terça-feira, 31 de outubro de 2017

A CHAVE DA CASA - CONTOS DE ANDERSEN

Cada chave tem sua história, e há muitas espécies de chaves: chaves de camareiro, chaves de relógio, a chave de São Pedro. Poderia falar aqui de muitas chaves, mas hoje limitar-me-ei a tratar da chave do conselheiro da câmara.
   Foi feita por um ferreiro de obra miúda, mas que lhes pareceu antes de obra grossa, pela força com que a agarrava, martelava  e limava. Muito volumosa para o bolso do colete, levava-a o conselheiro no da casaca. Via-se ela então no escuro; mas por agora lhe tinham destinado um lugar na parede, ao lado do retrato do conselheiro, ainda adolescente - no tempo em que se parecia com um bolinho de batata, recheado de guisado de vitela.
  Dizem que cada homem conserva, no caráter e no modo de proceder, alguma coisa de signo que precedeu ao seu nascimento- animal, virgem, escorpião, e quanta coisa mais o calendário menciona. A esposa do conselheiro não invocava, porém, nenhum deles; dizia que o marido nascera sob o signo do Carrinho de Mão: era sempre necessário empurrá-lo.
  Empurrara-o o pai para dentro de um escritório, e a mãe para o casamento; a mulher empurrou-o para a dignidade de conselheiro. Ela, porém, nunca falava nisso, pois era mulher sensata e circunspeta: sabia calar-se a tempo, e também sabia falar e empurrar quando convinha.
    Achava-se ele agora na melhor época da vida  - um " homem bem proporcionado", como costumava dizer- um sujeito letrado e bonachão, instruído, além disso, pela chave, como veremos mais adiante. Andava sempre de bom humor, queira bem a todo o mundo, gostava de conversar com todos. Quando andava pelas ruas da cidade, era difícil levá-lo para casa, a menos que estivesse em companhia da "velha", que se encarregava então de empurrá-lo. Não podia deixar de falar com os conhecidos que encontrava, e conhecia meio mundo. E era frequente ir assim até além da hora do almoço.
      Nesse caso a conselheira esperava-o à janela, espiando a rua.
   - Lá vem ele! - dizia à criada. - Poe a panela no fogo...Agora parou, para falar com alguém. Tira a panela, para não queimar! Mas espera, lá vem ele...Torna a pôr a panela no fogo!
   Mas nem por isso vinha ele...
   As vezes estava já ao pé da janela, e acenava para cima, quando surgia um conhecido, a quem não podia deixar de falar. Era preciso dizer-lhe nem que fossem duas palavras. Se sucedia porém passar outro conhecido enquanto conversava com aquele, ele segurava o primeiro pela lapela, enquanto apertava a mão do segundo - e ainda chamava um terceiro que ia passando.
   E aquilo constituía uma prova de paciência para a conselheira, que gritava, lá de cima:
   - Conselheiro! Oh! Conselheiro!...Ah! Meu Deus! Este homem nasceu mesmo sob o signo do Carrinho de Mão! Não se mexe sem o que empurrem...
   Gostava muito o homem de entrar na livraria, para dar uma olhadela pelos livros e revistas. Dava ao livreiro uma ninharia, em troca da permissão de abrir em casa os livros recém-chegados - isto é, abrir as dobras da frente, pois se abrisse em cima já não poderiam os livros ser vendidos como novo. Era uma gazeta viva, sem que por isso violasse as regras da decência. Sabia de todos os noivados, casamentos e enterros; dos mexericos literários, e também dos da cidade. Fazia as vezes certas alusões misteriosas, como se soubesse alguma coisa, de todos desconhecida: soubera-o da chave da casa.
   Logo que casaram foram morar, o conselheiro e a esposa, em casa própria, e desde aquele tempo usara sempre a mesma chave; mas, a essa época, não lhe conhecia o poder estranho, que só mais tarde se revelou.
   Era no tempo do Rei Frederico VI. Copenague ainda não era iluminada a gás, mas a lampiões de óleo de peixe. Não havia o parque de diversões de Tivoli, nem o teatro do Cassino. Não se viam também nesse tempo bondes a tração animal, nem viação férrea. Eram também poucas as diversões em comparação com as do nosso tempo. Aos domingos as pessoas saim para passear para além dos portões da cidade, iam até o Cemitério do Assistente, liam as inscrições das lousas, e sentavam-se na relva para comer a merenda que levavam em cestas, e molhar a garganta com um copo de aguardente. Iam outros a Friedrischsberg para ouvir a banda do regimento, que tocava à frente do castelo, e para ver a família real, que passeava de barco pelos estreitos canaletes. O velho rei remava, e tanto ele como a rainha cumprimentavam todo o mundo, fosse a posição social das pessoas. Era lá que as famílias abastadas iam tomar o chá da tarde. Obtinham facilmente a água quente em uma quinta que havia em frente ao jardim; mas cada uma tinha de levar bule e taças.
   Em uma bela tarde de domingo fizeram uma excursão àquele sítio o conselheiro e a esposa. Precedia-os a criada, com o aparelho de chá, um cesto de farnel e um frasco de aguardente empalhado.
   - Leva a chave - disse a conselheira ao marido. - Sabes que fecham a porta ao escurecer, e hoje de manhã partiu-se o cordão da campainha. Vamos voltar tarde, porque depois do passeio, iremos ao Teatro Corsati, na Ponte Oeste, ver a pantomima do arlequim. A entrada custa dois marcos.
    E partiram para Friedrichsberg; ouviram música, viram o barco real com a bandeira desfraldada, e o velho rei, e os cisnes brancos. Depois de tomarem um chá excelente, apressaram-se em voltar, mas mesmo assim não conseguiram chegar ao teatro antes de começar o espetáculo.
  Perderam assim a ciranda, e a dança de andas, e já ia começar a pantomima. Como de costume, o casal chegara tarde, e por culpa do conselheiro, que parara a cada passo, no caminho, para conversar com conhecidos. Também no teatro encontrou bons amigos, e, quando terminou o espetáculo, ele e a mulher não puderam deixar de acompanhá-los à casa de uma família que morava perto da Ponte: iam tomar um copo de ponche, coisa de uns dez minutos apenas. Mas os dez minutos espicharam tanto, que chegaram a formar uma hora inteira. É que todos contavam histórias, sem interrupção. Mas quem se mostrou mais divertido foi um barão sueco - ou era alemão? - O conselheiro não se lembrava bem disso; mas o que nunca esqueceu na vida foi a proeza da chave, que com ele aprendeu. Era coisa muito interessante, na verdade! O homem era capaz de fazer a chave responder a tudo quanto se lhe perguntava, até as perguntas mais secretas.
   A chave do conselheiro era mesmo apropriada para aquele fim, porque tinha o palhetão um tanto pesado, e que lhe permitia pender facilmente em linha vertical. E, livre e suspensa pela argola ao indicador da mão direita do barão, a chave movia-se e girava à menor pulsação dos dedos. E quando ela não girava, ele bem sabia como havia de imprimir-lhe, sem que ninguém o percebesse, o impulso necessário. Cada giro significava uma letra alfabeto. Enunciada a primeira, girava em sentido contrário; procurava-se  então a letra seguinte, e desse modo formavam-se palavras e até frases inteiras, em respostas às perguntas. Tudo aquilo era falso, mas constituía um bom passatempo -  e foi isso que ocorreu ao conselheiro no primeiro momento. Contudo, não tardou em mudar de opinião, entusiasmado com o caso.
   - De repente disse-lhe a conselheira:
  - Escutas, à meia-noite fecham o Portão do Oeste, e não poderemos entrar na cidade. Resta-nos apenas um quarto de hora. Seria bom que nos apressássemos...
   E apressaram-se; mas ainda assim, muita gente que também se dirigia para a cidade foi passando, e deixando para trás o casal. Afinal alcançaram a guarita exterior. Mas nesse instante preciso o relógio dava as doze badaladas, e o portão fechou-se com estrondo. Muita gente, ficou de fora, e entre outros, o conselheiro e a mulher, e a criada com o aparelho de chá e o cesto vazio. Algumas pessoas levaram grande susto, outras zangaram-se. Cada qual tomava o caso segundo o seu temperamento. Mas...que podiam eles fazer?
   Por sorte fora determinado, havia pouco tempo, que uma das portas, a do Norte, não se fecharia, de sorte que os pedestres poderiam entrar por ali, passando pela casa da guarda.
    Não era curto o caminho a andar, mas era bonito, naquela noite de céu limpo de nuvens, todo coberto de astros brilhantes; muitas estrelas cadentes riscavam o espaço. Nas valetas e nos pantanais coaxavam os sapos. E o grupo pô-se a cantar; era uma canção após outra. O conselheiro, esse não os acompanhou nos cantos, nem olhou para as estrelas: nem sequer pensava nas próprias pernas, e daí o que lhe resultou foi cair estirado à beira da valeta. Não que tivesse bebido demais, não: o que lhe subira à cabeça era a chave, não o ponche.
   Chegaram, afinal à guarita do Portão do Norte, e, atravessando a ponte, penetravam na cidade. E a conselheira exclamou!
   - Ora, até que enfim posso alegra-me de novo! Estamos em casa!
   - Mas onde está a chave? - indagou o conselheiro. - Não a encontro no bolso traseiro, nem no do lado...
   - Misericórdia! - bradou a esposa. - Não sabes que o cordão da campainha rebentou, e o porteiro não tem chave...Mas isto é de desesperar!
   A criada pôs-se a chorar; só o conselheiro conservava a serenidade.
