quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O XELIM DE PRATA - CONTOS DE ANDERSEN

 Era uma vez um xelim. Quando saiu da Casa da Moeda era de uma alvura resplandecente; ele saltou e tiniu:
   - Viva! Eis-me de viagem para o vasto mundo!
   E teria, de fato, de percorrer muitos países.
   Passou pelas mãos de diversas pessoas. A criança o segurava bem apertado nas suas mãozinhas quentes. O avarento cerrava-o convulsivamente nas mãos frias. Os velhos viravam-no e reviravam-no, sabe Deus quantas vezes, antes de o soltar. A gente moça deixava-o rolar descuidadosamente.
  O xelim era de prata de bom quilate, quase sem liga. Já corria pelo mundo havia um ano, sem sair do país onde fora cunhado. Enfim um dia partiu de viagem  para o estrangeiro. Seu dono levou-o por engano. Tinha resolvido levar somente dinheiro do país onde iria viajar, e ficou surpreendido ao achar, no momento de partir, aquele xelim extraviado. Mas disse consigo:
   - Pois bem, vou guardá-lo; lá longe me recordará o meu país!
  E deixou cair no fundo da bolsa o xelim de prata, que saltou e tiniu alegremente.
  Ei-lo agora no meio de grande quantidade de camaradas estrangeiros que passavam o tempo a ir e vir. Apareciam sempre outros novos, com novas efígies, e não aqueciam lugar. Mas aquele xelim , ao contrário, não se mexia do seu canto. É que o estimavam, é claro; e isso é uma distinção honrosa.
    Correram muitas semanas; já o xelim tinha andado muito caminho no mundo, sem contudo saber onde estava. As moedas que chegavam diziam-lhe, umas, que eram francesas, outras, italianas. Esta moeda, ao entrar, mostrava que tinha chegado a tal cidade; aquela outra era sinal de que tinham entrado em tal outra cidade. mas isso não bastava para dar uma ideia da bela viagem que fazia o xelim. Metido no fundo de um saco não se vê nada ,e era esse o seu caso.
    Um dia percebeu ele que a bolsa não estava fechada. Esgueirou-se pela boca, para ver se descobria alguma coisa. Mas sua curiosidade deu mau resultado; caiu no bolso da calça; e quando o dono se despiu, à noite, tirou de lá a bolsa, mas o xelim ficou. A calça foi colocada na antecâmara, para que a escovasse, com as outras peças, o criado do hotel. O xelim escapou-se do bolso e rolou para o chão: ninguém o ouviu, ninguém o viu.
   No dia seguinte as roupas foram levadas para o quarto. O viajante tornou a vesti-las e deixou a cidade. E lá ficou também o xelim perdido. Alguém o achou e meteu-o no bolso, com a intensão de aproveitá-lo, é claro.
      Enfim - disse o xelim, - vou circular de novo, vou ver outros homens, outros costumes, outros usos, que não os do meu país!
   Quando estava a ponto de passar a outras mãos, ouviu que alguém dizia:
   - Mas que moeda é essa? Não a conheço...Há de ser moeda falsa, sem dúvida. Ora, para que serve isso? Moeda falsa; não vale nada!
   E foi justamente naquele momento que começaram realmente as aventuras do xelim,. Vamos ver agora como ele contava depois aos amigos os trabalho que passou.
  "- Esta moeda é falsa. Não vale nada!
   " Ouvindo essas palavras - contava o xelim - vibrei de indignação. Pois então eu não sabia que era de boa prata, que tinia bem, e que meu cunho era autêntico? E dizia comigo que aquela gente estava enganada, ou então não era de mim que falava. Mas qual nada: era bem de mim que se tratava; era bem eu o designado por moeda falsa! E o homem que me erguera do chão, disse:
    " - Eu a passarei logo à noite, no escuro.
   "E assim fez; à noite fui recebido sem protesto. Mas no dia seguinte começaram a injuriar-me mais ainda "Dinheiro ruim! Vamos nos livrar dele, depressa!" E eu tremia entre os dedos daqueles que procuravam passar-me furtivamente a outras pessoas. Infeliz de mim! De que me servia ser isento de qualquer liga, de que me servia ter sido cunhado com tanta nitidez? Então a gente não é apreciada neste mundo por seu justo valor, mas segundo a opinião que de nós formam os outros?
   " Cada vez que me expunham à luz para me por em circulação, eu estremecia de medo. Já sabia que ia ser examinado, escrutado, pesado, atirado sobre a mesa, desdenhado e injuriado, como o obra da mentira e da fraude. Cheguei assim à mãos de uma pobre velha. Recebera-me pelo salário de um dia de trabalho rude. Era impossível tirar de mim o menor proveito! E ela dizia:
   " - Eis que me vejo reduzida a enganar alguém, dando-lhe uma moeda falsa! É bem contra a vontade que o faço, mas nada tenho e não posso dar-me o luxo de guardar um xelim falso. Ora! vou passá-lo ao padeiro que é rico e será menos prejudicado que qualquer outra pessoa. Mas ...o fato é que vou fazer uma coisa muito malfeita!
