segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O FILHO DO PORTEIRO - CONTOS DE ANDERSEN

    Habitava o general o primeiro andar, e o porteiro morava no sub-solo. Grande era a distância entre as duas famílias: separava-as, em primeiro lugar, o rés-do-chão, depois a diferença de categoria; mas afinal moravam sob o mesmo teto, e tinham ambas a mesma vista, tanto para a rua como para  pátio.
   No pátio havia um relvado, no meio do qual se ostentava uma acácia, que florescia na época própria. Por esse tempo vinha sentar-se à sombra da árvore a aia, muito enfeitada, com a filhinha do general nos braços;e a pequena Emília era ainda muito mais enfeitada que a aia. E então vinha dançar diante dela o meninozinho descalço, filho do porteiro; o menino dos olhos negros e grandes, e cabelo castanho. Sorria a criança, estendendo-lhe as mãozinha miúdas; e o general, vendo aquele quadro da sua janela acenava com a cabeça, dizendo:
  - Mas é encantador!
   A senhora generala, tão jovem que poderia passar por filha do marido, essa jamais chegava à janela do pátio. Dera suas ordens à aia: que o filho daquela gente do porão podia brincar mesmo diante da menina para diverti-la, mas devia conserva-se a distância, sem tocá-la jamais com o dedo!  E a aia obedecia fielmente às prescrições da ama.
   E os raios do sol entravam em casa dos habitantes do sub-solo, como na dos moradores do sobrado.
    A acácia deu flores, e perdeu-as depois conforme o curso da estação. E assim se passou no ano seguinte. O rapazinho do porteiro também florescia; sua bela cabeça de faces coradas parecia uma grande tulipa desabrochada. A menina do general era pequenina e delicada, com sua pele de um branco rosado, como as flores da acácia. Agora vinha raramente gozar a sombra da árvore; ia tomar ar fresco fora, e saía do carro, com a mamãe. Quando entrava e quando saía acenava com a cabeça para Jorge, o filho do porteiro; sim, chegava a atirar-lhe beijos com a mão. Mas um dia deixou de fazê-lo, porque a mãe lhe disse que estava agora muito crescida, e que aquilo não ficava bem.
  Uma manhã ia Jorge levando os jornais e cartas que tinham vindo para o general, e que, como de costume, eram entregues na portaria. Ao passar pelo desvão da escada, notou que de lá vinha um rumor estanho, uma espécie de pios, muito esquisitos. Pensou que fosse algum frango que se tivesse extraviado por aqueles lugares. Mas não; era a própria filha do general, a Emilinha, toda vestida de gazes e rendas.
   - Não me digas nada ao papai nem à mamãe - murmurou a menina - senão ficarão incomodados.
   - Mas que aconteceu? - indagou Jorge.
   - Pegou fogo, e tudo está queimado - respondeu a menina.
   Jorge subiu a escada de um salto e entrou em cada do general; abriu a porta do quarto da criança; as cortinas estavam já quase reduzidas a cinzas, e das guarnições levantavam-se chamas. O menino subiu a uma cadeira, arrancou tudo o que ardia e gritou por socorro, A não ser ele, a casa inteira teria sido devorada pelo incêndio.
   O general e a senhora generala submeteram a menina a um interrogatório em regra.
   - Eu acendi um fósforo - disse Emilinha - um só. Ele pegou fogo e a cortina também. Eu cuspi nela para apagar o fogo; eu cuspi tanto que já não tinha mais saliva. E então fugi para me esconder, pensando que o papai e a mamãe iam ficar zangados...
   - Cuspir! - exclamou a generala. - Mas que palavra é essa:? Ouviste algum dia o papai ou a mamãe dizer isso? Sem dúvida aprendeste esse termo com aquela gente lá embaixo!
  Contudo Jorge recebeu pelo serviço que prestara uma moeda de prata. Não foi levá-la à confeitaria, não; guardou-a no seu cofrinho. Não tardou muito que tivesse já ali as moedas necessárias para comprar uma caixinha de tintas, para colorir seus desenhos - porque Jorge desenhava muito. Era um encanto ver aqueles dedinhos manejando o lápis. E seus primeiros desenhos coloridos, ofereceu-os a Emília.
