrastado pelas ruas a cidade até que a miserável dê o ultimo suspiro.
      - Pois essa serás tu! - respondeu-lhe o rei. - Acabas de pronunciar tua própria sentença.
      E, depois que foi cumprida essa sentença, celebrou-se o casamento dos jovens príncipes. Ambos reinaram a vida inteira em completa paz e felicidade.
 FIM

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

JOÃO DE SORTE- CONTOS DE GRIMM

João servira sete anos a seu patrão e, ao fim desse tempo, disse-lhe:
   - Senhor, terminei o meu prazo e gostaria de voltar para a casa de minha mãe. Queira pagar-me o salário.
    Respondeu-lhe o patrão:
   _ Serviste-me fiel e honradamente; o que vou te dar estará na altura de teus serviços.
    E deu-lhe uma bola de ouro, tão grande que era do tamanho da cabeça de João. Este tirou seu lenço, onde embrulhou seu tesouro e, pondo-o no ombro, seguiu a caminho de casa. Enquanto andava pela estrada, viu um homem a cavalo que passou por ele, alegremente, a trote largo.
    - Ah! - exclamou João. - Que bela coisa andar a cavalo! A gente senta como numa cadeira, não tropeça em pedras, poupa o calçado e avança sem saber como.
      O outro, que ouvira suas palavras, parou seu cavalo e perguntou:
    - E por que andas a pé?
    - Que remédio! Tenho qui uma bola que é de ouro, mas não posso erguer a cabeça e me pesa nos ombros.
     - Sabes de uma coisa? - disse-lhe o cavaleiro.- Façamos uma troca. Eu te dou o meu cavalo e tu me dás a bola de ouro.
     - Com muito gosto! - respondeu João - Mas aviso-te que é pesadíssima.
     O homem apeou, pegou o ouro e, ajudando João a montar, pôs-lhe as rédeas nas mãos, dizendo:
    - Se queres que galope, é só estalares a língua e gritar: "upa! upa!"
       João sentia-se felicíssimo ao trotar, assim, a cavalo, livre e descansadamente. Passado algum tempo, ocorreu-lhe que poderia acelerar a marcha, e pôs-se a estalar a língua e a gritar: "upa! upa! Imediatamente o animal desandou a galopar e, antes que João se desse conta , foi jogado da sela, indo parar numa vala que separava os campos da estrada. O cavalo teria escapado se um camponês que, casualmente, passava por ali , conduzindo uma vaca, não o tivesse detido. João levantou-se a custo e, dirigindo-se ao camponês, disse, aborrecido:
    - Isso de montar é brincadeira de mau gosto, ainda mais quando se topa com um matungo igual a esse, que corcoveia e joga a gente longe. Por nada do mundo voltarei a montá-lo. Caso diferente é ter uma caca como a tua. Caminha-se  tranquilamente   atrás dela e, além do mais , dá sempre leite , manteiga e queijo. Que não daria eu por uma vaca  assim!
    - Pois bem- respondeu-lhe o camponês -se te agrada tanto, estou disposto a trocá-la pelo teu cavalo.
     João aceitou , radiante, a proposta. E o camponês, montado a cavalo,a fastou-se a toda pressa.
     Conduzindo sua vaca estrada afora, João ia pensando no bom negócio que acabara de realizar: " Se eu tiver um pedaço de pão, e creio que isso nunca me faltará, poderei sempre comê-lo com manteiga e queijo e quando estiver com sede , ordenharei a vaca e beberei leite. Coração, que mais podes desejar? " Parou na primeira hospedaria que encontrou e, em sua alegria, comeu todas as provisões do meio-dia e da noite, acompanhando-as com meio copo de cerveja, que pagou com as últimas moedas que tinha no bolso. Depois prosseguiu sua marcha, conduzindo a vaca , sempre em direção à aldeia onde morava a sua mãe. Quanto mais se aproximava o meio-dia, mais calor ia aumentando e João se encontrava num descampado que não podia ser atravessado em menos de uma hora. Tão grande era o calor que , de tanta sede, a língua dele se grudava no céu da boca. " Para isso há remédio" - pensou João. " Vou ordenhar a vaca e deliciar-me com o leite"
    Atou o animal a um tronco seco e, como não tivesse balde, usou seu gorro de couro para juntar o leite. No entanto, por mais que se esforçasse, não fez sair uma gota. E como era muito desajeitado, a vaca , impacientando-se, aplicou-lhe uma patada na cabeça, que o atirou no chão, deixando-o por momentos sem saber onde estava. Por sorte passou ali,naquele momento, um carniceiro que transportava um leitãozinho num carro de mão.
   - Que artes são essas! - exclamou ajudando o bom João a levantar-se. Este contou-lhe o que sucedera e o outro, alcançando-lhe sua garrafa , disse:
   - Bebe um trago para te refazeres. Esta vaca, na certa, não dará leite, pois é velha demais. Servirá, quando muito, para puxar carroça ou ser comida.
   - Ora essa! - exclamou   João, alisando os cabelo - Quem pensaria nisso? Claro que não é nada mau possuir um animal desses para carnear, com toda a carne que tem. Mas eu ligo para carne de vaca; acho muito seca. Um bom leitão, como esse seu, é outra coisa. tem outro sabor! E, além disso, as salsichas!
   - Escuta! - falou  o carniceiro. - Para te fazer um favor, estou disposto a trocar meu porco pela tua vaca.
    - Deus te pague a camaradagem- retrucou João e deixou o outro tirar o leitão do carrinho e lhe pôs nas mãos a corda que o atava.
   Feliz, seguiu adiante, pensando como tudo lhe saía sempre bem, Se algo chegava a aborrecê-lo, logo as coisas mudavam para melhor.
    Mais adiante, juntou-se a ele um rapaz que levava embaixo do braço um belo ganso branco.
   Depois de trocarem cumprimentos, João se pôs a contar ao outro a sua sorte e como sempre fizera trocas tão vantajosas. O rapaz, por sua vez, contou-lhe que levava o ganso para um banquete de batizado.
   - Levanta-o -disse ele, pegando a ave pelas assas- e vê que peso tem . Para isso também o cevamos durante oito semana. Quem come isto assado terá de limpar a gordura nos dois cantos da boca.