   " E eu dizia comigo mesmo: Pois, além de tudo, hei de me ver pesando na consciência desta boa velha? Ah? Quem iria imaginar, vendo-me tão brilhante na mocidade, que um dia havia de descer tanto?!
   " A velha entrou em casa do abastado padeiro; conhecia ele muito bem as moedas em circulação, para se deixar enganar: atirou-me ao rosto da pobre velha, que saiu muito vexada. Isso era para mim o cúmulo da humilhação! Sentia-me muito triste e nervoso - como pode sentir-se um xelim desprezado, que ninguém quer.
  " Contudo, a boa velha levantou-me do chão, e, de voltar a casa, olhou-me com um olhar benevolente, dizendo:
   " - Não, não procurarei enganar mais ninguém ; vou fazer um furo em ti, para que todos vejam bem que és falso. Mas...agora me lembro...Quem sabe? Não serás tu uma dessas moedas que trazem sorte? Tenho uma espécie de pressentimento! Sim, é isso: vou fazer o furo e passar uma fitinha por ele; depois amarro-te ao pescoço da filhinha da vizinha, e tu lhe trarás felicidade. É isso!
   "E ela me furou; aquilo não foi uma sensação agradável para mim, é claro; mas podemos perfeitamente suportar muitas coisas de uma pessoa que tem boas intenções. Passou pois a fita pelo buraquinho: eis-me transformado em uma espécie de medalhão. Suspendeu-me ao pescoço da menina que, toda contente, sorriu para mim e me beijou. Passei a  noite no seio inocente da criança.
   " De manhã, a mãe da menina segurou-me entre os dedos e examinou-me coma tenção: tinha lá as suas ideias a meu respeito, conforme adivinhei imediatamente. Pegou em uma tesoura e cortou a fita.
   "- Ah! És um xelim que dá sorte - disse ela. - É o que vamos ver!
   "Mergulhou-me então em vinagre! Fiquei esverdeado. Ela encheu o furo de massa peganhenta e, ao escurecer, foi à casa do vendedor de bilhetes de loteria, para adquirir um. Esperava então eu uma nova afronta: decerto iriam rejeitar-me desdenhosamente, e isso diante de uma porção de moedas cheias de orgulho pelo seu valor. Mas escapei a essa humilhação. Havia muita gente na agência; o homem não sabia a quem atender. Lançou-me entre as outras moedas e, como retini conforme boa prata, estava tudo acabado. Ignoro se o bilhete da viazinha saiu premiado, mas o que sei bem é que no dia seguinte fui de novo reconhecido como falso, e posto de parte, para ser passado.
  "E recomeçaram minhas tristes peregrinações. Rolei de mão em mão, de casa em casa, insultado, maldito de todo o mundo. Ninguém tinha confiança em mim, e cabei por duvidar de meu próprio valor. Meu Deus! Que horrível tempo foi aquele!
  " Chegou um viajante estrangeiro. Apressaram-se, naturalmente, em lhe passar para as mãos a moeda falsa, que ele recebeu sem      examinar. Mas, quando quis dar-me em pagamento, por sua vez todos gritavam:
   "- É falsa, não vale nada!
   "As palavras ferinas, que fui condenado a ouvir pela centésima  vez...
   " - Mas recebi-a como boa - disse o homem, examinando-me com atenção.
   "E um sorriso distendeu-lhe os lábios. Que coisa extraordinária: era muito outra a impressão que eu habitualmente produzia nos que me olhavam. E o homem gritou:
  " - Olá! Mas é uma moeda do meu país, um bom e legítimo xelim! Fizeram nele um buraco, como se fosse moeda falsa. Vou guardá-lo e reconduzi-lo para minha terra.
   " A essas palavras senti-me invadido da mais viva alegria. Há muito tempo perdera o hábito de receber provas de apreço. Agora me chamavam de bom e legítimo xelim, e em breve eu voltaria ao meu país natal, onde todo o mundo me faria festa, como outrora. Creio que, de tanta alegria, eu teria , de boa vontade, soltado faíscas, se minha substância o permitisse.
  " Fui então envolvido em um belo papel de seda, para não ser mais confundido com as outras moedas; e quando meu dono encontrava compatriotas, mostrava-me a eles, e todos falavam bem de mim, dizendo mesmo que minha história era interessante.
  "Cheguei enfim à pátria. Todos os meus trabalhos estavam terminados, e eu achava agora um prazer novo na existência. Não tinha mais contrariedades; já não sofria afrontas. O furo que me atravessava o centro, dava-me a aparência de uma moeda falsa, é verdade; mas isso não tinha importância: bem depressa afirmavam que eu era de prata de lei, e por toda a parte me recebiam com prazer.
  "Isso vem provar que com tempo e paciência, a gente acaba sempre por ser apreciada no seu justo valor.