    - Temos de quebrar a vidraça da loja do negociante de banha. Ele acordará como o ruído e agente poderá entrar.
  E o conselheiro quebrou a vidraça, quebrou até dois vidros. Enfiando o cabo do guarda-chuva pela janela, gritou:
  - Petersen!
   A filha do locatário do porão soltou um grito. O negociante  de banha abriu bruscamente a porta da loja, brandando:
  - Ó da guarda!
   E antes que o homem tivesse visto e reconhecido a família e a deixasse entrar, já o guarda tinha apitado, e da rua próxima respondia o apito de outro guarda.
   Apareceram os vizinhos às janelas.
  - Onde é o incêndio?
   - Onde está o ladrão?
   Eram as perguntas que se cruzavam, quando o conselheiro já estava no seu apartamento. E, ao despir a casaca, achara a chave - não no bolso, mas no forro, para onde deslizara por um furo ignorado.
   E desde então a chave adquiriu importância especial, não somente quando saíam à noite, mas também quando ficavam em casa, o conselheiro gostava de mostrar sua sabedoria, e interrogava a chave, que respondia a todas as perguntas.
     Eram o caso que ele refletia para descobrir a resposta mais adequada fazendo depois a chave enunciá-la. Por fim ele mesmo já acreditava nela- ao contrário do seu parente próximo, o jovem farmacêutico.
   Era este um moço inteligente, dotado de senso crítico; já nos tempos de colégio escrevera críticas a livros e representações teatrais, sem as assinar, porém - o que não é a mesma coisa que crítica assinada. Era ele o que se chama um beletrista, e no entanto não acreditava em espíritos, pelos menos não em espíritos de chaves.
   - Pois bem, meu prezado senhor conselheiro - dizia ele. - Eu acredito, sim: acredito na chave da casa e nos espíritos de chaves, com a mesma fé que dou à nova ciência que vem agora revelar as danças das mesas e os espíritos escondidos em móveis, antigos e novos. O senhor não ouviu falar nesse assunto? Pois eu já ouvi. A princípio tive minhas dúvidas - o senhor sabe que sou propenso a dúvidas. Mas convenci-me, quando li uma história horrorosa em um jornal estrangeiro, digno de crédito. Creia-me, senhor conselheiro, que conto a história tal qual a li. Duas crianças ladinas tinham visto os pais despertar o espírito escondido na grande mesa da sala de jantar. Uma vez sozinhos, procuraram avivar uma velha cômoda, esfregando-a como tinham visto os pais fazerem. Gerou-se vida no móvel; o espírito acordou; não quis, porém, tolerar o domínio das crianças: levantou-se fazendo estalar a cômoda. Abriu subitamente as gavetas e com as pernas - a cômoda tinha pernas- meteu nelas as duas crianças. E a cômoda saiu correndo porta fora, desceu pela escada abaixo, saiu pela rua, foi até o canal, e nele se precipitou, afogando as crianças. Os dois pequenos cadáveres foram enterrados em terra cristã, mas o cômoda foi levada ao tribunal, condenada por infanticídio e queimada viva na praça pública. Li isso tudo, senhor conselheiro. Veio escrito em um jornal estrangeiro; não enfeitei nem um til. É a chave que me faz acreditar nisso, posso jurá-lo solenemente!
   Achou o conselheiro a história muito estúpida, para uma brincadeira; e compreendeu que nunca mais poderia falar na chave com o farmacêutico a quem faltava por completo o senso da chave.
  Entretanto ia ele fazendo progressos naquela ciência, que lhe servia de passatempo, mas que não deixava ainda assim de ser sabedoria.
  Uma noite, estava já meio despido e a ponto de se recolher ao leito, quando bateram à porta. Era o locatário do porão quem aparecia assim tão tarde. Estava também meio vestido apenas, e explicou que lhe viera de repente uma ideia e que receara perdê-la durante a noite.
  - Quero falar-lhe de minha filha Lottelene. É bonita e já está uma mocinha. Tenho tanta vontade de vê-la arranjada!
   - Mas eu não sou viúvo- disse o conselheiro, sorrindo - nem tenho filho que possa casar com ela.
   - O senhor não me compreendeu, senhor conselheiro da Câmara. Ela sabe tocar piano e cantar...Creio que o senhor já a terá ouvido cá de cima, mas isso não lhe dará ideia do que ela pode fazer: imita os gestos e a voz de qualquer pessoa. Parece feita mesmo para o teatro, que é uma bela carreira para uma mocinha bonita, de boa família. E ela poderá ainda conquistar, pelo casamento, um título de condessa. Mas ainda não é nisso que pensamos, em eu nem Lotelene. Ela sabe cantar  e tocar piano. Levei-a, pois, há dias, à escola de canto. Ela cantou, mas como não possui o que chamo o guincho, aquele trinado de passarinho nas notas mais aguda, como se exige hoje em dia de uma cantora, aconselharam-na a desistir. Ora, eu pensei cá com os meus botões que se ela não dá para cantora, pode ainda vir a ser atriz para isso só se requer que a pessoa fale. Fui hoje falar nisso ao instrutor, como lhe chamam, e ele me perguntou: "Ela é instruída?" Respondi-lhe que não, que não era. Ao que ele me retrucou: " Mas uma astista precisa ter cultura." Pois bem, isso pode arranjar-se", disse eu. E retirei-me, pensando que ela poderia alugar livros em uma biblioteca e ler tudo quanto lá houver. Mas agora à noite, já quando me despia, veio-me esta ideia: " Para que, afinal, alugar livros, se a gente pode pedi-los emprestados? O conselheiro da câmara tem uma enorme batelada de livros..." E se o senhor permitir que a Lottelene os leia, ela poderá adquirir muita erudição, e de graça, o que mais é!
   - Ela ganhou duas vezes em uma rifa de objetos caseiros: de uma vez, foi um guarda-roupa, da outra, doze lençóis. Ora, acho eu que isso é ter sorte. Sim: sorte é o que não lhe falta.
   - Pois vou consultar a minha chave - declarou o conselheiro.
   E pôs a chave entre o indicador da sua mão direita e o indicador da mão direita do homem do porão. A chave girou e foi indicando letra por letra:
   " Vitória e felicidade!"
   Estava, pois determinado o futuro de Lottelene.
   Deu-lhe logo o conselheiro dois livros: Dyveke e Dotrato dos homens, ambos de Adolf Knigge. E a partir daquela noite estabeleceu-se estreito contato entre Lottelene e a família do conselheiro. Ela subia seguidamente ao apartamento da família, e o conselheiro pode verificar que era uma moça sensata, que acreditava nele e na chave. Quanto à conselheira, não deixou de observara inocência e ingênua franqueza com que ela mostrava a cada passo a sua ignorância. O casal tinha confiança nela, cada um lá a seu modo; e ela própria também tinha confiança em si.
    - Sente-se aqui um perfume tão agradável...- disse um dia Lottelene.
  Errava pelo ar um cheiro de maças, porque a conselheira guardara no corredor um barril delas, das de Gravenstein; além disso, todas as peças da casa recendiam a rosas e a alfazema.
   - Que coisa delicada! - disse a moça.
   E regozijava-se principalmente com a beleza das flores que a conselheira cultivava; mesmo no rigor do inverno, ela podia apresentar ramos de lilases e de cerejeira em flor. Os galhos nus, mergulhados em água, na estufa produziam logo folhas e flores.
  - Parecia que os galhos nus já não tinham vida, mas ressuscitavam, por assim dizer.
   - Nunca me viera essa ideia - disse Lottlene. - Como é maravilhosa a natureza!
   Mostrou-lhe o conselheiro o seu "Diário da Chave", onde anotava todas as coisas que ela dissera. Chegara a mesmo a dar opinião sobre a metade de uma torta de maças que se sumira do armário, justamente naquela noite em que a criada consultara a chave:
  O conselheiro consultara a chave:
  - Quem comeu a torta: foi o gato ou o namorado?
 E a resposta viera:
   - O namorado.
   Ora, essa ideia já acudira ao conselheiro, antes mesmo de fazer a pergunta. A criada teve de confessar que a maldita chave sabia mesmo de tudo.
  - Sim, é mesmo esquisito, pois não é? A chave ! E a chave profetizou vitória e felicidade a Lottelene: e havemos de ver que assim será, de fato. Isso afirmou-o eu.
   - Acho isso uma maravilha
  Menos otimista, porém, mostrava-se a esposa do conselheiro; não manifestou, porém, suas dúvidas diante do marido. Foi só mais tarde que ela revelou a Lottelene que o conselheiro, em mocinho, andara também enfeitiçado pelo teatro. Se naquela época alguém o tivesse empurrado, certamente teria sido ator. Mas a família empurrou-o noutra direção. Ainda assim, tinha saudades do palco, e foi isso o que o levou a escrever uma comédia.
   - É um grande segredo que lhe estou confiando, minha querida Lottelene! A comédia não era assim tão má; foi aceita no Teatro Real, mas foi vaiada, de modo que nunca mais se falou nela - e estou bem contente com isso! Sou a sua esposa, conheço-o bem! Agora você quer seguir o mesmo caminho; desejo-lhe muita felicidade, mas receio que não obtenha êxito: não acredito na chave.
   Lottelene, porém, confiava nela, e nessa fé comungava com o conselheiro. Aqueles dois corações entendiam-se, sem quebrar a linha da honestidade e da fidelidade.