   - Sim - disse João,segurando o ganso com uma das mãos- que tem lá o seu peso, não ha´dúvida, mas o meu leitão também não é dos mais leves.
      Enquanto isso, o rapaz não cessava de olhar para todos os lados e, de vez em quando , sacudia a cabeça.
    - Escuta -acabou por dizer - com o teu porco as  coisas não andam muito às claras. no ultimo povoado por onde passei, acabavam de roubar um porco do chiqueiro do alcaide. Não me admiraria se fosse o teu. Mandaram gente sair à sua procura e mau negócio farias se te pegasse com ele. O mínimo que poderá acontecer é meterem-te na cadeia.
    O bom João começou a ficar com medo.
    - Deus meu! - balbuciou e, dirigindo-se ao jovem lhe disse: - Tira-me deste aperto; conheces esta zona melhor do que eu. Fica com o leitão e dá-me, em troca o teu ganso.
     - O risco é grande - respondeu o outro- mas não quero ser culpado de tua desgraça.
     E, tomando a corda, tocou o  porco, rapidamente, por um atalho, enquanto o nosso João, livre de seus temores, seguia rumo à aldeia com o ganso embaixo do braço." Pensando bem -ia ele dizendo- saí ganhando na transação. Em primeiro lugar: o rico assado; depois, a quantidade de banha, que dará para uns três meses e, finalmente, esta bela plumagem branca, com que farei um travesseiro, onde vou dormir como um príncipe. Minha, mãe ficará radiante:"
     Ao passar pelo último povoado, encontrou  um afiador de facas com o seu aparelho,. Fazendo girar a roda, cantava:
     A roda regira num tal movimento
     Que até meu casaco revoa no vento.
  - As coisas parecem andar muito bem , pois estás tão contente ao trabalhar.
   - Sim- respondeu-lhe o homem. - Este ofício é uma mina de ouro. Um bom afiador sempre que mete a mão no bolso, ela volta com dinheiro. mas onde foi que compraste esse lindo ganso?
   - Não o comprei, troquei-o por um porco.
     - E o porco?
   - Dei uma vaca por ele.
     - E a vaca,
    - Deram-me em troca de um cavalo.
   - E o cavalo?
     - Dei por ele uma bola de ouro do tamanho da minha cabeça.
    - E o ouro?
     - Ah, o ouro era o meu salário de sete anos.
      - Pois saíste ganhando em cada troca - afirmou o afiador.- Agora só te falta fazeres tilintar o dinheiro do bolso todos os dias, ao levantar-te.
     - E como farei isso ? - indagou João.
     - Tornando-te afiador como eu, para o que , na verdade, não necessitas mais que de uma pedra de afiar. O restante vem por sí. Tenho aqui uma. Para ser franco, a mó está um poco avariada. Por isso me darás por ela apenas o teu ganso. Que achas?
    -   E ainda perguntas? - respondeu João.- Serei o homem mais feliz do mundo. se tenho dinheiro cada vez que meta a mão no bolso, adeus preocupações!
     Alcançou-lhe o ganso e recebeu, em troca ,  a velha mó.
     - Bem, - disse o afiador, levantando do chão uma pedra muito pesada- aqui tens, ainda , esta boa pedra com que poderás endireitar pregos velhos. Leva-a e guarda-a cuidadosamente.
    João agarrou as pedras e prosseguiu seu caminho com o coração transbordando de alegria.
     - Bem se vê que nasci sob uma boa estrela! - exclamou. - Todos os meus desejos se realizaram logo.
     Entretanto, começou a sentir-se fatigado,pois vinha andando desde madrugada. Além disso, a fome o atormentava, pois, ao fazer  o negócio da vaca, tinha ficado tão contente que gastara em comida todo o seu dinheiro, Finalmente, não podia mais caminhar sem um esforço enorme. era obrigado a deter-se a todo instante, pois as pedras lhe pesavam de maneira horrível. Não conseguia afastar o pensamento de como seria agradável para ele não ter de carregá-las naquela hora.
     Avançando como uma lesma, arrastou-se até um poço, com a idéia de descansar um pouco e beber um gole de água fresca. Para não danificar as pedras ao sentar-se ali, colocou-as cuidadosamente,   à borda do poço. depois, quando se debruçou para beber, fez um gesto descuidado e "pluft"! as duas pedras caíram no fundo. João, ao ver aquilo, deu um pulo de alegria e, ajoelhando-se, agradeceu a Deus, com lágimas nos olhos, por havê-lo libertado, de um modo tão gentil e sem que tivesse que recriminar-se, das duas pesadíssimas pedras que só serviam para atrapalhá-lo.
     - Não há no mundo inteiro um homem mais feliz do que eu! - exclamou entusiasmado. E, com o coração satisfeito e livre de toda carga, deitou a correr até chegar à casa de sua mãe.
FIM

O AVÔ E SEU NETINHO - CONTOS DE GRIMM

Era uma vez um homem muito, muito velho; enxergava pouco, não ouvia quase nada e tinha as pernas trêmulas. Quando sentando à mesa, mal podendo segurar a colher, derramava a sopa na toalha e o caldo lhe escorria pelos cantos da boca. Seu filho e sua nora não gostavam de ver aquilo e acabaram fazendo o velhinho sentar-se num canto, atrás do fogão, onde lhe davam sua parca comida numa tigela de barro. O pobre velho olhava, tristemente, para a mesa e seus olhos umedeciam. Um dia as mãos trémulas não puderam segurar o prato que, caindo no chão, se quebrou. A mulher ficou zangada, mas ele limitou-se a suspirar, sem dizer palavra. Ela, então, comprou-lhe uma tigela barata de madeira, na qual passou a servir-lhe a comida.
     Certa vez, estando o casal sentado à mesa, viram que o netinho, um menino de quatro anos , se entretinha juntando e unindo pedacinhos de madeira.
   - Que estás fazendo? - indagou o pai.
     - Estou fazendo um cocho de madeira - respondeu o menino - para dar de comer a papai e a mamãe quando eu crescer.
     Marido e mulher se entreolharam em silêncio por alguns instantes e, por fim, desandaram a chorar. Logo depois restituíram ao avô o seu posto à mesa e, daí por diante, sempre o fizeram comer com eles sem reclamar quando derramavam um pouco de comida.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A INTELIGENTE MARIA - CONTOS DE GRIMM

        Viveu há muitos anos uma cozinheira  chamada Margarida, que usava sapatos de salto vermelho. Quando saía com eles, requebrava-se, toda satisfeita e pensando: "Não deixas de ser uma bela moça!"