  "E é essa, verdadeiramente, a minha convicção!"
FIM

sábado, 16 de setembro de 2017

UMA DECLARAÇÃO DE AMOR AO MUNDO MÁGICO DOS LIVROS!!

Uma declaração de amor ao mundo mágico dos livros!!!
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Uma vida sem leitura é sem graça, sem cor. Sem leitores, um livro não tem vida, serventia. Livros são eternos, e a contribuição cultural de seus autores é capaz de eternizá-los no universo literário. 



Os fantásticos livros voadores do Sr. Morris Lessmore’, vencedor do Oscar de melhor curta animação

Dirigido por Brandon Oldenburg e William Joyce e escrito por este último, o curta tem início com uma tempestade que arrasta o Sr. Morris Lessmore e sua casa para uma outra dimensão, devasta sua biblioteca e varre as páginas de sua mais recente obra. Frustrado, Lessmore encontra uma casa habitada por livros voadores e redescobre a beleza da leitura.
Mais que isso, Lessmore se torna um mentor para novos leitores, recolorindo um mundo monocromático com o encantamento despertado pela leitura, além de guardião e cuidador da biblioteca, chegando até mesmo a executar uma delicada intervenção cirúrgica para reabilitar um livro caindo aos pedaços. Para completar, o curta (com personagens animados digitalmente em cenários reais, construídos em miniatura) também faz sua homenagem à própria técnica de animação, através da expressividade alcançada através do folheamento do melhor amigo de Morris, um livro sobre Humpty Dumpty. Trata-se da Literatura em ótima sintonia com o Cinema.
“Não penso em morte do livro, mas em evolução. Ao passo que o livro ilustrado se adapta às novas tecnologias, sinto que é importante reforçar a ideia que, apenas dos lampejos que os aplicativos possam trazer, sempre haverá necessidade e espaço para os prazeres únicos da página impressa.” 


UM PRESENTE PARA O CÉREBRO!

A leitura é um dos melhores exercícios possíveis para manter o cérebro e as capacidades mentais em forma. Isso é verdade porque a atividade de leitura exige colocar em jogo um importante número de processos mentais, entre os quais se destacam a percepção, a memória e o raciocínio. Quando lemos, ativamos principalmente o hemisfério esquerdo do cérebro, que é o da linguagem e o mais dotado de capacidades analíticas na maioria das pessoas, mas são muitas outras áreas do cérebro de ambos os hemisférios que são ativadas e intervêm no processo. Decodificar as letras, as palavras e as frases e transformá-las em sons mentais requer a ativação de grandes áreas do córtex cerebral. Os córtices occipital e temporal são ativados para ver e reconhecer o valor semântico das palavras, ou seja, o seu significado. O córtex frontal motor é ativado quando evocamos mentalmente os sons das palavras que lemos. As memórias evocadas pela interpretação do que foi lido ativam poderosamente o hipocampo e o lobo temporal medial. As narrativas e os conteúdos sentimentais do texto, seja ele ficcional ou não, ativam a amígdala e outras áreas emocionais do cérebro. O raciocínio sobre o conteúdo e a semântica do que foi lido ativa o córtex pré-frontal e a memória de trabalho, que é a que usamos para resolver problemas, planejar o futuro e tomar decisões. Está provado que a ativação regular dessa parte do cérebro desenvolve não apenas a capacidade de raciocinar, como também, em certa medida, a inteligência das pessoas
A leitura, em última análise, inunda de atividade o conjunto do cérebro e também reforça as habilidades sociais e a empatia, além de reduzir o nível de estresse do leitor. A esse respeito, devemos destacar o excelente trabalho de revisão do romancista e psicólogo Keith Oatley, da Universidade de Toronto, no Canadá, recentemente publicado na revista científica CellPress, intitulado: Fiction: Simulation of Social Worlds (Ficção: Simulação de Mundos Sociais), que destaca que que a literatura de ficção é a simulação de nós mesmos em interação. Depois de uma rigorosa e elaborada revisão de dados e considerações sobre psicologia cognitiva, Oatley conclui que esse tipo de literatura, sendo uma exploração das mentes alheias, faz com que aquele que lê melhore sua empatia e sua compreensão dos outros, algo de que estamos muito necessitados. Essa conclusão ainda é avalizada por neuroimagens, ou seja, por dados científicos que exploram a atividade cerebral relacionada com esse tipo de emoções. A ficção que inclui personagens e situações complexas pode ter efeitos particularmente benéficos. Assim, e como exemplo, um trabalho recém-publicado mostra que a leitura de Harry Potter pode diminuir os preconceitos dos leitores.