  Possuía a moça certos conhecimentos que a conselheira muito apreciava. Sabia preparar o amido de batata; sabia fazer luvas , de velhas meias de seda; forrava, de seda nova, sapatos velhos de baile - e não porque lhe faltassem os meios para comprar tudo novo, como dizia o negociante de banha; tinha xelins na gaveta e cédulas no cofre.
   - Afinal- pensava a conselheira- ela seria uma boa esposa para o farmacêutico.
   Contudo não o dizia em voz alta, e nem consentiu que o dissesse a chave. Dentro em pouco o moço se estabeleceria, com uma farmácia própria, em uma das maiores e mais próximas cidades.
  Lottelene lia constantemente Dyveke e Do trato dos homens, de Knigge. Dois anos os livros ficaram em seu poder, e ao fim desse tempo ela sabia um deles de cor - Dyveke. Sabia agora todos os papéis. Desejava desempenhar, porém, somente o da própria Dyveke. Não na capital, onde campeia a inveja, e onde ninguém queria vê-la representar. Preferia começar a sua carreira artística como dizia o conselheiro, em uma das grandes cidades do interior.
  Por um estranho acaso foi ela ter à mesma cidade onde se havia estabelecido o jovem farmacêutico; era o mais jovem dos farmacêuticos da cidade.
   Chegou enfim a grande, a fatal noite. Lottelene devia apresentar-se ao público para obter a vitória e a felicidade, segundo a profecia da chave. O conselheiro não assistiu ao espetáculo: estava de cama, doente, e a conselheira servia-lhe de enfermeira, ministrando-lhe compressas quentes e chá de macela- as compressas por fora do ventre, a macela por dentro.
  Não estava pois presente o casal, mas o farmacêutico assistiu à representação de Dyveke,  escreveu depois ao parente conselheiro, narrando-lhe o resultado.
     
" O que havia de melhor era a gola da Dyveke; se eu tivesse no bolso a chave do conselheiro, ter-me-ia servido dela para apitar. Era o que mereciam - ela e a chave, que a enganou tão vergonhosamente...Vitória! Felicidade!...Ora bolas!"
     
Lendo aquela carta, logo o conselheiro declarou:
   - Pura malquerença! É ódio que ele tem à chave. que se estende também à inocente moça!
   E assim que pode abandonar o leito, e de novo se sentiu são, tratou de enviar um bilhetinho envenenado ao boticário; e a resposta deste veio logo, uma resposta cheia de ironia, em que tratava a carta recebida como mero fruto do bom humor do conselheiro.
   Agradecia a carta, declarando que lhe seria igualmente grato por qualquer contribuição futura que lhe enviasse, sobre o valor e importância da chave. Confiava ao conselheiro que estava escrevendo nas horas vagas um grande romance, em que todas as personagens eram apenas chaves. Era natural que a chave da casa concentrasse em si a parte mais importante: seria a heroína, e tomaria para modelo ao criar aquele tipo, a chave do conselheiro, dotada de visão profética e poder de vaticínio. Ao redor dela giravam as outras - a velha chave do camareiro, que conhecia o esplendor das festas da Corte, a comprava por quatro xelins na casa de ferragens; a chave da galeria do coro da igreja, que faz parte do clero e viu espectros numa noite em que ficou esquecida no buraco da fechadura; a chave da despensa, a do porão da lenha, a da adega - todas elas apareciam , fazendo mesura e girando em volta de chave da casa, toda iluminada pelos raios do sol, brilhando como prata. O vento, o espírito do mundo, passaria por ela, soprando, e fazendo-a assobiar, a ela, a chave das chaves, a chave da casa do conselheiro da Câmara, que seria então a chave da porta do Céu, a chave papal, que era infalível.
  - Mas que maldade! - exclamou o conselheiro. - Que maldade incomensurável!
   E não tornaram a ver-se, ele o o boticário- isto é, tornaram a ver-se, sim mais somente no enterro da conselheira.
   Porque foi ela a primeira a deixar este mundo. Seu falecimento enlutou a casa, que ficou deserta. Até os galhos da cerejeira, recém-cortados, que já tinham rebentado em novos gomos, e flores, murcharam, tristes. Esquecidos, ninguém mais lhes dispensava cuidado algum.
   No dia do enterro seguiam, atrás do féretro, o conselheiro e o farmacêutico, juntos, como os parentes mais próximos da morta. E naquele instante, ninguém sentia desejo nem tinha tempo para discussões.
   Foi Lottelene quem prendeu o crepe ao chapéu do conselheiro. Há muito tempo regressará da sua carreira artística, sem ter conquistado vitória nem felicidade. Mas talvez elas ainda lhe aparecessem, pois que tinha todo o futuro à frente. A chave dissera-o, e também o conselheiro o afirmara.
  Ela subiu ao apartamento. Falaram da defunta, chorando. Lottelene mostrou-se sensível; falaram depois de arte; Lottelene mostrou-se forte.
   - A  vida de teatro é encantadora- disse ela. - Mas dá lugar a muito mexerico, a muita inveja. Prefiro trilhar o meu caminho. Primeiro eu, depois a arte.
   Achava que Knigge, no capítulo em que fala dos atores, dissera a verdade - a verdade, que a chave não dissera. Mas isso ela não disse ao conselheiro, porque o estimava.
  Durante todo o ano de luto fechado, o conselheiro encontrava, na chave, consolo e prazer. Consultava-a, e ela respondia. E, findo aquele ano, quando ele e Lotteleno conversavam, em uma tarde langorosa, perguntou à chave:
  - Deverei tornar a casar?
E com quem?
   E como não havia ali mais ninguém para empurrá-lo, empurrou-o a chave dizendo:
   - Lottlene.
   Estava pois pronunciada a palavra; Lottelene tornou-se conselheira.
   "Vitória e Felicidade" - palavras ditas e preditas pela chave da casa.
FIM

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A SOMBRA- CONTOS DE ANDERSEN

    Nas terras quentes, o sol é abrasador, como todos sabem; e lá as pessoas ficam com a pele escura, da cor do mogno. E foi para essas terras que resolveu ir um homem instruído, natural de país frio; julgava que havia de viver, lá da mesma maneira que na sua terra natal, mas em breve verificou que se enganara!
   Viu-se obrigado a permanecer dentro de casa, como todas as pessoas sensatas; as portas e janelas tinham de conservar-se fechadas o dia inteiro: era como se a casa inteira dormisse, ou estivesse vazia.
   A rua estreita, cheia de moradias altas, estendia-se de modo que o sol batia em todas as casas, da manhã à noite. E o calor tornava-se verdadeiramente insuportável!
   O sábio das regiões fria era jovem, e parecia muito inteligente; começou a imaginar que estava em uma fornalha ardente, e isto foi agindo sobre o seu espírito, de sorte que chegou a emagrecer. Até a sua sombra começou a minguar, e ficou muito menor do que era quando ele estava no seu país; além disso, o sol fazia-a desaparecer: ela só era vista de manhã e à tardinha, quando ele estava no horizonte. Era então um prazer vê-la. Assim que traziam luz para o quarto, a sombra estirava-se na parede, e até pelo teto, de tão grande que ficava; porque precisava de muito espaço para todo o seu comprimento. O homem sábio ia para o balcão, para se distender; e assim que as estrelas começavam a espiar lá do céu azul, ele se sentia revigorar.
    Começavam então a aparecer outras pessoas em todas as sacadas da rua - porque nos países quentes todas as janelas tem sacadas, e a gente precisa respirar ar fresco. E tudo se movimentava na rua, tanto embaixo como em cima. Alfaiates, sapateiros e toda a espécie de pessoas saíam para as calçadas; vinham para fora, cadeiras e mesas, e velas acesas- sim, mais de mil velas ardiam. E um conversava e outro cantava, e outros ainda caminhavam, e sinos tocavam; e passavam burrinhos com suas campainhas - porque os asnos também traziam campainhas- dlin, dlin, dlin! Moleques da rua gritavam e apupavam, estourando balões; vinham também gatos-pingados, porque havia funerais com salmos e hinos; e passavam ainda as carruagem que iam e vinham, e as pessoas que chegavam...Sim, em verdade era grande o movimento na rua. Somente numa casa, a que ficava em frente daquela onde morava o estrangeiro, o silêncio era completo; e contudo alguém a habitavam porque havia flores no balcão; estava tão viçosas que certamente eram regadas- sim, ali morava forçosamente alguém. A porta ficava aberta até tarde da noite, mas lá dentro era escuro, pelo menos na sala da frente. Do interior da casa vinham sons de música. O estrangeiro sábio achou aquilo maravilhoso; mas...talvez isso fosse só na sua imaginação, porque ele achava tudo maravilhosos ali naquelas terras quentes, exceto o sol. O senhorio do estrangeiro disse que não sabia quem alugara a casa em frente; lá não se via ninguém; e quanto à música, achava-a excessivamente fatigante. E explicava:
  - Parece que uma pessoa se põe ali a estudar trecho, dizendo consigo: " Hei de aprendê-lo!" e contudo, nunca chega a tocar direito, por mais que se exercite.