  - É encantador! - disse o general.
  Até a generala concordou: reconhecia-se muito bem o que o menino queria representar.
  - Ele tem gênio...
  Foram essas as palavras que a porteira ouviu saírem de sua boca; e correu a repeti-las no sub-solo.
  Eram o general e sua digna e importante esposa pessoas de alta estirpe. Tinham, pintados na carruagem, dois escudos armoriados - cada um o seu. A senhora mandara bordar seus dois escudos em todas as peças do enxoval, um à direita outro à esquerda; e também nos sacos de viagem; e até nas toucas de dormir. O seu brasão, comprara-o o pai muito caro, pagando-o como bom dinheiro. Não nascera com ele, nem ela tão pouco: tinha vindo ao mundo sete anos antes dos brasões. Quase todo o mundo se lembrava bem disso; mas a generala não tinha mais a menor ideia do fato. Os brasões do general eram antigos e complicados. Bem que ele tinha motivo para se empertigar até fazer os ossos estalarem. Também, a gente ouvia verdadeiramente estalar os ossos da generala quando, altiva e em traje de gala, subia à carruagem para ir ao baile da corte.
   O general era já velho, e estava grisalho. Mas a cavalo fazia ainda boa figura. Sabia-o muito bem, e todos os dias saía a cavalo; seguia-o, a conveniente distância, uma ordenança. E, quando entrava em um salão, dir-se-ia que vinha empoleirado no seu enorme cavalo. Condecorações, tinha-as em número incrível: estava todo coberto delas. mas isso não era na verdade por culpa sua. Entrara muito jovem para o exército; assistira muitas vezes à manobras de guerra, que as tropas fazem no outono, em tempo de paz. Contava até a esse respeito uma anedota, a única por sinal que sabia.
  Um dia um suboficial que estava sob as suas ordens cortou a retirada a um príncipe e o fez prisioneiro, com toda a sua escolta. O príncipe e seu séquito, como prisioneiros, tiveram de atravessar a cidade na retaguarda do general vitorioso. Foi um acontecimento memorável, que o general recordava todos os anos. E repetia fielmente as palavra que dissera, ao restituir ao príncipe a espada:
   - Só mesmo um suboficial seria capaz de fazer Vossa Alteza prisioneiro; eu jamais poderia fazê-lo.
   Ao que respondera o príncipe:
   - O senhor é verdadeiramente um homem incomparável!
   Em um combate de verdade, jamais o general se vira metido. Quando rebentou uma guerra foi enviado em missão diplomática a três países estrangeiros. Falava muito bem o francês, a ponto de esquecer quase completamente a língua natal! Além disso, dançava na perfeição. Também as condecorações brotavam-lhe na farda como as ervas daninhas nos campos. As sentinelas apresentavam-lhe armas. Uma das moças mais belas da sociedade dinamarquesa também lhe apresentou as armas e ficou a senhora generala. Tiveram uma linda filhinha; parecia caída do céu , de tão graciosa. Era a nossa Emília. O filho do porteiro dançava primeiro diante dela para diverti-la no pátio; mais tarde, deu-lhe as figuras que desenhava e coloria. A Emilinha olhou para as figuras, ficou muito contente, e depois rasgou-as. Mas era tão pequenina!
  - Minha pétala de rosa - dizia a generala- tu nasceste para um príncipe!
  O príncipe estava achado; estava à porta. Mas ninguém sabia de nada. Os homens não enxergavam além da soleira de sua porta.
  Um dia a porteira contou ao marido:
  - Anteontem o nosso rapazinho repartiu com a menina a sua fatia de pão; não havia nela nem queijo nem carne; mas a meninazinha achou-a excelente, como se fosse um pastel. Se o general ou a senhora tivessem visto aquela merenda...que barulho não fariam!
   Jorge repartira sua fatia de pão com a Emília. De boa vontade repartiria com ela o coração, se isso desse prazer à menina. Era um excelente sujeitinho, ativo e inteligente. Frequentava cursos noturnos para aprender o desenho.