    Ao chegar em casa, de puro contentamento, bebia um trago de vinho; e, como o vinho abre o apetite, começava a provar de tudo, enquanto dizia:
   - A cozinheira deve saber o gosto da comida!
    Um dia seu amo preveniu:
   - Margarida, esta noite tenho um convidado. Prepara duas galinhas, e que estejam bem assadas!
    - Pois não, senhor!
    Matou as galinhas, escaldou-as, depenou-as e, a seguir, meteu-as no espeto, que levou ao fogo para assar. As galinhas começaram a ficar douradas e já estavam quase prontas. Mas o hóspede, nada de aparecer! Disse , então, Margarida a seu amo.
   - Se o convidado demorar mais, vou tirar as galinhas do fogo; será uma pena, pois estão bem no ponto.
     - Eu mesmo vou buscá-lo! - resolveu o dono da casa.
     Mal o patrão deu as costas, Margarida pôs de lado o espeto com as galinhas e pensou: " Tanto tempo junto ao fogo faz a gente suar e dá sede. Sabe lá quando voltarão! Enquanto isso, dou um pulo à adega para um traguinho."
    Desceu bem  ligeiro, encheu uma jarra e disse:
   - Deus te abençoe, Margarida, e que isso te faça bem!- E tomou um bom trago. - Este vinho pede mais: nem é bom parar! - acrescentou.- E tomou outro gole, bem grande.
   Depois voltou à cozinha e tornou a pôr as galinhas no fogo; untou-as bem com manteiga e começou a virar, alegremente, o espeto. Com o assado desprendesse um aroma dos mais deliciosos, Margarida pensou: " Devo prová-las para que não lhes falte algo!" - E , passando um dedo , provou as galinhas.
     - Chii! - exclamou ela. - Como estão gostosas! É pecado e crime não comê-las logo!
     Correu à janela para ver se chegava o patrão com seu convidado. Como não visse ninguém, voltou para juntos das galinhas e pensou: " Esta asa vai queimar; é melhor comê-la. " Cortou-a antes que fosse tarde; comeu-a e achou que estava bem gostosa." É preciso comer também a outra , para que o patrão não note que falta algo! " Tendo comido ambas, voltou à janela para ver se o patrão  vinha vindo, mas nada de patrão! " Quem sabe- pensou - se eles nem vem; é bem capaz que tenham se metido nalguma taverna!" E, depois de refletir algum tempo, disse em voz alta:
    - Vamos , Margarida, anima-te; uma já está começada; mais um traguinho , e a paparás inteira. Depois hás de ficar em paz. Não vejo razão para desperdiçar essa dádiva e Deus.
   Desceu novamente à adega; tomou um bom trago e, com toda a satisfação, comeu a galinha inteira.
    Desaparecida uma delas sem que o patrão houvesse voltado, Margarida pensou: "Onde está uma, deve estar a outra. As duas formam um par! Acho que outro traguinho não me fará mal!" Tomou , novamente, um gole bem reforçado e fez a outra galinha seguir para onde estava a primeira.
    Acontece que, no melhor do banquete, chegou o patrão.
   Depressa, Margarida- gritou-lhe .- O convidado não demora!
    - Sim senhor, vou servir imediatamente! - respondeu a moça.
    Enquanto isso, o dono da casa foi verificar se a  mesa estava bem posta e, apanhando uma faca grande com que tencionava trinchar as galinhas, pôs-se a afiá-la no corredor. Nisto chegou o convidado. Bateu delicadamente à porta. margarida correu a abrir para ver quem era e, ao dar com ele,pôs o dedo nos lábios e fêz:
     - Pst! Pst!" Volte bem depressa . Se meu patrão o pega aqui , ai do senhor! Ele o convidou para jantar, mas sua verdadeira intenção é cortar-lhe as duas orelhas. Escute só como está afiando a faca!
    O homem ouviu o ruído e saiu disparada escada abaixo. Margarida não perdeu tempo. Correu à presença do seu amo e gritou:
   - Belo sujeito esse seu convidado!
    - Por que , Margarida? Que queres dizer com isso ?
   - Sim- respondeu ela- acabava de me arrebatar do prato as duas galinhas que eu ia levando para servir e saiu, a toda com elas.
   - Bela maneira de proceder! - disse o dono da casa, sentindo a perda das galinhas. Se ao menos tivesse deixado uma delas, eu teria algo para jantar.
   E saiu à rua gritando que voltasse , mas o outro se fez de surdo. O patrão,então, deitou a correr atrás dele, ainda com a faca na mão e aberrar:
    - Só uma , só uma ! - para que lhe deixasse ao menos uma das galinhas . Mas o convidado, entendendo que ele queria dizer que se conformaria apenas com uma de suas orelhas, pôs-se a correr ainda mais , para salvar as duas.
 FIM
               

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

IRMÃO ALEGRE- CONTOS DE GRIMM

Houve, certa vez, uma grande guerra, que durou muito e, quando terminou, teve como consequência a despedida de muitos soldados. Entre eles estava  Irmão Alegre, o qual , ao ser dispensado, só recebeu um pão e quatro moedas. Com isso pôs-se a caminho. Mas São Pedro, disfarçado em mendigo, se havia postado na estrada e, quando Irmão Alegre ia passando, pediu-lhe uma esmola.
      - Meu bom esmoleiro-disse-lhe o soldado- que posso dar-te? Despediram-me e só tenho um pão de soldado e quatro moedas em dinheiro.  Quando isso terminar, terei de pedir esmola, como tu. mas, de qualquer maneira, vou dar-te alguma coisa.
    Partiu o pão em quatro pedaços e deu ao apóstolo uma parte  e uma moeda. São Pedro agradeceu, afastou-se e, tomando forma de outro mendigo, foi postar-se mais adiante. Quando o soldado passou, pediu-lhe, de novo, uma esmola. Irmão Alegre repetiu o que dissera  antes e deu-lhe outra quarta parte do pão e apenas uma moeda. Com isso entrou numa hospedaria, comeu o pão e gastou a última moeda em cerveja. Depois prosseguiu sua marcha. Não demorou muito, São Pedro veio a seu encontro, desta vez na figura de um veterano, e, assim lhe falou:
   - Bom dia, companheiro. Não poderias dar-me um pedaço de pão e uma moeda para tomar um trago?