  Uma noite o estrangeiro acordou- ele dormia com a porta da sacada aberta- e, como vento tinha levantado a cortina, pareceu-lhe que da casa da frente vinha uma claridade estranha; todas as flores brilhavam como chamas vivas, com as cores mais lindas, e no meio das flores estava uma jovem, esbelta e graciosa - e parecia que ela mesma também brilhava: àquela luz sentiu-se até ofuscado. Abriu bem os olhos...sim! estava bem acordado! Saltou da cama, foi devagarinho para para a janela e espiou por detrás da cortina; mas a moça desaparecera, as flores já não brilhavam; estavam ali, frescas e viçosas como sempre; a porta ficara entreaberta, e lá dentro, muito longe, soava a música, tão suave, tão delicada, que podia na verdade levar a gente a sonhar. Parecia uma música encantada. Mas...quem morava ali? Onde ficava, de fato, a entrada da casa? Porque tanto na rua principal como na travessa do lado, todo o rés-do-chão era cheio de lojas, que não poderiam servir de entrada da casa. Uma noite o estrangeiro tomava a fresca, na sacada. A luz ardia no quarto, mesmo por detrás dele; era pois muito natural que sua sombra se projetasse na parede da casa fronteira. Sim, lá estava ela bem em frente, sentada entre as flores da outra sacada; e quando o estrangeiro se movia, a sombra também se movia, como o faz qualquer sombra.
  - Creio que minha sombra é o único ente vivo que está naquela casa- disse o sábio. - E como fica bem entre as flores! A porta está entreaberta: a sombra podia agora entrar lá dentro, olhar em roda, e voltar para me dizer o que há por lá...Vamos! Presta-me esse serviço, minha sombra!
   E continuou, por brincadeira:
   - Fazem-me o obséquio de entrar lá! Então, não vais?
   Fez um sinal com a cabeça para a sombra, e a sombra também lhe fez sinal.
   - Mas então? Entra, entra! Não fiques aí parada!
  O estrangeiro levantou-se, e a sua sombra também se levantou lá na sacada do vizinho da frente; o estrangeiro voltou-se e a sombra também se voltou. Sim! Se alguém tivesse prestado atenção, teria visto muito distintamente a sombra entrar pela porta entreaberta da casa do vizinho, justamente no instante em que o estrangeiro entrou no seu quarto, deixando cair atrás de si a comprida cortina da janela.   

   No dia seguinte, de manhã, o estrangeiro saiu para tomar café e ler os jornais.
  - Mas que é isto? - disse ele, quando ia andando ao sol. - Que é da minha sombra? Ah! Então ela foi mesmo ontem à noite àquela casa e não voltou. Mas é um coisa muito esquisita!
   Aquilo aborreceu-o, não tanto por ficar sem sombra; mas é que sabia a história do homem sem sombra. Era muito conhecida no seu país, lá nas terras frias; e se agora voltasse e contasse lá o seu caso, diriam que estava plagiando, coisa que não tinha necessidade de fazer. Deliberou, pois, nada dizer; o que foi uma resolução muito sensata.
   À noite tornou a ir para sacada. Deixara a luz atrás do lugar onde ia ficar, porque sabia que a sombra sempre quer ter o dono por anteparo; mas - que coisa estranha! - não conseguiu que ela viesse. Fez-se pequenino; fez-se grande; mas nada de aparecer a sombra. E o sábio dizia:
  - Olá! Olá!
   Tudo foi inútil.
   Era uma coisa muito aborrecida. Mas nos países quentes tudo cresce muito depressa; e mal se passaram oito dias ele notou, com muita alegria, que lhe brotava das pernas uma nova sombra, quando estava ao sol. Em três semanas já tinha uma sombra respeitável, que foi continuando a crescer durante a viagem que ele fez para o seu país, nas terras do Norte; de sorte que afinal obteve uma sombra tão comprida e tão larga, que era mais que suficiente.
    Ficou então no seu país, e escreveu livros a respeito de tudo o que era verdadeiro e bom e lindo no mundo; e passaram-se dias, e anos - sim! muitos anos tinham rolado por sobre a sua cabeça!
    Uma noite estava ele sentado no seu quarto quando bateram de mansinho à porta.
   - Entre! - disse ele.
   Mas como ninguém entrasse, foi abrir a porta e viu um homem tão extraordinariamente magro que teve uma sensação esquisita ao dar com ele. Estava o estranho muito bem vestido - devia ser um cavalheiro.
  - A quem tenho a honra de falar? - perguntou o sábio.
  - Sim, não me enganara - disse o estranho. - Logo imaginei que o senhor não me reconheceria. Deitei corpo, e agora até tenho carne; e tenho roupas, como vê. O senhor certamente nunca pensou que havia de me ver nestas condições...Não conhece mais a sua velha sombra? Sem dúvida nunca esperou ver-me de volta...Tenho tido muita sorte, desde que nos separamos. Melhorou muito, em todos os sentidos. E se eu quiser comprar a minha libertação do serviço, tenho meios suficientes para isso.
   E ao dizer essas palavras fazia tilintar uma pena de bugigangas de ouro que lhe pendiam da cadeia do relógio; e meteu a mão na grossa corrente de ouro que usava ao pescoço. E como lhe resplandeciam os dedos, cheios de anéis de brilhantes! E tudo aquilo era pura gema! Nada de quinquilharia!
   - Não! Não volto a mim, de surpresa! - disse o sábio. - Mas que significa isto?
   - Certamente que é alguma coisa fora do comum disse a sombra. - Mas o senhor mesmo não é um homem comum; e eu, como o senhor bem sabe, lhe segui os passos desde criança. Assim que o senhor achou que eu já podia andar sozinho no mundo, tomei o meu caminho; acho-me hoje em ótimas circunstâncias; mas nasceu-me um desejo de vê-lo ainda uma vez antes que o senhor morra- porque o senhor há de morrer algum dia, não é? Além disso desejava tornar a ver esta terra, pois bem sabe que a gente sempre guarda o mesmo amor à terra natal. Vejo que o senhor obteve outra sombra. Devo-lhe eu alguma coisa, ou à outra sombra? Se assim for, será obséquio dizer-me quanto é.
   - Não, mas isto...E és realmente tu? - disse o sábio. - É coisa extraordinária! Nunca pensei que a sombra antiga de um homem pudesse tornar a vir ter com ele!
  - Diga-me quanto tenho de lhe pagar - disse a sombra - porque não gosto de ficar devendo a ninguém.
  - Mas que ideia é essa tua? De que dívida falas? És tão livre como qualquer outra pessoa. Estimo muitíssimo saber que tiveste tanta sorte. Senta-te, amigo velho, e conta-me o que te aconteceu, e que viste na casa do nosso vizinho da frente, lá - nas terras quentes.
   - Sim, contar-lhe-ei tudo - disse a sombra sentando-se. - Mas o senhor vai me prometer que, onde quer me encontre, não dirá a ninguém nesta cidade que eu fui a sua sombra. Tenho ideias de casamento, visto que possuo mais que o suficiente para sustentar uma família.
  - Fica descansado - disse o sábio. - A ninguém direi quem és atualmente. E aqui está a minha mão: promete-o, e é o bastante, entre dois homens de palavra.
   - Entre um homem e uma sombra de palavra - retificou a sombra.
   Era na verdade assombroso ver quanto se assemelhava a um homem. Vestia-se inteiramente de preto, e a roupa era da mais fina qualidade; os sapatos de verniz, e o chapéu, daqueles que podem ser dobrados para dentro, de modo que só o que aparece é a aba e o fundo da copa - além das coisas de que já se falou: berloques, cadeia de ouro, anéis de diamantes. Sim, a sombra estava muito bem vestida, e era na verdade a roupa que lhe dava a completa aparência de um homem.
  - Vou agora contar todas as minhas aventuras - disse a sombra.
  E sentou-se, firmando os sapatos lustrosos com todo o peso de que dispunha sobre o braço da nova sombra do sábio, que jazia aos seus pés, como um cãozinho. Aquilo parecia arrogância; mas talvez fosse apenas para obrigar a sombra nova a aferrar-se ao seu dono. Mas a outra conservava-se sossegada e tranquila no chão, disposta a ouvir tudo atentamente; porque também ela desejava saber de que maneira uma sombra pode libertar-se, e fazer a sua independência.
  - Sabe o senhor quem morava na casa fronteira? - disse a sombra.     - Era a mais encantadora de todas as criaturas; a Poesia! Estive lá três semanas, mas isso valeu tanto como se eu tivesse vivido ali três mil anos, e lido tudo o que foi composto e escrito; poesia e prosa. Posso bem dizê-lo, porque é a pura verdade: eu vi tudo, e sei tudo!
    - A poesia! - disse o sábio. - Mas sim, sim! Ela vive muitas vezes como anacoreta. A Poesia! Sim, eu a vi- por um instante curtíssimo, mas meus olhos estavam pesados de sono...Ela apareceu na sacada, e era tão radiosa como a aurora boreal; e as flores que a cercavam pareciam chamas vivas. Mas dize tudo...entraste na sacada, passaste pela porta de vidro, e então...
   - Então, achei-me na ante-sala. O senhor ainda estava sentado, olhando para a frente, lá do outro lado. Não havia luz; era uma espécie de penumbra, apenas, mas estavam abertas as portas de uma fila de salas, todas iluminadas. Tão densa era aquela massa de luz, que certamente me teria matado, se eu tivesse ido imediatamente ter à presença da jovem; mas fui prudente e refleti antes de entrar.
   - E que viste então? - perguntou o sábio.
   - Vi tudo, e dir-lhe-ei tudo. Mas...não é por arrogância, mas como um homem livre, que sou, e com os conhecimentos que possuo- em falar na minha posição no mundo, nem na minha opulência - desejava que o senhor me falasse com menos familiaridade, e de vez em quando se lembrasse de me dizer senhor.
    - Peço-lhe desculpas, senhor- disse - o sábio. É um hábito antigo em mim, não muito fácil de extirpar. O senhor tem todo o direito e não me esquecerei de sua recomendação. Mas agora o senhor deve  dizer-me o que viu?