   A Emilinha também adquiria conhecimentos: falava francês com a aia, e tomava já lições de dança.
                                                                      II
 -Então, e o nosso Jorge, que já vai se confirmado nesta Páscoa! - disse a porteira ao marido.
  - É verdade. E o mais acertado é metê-lo logo a aprender alguma coisa. Temos de escolher um bom ofício. E assim ele não ficará mais conosco...
   - Mas terá de dormir em casa, pelo menos - respondeu a mulher. - Já não se encontra patrão que queira alojar aprendizes. E sempre teremos de vesti-lo , do mesmo modo. Assim, é melhor que fique de todo conosco. Ora, acharemos bem o pouco que ele come: algumas batatas, e está ele contente. As lições de desenho são de graça. Deixamo-lo seguir o seu caminho: verás que ainda há de nos dar alegria. É o que diz o professor.
  Estava pronta a roupa para a confirmação. A mãe a cosera toda. Cortara-a um alfaiate modesto da vizinhança, um homem por sinal bem hábil.
   - Se ele tivesse podido estabelecer-se em uma bela rua, e ter uma grande oficina com caixeiros e aprendizes - dizia a porteira - teria vindo a ser o alfaiate da corte.
  Estava pronta a roupa; Jorge também estava pronto. Chegara o grande dia, e ele recebeu do padrinho, antigo caixeiro em uma loja de ferragens, um grande relógio de prata. Era um relógio velho e já trabalhara muito; estava sempre um pouco adiantado; mas antes assim do que andar atrasado não é? Era um presente magnífico.
   A jovenzinha a quem Jorge dera as figuras enviou-lhe um saltério encadernado em marroquim. No rosto do livro estava escrito o nome de Jorge e o de Emília, com estas palavras. "Sua afetuosa protetora". Isso tinha sido escrito pela menina, mas ditara as palavras a senhora generala. lera-as o general e exclamara logo;
  - É encantador!
  - Ora aqui está grande prova de benevolência- disse a porteira- da parte de pessoas de tão alta hierarquia.
  Já vestido com a bela roupa nova, teve Jorge de subir ao primeiro andar, de saltério na mão, para se mostrar e para agradecer.
   Estava a generala sentada no sofá, toda envolvida em xales e pelicas. Sofria uma violenta dor de cabeça, mal que afligia sempre que alguma coisa a irritava,. Não deixou, contudo, de se mostrar muito gentil com o menino, desejando-lhe toda a sorte de prosperidades, e, principalmente, que jamais soubesse o que era enxaqueca.
   O general passeava para um lado e outro, metido num roupão e nas suas botas ruças de cano vermelho. Tinha a cabeça abrigada em um barrete, do qual pendia grande borla. Engolfado em suas reflexões, ou talvez em recordações, atravessou assim a sala três vezes: depois deteve-se, dizendo:
   - Então está o Jorginho recebido entre os cristãos! Pois trata de ser um homem honesto, e de respeitar a autoridade. Isso só te trara benefícios, e quando fores velho poderás dizer com os teus botões que foi o general quem te deu este conselho.
   Não tinha o general o costume de dizer tantas palavras de uma só vez. Voltou, pois, às suas meditações; e aquele ar sério ficava-lhe muito bem.
  Mas de tudo o que Jorge viu e ouviu naquele dia no primeiro andar, o que lhe ficou gravado indelevelmente na memória foi Emília, Suave, delicada, graciosa, parecia esvoaçar como um passarinho. E o menino pensava, à lembrança daquela criaturinha aérea e diáfana;
  - Seria preciso desenha-la em uma bolha de sabão.
   Dos grossos cachos de cabelos dourados exalava-se um perfume comparável ao da rosa recém desabrochada. E com aquela fada, com aquele ser celeste, é que ele partilhara outrora a sua fatia de pão; e ela havia comido a sua parte com grande apetite, e a cada dentada fazia-lhe sinal com a cabeça exprimindo assim a sua satisfação. Lembrar-se-ia ainda daquilo? Sim, lembrava-se perfeitamente, e para lhe agradecer é que o presenteara com aquele belo saltério.