Tudo isso sem falar na satisfação e no bem-estar proporcionado pelo conhecimento adquirido e como esse conhecimento se transforma em memória cristalizada, que é a que temos como resultado da experiência. O livro e qualquer leitura comparável são, portanto, uma academia acessível e barata para a mente, a que proporciona o melhor custo/benefício em todas as fases da vida, razão pela qual deveriam ser incluídos na educação desde a primeira infância e mantidos durante toda a vida. Cada pessoa deve escolher o tipo de leitura que mais a motiva e convém. As crianças devem ser estimuladas a ler com leituras adequadas às suas idades e os mais velhos devem providenciar toda a assistência que suas faculdades visuais necessitem para continuar lendo e mantendo seu cérebro em forma à medida que envelhecem. Uma razão a mais para que os idosos continuem a ler é a crença plausível de que não somos realmente velhos até que não comecemos a sentir que já não temos nada de novo para aprender.
 Ignacio Morgado Bernal é diretor do Instituto de Neurociências da Universidade Autônoma de Barcelona, autor de Cómo Percibimos el Mundo: una Exploración de la Mente y los Sentidos (Como Percebemos o Mundo: uma Exploração da Mente e dos Sentidos).

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O ÚLTIMO SONHO DO VELHO CARVALHO - CONTOS DE ANDERSEN

    Na ourela do Bosque, em uma barranca à costa aberta do mar, erguia-se um carvalho muito, muito velho. Tinha trezentos e sessenta e cinco anos de idade; mas esse espaço de tempo, tão vasto, não era para a árvore mais do que são para nós, homens, outros tantos dias.
   Nós passamos o dia acordados, dormimos durante a noite, e é então que sonhamos os nossos sonhos. Mas para a árvore, é diferente a alternativa de sono e de vigília: ela atravessa três estações acordada, e somente no inverno sente sono. O inverno é para ela a época do descanso, do repouso; é a sua noite, após o longo dia, que nós chamamos primavera, verão e outono.
   Nos quentes dias do verão, as efêmeras tinham vindo dançar e esvoaçar em roda da copa do carvalho, e sentiam-se felizes ali. E quando uma daquelas criaturinhas, num instante de felicidade tranquila, pousava em uma das grandes folhas frescas da árvore, esta dizia:
   - Coitadinha! um único dia representa para ti a vida inteira! Que vida curta! Que lástima!
   - Lástima! Que queres dizer? - perguntava a efêmera. - Vivo cercada de tanta luz, tanto calor, tanta beleza maravilhosa, que só posso sentir alegria.
   - Mas é apenas durante um dia: depois tudo se acaba.
  - Acaba? - repetiu a efêmera. - Quer quer dizer isso? Tu também te acabaste?
  - Não! Eu talvez chegue a viver milhares de dias como os teus; para mim os dias são estações inteiras. E isso é uma coisa tão longa, que nem podes entendê-la.
   - De fato, não te compreendo mesmo. Tens milhares de dias como os meus, sim: mas eu tenho milhares de momentos em que posso viver feliz e alegre. Achas que a magnificência do mundo acabará quando morreres?
   - Não...- respondia a árvore. - Essa magnificência certamente há de continuar, e há de durar mais-  infinitamente mais do que eu posso imaginar.
   - Pois então cada um  de nós tem o mesmo ciclo de vida; a diferença está em que calculamos de modo diverso.
    E a efêmera dançava, e agitava-se no ar, cheia de alegria: alegrava-se com as suas asas artisticamente formadas, semelhantes a filó e seda; alegrava-se com aquele ar tépido, impregnado da fragrância agradável do trevo e das rosas silvestres, dos lilases e da madressilva, das plantas da sebe, da aspérula, das primaveras e da hortelã. E tudo aquilo exalava um aroma tão forte, que as efêmeras quase entonteciam. O dia era longo e belo, cheio de alegria e de sentimentos suaves; e quando o sol descia, os pequeninos insetos sempre sentiam uma fadiga agradável, após aquele folguedos do dia inteiro. As asas, já não queriam alçá-las; e iam deslizando, lenta e suavemente, até cair sobre a folha de relva macia e ondulante. Ali sacudiam a cabecinha - é costume das efêmeras - e adormeciam no meio daquela doçura e alegria: era a morte.
   - Coitadinha da efêmera! - suspirava então o carvalho. - Foi uma vida curta demais!
   E repetia-se aquela mesma dança, a mesma palestra, o mesmo fim, todos os dias do verão inteiro. E tudo aquilo se repetia por gerações inteiras de efêmeras; e entretanto todas elas se sentiam felizes e igualmente alegres.
   Enquanto isso, o carvalho ali estava ,ereto, durante toda a manhã- a primavera, e o meio-dia - o verão, e tarde - o outono. Não tardava a chegar a sua época de repouso, a sua noite - o inverno, que se aproximava.
   Já se ouviam as borrascas cantar seu cumprimento:
   - Boa noite! Boa noite!
   E caía uma folha aqui, outra acolá.