    - Tudo - disse a sombra.- Porque eu vi tudo, e sei tudo!
   - E como era lá dentro das salas? Havia ali a frescura dos bosques? Ou a paz solene de um templo? As salas eram como firmamento estrelado, que vemos do alto de uma montanha?
     - Ali, havia de tudo! - retrucou a sombra. - Eu não penetrei, é verdade, senão até a ante-sala; não passei da ante-sala, onde reinava uma meia luz, mas ali mesmo me sentia perfeitamente bem. Vi tudo, e tudo sei. Em suma, estive na antecâmara da Corte da Poesia.
   - Mas que foi que o senhor viu? Viu todos os deuses dos tempos antigos atravessando os vastos salões? Viu os heróis dos tempos passados que combateram ali? Viu crianças amáveis brincando e narrando seus sonhos?
   - Digo-lhe que lá estive, e portanto vi tudo o que havia. Se o senhor houvesse entrado também, não teria permanecido um ser humano, mas eu ali me tornei um homem! Além disso, aprendi a conhecer a minha essência interior, minhas qualidades inatas, minha afinidade natural com a Poesia. É verdade que no tempo em que estive como senhor, eu não me preocupava com isso, mas o senhor há de se lembrar de uma coisa: como eu ficava grande ao nascer e ao pôr do sol. Entretanto, ao meio-dia mal podia ser distinguida. Eu não compreendia então a minha essência interior: foi na antecâmara que ela se me revelou; e tornei-me um ser humano! Saí dali em plena maturidade, mas o senhor já não estava nas terras quentes. Sendo homem, sentia-me envergonhado de sair como estava; não tinha sapatos, nem roupas; e faltava-me também aquele exterior verniz humano, pelo qual se reconhece um homem; e tomei uma resolução - e vou dizer-lhe tudo, porque o senhor não vai publicar isso em um livro - escondi-me por detrás de um doceira, sem que a mulherzinha sonhasse a quem estava abrigando. Só me aventurei a sair à noite; vaguei pelas ruas à luz do luar; espichei-me pelas paredes acima, o que me lisonjeava singularmente a vaidade. Andei abaixo e acima, espiei para dentro dos quartos, pelas mais altas janelas, e até pelo teto; espiei onde ninguém podia espiar, vi o que ninguém mais viu, o que ninguém devia ver! E a verdade é que este mundo é um mundo muito mau, e eu não seria um ser humano se não estivesse estabelecido o fato de que o homem tem certa importância na escala da criação. Vi as coisas mais inacreditáveis da parte de esposas, maridos, pais, e até das "doces, incomparáveis crianças". Vi o que nenhum mortal tem o poder de ver, mas que todos gostariam de conhecer, isto é: a maldade de seus vizinhos. Se eu tivesse escrito um jornal, seria lido com avidez; mas escrevi diretamente às pessoas, e foi um pânico geral nas cidades por onde passei. Todos tinham medo de mim, e todos me amavam tanto! Os professores consideravam-me um professor; os alfaiates davam-me roupas novas( tenho o guarda-roupa bem guarnecido); o administrador da casa da moeda cunhava novas moedas para mim; e as mulheres diziam que eu era belo: e assim foi que me tornei o que sou hoje. E agora devo despedir-me do senhor. Aqui está o meu cartão; moro do lado do Sol nesta rua, e estou sempre em casa nos dia de chuva.
   E a sombra foi embora.
  - Que coisa extraordinária! - disse o sábio.
  Meses e anos se passaram; um dia a sombra tornou a aparecer.
   - Como passa? - perguntou ela.
   - Ah! - disse o sábio. - Escrevo sobre a verdade, e sobre o bem, e o belo; mas ninguém quer ouvir falar em tais coisas! Estou desesperado, porque isso me aflige tanto!
   - Aí está o que eu nunca faço! Eu engordo e fico forte, e é o que todos devem fazer. O senhor não compreende o mundo; dessa maneira vai acabar por adoecer. O senhor deve viajar!" Olhe, vou fazer um passeio no verão; poderia acompanhar-me. pensava mesmo em convidar um companheiro. Quer ir comigo como minha sombra? Seria para mim um grande prazer...E pagarei todas as despesas.
  - Oh! Não...isto é demais!
   - São opiniões - disse a sombra. - Seria bom para o senhor, viajar. E todas as despesas da viagem ficariam por minha conta.
   - Não...é absurdo - retrucou o sábio.
  - Mas o mundo é assim mesmo, e assim será sempre!
   Depois de dizer isto a sombra retirou-se.
  O sábio não ia lá muito bem. Vivia cheio de cuidados e tristezas; e tudo o que dizia sobre a verdade, o bem e o belo era caviar para a multidão - como se diz, em linguagem familiar - era o mesmo que lançar pérolas a porcos. E o sábio acabou por adoecer.
  - O senhor está que parece uma sombra - diziam-lhe os amigos.
   - O senhor deve ir a uma praia de banhos - disse a sombra, que foi visitá-lo outra vez. - É o seu único recurso. Vou levá-lo, em recordação de nosso velho conhecimento. Custearei as despesas da viagem, e o senhor pode depois publicar uma descrição dela; e fazê-la humorística, se quiser. Quero ir a uma praia de banhos, porque a minha barba não cresce direito - o que não deixa de ser uma espécie de doença - e um homem deve ter barba. Agora trate de ser sensato e aceite o oferecimento; e viajaremos como amigos.
   E fizeram a viagem. A sombra era agora o dono, e o dono era a sombra. Andaram de carro, a pé e a cavalo juntos; iam lado a lado, ou um adiante e outro atrás, segundo a posição do sol. A sombra sempre tinha o cuidado de ficar no lugar do dono, mas o sábio não se importava com isso: era homem superior, e particularmente modesto e atencioso. E um dia disse a sombra:
  - Como agora somos companheiros de viagem, e nos criamos juntos, desde a infância, por que não havemos de nos tratar por tu?  Não seria mais agradável?
   - O senhor tem razão- disse a sombra, que era agora o dono. As suas palavras são justas e bem intencionadas; e vou responder no mesmo espírito; o senhor, que é sábio deve saber quão caprichosa é a natureza humana. Há pessoas que não podem tocar em papel pardo: ficam doente. Outras sentem frio na medula quando alguém passa a unha na vidraça. Pois eu tenho exatamente a mesma sensação quando o senhor me diz tu. Sinto-me estendido no chão, reduzindo à minha primitiva condição em relação ao senhor. O senhor bem compreende que isto é um mero caso de sentimento e não de altivez. Não posso, pois, tolerar que me diga tu; mas chamá-lo-ei de boa vontade pelo seu nome de batismo, e assim, ao menos, a metade do seu desejo ficará satisfeita.
   A partir de então, a sombra passou a chamar pelo nome de batismo o seu primitivo dono.
  - Isto não é direito - pensava este. - Que eu tenha de lhe dizer senhor e ele me diga tu!
   Mas via-se obrigado a tolerar aquela situação.
   Chegaram à praia balneária, que hospedava muitos estrangeiros, e entre outros uma princesa, uma criatura muito linda, que sofria de vista-muito-aguda, moléstia verdadeiramente assustadora.
   Percebeu ela imediatamente que o estrangeiro recém chegado era uma pessoa completamente diferente de todas as outras.
  - Dizem que ele veio cá para conseguir que lhe cresça a barba; mas eu vejo qual é o verdadeiro motivo de sua vinda; ele não pode deitar sombra.
   Aquilo lhe aguçou a curiosidade, e, para satisfazê-la, ela entabulou conversação com o estrangeiro durante o passeio do dia. E como era filha de rei, não estava obrigada a observar cerimônia alguma, e foi logo dizendo:
   - A sua doença resulta de que o senhor não pode deitar sombra, não é?
   - Vossa Alteza Real deve estar melhorando consideravelmente - disse a sombra. - Sei que sua moléstia consiste em ver tudo muito claro; mas essa percepção está diminuindo: tenho uma sombra, por sinal, fora do comum! A senhora não vê aquela pessoa que está sempre a meu lado? Outros tem uma sombra comum, mas eu não posso suportar coisas vulgares. Há pessoas que dão aos criados, para libré, roupas mais finas do que as que elas próprias usam, da mesma maneira eu quis ter o prazer de ter um sombra vestida como um homem- sim, a senhora mesma vê que eu até lhe forneci uma sombra. Não deixa de ser dispendioso, é certo; mas eu gosto de ter coisas assim extravagantes.
    - Será possível - pensou a princesa - que eu esteja curada? Então estes banhos são os melhores do mundo! Hoje em dia a água tem propriedade admiráveis! Mas vou permanecer ainda aqui, porque isto está ficando muito divertido! Este príncipe estrangeiro - porque deve ser um príncipe - agrada-me em extremo. Oxalá que não lhe cresça a barba, senão irá embora dentro em pouco!
