domingo, 2 de outubro de 2016

A PASTORA E O LIMPA-CHAMINÉS - CONTOS DE ANDERSEN

   Nunca viste um desses armários antigos, enegrecidos pelo tempo, e cobertos de ornatos entalhados, representando folhagens e volutas? Pois era assim o que havia naquela sala- uma herança da bisavó. Era um armário todo coberto de rosas e tulipas entalhadas, entre as quais apareciam cabecinhas de cervos com chifres. No meio do armário tinham esculpido uma figura de homem de corpo inteiro. Não podia ser uma figura mais grotesca: parecia rir, mas o seu riso não passava de uma careta ridícula. Além disso tinha chifres, e uma grande barba, e pés de cabra. As crianças chamavam-lhe General-Tenente-Sargento-Perna-Torta-Pés-de-Cabra.Vejam só que nome! É difícil de pronunciar, e não há muita gente no mundo que chegue a obter um título desses. Mas ser assim esculpido era certamente alguma coisa - e ele lá estava! Sempre olhando para o tremó, onde se via pastorinha de porcelana. Tinha ela sapatinhos dourados e adornava-lhe o corpete uma rosa vermelha. Além disso, seu chapéu era de ouro, e ela trazia na mão um cajado de pastor. Era encantadora. Ao pé dela havia uma limpa-chaminés, com as mãos e a roupa pretas como carvão, posto que fosse também de porcelana. Era tão limpo e asseado como quem mais o fosse, pois de limpa-chaminés só tinha a figura. O artista que o executou poderia ter feito da mesma porcelana um belo príncipe, se lhe desse na fantasia.
    Ali estava o limpa-chaminés, munido de escada e escova; era um bonito rapazinho, de rosto rosado  e fresco como o de uma menina - o que constituía na verdade um defeito, pois que melhor representaria a profissão se tivesse o rosto encarvoado. Estava bem junto da pastora. É claro que alguém assim o colocara; mas, visto que estavam tão próximos, não é de admirar que  viessem eram jovens, feitos da mesma porcelana, e ambos igualmente frágeis.
   Sentado ao pé deles havia na mesinha outra figura, três vezes maior - um velho chim, que podia mover a cabeça. Era também de porcelana, e dizia-se avô da pastorinha, ainda que não o pudesse provar. Afirmava que tinha autoridade sobre a pastora, e, quando o General-Tenente-Perna-Torta-Pés-de-Cabra a pedira em casamento, ele consentira.
    - Será teu marido - disse o chim à pastora.- Creio firmemente que ele é de jacarandá, e casando com ele ficarás sendo a Sra. General-Tenente-Sargento-Perna-Torta-Pés-de-Cabra! E ele tem uma armário, inteiro cheio de baixela de prata, sem falar no que terá escondido nas gavetas e escaninhos.
   - Não quero morar no armário - retrucou a pastorinha. - É muito escuro! dizem que lá dentro ele guarda onze mulheres de porcelana!
   - Pois tu completarás a dúzia! Hoje à noite, assim que armário der um estalo, será celebrado o casório - tão certo como é certo que sou um chinês velho!
    E parou de mover a cabeça, e pegou no sono.
   Mas a pastorinha chorou, e, virando-se para o seu noivo, o limpa-chaminés de porcelana, disse:
   - Peço-te que me leves daqui, quero ir pelo vasto mundo...não posso ficar neste lugar!
  - Farei tudo o que quiseres- disse o limpa-chaminés. - Vamos já! Acho que poderei sustentar-te com o meu ofício.
    - Se pudéssemos descer deste tremó sem nos quebrarmos! Não terei sossego enquanto não me vir longe, no vasto mundo!
     Então ele animou-as, e mostrou-lhe como havia de descer, escorregando pelas folhagens esculpidas nos pés da mesa. Ajudou-a com a sua escada, e assim chegaram ao soalho. Mas quando olharam para o armário viram que nele havia grande agitação. todos os cervos entalhados na madeira esticavam o pescoço, sacudiam os chifres e se viravam para os lados; e o General-Tenente-Sargento-Perna-Torta-Pés-de-Cabra deu um salto, gritando para o chinês velho:
   - Vão fugir! Vão fugir!
   Assustados, os fugitivos saltaram para dentro da arca que servia de assento, junto, à janela. Lá dentro acharam três ou quatro baralhos incompletos e um teatrinho de bonecas, muito bem feito. Representavam naquele momento uma comédia, e todas as rainhas - de copas, ouro, paus e espadas - sentavam-se na primeira fila, abanando-se como as suas tulipas. Atrás delas estavam as sotas, ou damas, todas com duas cabeças, uma para baixo outra para cima, como é sempre nas cartas. A comédia tratava de dois noivos que não tiveram permissão para casar, e as pastora chorou, porque era a sua própria história.
   - Não! Não posso suportar isto- gemia ela.- Vou sair desta gaveta!
    Mas quando desceram outra vez para o chão e olharam para a mesa, viram o chinês já acordado! Sacudiu-se todo e desceu para o soalho, como uma massa informe.
   - Aí vem o chim! - gritou a pastorinha, muito aflita, dobrando os seus joelhos de porcelana.