   - Nós te sacudimos, nós te agitamos! Dorme, dorme! Nós vamos te embalar e acalentar, até que durmas...Faz muito bem aos galhos velhos, não galhos velhos, não achas? A ramaria dá estalos de satisfação. Dorme bem, dorme bem! Esta é a tua tricentésima-sexagésima-quinta noite...Ora, no fundo, não passas de um fedelho! Dorme bem! A nuvem derrama neve, que forma um cobertor, para te proteger e aquecer teus pés. Dorme bem!E sonha sonhos agradáveis...
     E o carvalho, despido das folhas, lá se erguia, pronto para se recolher por todo o longo inverno, e para sonhar muitos sonhos, sempre com coisas que lhe tinham sucedido, tal e qual como acontece com os sonhos humanos.
   A imensa árvore já tinha sido, em tempos, pequenina. Seu berço fora uma bolota. Segundo a cronologia humana, achava-se agora no seu quarto século de vida. Era a melhor e a maior árvore da mata, e a sua copa ultrapassava de muito todas as outras. Visível a grande distância, servia de sinal para os marinheiros; mas nem sonhava que tantos olhares a buscavam assim. No seio da copa verde, a pomba selvagem fazia seu ninho; o cuco soltava de lá o seu grito; e no outono, quando as folhas tomavam o aspecto de chapas de cobre batido, vinham repousar ali as aves de arribação, antes de empreenderem seu voo por sobre o mar.
   Mas agora chegara o inverno A árvore lá estava desfolhada. E seus galhos apareciam tais quais era: tortuosos e cheios de voltas. Acercavam-se as gralhas e os corvos, que se iam revezando nos assentos vazios, e falavam do tempo inclemente que já se aproximava, e da dificuldade de encontrar alimento no inverno.
   E foi na época sagrada do Natal que a árvore sonhou o seu mais belo sonho.
   Sonhou que era tempo de festa; ouvia nitidamente o repique dos sinos por todos os lados, e no entanto era um dia maravilhoso de verão, suave e tépido. E a ampla fronde estendia-se, fresca e verde. Por entre a ramaria dançavam os raios de luz; o ar estava todo impregnado do perfume das ervas e das flores. Borboletas multicores brincavam de pegar; dançavam as efêmeras, como se tudo que existe  não tivesse outro fim senão dançar e se divertir. E tudo quanto, desde anos, se passara com a árvore, e ao redor dela, desfilava agora à sua frente, em um cortejo festivo. Reviu assim as épocas passadas, os tempo dos cavalheiros e damas da nobreza, montando estas seus palafréns, eles, de chapéu de pluma, levando na mão o falcão de caça. E cavalgavam pelos bosques, e a buzina ressoava, e a matilha ladrava. Viu guerreiros inimigos, trajando roupas de várias cores, brandindo armas brilhantes, dardos e alabardas, armarem e desarmarem as barracas; as fogueira dos vigias chamejavam. Viu casais de namorados, absortos em tranquila felicidade, que vinham conversar em noites de luar ao pé do seu tronco, e gravar iniciais na casca de um verde acinzentado.
   Outrora - sim! tinham muitos e muitos anos, depois disso! - outrora viandantes folgazões tinham pendurado nos seus galhos citaras e harpas eólicas; pois agora elas ali estavam oscilando de novo, e de novo ressoavam os sons maravilhosos. As pombas bravas arrulhavam, como se quisessem exprimir o que a árvore sentia, e o cuco ia enumerando os dias de verão que ainda lhe restavam.
   E era como se naquele instante uma nova corrente de vida o penetrasse até as últimas extremidades das raízes, até os mais altos ramos, até as pontas de todas as folhas.
   E a árvore sentia que se ia esticando, e retesando; das raízes lhe vinha a sensação de que mesmo no seio da terra havia vida e calor; observava que lhe iam aumentando as forças; e crescia cada vez mais alto, mais alto. O tronco se lhe desenvolvia incessantemente: era possível ver-lhe o crescimento. A copa tornava-se cada vez mais cheia, mais vasta, mais elevada. E quanto maior se sentia a árvore, maior era o bem-estar que sentia, e crescia nela aquele anseio beatífico de alcançar alturas cada vez maiores, até chegar lá acima, onde irradiava o sol, refulgente e abrasador.
  Já se içara muito além das nuvens, que singravam abaixo dela, umas como bandos escuros de aves de arribação, outras como grandes cisnes brancos.
   Cada folha da árvore tinha o dom da visão, como se possuísse olhos para ver. Em pleno dia, as estrelas eram visíveis, grandes e cintilantes; e cada uma delas brilhava como um par de olhos, suaves e claros, chamando à memória da árvore, olhos que ela conhecera, olhos carinhosos, olhos de crianças, de namorados que se haviam encontrado à sua sombra.
   Foi um momento de maravilhosa bem- aventurança, um momento repassado de alegria e de felicidade. E contudo, em meio a essa alegria, a árvore sentia um desejo, um anseio: queria que todas as outras árvores que viviam lá embaixo, todos os arbustos, todas as flores, pudessem elevar-se com ela, para verem aquele esplendor e participarem daquela alegria. O grande e majestosos carvalho não se sentia completamente feliz na sua magnificência: queria ter a seu lado todos os outros, grandes e pequenos; e aquela sensação de solidão a tremia-lhe nos ramos e nas  folhas, tão fervorosa, tão a intensamente, como em um peito humano.