   À noite a filha de rei dançou com a sombra no grande salão de baile. Ela era leve, mas ele era mais leve ainda; a princesa nunca vira um par semelhante. Disse-lhe ela onde morava; ele estivera lá, em ocasião em que aprincesa se encontrava ausente; tinha espiado pelas janelas do palácio tanto embaixo como em cima. Ouvira isto, e aquilo, e mais aquilo; podia, portanto, dar tais respostas à filha do rei, e fazer tais alusões, que a deixaram, na verdade, assombrada. Devia ser aquele o homem mais instruído do mundo, e sentia um respeito desmedido pela sua sabedoria. Assim foi que, quando ela dançou de novo com ele, sentiu-se apaixonada - fato que não passou desapercebido à sombra, porquanto os olhos da princesa quase lhe traspassavam o corpo. Dançou com ele ainda pela terceira vez, e estava quase a ponto de lhe dizer o que sentia; mas foi prudente: lembrou-se do seu país, e do seu reino, e de tanta gente sobre a qual havia de reinar um dia.; E disse consigo:
   - É homem muito inteligente -isso é muito bom; dança admiravelmente - e isto é igualmente muito bom; mas a questão é: terá sólidos conhecimentos? É uma consideração muito importante, e preciso submetê-lo a uma prova.
   E ela começou imediatamente afazer-lhe uma série de perguntas muito difíceis, a quem nem ela própria poderia responder; e a sombra mudou de expressão.
   - O senhor não pode resolver estas questões?
  - Eu teria podido resolvê-las, sim, mesmo quando era criança; acho até que minha sombra, que lá está junto da porta, é capaz de responder às suas perguntas.
   - Sua sombra? Mas isso seria na verdade maravilhoso!
   - Não afirmo que ele possa responder - disse a sombra - suponho-o apenas. Acompanha-me há tantos anos, e ouve-me conversar tantas vezes...sim, creio que ele pode responder. Mas permita Vossa Alteza Real que eu lhe observe que ele tem tanto orgulho de ser tomado por um ser humano que, para que conserve o bom humor- o que é indispensável para o acerto das respostas - deve ser tratado como um homem de verdade.
    - Mas eu compreendo bem esse capricho! - disse a princesa.
  E, dirigindo-se ao sábio, que lá estava perto da porta, falou com ele sobre o sol e a lua, as verdes matas, os habitantes da terra, tanto de perto como de longe; e tudo respondeu ele com siso e sabedoria.
   - Que homem não há de se aquele que tem uma sombra tão sábia! pensou a filha de rei.- Será uma benção para o meu povo e para o meu reino se eu o escolher para marido...E assim será.
   Não foi difícil o acordo, mas a princesa não queria que se publicasse o contrato de casamento senão enquanto retornasse ao seu reino.
   - Ninguém saberá uma palavra disto - disse a sombra - não o direi nem mesmo à minha sombra!
    E a sombra lá tinha suas razões particulares para falar desse modo.
    Estavam agora na terra onde morava a princesa. E a sombra disse ao sábio:
   - Escuta, meu bom amigo: sou agora tão feliz e tão poderoso que mais não é possível. Desejo, por isso mesmo fazer por ti alguma coisa fora do comum. Viverás para sempre comigo no palácio, irás comigo na carruagem real, e terás um salário anual de cem mil risdales. Mas para isso, terás de ser chamado sombra por todo o mundo; e nunca deixarás perceber que foste homem algum dia; e uma vez por ano, quando me sentar na sacada, à luz do sol, ficarás estendido a meus pés, como uma sombra de verdade! Porque agora ficas sabendo que vou casar com a filha do rei; e o casamento será hoje mesmo!
   - Não! Isso seria levar o absurdo muito longe! - Protestou o sábio, - Não posso, não quero submeter-me a isso! Mas...seria nada menos que iludir a nação inteira, e a filha do rei! A filha do rei, assim enganada! Revelarei toda a verdade; direi que eu sou um homem, e tu não passas de uma sombra - e que de homem tens apenas a roupa!
   - Ninguém te acreditará- disse a sombra. - Sê razoável, senão chamo a polícia.
  - Vou imediatamente falar com aprincesa!
   - Mas eu irei primeiro-replicou a sombra - e tu, meu finório, irás para a prisão!
   E dito e feito - porque os guardas obedeceram àquele que ia casar com a filha de rei.
   - O senhor está tão trêmulo! - disse a princesa, quando a sombra entrou na sala. - Que aconteceu? Não vá adoecer logo hoje, que vamos celebrar nosso casamento!
   - Acabo de passar pela coisa mais espantosa que se possa imaginar! - explicou a sombra. - Imagine só... sim, é verdade que o cérebro de uma pobre sombra não pode ser muito resistente...mas imagine! Minha sombra enlouqueceu. Julga agora que se tornou um homem, e que eu...mas imagine só! - que eu sou a sua sombra!
   - É espantoso! Mas está preso, não é ?
   - Claro que sim! E receio muito que jamais se recobre...
   - Coitada da sombra! - disse a princesa. - É na verdade muito infeliz! Seria até obra de caridade libertá-lo do fio de vida que tem; e, como as criaturas de nossos dias são tão prontas em tomar partido pelo povo miúdo contra os graúdos, parece-me de boa política livrarmo-nos dele em segredo!
   - Sinto muita pena, porque era um servo fiel - murmurou a sombra , fingindo suspirar.
   - Que caráter nobre é o seu! - disse a princesa, curvando-se diante dele. 
    À noite a cidade inteira resplandecia de luzes; os canhões disparava -Buuum! Buuum! Os soldados apresentavam armas. Era um grande casamento aquele! A filha de rei e a sombra apareceram na sacada, para se mostrar ao povo, e para ouvir ainda maiores aplausos.
   O sábio, esse não ouviu nada - porque já tinha sido executado.
FIM

domingo, 8 de outubro de 2017

UMA ROSA DO TÚMULO DE HOMERO - CONTOS DE ANDERSEN

  Todas as poesias do Oriente celebram o amor do rouxinol à rosa. Na noite calma, iluminada pelo brilho das estrelas, o cantor alado entoa a sua serenata à flor cheia de perfume.
  Não longe de Esmirna, à sombra dos altos plátanos, onde o mercador vai abrigar os camelos carregados, que erguem a cabeça orgulhosa e pisam a passos lentos um solo sagrado - vi uma sebe de roseiras em flor. Por entre a ramagem das altas árvores, esvoaçavam as pombas bravas, de asas cintilantes como madrepérola, fulgindo aos raios do sol.
  Na sebe de roseiras havia uma flor mais bela que todas as outras. Para ela cantava o rouxinol suas endechas amorosas. Mas a rosa nada lhe respondia.
   Brilhava sobre uma das suas pétalas uma gota de orvalho, como uma lágrima compassiva. E a rosa inclinava-se, ao sabor do galho, sobre algumas grandes pedras. E diziam:
   - Aqui repousa o maior vate da terra. Vou perfumar o seu túmulo. Quero espalhar sobre esta tumba as minhas pétalas, quando o vento me desfolhar. O poeta de Tróia transformou-se em terra, e dessa terra brotei eu. Eu, uma rosa do túmulo de Homero, sou sagrada demais para florescer para um pobre passarinho!
   E o rouxinol morreu de tanto cantar.
   Chegou o cameleiro, com os animais carregados e os escravos negros. Seu filhinho encontrou o rouxinol morto e sepultou o pequeno cantor no túmulo do grande poeta. A rosa tremia ao sopro da brisa.
   Veio a noite. Ela cerrou as pétalas e sonhou.
   Era um belo e claro dia de sol. Chegou um grupo de forasteiros, que vinha em romaria ao túmulo de Homero. Entre os peregrinos achava-se um poeta do Norte, da terra das brumas e da aurora boreal. Ele colheu a rosa e imprensou-a entre as folhas de um livro. E desse modo levou-a para outro continente, para a sua pátria longínqua. A rosa murchou de mágoa, dentro do livro que o poeta abriu na sua terra, dizendo:
   -É uma rosa do túmulo de Homero.
   Foi esse o sonho da tosa. Ao despertar, tremia ao sopro da brisa.
  Sobre o túmulo do poeta, caiu uma gota de sereno de suas pétalas. Nasceu o sol, e a rosa resplandecia, mais bela do que nunca. O dia que despontava era abrasador, e ela estava ainda na sua Ásia ardente.
   Nesse momento ouviu o ruído de passos. Eram forasteiros francônios que chegavam, tal como os vira em sonho a rosa. Entre eles se achava o poeta do Norte, que colheu a tosa e lhe deu um beijo na linda boca.
   E levou-a para a terra das brumas e da aurora boreal.
  Agora o cadáver da flor jaz dentro da sua Ilíada, como uma múmia. E como num sonho, ela ouve o poeta dizer, quando abre o livro:
   - É uma rosa do túmulo de Homero!
FIM

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O ALEIJADINHO - CONTOS DE ANDERSEN

    O castelo era velho; mas os donos eram jovens e ricos - ricos de bens e de coração.
   Faziam todo o bem que podiam, e desejariam ver todas as criaturas tão alegres como eles próprios o eram.
   Na noite de natal erguia-se na antiga sala d'armas, uma árvore lindamente enfeitada. Ardia um bom fogo na lareira, e os velhos retratos estavam emoldurados de ramos de pinheiro. Nessa sala reuniram-se os donos da casa e os convidados; e nela os cânticos. Depois vieram as danças.
   Na sala da criadagem já irradiara, horas antes, a alegria do Natal. Também lá havia um grande pinheiro, todo iluminado de velinhas vermelhas e brancas; lá estava uma bandeirinha dinamarquesa; e havia cisnes de papel recortado, e redes de pesca, cheias de gulodices. Tinham sido convidadas as crianças pobres da aldeia - com as mãe, naturalmente. É certo que não perdiam tempo em olhar para a árvore: fitavam antes a mesa, cheia de presentes - coisas tecidas de lã e de linha, e fazenda para calças e casacos. Essas coisas excitavam a admiração das mães e dos filhos mais taludos, e somente os pequeninos estendiam as mãozinhas para as velas, as bandeirinhas e os ouropéis.