   Quando, depois desses acontecimentos, chegou o Ano Novo, e a primeira lua nova do Ano Novo, Jorge dirigiu-se para o campo, levando um pedaço de pão no bolso e o saltério debaixo do braço: queria consultá-lo cuidadosamente nas regras referentes ao futuro, porque é assim que se faz, e é aquele um oráculo infalível.
   Abrindo o livro deu com um salmo de ação de graças; era um presságio de feliz destino. Tornou a abri-lo para ver que sorte estava reservada a Emília. Mas foi inútil o seu empenho em não abrir nos salmos dos mortos: na página em que se abriu o livro não se falava senão de morte e de sepultura. para se reanimar, gritou:
   - Isso não passa de superstição!
  Mas qual não foi o seu espanto quando, pouco tempo depois, a menina caiu doente, e o carro do médico parava todos os dias à porta!
   - Eles vão ficar sem a menina- dizia a porteira. - O senhor sabe bem a quem é que deve chamar para junto de si.
  Contudo eles ficaram com a filha, e Emília escapou às ameaças dos oráculos. Quando lá estava convalescendo, Jorge desenhou figurinhas e enviou-as à menina, para a distrair. Um dia desenhou o palácio dos czares, o velho Kremlin, com suas torres e cúpulas, que pareciam gigantescas abóboras verdes, douradas pelo sol - pelo menos assim apareciam no desenho de Jorge. A menina gostou muito daquilo e Jorge desenhou uma porção de figuras novas, todas com edifícios. Dizia ele que ela se divertiria em imaginar uma porção de coisas belas que poderiam estar atrás daquelas portas e daquelas janelas.
    Desenhou um pagode chinês, com campainhas nos seus dezesseis andares. Desenhou dois templos gregos, com elegantes colunas de mármore, cercados de grandes escadarias. Desenhou uma igreja norueguesa; e via-se muito bem, no desenho, que era construída de madeira, e que todos os seus encaixes eram feitos com uma arte singular.
 Mais o mais belo desenho que fez foi aquele a que deu o nome de palácio de Emília, porque dizia, ela deveria habitar uma bela casa. Concebera o plano, ele próprio. Reunira ali tudo o que achara de mais belo nos outros edifícios. Havia vigas esculpidas, com na noruega; colunas de mármore, como nos templos gregos; e campainhas em todos os andares, como pagodes da China; enfim o teto era coroada de cúpulas verdes e douradas, como as do Kremlim dos czares. Era um verdadeiro castelo dos contos maravilhosos.
   Sob as janelas escreveu o fim a que era destinada a sala ou o quarto que ficava trás. " Aqui, Emília dorme". Aqui. Emília aprende a dançar". " Aqui, ela brinca". "Aqui são recebidas as visitas", etc...
   Era um prazer olhar para aquele estranho palácio, e muito se olhou para ele, na verdade!
  - Encantador! Verdadeiramente encantador! - dizia o general.
   O velho conde - porque havia um velho conde, que era ainda de mais alta nobreza que o general, e que possuía um castelo - o velho conde não disse nada; ouviu dizer que aquele palácio tinha sido imaginado e desenhado pelo menino do porteiro - não era já muito pequeno, não, pois que já fora confirmado. O velho considerou os desenhos; tinha a sua ideia, mas guardou-a consigo.

    E na manhã, num feio dia cinzento e úmido, pareceu a Jorge que era o mais belo e luminoso dia que surgia na sua vida. O professor da Academia mandou chamá-lo e disse-lhe:
  - Escuta, meu amiguinho, quero conversar contigo. Deus que já te concedera a graça de te dotar tão bem, pôs ainda no teu caminho pessoas que gostam de fazer o bem. O velho conde, que mora na esquina da rua, falou-me de ti. Viu teus desenhos, dos quais não teremos grande coisa a dizer; há neles muito o que corrigir. Mas hoje em diante podes vir ao meu curso duas vezes por semana; isso te habilitará a fazer trabalho melhor. Creio que há em ti antes um arquiteto que pintor. Tens, porém, todo o tempo para refletir nisso. Por agora, vai visitar o velho conde, e dá graças a Deus, que pôs aquele homem no teu caminho.