   A copa da árvore balouçava-se para os lados, como se procurasse alguma coisa, na sua profunda saudade. Olhou para trás. Nesse momento sentiu ela o aroma da aspérula  el ogo depois o perfume mais forte de madressilvas e violeta; e ao mesmo tempo lhe pareceu que ouvia o canto do cuco.
   Sim: através das nuvens apareciam as copas verdes da mata, e mais abaixo o carvalho viu as outras árvore, que também cresciam e se iam erguendo. Arbustos e ervinhas cresciam vertiginosamente, e alguns até se desprendiam das raízes e voavam para o alto, com maior rapidez ainda. Mas a mais veloz era a bétula, cujo tronco esguio ia subindo, como um raio branco, fazendo zigue-zagues, enquanto os galhos iam-se enfuando ao redor dela, como bandeiras de crepe verde. E tudo o que vivia na mata, até os juncos de penacho pardo, acompanhava a cantar. Em uma haste que esvoaçava pelos ares, como uma cumprida fita verde, pousava um gafanhoto, que roçava a asa na pena como se tocasse rabeca. Zuniam os cascudo, zumbiam as abelhas; todas as aves cantavam cada uma segundo o seu dom; tudo era cheio de cânticos e de sons. A alegria chegava até o céu.
   - Mas...e aquela florzinha azul da beira d'água, onde ficou? - gritou o carvalho. - E a campanha vermelha e as margaridinhas?
   O velho carvalho não queria que faltasse uma só planta.
   - Estou aqui! Estou aqui! - cantavam as vozes.
   - Mas a bela  aspérula do verão passado? E este ano havia aqui uma quantidade enorme de lírios-do-vale...E a macieira brava, que tinha flores tão lindas...E toda aquela beleza da mata, que vi durante tantos anos!...
   Quem dera que tudo aquilo vivesse agora, para presenciar o que se passa neste momento!
   E vozes, vindas ainda de maior altura, cantavam, como se tivessem subindo antes do carvalho:
   - Aqui estou! Aqui estou!...
   - Que coisa maravilhosa! É inacreditável! - exclamava o velho carvalho, exultante. - Estão comigo todos, todos grandes e pequenos...Ninguém ficou esquecido! Quem poderia imaginar tamanha felicidade? Como é possível isto?
   - No céu do eterno Deus, ela é possível e imaginável - ressoavam as vozes pelos ares.
   A velha árvore, que continuava a crescer sempre, sentiu que as suas raízes se despegavam do solo, e dizia:
   - É melhor assim! Já não há entraves que me prendam. Poderei agora ir subindo e voando até a luz e o resplendor supremo. E todos aqueles a quem amo estão comigo, todos - grandes e pequenos! Todos!
   - Todos! 
   Foi esse o sonho do carvalho. E, enquanto ele assim sonhava, abateu-se uma violenta tempestade sobre a terra, no santo dia do Natal. Do mar rolaram pesados vagalhões contra a costa. A árvore, cujo tronco estalava e rangia, foi arrancada das profundezas do solo, justamente no instante em que sonhava que a raiz se lhe despegava do chão. E o carvalho foi derribado. Agora os seus trezentos e sessenta e cinco anos eram o mesmo que um dia de vida das efêmeras.
   Na manhã de Natal, ao nascer do sol, aminava a tempestade. De todas as igreja vinham os sons festivos do repique dos sinos; e de todas as chaminés,  até da choça mais humilde, subia a fumaça em nuvens azuladas, como sobe do altar o fumo do sacrifício em ação de graças, na festa dos drúidas. O mar foi serenado aos poucos, e a bordo de um grande navio que lutara a noite inteira contra a inclemência do tempo, vencendo-a enfim galhardamente, içavam-se todas as bandeiras, festejando o Natal, em sinal de alegria.
   Mas os marinheiros diziam:
  - Oh! sumiu-se a árvore, o velho carvalho, o marco característico das nossas costas...Caiu! O temporal derribou-o. Quem poderá substituí-lo? Ah! Não há ninguém que possa tomar o seu lugar! 
   Foi o necrológio - breve, sim , mas sincero - que teve a árvore. Lá jazia ela, estendida na neve, à beira-mar; e sobre a sua ramaria ressoavam os sons de um hino, vindos do navio: um cântico cheio de alegria, da alegria do Natal, inspirada na salvação da alma humana por Cristo, e na vida eterna:
    
 Vinde, ouvi a doce história,
     QUE DO ORIENTE VEM:
 O MESSIAS, REI DA GLÓRIA,
   NASCE EM BELÉM!

  Assim soava o velho hino, e no navio todos se sentiram exalçados - cada um à sua maneira - pela prece e pelo hino, bem como a velha árvore se sentira exalçada no seu sonho mais belo, o derradeiro, o sonho da noite de Natal. 