    - De onde queres que eu tire tudo isso? - respondeu Irmão Alegre.- Dispensaram-me e recebi apenas  um pão e quatro moedas em dinheiro. No caminho encontrei três esmoleiros e a cada um deles dei a quarta parte do meu pão e uma moeda. A última quarta parte comi numa hospedaria e com a última moeda bebi cerveja. Agora estou a zero e, se também não tens nada, poderíamos esmolar juntos.
   - Não- respondeu-lhe São Pedro- isso não é preciso. Entendo um pouco de medicina e espero ganhar o suficiente para viver.
   - Então terei de esmolar sozinho - respondeu Irmão Alegre - porque não entendo dessa arte.
     - Vem comigo -disse-lhe São Pedro - e repartiremos o que eu ganhar.
   - De acordo! - exclamou Irmão Alegre, e seguira, juntos os dois.
    Depois de andar algum tempo , aproximaram-se de uma casa de camponeses. Lá dentro partiam gritos e lamentações. Entraram e viram que o homem estava quase morrendo e a mulher chorava e gritava , desesperada.
    - Chega de choro e gritos - disse São Pedro - eu vou curar teu marido.
     Tirou do bolso um pote de pomada e, num momento, aplicou-a no camponês, que se levantou completamente são. O casal, cheio de alegria, perguntou ao apóstolo:
    - Como poderemos pagar-te? Que poderemos oferecer-te?
    Mas São Pedro nada quis e, quanto mais eles insistiam, mais ele se opunha a aceitar qualquer paga. Irmão Alegre, no entanto, tocando o braço de São Pedro, lhe disse, baixinho:
    - Aceita logo, que bem estamos precisando.
     Por fim a camponesa trouxe um cordeiro e disse a São Pedro que devia aceitá-lo. O apóstolo, entretanto, o rejeitou. Aí o Irmão Alegre deu-lhe uma cutucada e, por sua vez , disse:
   - Aceita logo, boboca, bem sabes que precisamos.
   Ao que São Pedro respondeu:
    - Bem, aceito o cordeiro , mas não o carregarei; carrega-o tu, se quiseres.
    -Se depende só disso -exclamou o outro- claro que o levarei!
    E pôs o animal às costas.
     Seguiram caminhando até chegar a uma floresta. O cordeiro pesava nos ombros de Irmão Alegre que, além disso, sentia fome. Dirigiu-se, pois, a São Pedro:
   - Olha, este é um bom lugar. Poderíamos matar o cordeiro, assá-lo e comê-lo.
    - De pleno acordo, - respondeu seu companheiro, - mas eu nada entendo de cozinha. Se quiseres preparar cordeiro, aí tens uma panela; enquanto isso, darei umas voltas pelo mato até que esteja pronto. Mas não comas antes de eu chegar, voltarei em tempo.
    - Podes ir  descansado- respondeu o outro. - Sei cozinhar e hei de arranjar-me.
   São Pedro fastou-se e Irmão Alegre matou o cordeiro acendeu o fogo e pôs a carne na panela. Quando já estava no ponto , São Pedro ainda não tinha voltado. Irmão Alegre tirou a panela do fogo, começou a cortar a carne em pedaços e nisso encontrou o coração. "Dizem  que é o melhor de tudo!" - exclamou , falando sozinho. Provou um bocado e acabou comendo-o inteirinho. Afinal chegou São Pedro.
     - Podes comer o cordeiro todo- disse ele, - só quero o coração.
     Irmão Alegre pegou a faca e o garfo e começou a fingir que procurava o coração entre a carne. E como não o achasse, disse afinal:
    - Aí não está!
     -Onde  estará então? - retrucou o apóstolo.
    - Não sei - respondeu Irmão Alegre. - Mas, espera... como somos tolos! Procuramos o coração do cordeiro e a nenhum de nós ocorreu que os cordeiros nem tem coração.
     - Qual o que! - exclamou São Pedro. - Isso agora é novidade. Todos os animais tem coração.
Por que não haveria esse cordeiro de tê-lo?
    - Não, irmão, podes crer... os cordeiros não tem coração. Reflete um pouco e verás que, em verdade, não podem ter.
    - Está bem -disse São Pedro.- Se não tem   coração, não quero nada. Podes comer tudo sozinho.
    - O que sobrar guardarei- disse Irmão Alegre. E, depois de comer a metade, meteu o resto na mochila.
      Seguiram andando e  São Pedro fez com que um rio, muito grande, cruzasse o caminho deles, de modo que não havia outro remédio senão atravessá-lo. Disse  São Pedro:
   - Passa tu primeiro.
    - Não - respondeu Irmão Alegre- primeiro tu.- E pensou: "Se o rio for fundo, eu fico para trás."
    São Pedro atravessou as águas , que só lhe chegaram até os joelhos. Vendo isso , Irmão Alegre entrou, também , no rio. Mas o rio foi crescendo e a água lhe atingiu o pescoço. O nosso homem, então, começou a gritar:
    - Irmão, ajuda-me!
    - Confessas que comeste o coração do cordeiro?- perguntou o apóstolo.
    - Não- respondeu o outro- não o comi.
     As águas continuaram subindo e lhe chegaram à boca.
    - Ajuda-me , irmão! - gritou o soldado , de novo.
    - Confessas que comeste o coração do cordeiro? - perguntou, mais uma vez , o santo.
     - Não - repetiu Irmão Alegre  -não comi.
      O apóstolo, que não tinha a intenção de afogá-lo, fez baixar as águas e o ajudou a alcançar a margem.
     Continuaram sua jornada e chegaram a um reino onde lhes disseram que a filha do rei estava à morte.
    Oba, irmão! - exclamou o soldado. - Isso é uma oportunidade para nós. Se curares , não teremos mais preocupações. Vamos!
    São Pedro, porém, não se deu pressa.
   - Ora, movimenta as pernas , irmão de minha alma!- continuou o soldado. - Temos de chegar a tempo.
    Mas o apóstolo andava cada vez mais devagar, apesar da insistência e puxões de Irmão Alegre. E assim lhes chegou a notícia de que a princesa havia morrido.