  Toda aquela gente, que chegara ainda de tarde, foi servida logo: pato assado e couve-rosa. E creme de Natal. E depois de admirarem o pinheiro, receberam os presentes; e, antes de se retirarem, ainda foram obsequiados com um cálice de ponche e pastéis de maçãs, fartamente recheados.
  Voltaram então às suas casinhas baixas, onde ainda conversaram sobre as coisas boas que lhes tinham sido oferecidas, e deram mais uma olhadela nos presentes.
   Entre o pessoal que servia no castelo, havia um casal de jardineiros - Ole e Kirstem; eles ganhavam o pão limpando e conservando o jardim dos amos. Sempre recebiam, no Natal, um bom quinhão dos presentes: tinham cinco filhos, e todos eles eram vestidos pelos amos.
   - São benfazejos, os nossos patrões - diziam eles. - É verdade que não lhes faltam recursos para isso. 
    - Olha, cá estão boas roupas para os nossos quatro rapazes rasgarem - disse Ole. - Mas...por que seria que não deram também uma para o aleijadinho? Costumavam dar-lhe também alguma coisa, ainda que ele não possa assistir à festa...
   Era o aleijadinho o filho mais velho - Hans. Fora em pequeno uma criança ágil e cheia de vivacidade. Mas de um dia para o outro começara a ficar " fraco das pernas", como dizia o povo. Não podia mais andar nem mesmo manter-se de pé. E já lá iam cinco anos que vivia deitado.
   - Sim! Recebi uma coisa para ele; mas isso não presta para nada: é apenas um livro, que ele poderá ler.
  - Não será com isso que há de engordar! - disse o pai.
   Mas o livro alegrou o menino, que era inteligente. Gostava de ler, mas também se ocupava de trabalhos úteis, na medida que lhe permitiam suas condições de saúde. Muito habilidoso, tecia meias  e até colchas de tricô, que a castelã gabava e costumava comparar.
  Enviara-lhe ela agora um livro de contos de fadas. Continha muita coisa para ler - e muita coisa que dispunha à meditação,
   - Não tem para ele a menor utilidade - disse  o pai- mas isso não importa: a leitura ajuda a passar o tempo, pois não pode estar sempre e sempre a tricotar.
   Veio a primavera. As árvore e os arbustos iam-se cobrindo de brotos verdes, e também nasciam as ervas daninhas, como se costuma chamar às urtigas - apesar do que, como tanto acerto, dizia a cantiga:

    Nem mesmo o rei mais soberbo,
    O que mais alto se alçar,
    O que mais nobre se diga,
    Poderá fazer brotar
   Uma só folha de urtiga.

    Havia muito trabalho no jardim do castelo, não só para o jardineiro e seus ajudantes, senão também para Ole e Kirsten.
   - É um trabalho medonho - diziam eles. - Mal acaba a gente de passar o ancinho pelas aléias, deixando tudo bem arranjado, já vem alguém que torna a pisar e desfazer tudo. No castelo há sempre um vaivém de gente alegre, que vem de visita. Quanto dinheiro hão há de custar tudo isso! Mas ora...os amos são ricos.
   - As coisas são distribuídas de uma maneira bem estranha - disse Ole. - "Todos nós somos filhos de Deus", diz o pregador. Então por que tamanhas diferenças?
    - Isso vem do pecado original- respondeu Kirstem.
   - À noite tonaram a falar no assunto, desta vez na presença de Hans, o aleijadinho, que tinha nas mãos o seu livro de contos de fadas.
   O trabalho endurecera as mãos dos pais, mas ao mesmo tempo, os sofrimentos, as preocupações e as fadigas também lhes endurecera as opiniões e o julgamento. Não podiam compreender, não podiam achar a explicação das coisas, e suas palavras refletiam cada vez mais a ira e o descontentamento.
  - Alguns homens encontram neste mundo a felicidade e o bem-estar. Enquanto a outros, só o que coube foi a miséria. Por que haveis de sofrer pela desobediência e curiosidade dos nossos antepassados? Se fosse conosco, certamente não nos portaríamos como eles!
  Foi quando se elevou a voz de Hans, o aleijadinho:
  - Pelo contrário - nós teríamos procedido da mesma maneira! Está tudo isso escrito no meu livro.
   - Mas que é que está nesse livro, menino?
   Então Hans leu para os pais ouvirem o velho conto de fada, " O lenhador e a mulher". Também eles malsinavam a curiosidade de Adão e Eva, que era afinal a causa da sua infelicidade atual. Nisto vinha passando o rei, e disse-lhes:
   - Venham comigo ao meu palácio. Lá hão de ter a mesma vida que eu tenho. Mandarei servir-lhes diariamente sete pratos, e mais um, que será só para olharem; uma terrina tampada, na qual não deve, tocar: no momento em que o fizerem, acabar-se-á a sua vida de senhores.
    - Que haverá naquela terrina? - perguntou a mulher.
   - Ora, que nos importa? - replicou o marido.
   - Eu também não sou curiosa...Apenas gostaria de saber por que não devemos erguer aquela tampa! Com certeza ela esconde alguma coisa muito linda...
  - A não ser que seja algum mecanismo...um tiro de pistola, que desperte a casa inteira com o estrondo!
   - Isso é tolice! retrucou ela.
   Contudo não tocou na terrina.
   Na noite seguinte, porém, sonhou que a tampa se ia levantando por si, e que se espalhava um rico aroma de ponche, do melhor ponche que há, daquele que só se oferece nos casamentos e enterros. Ao pé da terrina apareceu uma moeda de prata, com esta inscrição: " Quem tomar deste ponche será o homem mais rico do mundo, e todos os outros ficarão mendigos!" Nesse instante ela acordou, e contou o sonho ao marido, que lhe disse:
    - Estás te preocupando demais com isso!
   - Mas a gente pode proceder com cautela...
   - Cuidado! - o homem ainda teve tempo de gritar.
    Mas era tarde: a mulher soerguera a tampa da terrina, e dela saltaram dois camundongos, que num pulo se sumiram num buraco.
   - Boa noite! - disse o rei. - Agora podem voltar para casa; vão dormir de novo no seu catre, e não tornem a censurar Adão e Eva: são, como eles, curiosos e ingratos...
   - Mas como é que essa história foi parar nesse livro? - disse Ole. - Parece destinada a nós ambos! E ela dá muito que pensar...
   No dia seguinte tornaram ao trabalho. Tostaram ao sol, mas depois a chuva os encharcou, até os ossos. De vez em quando resmungavam alguma coisa: eram ideias aborrecidas que lhes iam brotando no cérebro.
   Ainda não era bem noite, quando acabaram a sua refeição: mingau de leite.
   - Lê outra vez a história do lenhador! - pediu Ole ao filho.
   Há tantas outras histórias bonitas no livro...- disse Hans. - Muitas que o senhor ainda não conhece.
   - Ora, essas não me interessam. Quero ouvir aquela que já conheço.
   E ele e a mulher tornaram a ouvir a história.
   - Pois ainda não sei explicar direito essa história- disse o jardineiro. - Dá-se com o homens a mesma coisa que o leite que coalha: uma parte se transforma em belo requeijão e a outra fica um soro aguado. Algumas pessoas tem sorte em tudo; passam bem todos os dias não sabem o que é ter preocupações nem privações.
  Hans, o aleijadinho, ouviu essas palavras. O menino tinha as pernas fracas, mas a cabeça era forte. Leu-lhes outra história do livro de contos de fadas, a do "Homem que nunca teve preocupações nem privações"! Mas... onde é que havia semelhante homem? Era preciso achá-lo!
    É que o rei estava doente; e um único remédio poderia curá-lo: vestir a camisa tirado do corpo de um um homem que verdadeiramente não tivesse jamais conhecido preocupações nem privações.
   Saíram mensageiros para todos os países do mundo, para todos os castelos, para todas as granjas. Todos os homens ricos, todos os homens alegres, receberam o pedido; mas... quando se examinava o caso mais de perto, verificava-se sempre que aquele homem já soubera o que eram privações e preocupações.
   Mas o porqueiro, sentado à beira da estrada, o porqueiro que cantava e ria alegremente, ao ouvir contar o caso, declarou:
   - Eu não sei o que é isso; eu sou o homem mais feliz do mundo.
   - Dá-me então a tua camisa! - gritou o emissario. - Em troca terás a metade do reino!
   Ora, aquele homem não tinha camisa.
   E, contudo, considerava-se o homem mais feliz do mundo...
   - Mas que sujeito de sorte! - exclamou o jardineiro.
   E riram, ele e a mulher, riram como há muito tempo não se lembravam de ter rido.
  Aconteceu que naquele momento ia passando o mestre-escola. Chegou-se e foi dizendo:
   - Como vocês estão contentes! Pois olhem que semelhante alegria já era coisa rara nesta casa! Teriam acertado na loteria?
  - Não, senhor! Não é isso! É que Hans leu-nos naquele livro de contos de fadas a história do "Homem que nunca teve preocupações nem privações", e o caso é que o sujeito nem camisa tinha! A gente fica espantada ao ouvir ler a história; e contudo ela lá está impressa no livro...É ...cada qual tem a sua sorte; mas a esse respeito nem todos estão de acordo. O que é verdade, contudo, é que há nisso algum consolo.
   - E de onde lhes veio esse livro?