   Era uma grande e bela casa a do conde, na esquina. Ao redor das janelas havia esculturas: elefantes, dromedários, licornes; trabalhos dos tempos antigos. O velho conde, entretanto, preferia os tempos modernos e tudo o que eles trazem consigo, quer venha do primeiro andar, do subsolo ou do teto.
  - Creio - disse a porteira ao marido - que quanto mais alto é o nascimento de uma pessoa menos orgulhosa ela é. Vê o velho conde, como é simples e afável! Fala absolutamente como eu e como tu. e isso é o que o general não poderia fazerem nem a senhora! Também Jorge ficou ontem encantado com o acolhimento que lhe fez o conde. E eu igualmente, desde que fui recebida por aquele cavalheiro tão poderoso. E afinal não foi uma sorte que não tivéssemos posto Jorge de aprendiz em casa de um operário? O menino tem aptidões, disse o conde.
   - Pois sem - acudiu o pai. - Mas será preciso que alguém nos ajude para que ele possa vencer.
  - E assim será, pois o conde fez uma promessa formal.
  - Não pode ser senão o general quem o levou a isso - continuou o porteiro. - Devemos ir lá, para agradecer.
  - Podemos ir, é claro; todavia, não creio que seja ele que devemos esta felicidade. Eu darei muitas graças por isso a Deus,e também pelo restabelecimento de Emilinha.
  A menina restabelecia-se, com efeito. Cresceu e ficou mais bonita.
  Por seu lado ia Jorge fazendo rápidos progressos. obteve na Academia a medalha de prata, e logo depois a de ouro.
                                                                  III
- Antes ele tivesse aprendido um ofício! - dizia a porteira, chorando. - Ficaria conosco; que vai ser dele em Roma? Não tornarei a vê-lo, o meu filho querido, nem que ele volte. E ele não há de quer deixar mais um país que dizem ser tão belo...
 -É para sua felicidade que ele vai - disse o porteiro. - É no interesse da sua glória.
   - Obrigada pela consolação que me ofereces, meu amigo, mas tu mesmo não estás menos aflito que eu.
   Estavam ambos, com efeito, muito triste com a partida do filho, posto que ouvissem de todos os lados quão feliz era ele por ter conseguido conquistar aquela distinção. Jorge despediu-se dos pais; despediu-se também da família do general. A senhora não lhe apareceu; estava com a grande enxaqueca. O general aproveitou a ocasião para tornar a contar a sua única anedota, o que tinha dito ao príncipe, e como o príncipe lhe respondera: " O senhor é incomparável!"
   Depois estendeu a mão a Jorge, uma mão mole e inerte.
  Emília também estendeu a Jorge a sua mãozinha; ela quase parecia aflita. mas Jorge, esse sentia uma grande, uma verdadeira dor.
   O tempo passa depressa quando se trabalha. Ele se reparte igualmente com todos; todavia não é igualmente bem empregado, nem igualmente proveitoso para todos. O tempo de Jorge foi bem aproveitado; por isso não lhe pareceu tão longo, a não ser nas horas em que pensava no seu país:
   - Que será feito dos habitantes da casa, os debaixo e os de cima?
   Recebia cartas; e uma carta pode conter muitas coisas: tanto as notícias que aquecem o coração como o sol ardente, como as que nos mergulham na noite mais sombria. E foi uma dessas que anunciou a Jorge que seu pai morrera, e que sua mãe estava viúva e só. E a carta ainda dizia mais:
  "Emilia foi um anjo de consolação; descia muitas vezes para conversar com sua desolada vizinha, e tanto instara, que deixaram à viúva o ofício de porteira."