   - Aí está! - resmungou o soldado. -Tudo por causa da tua moleza.
    - Acalma-te - retrucou São Pedro. - Sei fazer algo mais que curar enfermos, posso também ressuscitar os mortos.
   - Bem, se é assim- disse Irmão Alegre- estou conforme. Mas, em troca, tu pedirás, no mínimo, metade do reino.
    Apresentaram-se ao palácio, onde reinava grande tristeza e São Pedro disse ao rei que ressuscitaria a sua filha. Conduziram-no à  presença da morta e ali ele pediu:
    - Tragam-me um caldeirão com água.
    Depois, fez sair a todos , menos o Irmão Alegre, que pode ali permanecer. Em seguida cortou os membros do cadáver e os deitou na água; acendeu o fogo em baixo da caldeira e os pôs a cozinhar. Depois que a carne se desprendeu, tirou o esqueleto limpo e colocou-o sobre uma mesa, dispondo os ossos em sua ordem natural. Feito isso, adiantou-se e disse três vezes:
    - Em nome da Santíssima Trindade , levanta-te!
   E, na terceira vez, a princesa levantou-se com vida, cheia de saúde e bela como antes.
   O rei, felicíssimo, disse a São Pedro:
  - Pede-me o que quiseres e se for a metade do meu reino, eu te darei.
    Mas São pedro respondeu lhe:
    - Não quero coisa algum.
   " Mas que idiota!" - pensou Irmão Alegre e, dando uma forte cutucada em seu companheiro, lhe disse:
    - Não sejas tão tolo. Se não queres nada, eu, pelo menos, necessito algo.
     Mas São Pedro continuou sem aceitar nada. O rei, porém, notou que o outro estava aborrecido e mandou que seu tesoureiro lhe enchesse a mochila de ouro.
     Tendo continuado sua jornada, chegaram a bosque onde São pedro disse a Irmão Alegre.
     - Agora repartiremos o ouro.
    -  Sim- concordou o outro- é o que vamos fazer.
  São Pedro começou  a dividir o ouro e o repartiu em três partes. Isso fez com que Irmão Alegre pensasse:
" Esse aí tem um parafuso a menos. Está  dividindo o ouro em três partes quando somos apenas dois. " Mas o santo falou:
   - Separei três partes exatamente iguais: uma para mim, uma para ti e outra para aquele que comeu , o coração do cordeiro.
    - Oh, fui eu que o comi! - exclamou Irmão Alegre, apossando-se , logo, do ouro. Podes acreditar.
   - Como assim? - perguntou São Pedro. - Se os cordeiros não tem coração!
    - Ora , bobagens, irmão! Os cordeiros tem um coração como todos os animais. Por que não haveriam de tê-lo?
    - Está bem- disse São Pedro. - Guarda o ouro, mas não quero mais a tua companhia; seguirei adiante, sozinho.
    - Como queiras, caro irmão-respondeu o soldado. - Adeus!
    O apóstolo tomou, então, outro caminho,enquanto Irmão Alegre ia pensando: "Melhor que se vá, pois , para falar a verdade, é um sujeito bem esquisito!"
    Tinha, agora, dinheiro em abundância. Mas não sabia lidar com ele e, dentro em pouco , gastou tudo e tornou a ficar sem nada. Assim, chegou a um país onde lhe disseram que a filha do rei acabara de morrer.
    Oba!- pensou ele.- "Isso veio a calhar! Vou ressuscitá-la e terão de me pagar que vai ser um gosto!"
    Apresentou-se ao rei e ofereceu-se para devolver a vida à princesa.
    Como chegara aos ouvidos do rei que um militar licenciado andava pelo mundo ressuscitando mortos, pensou que talvez se tratasse de Irmão Alegre; entretanto não confiou muito nele e consultou primeiro seus conselheiros , os quais opinaram que tentasse a experiência, pois a princesa , de qualquer maneira, estava morta. Irmão Alegre mandou então que lhe trouxessem uma caldeira com água e pediu que todos se retirassem. Depois cortou os membros do cadáver, deitou-os na água e acendeu fogo, tal como vira São pedro fazer. Depois de ter a água fervido  bastante  e a carne se desprendido dos ossos, retirou-os da caldeira e os pôs sobre a mesa. Mas, como não sabia em que ordem colocá-los, juntou-os de qualquer jeito. feito isso, adiantou-se e exclamou por três  vezes:
   - Em nome da Santíssima Trindade levanta-te!
    Mas os ossos não se moveram. Repetiu a invocação, mas foi inútil.
    - Levanta logo, diabo de mulher! - gritou , então, furioso. - Levanta-te ou verás o que te acontece!
  Mal disse essas palavras, apresentou-se, entrando pela janela, São Pedro, em sua anterior forma de soldado, e lhe disse:
    - Que estás fazendo , ímpia criatura? Como queres que a morta ressuscite se misturaste os ossos de qualquer jeito?
     Companheiro, fiz o melhor que pude! - respondeu Irmão Alegre.
     - Desta vez vou tirar-te do apuro, mas se te meteres, novamente, numa coisa dessas, irás pagar caro. E, também, não peças nem aceites a mínima recompensa do rei.
    Dito isso, São Pedro colocou os ossos em sua devida ordem e pronunciou por três vezes a fórmula:
   - Em nome da Santíssima Trindade , levanta-te!
    E a princesa levantou-se, linda e sadia como antes.
   Em seguida São Pedro afastou-se, saindo pela janela. Irmão Alegre, satisfeito por se ter saído bem da aventura, estava , contudo, aborrecido por não poder cobrar o serviço. " Gostaria de saber- pensou- que espécie de loucura tem esse camarada. Aquilo que dá com uma das mãos, ele tira com a outra. Não é nada razoável!"
    O rei ofereceu a Irmão Alegre o que ele desejasse. Este, embora  nada pudesse aceitar, conseguiu,à força de indiretas, que o rei mandasse lhe encher de ouro a mochila e , assim, partiu satisfeito. Ao sair, São Pedro o estava esperando diante da porta e lhe disse:
    - Ora só que espécie de homem tu és! Não te proibi de aceitares qualquer coisa? E agora levas a mochila cheia de ouro.
    - Que culpa me cabe, se me deram à força? - retrucou Irmão Alegre.