   - O nosso Hans recebeu-o  de presente no dia de Natal. Foi presente dos amos. Sabem que  o rapaz gosta tanto de ler, e como é aleijadinho...É verdade que na ocasião teríamos preferido que ele ganhasse duas camisas de linho...Mas o livro é estranho, e tem resposta para os pensamentos da gente, isso tem!
   O mestre-escola tomou o livro para examiná-lo.
   - Quero ouvir mais uma vez essa história - disse Ole. - Ainda não a entendi bem.
   Depois quis ouvir também a do lenhador.
  E Ole contentou-se dali por diante com essas duas histórias. Elas lhe bastavam. Eram como dois raios de sol na pobre cabana, no meio dos pensamentos tristes, ou quando estava carrancudos e mal-humorados.
   Hans já lera o livro de princípio afim; tornava a lê-lo e a relê-lo. Aqueles contos levavam-no pelo mundo fora, conduziam a lugares que jamais poderia alcançar, com a suas pernas fracas.
   Sentado junto do leito do menino, o mestre-escola conversava com ele, e a palestra causava a ambos igual prazer.
  Desde esse dia fazia visitas assíduas ao menino doente, e justamente nas horas em que ficava sozinho, pois os pais saíram para o trabalho, diariamente. E cada visita do mestre era uma festa para o menino. Ouvia avidamente o que o velho lhe contava a respeito da extensão da terra, e dos países estranhos; do sol, quase meio milhão de vezes maior que a terra, e tão distante dela, que uma bala de canhão levaria 25 anos para lá chegar, enquanto os raios de sua luz alcançam a terra em oito minutos! 
  Hoje em dia qualquer menino de escola sabe essas coisas; mas para Hans eram todas novas, e mais maravilhosas do que tudo quanto lera no livro de contos de fadas.
   Costumava  o mestre-escola almoçar de vez em quando no castelo. Foi em uma ocasião dessas que contou a importância que tinha o livro de histórias na cabana miserável e narrou também que dois contos, sobretudo, tinham levado àquela cabana, luz e bençãos. A criança doente, mas ainda assim muito inteligente, conseguira, com a leitura daqueles dois contos, despertar os pais para a meditação e para a alegria.
   Quando saiu do castelo, a senhora deu-lhe duas moedas de prata para o pequeno Hans.
   E, ao recebê-las, disse logo o menino:
   - Vou dá-las ao papai e à mamãe.
   O que levou os pais a considerar:
  - Afinal, Hans, o aleijadinho, também nos traz proveito e alegrias.
   Dias depois, à hora em que os pais trabalhavam na quinta, parou à porta da cabana a carruagem dos amos. Era a dama benfajeza, que muito se alegrara de saber que o seu presente de Natal causara tamanho prazer e tanto consolo ao menino doente e as seus pais.
   Trazia-lhe pão doce, frutas e uma garrafa de suco de uva. Mas levava também- e isso sim, era a cosia mais linda! - levava uma gaiola dourada com um passarinho preto, que cantava admiravelmente. Ela depôs a gaiola sobre uma velha cômoda. Da cama o menino podia ver e ouvir a avezinha. Até os que passavam na rua podiam ouvir o canto do passarinho.
  Quando Ole e Kirstem voltaram, já a dona bondosa se havia retirado. Viram o filho muito alegre com o presente, mas acharam que aquilo só lhes daria, a eles, mais trabalho.
   - A gente rica tem a vista curta...Pois ainda teremos de cuidar do passarinho, uma vez que o menino não pode ocupar-se dele. Ora, afinal, o gato acabará por comê-lo!
   Passou-se uma semana, depois de mais outa. O gato passava de vez em quando pelo quarto, mas sem se importar com o passarinho.
   Mas um dia aconteceu que..
  Isto se passou numa tarde, enquanto os pais e irmãos de Hans estavam trabalhando fora. Sozinho na casa isolada, Hans lia mais uma vez a história da mulher do pescador, cujos desejos se haviam realizado: ela desejou ser rei, e foi rei; quis depois ser imperador, e foi imperador. Foi então que lhe veio o desejo de ser Deus, e voltou imediatamente ao atoleiro de onde saíra.
    Não tinha aquele conto a menor relação com o gato ou o passarinho; mas era justamente a história que ele lia quando sobreveio o grande acontecimento. E isso havia de lhe ficar na memória com nitidez absoluta.
   A gaiola lá estava sobre a cômoda. O gato, sentado no chão, fitava o passarinho com os seus olhos amarelo-esverdeados. E parecia que lhe transparecia no olhar esta declaração, dirigida à avezinha:
    - Que lindo és! E quem me dera te devorar!
   Hans leu tudo isso nas feições do gato; entendeu quais eram as suas intenções.
   - Chispa! chispa! Vai-te, gato!
   Mas já o animal se encolhia para dar o salto, Hans não podia alcançá-lo com a mão, e nada tinha para lhe atirar em cima, a não ser o seu tesouro precioso, o livro de contos de fadas. Arremessou-o; mas a capa já estava se despegando, e voou para um lado, enquanto o livro, assim despido dela, ia para outro. O gato foi recuando lentamente para o meio do quarto, e olhava para o menino, com ar de quem queria dizer;
   - Isto não é da tua conta. Hans...Eu posso caminhar e saltar, coisas que tu não consegues fazer!
   Cheio de inquietação, o menino conservava os olhos fixos no gato.Também o passarinho começou a se assustar. O menino não podia chamar ninguém em seu auxilio - e o gato parecia saber bem disso. Já estava a ponto de dar o pulo. Hans ergueu a coberta da cama, sem que ele desse sinal de se intimidar. Hans atirou a colcha, aliás sem resultado nenhum, porque o gato imediatamente saltou para a cadeira, e daí para o peitoril da janela, aproximando-se da gaiola.
   Então pareceu ao menino que sentia uma onda de calor lhe subir pelo corpo, mas ele não deu atenção ao fato: toda a sua atenção se concentrava nos dois animaizinhos. Quando o gato pulou do peitoril para cima da cômoda e deu um empuxão na gaiola, virando-a de lado, sentiu o menino que o coração se lhe contorcia dentro do peito.
   Dentro da gaiola, o passarinho esvoaçava, cheio de medo.
   O menino soltou um grito. Sentiu que alguma coisa lhe dava impulso aos membros; mas sem se deter a pensar, saltou da cama, correu para a cômoda, empurrou o gato e pegou a gaiola. Correu depois com ela para a estrada.
   E ia gritando, tão contente, que tinha o rosto inundado de lágrimas:
  - Eu posso caminhar! Posso caminhar!
   Recuperara a saúde. Coisas assim podem acontecer; e aconteceu com Hans.
  Morava perto, o mestre-escola. Hans foi ter à sua casa, correndo, descalço, trajando apenas a camisola, e sempre com a gaiola na mão.
   - Eu posso andar! - gritou ele. - Meu Deus, oh! Senhor!
   E, de tamanha alegria, rebentou em soluços.
  Grande foi também a alegria na casa, e Ole e Kiraten diziam:
  - Não podíamos ter dia mais feliz do que este!
   Da quinta mandaram chamar Hans. Havia anos e anos que não trilhava aqueles caminhos, e agora lhe parecia que as aveleiras e todas as árvores lhe faziam acenos de boas-vindas, como se dissessem:
  - Bom dia, Hans bom dia! Bem-vindo sejas por aqui!
   E o sol aqueceu-lhe o rosto - e também o coração.
   Teve de se sentar ao pé dos donos da quinta, tão jovens e tão cheios de bondade para com ele, como se fosse um parente.
  Mas quem mais alegre se mostrava, era a moça que lhe dera o livro de contos de fadas e o passarinho. É verdade que a pobre avezinha morrera, do grande susto. Mas fora ela o instrumento para a cura de Hans, assim como o livro servira para esclarecer não só a ele como aos pais. Tencionava o menino guardá-lo e continuar a lê-lo, mesmo quando estivesse bem velhinho.
   E agora, que já poderia ser útil em casa, queria aprender um ofício; desejaria muito ser encadernador, pois assim poderia ler todos os  livros novos, segundo lhe parecia.
  À tarde, a dona da quinta mandou chamar os pais. Tinha conversado com o marido a respeito do menino, que lhe parecia piedoso e ativo, inteligente e cheio de vontade de aprender. E, dizia, Deus sempre apóia uma boa causa.
  Ao escurecer, de volta à casa, vinham os pais muito contents - principalmente Kirsten.
   É certo que já no dia seguinte ela chorava, porque o filho ia viajar. Recebera de presente roupas novas, e agora tinha de atravessar o mar e ir para longe, muito longe, para frequentar uma escola de latim. E muitos anos se escoriam antes que o tornassem a ver!
   Hans não levou o livro de contos de fadas, porque os pais desejavam ficar com ele, como lembrança. O pai lia-o frequentemente - isto é, lia queles dois contos que já conhecia.
   Recebiam cartas  do filho, cartas muito alegre. Morava com uma gente muito boa, e era bem alimentado. Mas o que achava melhor era a escola, onde havia tanta coisa a aprender e a a conhecer. Seu maior desejo era chegar aos cem anos, e vir um dia a ser mestre-escola.
  - Chegaremos a ver isso algum dia? - perguntavam os pais.
  E Ole segurava a mão de Kirsten, como no dia do casamento.
   - Que feliz é, afinal, o nosso Hans! - disse Ole,- Deus lembra-se dos filhos dos pobres. Pois foi justamente no aleijadinho, que se manifestou a sua proteção. Não parece até uma história daquelas que Hans poderia ler no livro de contos de fadas? 
FIM