                                                         IV
   A senhora generala mantinha um diário, no qual inscrevia as festas e bailes a que comparecia, assim como os nomes dos estrangeiros que a visitavam. O precioso diário era ilustrado com cartões de diplomatas e de outras personagens ilustres. A dama tinha grande orgulho daquele álbum, que dia a dia mais se avolumava. Era a sua consolação, quando se sentia atormentada pela enxaqueca, ou abatida pela fadiga de uma noite de baile na corte.

  Chegou enfim o dia do primeiro baile de Emília.Trajava a generala um vestido vermelho com rendas pretas - costume espanhol. A filha vestia de branco - uma nuvem de gaze e filó. Era a personificação da graça. Os cachos dourados do cabelo estavam adornados com fitas verdes e uma coroa de lírios brancos. Com aqueles olhos azuis, radiantes de mocidade, e a boca pequenina e rosada, parecia a mais bela fada das águas que se possa imaginar. Dançaram com ela três príncipes - um de cada vez é claro. E durante oito dias a senhora generala não soube o que era dor de cabeça.
  Ao primeiro baile seguiram-se muitos outros. Tantos foram eles que, para a saúde de Emília, o verão chegou muito a propósito, pois lhe restituiu o repouso e o ar saudável do campo.
  Toda a família do general foi passar algum tempo na propriedade do velho conde. Havia no castelo um jardim que merecia ser visto. Consistia uma parte dele, segundo a moda do tempo, em alamedas de cercas vivas, talhadas a tesoura; formavam muros verdes, nos quais aparecia de distância em distância um olho-de-boi. Havia ainda bruxos e teixos talhados em forma de estrelas e de pirâmides. de grutas revestidas de conchinhas brotavam jatos d"água. E por toda a parte viam-se estátuas de mármore raro, de rosto regular, e nobres vestimentas. Cada canteiro tinha uma forma diferente: peixes, brasões d'armas, iniciais. Era essa a parte francesa do jardim. Logo após se via um bosque fresco e verde; as árvores, altas e robustas, cresciam à vontade. Depois era relvados espessos, gramados bem cuidados, sobre os quais as pessoas caminhavam como se pisassem tapetes. Era essa a parte inglesa.
     - Aqui se veem os tempos antigos e a época moderna face a face - disse o conde .- E ao menos aqui estão de acordo e cada um faz sobressair o outro. Dentro de dois anos o castelo será por sua vez reformado; desejo mostrar-lhes os planos, e também apresentar o arquiteto, que janta hoje conosco.
     - É encantador! - disse o general.
   E a generala secundava:
   - Esta residencia é um verdadeiro paraíso; o senhor tem até um torreão feudal...
   - Instalei lá no galinheiro, porque para nada mais serviria. As pombas aninham-se nas torrinhas, os perus na grande sala do primeiro andar. No rés-do-chão reina a velha Lisette. É ela quem governa as galinhas poedeiras que se empoleiram à direita, e os frangos, que ficam à esquerda. Os patos tem também lá a sua morada, com saída para ao lago.
   - Encantador! - repetiu o general.
  E reuniram-se todos, para fazer uma visita àquelas populações tão interessantes. A velha Lisette estava no seu posto, e a seu lado encontrava-se Jorge, o arquiteto. Viam-se pela primeira vez, ele e Emília, depois de muitos anos de separação; e reviam-se naquela torre, que nada mais era que um galinheiro.
    Na verdade, ele bem merecia ser olhado! Era um tipo de beleza varonil: rosto franco e enérgico, cabelos negros e lustrosos. Esvoaçava-lhe nos lábios um sorriso altivo, que dizia:
   - Tenho detrás da orelha um diabrete, que vos conhece a todos, e muito bem!
  Em honra das visitas a velha Lisette tinha tirado os tamancos: ficara só de meias, o que era, na sua opinião, muito mais distinto.
    As galinhas faziam gluc, gluc; os galos diziam: cocoricó! Os marrecos afastavam-se balançando o corpo, e gritando: quá, quá,quá!