   - Pois presta atenção no que te vou dizer; não tentes mais uma vez uma coisa dessas, que te saíras muito mal.
   - Ora, irmãozinho, não te preocupes! Agora que tenho dinheiro, não preciso andar lavando ossos!
     - Sim- respondeu São Pedro. - Há de durar muito esse teu ouro! Mas para que não voltes a caminhos proibidos, darei à tua mochila o dom de se encher com aquilo que desejares. E, agora, adeus! Não tornarás a ver-me.
    - Adeus! - respondeu o outro, pensando: " Alegro-me de te perder de vista, sujeito gozado! Não há perigo de que eu te siga." E nem um só momento, lembrou-se do dom maravilhoso concedido à sua mochila.
     Irmão Alegre andava com seu ouro de um lado para outro, gastando-o em farras, como da vez anterior. Quando já não lhe sobravam mais do que quatro moedas, passou em frente a uma hospedaria e pensou: "Tenho de gastar o que me resta. " Entrou e pediu bastante vinho e um quarto de pão. Enquanto comia e bebia, um cheiro apetitoso de pato assado, chegou às suas narinas. Irmão Alegre espiou por todos os lados e viu que o taberneiro tinha um par de patos no forno do fogão. Aí recordou, de repente, o que lhe dissera seu companheiro a respeito da mochila e que tudo o que ele desejasse ver dentro dela era dito e feito. "Pois vamos fazer uma experiência com esses patos", pensou. Saiu porta fora e disse:
     - Que aqueles dois patos assados passem do forno para a minha mochila.
    Pronunciadas essas palavras, abriu a mochila, olhou para dentro e, de fato, ali estavam eles. "Então é verdade" - pensou. - "Agora estou feito!" Logo que chegou a um campo sossegado, tirou os patos da mochila e começou a comê-los. Nisto passaram dois operários e se pararam a olhar, loucos de fome, para um patos, ainda intato. Irmão Alegre pensou: "Um para mim chega" e , chamando os dois rapazes, lhes disse:
    - Tomem este pato e comam à minha saúde!
    Os rapazes lhe agradeceram e, recebendo o presente dirigiram-se à hospedaria. Ali pediram meia jarra de vinho e um pão e, pondo o pato sobre a mesa, começaram a comer. A hospedeira, vendo aquilo, disse ao marido:
   - Esse dois estão comendo um pato; vai ver se não é um dos que temos no forno.
   O dono da casa foi correndo ao fogão e viu o forno vazio.
    - Ah, seus gatunos! - exclamou. - Pensam que isso lhes vai sair assim tão barato? paguem agora mesmo, se não querem que lhes esfregue o lombo!   - Não somos gatunos, -responderam os dois rapazes. - este pato nos foi dado por um militar que estava comendo lá fora no campo.
    - A mim é que não me enganam! O soldado esteve aqui pela porta como uma pessoas direita; prestei bem atenção. Vocês é que são ladrões e vão me pagar!
    Mas, como os rapazes não tinham dinheiro, o dono da hospedaria pegou de uma tranca e os fez sair abaixo de pauladas.
    Quanto ao Irmão Alegre, seguiu seu caminho e chegou a um lugar onde havia um magnifico palácio, a pouca distância de uma hospedaria muito pobre. Entrou nela e pediu  cama para uma noite, mas o dono recusou-se aceitá-lo, dizendo:
    - Não há lugar; estou com a casa cheia de hóspedes fidalgos.
    - Surpreende-me que se hospedem em sua casa- retrucou Irmão Alegre.- Por que não se alojam na quele belo palácio?
    - Sim, qualquer um pode passar ali a noite, - respondeu o hospedeiro. - Mas ainda ninguém saiu vivo do castelo.
    - Se outros o tentaram , também eu o farei- disse Irmão Alegre.
    - Deixe disso- aconselhou o outro. - Vai arriscar a sua vida.
   - Nem tanto! - retrucou o soldado.- Dê-me a chave e algo de bom para comer e beber.
   O dono da hospedaria entregou-lhe a chave , comida e bebida à farta e, com tudo isso, Irmão Alegre dirigiu-se ao castelo. Ali banqueteou-se e quando , por fim , lhe deu sono, estendeu-se no chão, pois não havia camas. Pouco depois adormeceu. Alta noite, foi despertado por um grande barulho e viu, então, nove demônios, horrendos, que dançavam em círculos, a seu redor. irmão Alegre dirigiu-se a eles.
   - Dancem quanto quiserem, mas não se aproximem de mim.
    Mas os diabos foram se aproximando, até que quase pisotearam o rosto dele com suas patas de cabra.
   - Calma, seus endiabrados! - gritou Irmão Alegre.
    O grupo, porém, continuou a incomodá-lo cada vez mais, Por fim o soldado enfureceu-se e gritou:
   - Vão ver como os faço ficar quietos num momento!
    Empunhou uma cadeira e investiu contra todo o bando. Mas, nove diabos são muitos diabos para um só soldado, enquanto ele surrava os que tinha na sua frente, os outro vinham por trás e lhe puxavam os cabelos.
    - Corja de diabos! - exclamou por fim.- Isso já passa das medidas. Agora vocês vão ver. todos os nove na minha mochila!
    E zás-trás, já o bando estava ali dentro. Irmão Alegre fechou a mochila e a atirou a um canto. Instantâneamente tudo ficou em silêncio e ele, então, deitando-se de novo, pode dormir sossegado até de madrugada. No dia seguinte vieram o hospedeiro e o fidalgo a quem pertencia o palácio, para ver como se saíra ele. Vendo-o são e satisfeito, indagaram, surpresos:
     - Mas os diabos não te atacaram?
   - Como não? - respondeu-lhes Irmão Alegre. - Aí estão os nove dentro da minha mochila. Agora podeis instalar-vos tranquilamente no palácio. De hoje em diante, nenhum deles irá aparecer por aqui.
    O fidalgo agradeceu-lhe, recompensando regiamente e lhe propôs que ficasse a seu serviço, assegurando-lhe que nada lhe faltaria durante o resto da vida.
   - Não -disse o soldado- estou acostumado a viajar pelo mundo e pretendo seguir adiante.