    - Tenho uma ideia - disse o limpa-chaminés. - Vamos para dentro do grande defumador ali do canto. Poderemos espiar por entre as rosas e a alfazema, e atirar-lhe sal nos olhos, se ele se aproximar de nós.
    - Seria inútil - disse ela. - Sei que o velho chim pretendeu a mão do defumador - ele julgava que era uma jarra! - e sabes que namorados antigos sempre conservam um resto de bem-querer. Não! Só o que nos resta é sair pelo vasto mundo.
   - E tens na verdade bastante coragem para sair pelo vasto mundo? - indagou o limpa-chaminé. Já pensaste na sua grande extensão? E em que talvez não tornes aqui?
    - Pense em tudo isso.
      Contemplou-a o limpa-chaminés fixamente um momento, depois continuou:
      - Não há outro caminho senão a chaminé. Tens coragem bastante para ir de rastos comigo por dentro da estufa, e depois subir pelo cano acima? Sairemos pela chaminé, e uma vez fora poderei orientar-te. Subiremos tão alto que ninguém nos apanhará e lá bem em cima há um buraco que dá diretamente para o vasto mundo.
   Levou-a, pois, para a entrada da lareira.
    - Mas é tão preto! - observou ela.
   Contudo, seguiu-o pela lareira, e pela fornalha, e pelo cano - negro como boca de lobo.
    - Já estamos na chaminé - disse ele. - olha para cima e vê como brilha aquela estrela tão linda.
   Era, de fato, uma estrela do céu, que projetava luz sobre eles, como se quisesse guiá-los. E iam trepando, iam trepando sem descanso. Era uma ascensão temerária, aquela, por um caminho horrível; mas ele a amparava e ajudava, dava-lhe a mão, indicava-lhe onde havia de por os pezinho de porcelana. E assim chegaram ao topo da chaminé, onde sentaram para descansar, pois estavam, como é bem de ver, prostrados de cansaço.
     Acima da cabeça tinham eles um céu polvilhado de estrelas, e abaixo dos pés os telhados da cidade. Abarcaram com o olhar extensões vastíssimas de terra e países remotos do mundo. Nunca a pobre pastorinha imaginara que ele fosse tão grande, e, apoiando a cabecinha no ombro do limpa-chaminés, chorou: chorou: chorou tanto, que escorreu todo o dourado do seu cinto.
    - É demais! - dizia ela. - Não posso suportar isto! O mundo é muito grande! Quem me dera voltar para o meu tremó! Não poderei ser feliz senão quando me vir lá outra vez...Eu te acompanhei até o vasto mundo; e agora, se me amas de verdade, deves voltar para a casa comigo.
   Procurou  o limpa-chaminés chamá-la à razão, lembrando-lhe o chinês velho, e o General-Tenente-Sargento-Perna-Torta-Pés-de-Cabra; mas a pastorinha chorava cada  vez mais, e beijou-o com tanta ternura que ele não teve mais remédio senão voltar com ela, embora isso fosse uma verdadeira loucura.
   Então desandaram o caminho andado: desceram pela chaminé, e tornaram a passar pelo cano escuro, e pela fornalha. Não foi nada agradável o passeio, é certo, mas afinal surgiram na lareira. Ficaram um momento parados atrás da grade, para ouvir o que se passava na sala. O silêncio era completo. Espiaram para dentro e viram...oh! lá estava o chim caído no chão. Ao saltar da mesa, para persegui-los, caíra de mau jeito e ficara partido em três pedaços. O corpo estava ali, mas a cabeça tinha rolado para um canto da sala. O General-Tenente-Sargento-Perna-Torta-Pés-de-Cabra estava no seu lugar habitual, meditando profundamente.
   - Que coisa horrível! - disse a pastorinha, torcendo as mãos, - O avô ficou em cacos por culpa nossa...Não, não posso sobreviver a esta tristeza!

   - Mas ele pode ser consertado! - replicou o limpa-chaminés. - Conserta-se facilmente. Sossega! Quando eles lhe colarem o corpo à base, e a cabeça ao tronco, e tudo bem colado com um grude, ficará outra vez como novo, e ainda nos poderá dizer muitas coisas desagradáveis!
    - Deveras? - indagou ela?
   Subiram então para a  mesinha, onde sempre tinham permanecido, e o limpa-chaminés disse:
   - Bem vês que não fomos longe...podíamos bem nos ter poupado todo este trabalho!
    - Contanto que o avô fique remendado! Mas temo que o conserto custe  muito dinheiro...
   O chim foi restaurando. Os donos colaram-lhe as pernas, ajustaram a cabeça ao pescoço com um bom cimento, e ele ficou como novo: mas já não podia mover a cabeça.
    - Parece que ficaste muito orgulhos, desde que que te quebraste todo- disse-lhe o General- Tenente-Sargento-Perna-Torta-Pés-de-Cabra. - Não acho que seja isso motivo de orgulho...E afinal sempre quero saber: casarei com ela, ou não?
   Olharam ambos para o chinês velho, tremendo de medo, porque receavam que mexesse a cabeça.
   Mas...ele não podia mais fazer movimento algum; e não havia de confessar a um estrangeiro que tinha um remendo no pescoço.
   E foi assim que as figurinhas de porcelana viveram sempre juntas, bendizendo o remendo do avô, e amando-se muito, até o dia em que ficaram também em cacos.
FIM
   Tremó -Aparador com espelho alto, ou espelho colocado entre duas janelas. 

2 comentários:

  1. Parabéns pelo incentivo que seus pai lhe deu e tmbm por conservar esses belíssimos contos.

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  2. Eu agradeço de coração pelo comentário lindo.

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