FIM
  

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A ROUPA NOVA DO IMPERADOR - CONTOS DE ANDERSEN

 Houve, há muitos anos, um imperador que não pensava senão em vestir roupas novas, e gastava tudo o que tinha em panos finíssimos. Não se importava com o exército, nem com o teatro; mas passar as suas tropas em revista, ouvir uma peça de teatro, ou dar um passeio de carro - tudo para ele eram pretexto para estrear novos trajes. Tinha uma casaca para cada hora do dia; e assim como se diz de um rei:" Está na sala do Conselho". O que se dizia dele era:" O imperador está no seu toucador." A grande cidade em que ele vivia era muito alegre e movimentada; todos os dias chegavam forasteiros. Um dia apresentaram-se dois malandros, dizendo que eram tecelões, e declararam que podiam tecer a tela mais fina que se possa imaginar. E não só as cores e os padrões eram de beleza fora do comum, mas - diziam eles- as roupas feitas daquele tecido tinham uma virtude extraordinária: tornavam-se invisíveis para toda e qualquer pessoa que ocupasse um cargo de que não entendia, ou que fosse irremediavelmente estúpida.
   - Mas seria uma roupa admirável! - pensou o imperador. - Usando-a, eu posso descobrir os homens do meu império que ocupam cargos imerecidamente, e posso distinguir os sábios dos tolos. É assombroso! Preciso de uma roupa desse tecido imediatamente!
   Deu, pois, aos dois meliantes, grande soma de dinheiro, para que se pusessem sem tardança ao trabalho. Os dois tecelões instalaram-se com seus teares, e fingiam-se muito atarefados. Pediam dinheiro, e mais dinheiro, para comparar a seda mais fina, o ouro mais precioso, e metiam tudo no bolso; punham-se então a fingir que trabalhavam com empenho nos seus teares, nos quais, entretanto não havia nada, nada! E assim entravam pela noite adentro,
   - Ora, eu gostaria bem de saber em que pé vai o meu vestuário - disse consigo o imperador.
   Mas imediatamente acudiu-lhe à lembrança que quem não fosse apto para o cargo que exercia não podia ver o tecido, e sentiu-se muito inquieto. Não que receasse não ver o pano, não! Por sua parte nada temia. Contudo, pareceu-lhe mais prudente, pelo sim, pelo não, mandar que um outro fosse lá ver como ia o trabalho. Todos na cidade sabiam que o tecido possuía aquela estranha propriedade; e cada um estava ansioso por ver até que ponto ia a inépcia ou a estupidez do vizinho.
    - Vou mandar meu honrado primeiro ministro - disse consigo. - Poderá julgar da qualidade do pano, porque é inteligente, e ninguém desempenha melhor seu ofício do que ele.
   E o bom velho ministro lá foi ter à sala onde dois cavalheiros de indústria manejavam os teares vazios.
   - Louvado seja Deus! - disse consigo o velho ministro, arregalando os olhos. - Não vejo nada!
   É claro, porém, que não o confessou.
   Pediram-lhe os dois meliantes que chegasse mais perto, e desse sua opinião para os teares vazios. O coitado do ministro continuava a arregalar os olhos: não via nada, nada , porque nada havia ali, naturalmente.
   - Misericórdia! - pensava lá consigo o velho servidor. - Serei assim tão estúpido? Sou pois indigno do meu cargo? Nunca imaginei tal coisa! E agora...não! Ninguém há de saber que não vejo o tecido!
   E um dos tecelões, vendo que ele sacudia a cabeça peguntou:
   - Então, senhor! Não diz nada a respeito do tecido?
   - E ...é muito lindo...é um encanto! - disse então o velho ministro, examinando o tear através dos vidros dos óculos. - O desenho é muito bonito, e...que cores! Sim, vou dizer ao imperador que estou encantado com o que vi.
   - Estimamos muito que lhe agrade - disseram logo ambos os tecedores.
   E iam indicando as cores, e explicando o estranho desenho. O velho ministro ouvi-os atentamente, para poder repetir aquelas minúcias ao imperador. E assim foi.
    Os patifes pediram então mais dinheiro, para comprar seda e ouro. Meteram tudo no bolso e o tear continuava sem um fio - mas eles continuavam a trabalhar. Alguns dias depois despachou o imperador outro cortesão, para examinar o trabalho e ver se faltava ainda muito para estar pronto. E, como acontecera ao primeiro ministro, aquele nada enxergava no tear, onde nada havia, de fato.
   - Não lhe agrada ? - perguntaram os homens, gabando e mostrando as belas cores, que lá não existiam.
   - Não! Eu não sou estúpido! - pensava consigo o cortesão. - Deve ser então o meu cargo, para o qual não tenho competência...Um cargo tão lucrativo...É absurdo, e hei de me guardar bem de confessá-lo!