   Em seguida despediu-se . Ao passar por uma ferraria, entrou e , pondo a mochila com os nove diabos sobre a bigorna, pediu ao ferreiro e a seus auxiliares que malhassem em cima dela. Os homens se armaram de martelos  grandes e puseram-se a martelar com todas a suas forças,enquanto os diabos começavam uma gritaria infernal. Quando, por fim, abriram a mochila, oito estavam mortos, mas um, que metera numa dobra do saco, ainda estava vivo. Este saltou para fora e correu a refugiar-se no  inferno.
   Irmão Alegre continuou vagando pelo mundo durante muito tempo e quem sabia de suas aventuras tinha muito a contar.  Mas, com o tempo, foi ficando velho e começou a pensar na morte. Procurou, então, um eremita conhecido como um santo homem ele lhe disse:
   - Estou cansado de errar pelo mundo e quero, agora, ir para o reino do céus.
     - Há um caminho largo e agradável que conduz ao inferno-disse o eremita- e outro, estreito e difícil, que vai dar no céu.
    " Eu não sou nenhum idiota" - pensou Irmão Alegre- " para ir por um caminho estreito e difícil."
   Enveredou, pois , pela estrada larga e agradável, que o levou ante uma porta grande, negra. Era  a porta do inferno. Bateu e o porteiro olhou pela vigia para ver quem chegava. Mas, quando viu que era Irmão Alegre, assustou-se, pois era, justamente, o nono daqueles diabos aprisionados na mochila do soldado, o único que escapara com vida. Cerrando mais que depressa o ferrôlho, o diabinho foi ao chefe dos demônios e lhe disse:
    - Aí fora está um homem com uma mochila, que quer entrar. Não o admita de maneira alguma, pois meteria o inferno inteiro na sua mochila. Uma vez estive lá dentro e por pouco não me matou a martelaços.
   Diante disso, os diabos não aceitaram Irmão Alegre no inferno. Disseram-lhe que desse volta, pois ali não entraria.
    "Já que não me querem aqui"- pensou- " vou ver se consigo alojar-me no céu. Num ou outro lugar tenho de ficar."
    Deu volta e continuou a andar até que chegou ao céu e bateu à porta. São Pedro estava na portaria e Irmão Alegre logo o reconheceu. Pensou: " Este é um velho amigo; aqui terás sorte." Mas São Pedro foi logo dizendo:
    - Parece até que pretendes entrar no céu.....
     - Sim, deixar-me entrar, companheiro. Tenho de me hospedar num lugar ou noutro. Se me houvessem admitido no inferno, eu não teria vindo aqui.
    - Não- respondeu-lhe São pedro, - aqui não entras!
    - Está bem, se não queres que eu entre, toma esta mochila; não quero saber de nada que venha de ti- disse Irmão Alegre.
   - Está bem , ficarei com ela.
   O soldado lhe alcançou a mochila através das grades e São Pedro a colocou  ao lado do seu assento. No mesmo instante Irmão Alegre exclamou:
  - Agora desejo estar dentro da mochila!
   E zás-trás, lá estava e, portanto , no céu. São pedro, assim, não teve outro remédio senão permitir que ficasse ali.
FIM

sábado, 3 de outubro de 2015

O CRAVO- CONTOS DE GRIMM

 Certa vez vivia uma rainha a quem Deus não concedera a graça de ter filhos. Todas as manhãs ela ia ao jardim rogar ao Senhor que lhe desse um filho. Um dia baixou do céu um anjo, que lhe disse:
   - Alegra-te, pois terás um filho com o dom de ver satisfeitos todos os seus desejos; basta que os formule.
    A rainha transmitiu ao esposo a boa notícia e, quando chegou a hora, nasceu o menino. O rei alegrou-se imensamente.
   Cada manhã a rainha ia ao parque com a criança e ali a lavava numa fonte muito límpida. Mas aconteceu que um dia ela adormeceu com o menino no colo.
   O velho cozinheiro, que andava ali por perto e conhecia o dom do menino, aproximou-se e raptou-o. Depois matou um galo e derramou o sangue  sobre o avental e o  vestido da rainha. A seguir, levou o pequeno a um lugar oculto e encarregou uma  ama de o amamentar. Feito isso, apresentou-se ao rei, para acusar a rainha de haver deixado que as feras lhe roubassem o filho. Quando o soberano viu o sangue que manchava o avental da rainha, acreditou no cozinheiro e, cheio de cólera , mandou construir uma torre alta, onde não penetrava  a luz  sol nem da lua. E encerrou nela sua esposa, para que morresse de fome e sede. Deus Nosso Senhor, porém, enviou-lhe dois anjos do céu, em forma de pombas brancas, que baixavam voando duas vezes por dia e lhe traziam alimento.
   Um dia o cozinheiro refletiu: " Se esse menino tem o poder de ver satisfeitos os seus desejos e estando eu aqui, poderá até provocar a minha desgraça." Saiu, pois do palácio, foi ao encontro do menino, que já havia crescido bastante, e assim lhe disse:
   - Deseja um palácio com jardim e tudo o mais.
    Mal o menino repetiu aquelas palavras,a aparaceu tudo o que desejara.
   Passado algum tempo, o cozinheiro tornou a falar-lhe:
    - Não é bom que vivas sozinho. Deseja uma bela menina para tua companheira. O principezinho expressou o desejo e imediatamente apresentou-se uma menina tão formosa como nenhum pintor teria sido capaz de pintar.
     Daí em diante os dois brincavam juntos e se queriam ternamente. Enquanto isso, o velho cozinheiro se dedicava à caça, como um aristocrata. Mas um dia veio-lhe a idéia de que o príncipe poderia expressar o desejo de querer estar ao lado do pai . E isso poderia trazer grandes transtornos ao seu raptor. Chamou , então , a menina e lhe disse:
    - Esta noite, quando o príncipe estiver dormindo, tu te aproximarás de sua cama e, depois de cravar-lhe uma faca no peito, me trarás seu coração e sua língua. Se não fizeres isso, pagarás com a tua vida.
    Em seguida afastou-se . Ao voltar no dia seguinte, a menina não havia cumprido sua ordem.
    - Por que devo -disse ela- derramar sangue de quem nunca fez mal a ninguém?
     - Se não fizeres o que te mando, hás de pagar com a vida- insistiu o cozinheiro.
     Mas, depois que ele saiu, a jovem mandou que lhe trouxessem uma corça bem novinha e ordenou que a mantassem. Tirou-lhe o coração e a língua e os pôs num prato. E, ao ver que o velho se aproximava, disse ao príncipezinho.
    - Vai para cama e cobre-te com o lençol.
    Pouco depois o malvado entrou, perguntando:
    - Onde estão o coração e a língua do teu amiguinho?
    A menina estendeu-lhe o prato, mas no mesmo instante o príncipe, descobrindo-se, exclamou:
    - Velho infeliz! Por que quiseste matar-me? Ouve agora a tua sentença. Irás transformar-se num cão negro com uma corrente dourada ao pescoço e te  alimentarás de brasas e o fogo te saíra pela boca.
    Mal acabara de pronunciar essas palavras, o velho se transformou num cão negro com uma corrente dourada ao pescoço. Os cozinheiros davam-lhe brasas para comer e o fogo lhe saía pela goela.
    O filho do rei ainda permaneceu algum tempo ali, sempre pensando em sua mãe; se estaria viva ou morta. Um dia disse à sua companheirinha:
   - Desejo ir à minha terra. Se queres acompanhar-me eu cuidarei de ti.
    - Oh! - exclamou ela. - O caminho é tão longo! E que faria eu num país onde não conheço ninguém?
     Vendo o príncipe que ela estava indecisa, embora não quisesse separa-se dele, transformou-a logo num belo cravo, que guardou consigo.
     Pôs-se, então, a caminho e o cão preto foi obrigado a acompanhá-lo. Andou até a torre onde sua mãe estava prisioneira. Mas a torre era muito elevada e ele expressou o desejo de ter uma escada que alcançasse o topo. Subiu por ela e perguntou:
    - Mãezinha querida, senhora rainha, vives ainda?
   E ela respondeu-lhe, pensando que eram os anjos:
    - Acabei de comer e não tenho fome.
    O rapaz tornou a falar:
   - Sou o teu filho querido, que disseram que as feras tinham arrebatado do teu colo. Ainda estou vivo e quero libertar-te.
     E descendo da torre , foi ao palácio do rei, seu pai, onde se fez anunciar como um caçador que solicitava emprego na corte. O rei aceitou seus serviços com a condição de que lhe arranjasse boa caça, coisa que no seu reino nunca existira. Prometeu-lhe o rapaz arranjar-lhe quantidade suficiente para prover a mesa real. Em seguida mandou reunir todos os caçadores e ordenou-lhes que se dispusessem a sair com ele à floresta. Partiram juntos e , quando lá chegaram, o príncipe os colocou numa grande clareira, ficando ele no centro. Formulou, então, um desejo e imediatamente entraram ali mais de duzentos magníficos animais de caça, e os homens não tiveram outro trabalho senão derrubá-los  a tiros. Encheram uns sessenta carros que foram levados ao rei e este viu , finalmente , sua mesa repleta de caça, de que estivera privado por muitos anos.
     Satisfeitíssimo, o rei, no dia seguinte, convidou a corte inteira para um esplêndido banquete. Quando todos estavam presentes, disse ele ao jovem caçador:
   - Já que mostraste tanta habilidade , te sentarás a meu lado.
    - Vossa Majestade está me concedendo uma honra que não mereço- respondeu-lhe o rapaz. - Não passo de um simples caçador.
   Mas o rei insistiu, dizendo:
   - Quero que te sentes a meu lado.
    O jovem obedeceu, mas, enquanto estava sentando à mesa, ficou a pensar em sua mãe querida e desejou que um dos cortesões mais importantes falasse nela e perguntasse como estava passando na torre a senhora rainha; se ainda vivia ou se já morrera. Apenas havia formulado, em sua mente , este desejo, um marechal dirigiu-se ao rei, perguntando-lhe:
    - Majestade , já que estamos todos aqui, contentes e satisfeitos, dizei-nos como passa a senhora rainha; vive ainda ou já morreu?
    - Retrucou o rei:
    - Ela permitiu que as fera devorassem meu filho querido; não desejo que se fale nela.
    Aí o caçador levantou-se, dizendo:
    - Meu senhor e pai, a rainha vive ainda e eu sou seu filho. Não foram as fera que me roubaram . O cozinheiro malvado foi quem me arrebatou do seu colo enquanto ela dormia, manchando depois seu avental com o sangue de um galo. E mostrando-lhe o cão que tinha ao pescoço a corrente dourada, continuou:
    - Este  é o criminoso!
     Mandou trazer carvões acesos que o animal comeu, forçado, na presença de todos , saindo-lhe as chamas pela boca. Depois , perguntou ao rei se queria vê-lo em sua verdadeira forma e, ante a resposta afirmativa, desejou que se transformasse, novamente, em cozinheiro. Este apareceu logo de avental branco e com a faca à cinta. Vendo-o, o rei ordenou, enfurecido, que o jogassem no mais profundo calabouço.
    O caçador, então, prosseguiu:
   - Meu pai, deseja ver também aquela que cuidou de mim com todo o carinho e a quem ele ordenou que me tirasse a vida sob ameaça de morte?
   - Sim, com todo o gosto- respondeu o rei.
    - Meu digno pai, eu a mostrarei em forma de uma bela flor- disse o rapaz. E, tirando do bolso o cravo, colocou-o sobre a mesa real. Era tão belo como o rei jamais vira outro semelhante. A seguir, o moço disse:
     - Agora vou apresentá-la em forma humana.
    E desejou que se transformasse em moça. No mesmo momento, ela apareceu diante dos presentes tão formosa como nenhum pintor a teria pintado mais linda.
    O rei enviou uma camareira e dois criados à torre, para trazerem a rainha, com ordem de acompanhá-la até a  mesa real. Mas , quando ela chegou, negou-se a comer, dizendo:
   - Deus misericordioso e compassivo , que me sustentou na torre , me chamará dentro em breve.
     Ainda viveu três dias, morrendo, após, como  uma santa. Quando foram sepultar, as duas pombas brancas que a haviam alimentado durante o cativeiro e que eram anjos do céu, acompanharam, voando o seu enterro, indo pousar em sua tumba. O velho rei mandou que esquartejassem o cozinheiro. Entretanto, o pesar se apoderara do seu coração e ele não tardou em morrer também. Seu filho casou-se com a linda moça que trouxera em forma de flor e, se continuam vivendo , só Deus é quem sabe.
FIM