    E elogiou o tecido, que não existia, e louvou as cores que não via, e o belo desenho, e tudo. E foi dizer ao imperador que o tecido era encantador.
  Na cidade não se falava em outra coisa mais que na famosa fazenda, e próprio imperador desejou vê-la enquanto ainda estava no bastidor. E, com uma grande e escolhida comitiva - iam também os dois conselheiros velhos que já lá tinham estado - foi ver os dois finórios, que trabalhavam agora com o maior empenho, mas sem fio algum.
    - Não é magnífico? - perguntaram os dois cortesãos que já tinham ido ver a tela. - Veja Vossa Majestade estas cores, estes desenhos!
   E iam apontando para a moldura vazia do tear, julgando que os demais viam o pano.
   - Mas...que é isso? - pensava o imperador. - Não vejo nada, nada! Mas é horrível! Sou estúpido? Ou...serei indigno do meu império? Isso seria a coisa mais espantosa! 
   Afinal disse em voz alta:
   - Sim, é muito lindo! Merece meu maior louvor.
    E curvou-se, muito satisfeito, ao que parecia examinando com a maior atenção o tear vazio, para que não soubessem que nada via nele. E todos os do seu séquito olhavam, e olhavam, senão viam mais que o imperador e os cortesãos. Mas todos diziam:
   - É lindo, lindo!
    E aconselharam-no a estrear aquele traje em uma procissão solene que se realizaria em breve. E todos repetiam em coro:
   - Esplêndido! Excelente! Magnífico!
   E todo o mundo estava muito contente. e o imperador concedeu aos dois intrujões o título de Tecelões da Corte Imperial, com uma comenda.
   Na véspera do dia designado para a procissão, trabalharam os dois patifes a noite inteira, com mais de dezesseis lâmpadas acesas. E todo o mundo via que assim se afadigavam para que o o traje novo do imperador estivesse pronto na hora precisa. Fingiram que tiravam a tela do tear; deram cortes no ar com tesouras enormes; coseram horas e horas, com agulhas sem fio; e afinal disseram: 
   - O traje novo do imperador está à disposição de Sua Majestade!
    Chegou o imperador, acompanhado de seus mais nobres cavalheiros, e os dois embusteiros erguiam ora um braço, ora outro, e diziam:
   - Vejam!  Aqui estão os calções...aqui está a casaca! Aqui está o manto! São tão finos, tão leves, como teias de aranha. E caem como se a gente não tivesse nada no corpo. mas aí é que está mesmo a beleza do tecido!
   - Sem dúvida! - diziam os cortesãos.
  Contudo não podiam ver nada, onde nada havia, na verdade.
   - digne-se Vossa Majestade tirar as roupas que traz - disseram os trapaceiros. - Nós teremos a honra de vestir Vossa Majestade com no novo traje, aqui diante do espelho grande.
   Tirou o imperador a roupa, e os patifes fingiram vestir-lhe a roupa nova, peça por peça; e ele se virava, olhando-se diante do espelho. E todos diziam:
   _ Que bonito! E como assenta bem!
   - E que desenho!
  - E as cores?! É um traje esplêndido!
   - Magnífico!
   - Maravilhoso!
   - Lá fora, já está o pálio, sob o qual Vossa Majestade acompanhrá a procissão - informou o mestre-de-cerimônias.
   - Estou pronto- disse o imperador. - Não me assenta bem, isto?
     E voltou-se outra vez para se ver no espelho, aparentando assim que examinava a roupa com grande interesse.
   Os dois camaristas que deviam segurar-lhe o manto curvaram-se até o chão, como se estivessem erguendo a cuda; e do mesmo modo continuaram a fingir que sustinham alguma coisa no ar; não queriam mostrar que nada viam.
   E assim seguiu o imperador na procissão, debaixo do rico pálio; e todos os que o viam da rua ou das janelas exclamavam:
   - Que roupa admirável leva o imperador!
   - E a cauda do manto! Que comprida!
   - E como lhe assenta bem, tudo aquilo!
   É que ninguém queria mostrar que não via coisa alguma: ninguém queria mostrar que era estúpido, ou que não estava habilitado para exercer o cargo que tinha. E o caso é que traje algum do imperador provocara jamais tantos louvores!
   - Mas ele está nu! - gritou afinal uma meninazinha.
   - Justos céus! Ouviram o que diz esta criança inocente? - perguntou o pai da menina.
   E foram todos dizendo, em cochilos, uns aos outros. o que dissera a criança.
   - Mas ele está nu!- diziam. - Uma criança diz que ele está nu!
   E afinal acabaram todos por dizer:
   - Está nu! Está nu!
    Aquilo chegou aos ouvidos do imperador, que teve um arrepio. mas lá no seu íntimo resolveu:
    - Agora, que aqui estamos, não devo voltar atrás.
   E empertigou-se mais ainda, e os camareiros se retesaram mais um pouco, e continuaram a andar, segurando com mais força a cauda do manto que não existia.
FIM