   Mas...que atitude tomou a moça que se achava inesperadamente, diante do camarada de infância?Um belo rubor tingiu-lhe as faces, habitualmente pálidas. Os grandes olhos ficaram ainda maiores; moveram-se-lhe os lábios, sem articular, contudo, palavra alguma. Que cumprimento de boas-vindas mais amável poderia desejar um moço, da jovem que não é sua parenta, nem dançou jamais com ele no baile?
   Tomando a mão do rapaz, apresentou-o o conde aos visitantes;
  - Não é de todo um estranho para os senhores: é o nosso amigo Jorge.
   A generala inclinou-se, com ar de proteção benevolente. Emília ia estender-lhe a mão; não chegou, porém a fazê-lo.
    - De fato, é o nosso pequeno senhor Jorge! - disse o general. - Mas sim, somos conhecidos velhos! É encantador!
   - O senhor deve estar meio italiano, e falar essa língua como se tivesse nascido em roma - disse a generala.
   E o marido interrompeu-a:
   - A senhora não fala o italiano, mas canta.
   Pouco depois achava-se Jorge à mesa, ao lado de Emília. Falou, contou o que vira, e contava muito bem, na verdade. Descreveu algumas coisas admiráveis que tinha visto. Em uma palavra - foi ele quem, auxiliado pelo velho conde, animo o festim com o seu espírito. Emília, silenciosa, contentava-se em ouvir, mas seus olhos brilhavam mais que diamantes.
   Na varanda encontraram-se ainda juntos, no meio das flores: passeavam ao pé de uma sebe de roseiras, quando Jorge disse:
   - Agradeço-lhe de todo o coração a bondade que teve com minha mãe. Sei que ficou junto dela na noite em que meu pai morreu, e que não a deixou enquanto não fechou os olhos para sempre.
    Tomou-lhe a mão e depositou nela um beijo respeitoso, que as circunstâncias permitiam. A moça corou intensamente, apertou-lhe a mão e disse, cravando nele os belos olhos azuis:
   - Sua mãe era uma alma tão boa! E como amava o filho! Dava-me todas as suas cartas para ler: e o senhor não é para mim um desconhecido: como foi amável comigo, quando eu era criança! Dava-me desenhos...
    - Que a senhora rasgava - disse Jorge.
  - Não aquele em que desenhou meu castelo...
   - Agora é que eu queria construí-lo!
   E bem se podia imaginar que soberbo palácio edificaria para a moça, pelo entusiasmo de suas palavras.
   Enquanto isso, no salão, o general e a generala falavam do filho do seu antigo porteiro. Observavam como tinha sabido adquirir as maneiras de um homem de sociedade; como se exprimia com elegância, dizendo também coisas interessantes. Por fim, a generala chegou a esta conclusão:
    - É um homem de espírito.
                                                               V
   Durante os belos dias de verão o senhor Jorge, como era agora chamado, foi muitas vezes ao castelo do conde. E, quando o esperavam e não aparecia, sentiam-se todos privados daquele prazer que sua presença sempre lhes trazia. Um dia disse-lhe Emília:
   - Quantos dons Deus lhe concedera, de preferência aos outros mortais! Não se sente muito reconhecido por esse fato?
  E naquele momento sentiu-se Jorge mais lisonjeado e mais feliz que no dia que recebera a medalha de ouro.
  Passou o verão, chegou o inverno; continuava-se a falar no senhor Jorge. Era considerado na sociedade, que o recebia de boa vontade nos círculos mais elevados. O general encontrara-o até em um baile da corte.
   A senhora generala dava uma festa, em honra de Emília. Perguntou ao marido:
   - Pode-se, sem ferir a etiqueta, convidar o senhor Jorge?
   - Aquele que o rei acolhe, bem pode recebê-lo o general - respondeu ele, fazendo uma pirueta graciosa.
   Recebeu, pois, Jorge um convite, ao qual não deixou de atender. Não faltavam príncipes e condes no baile: mas a única diferença que se poderia notar entre eles é um dançava um pouco melhor que o outro. Emília dançou apenas a primeira quadrilha: deu um passo em falso, e, posto que não fosse coisa de perigo, aquilo lhe causava alguma dor. Por prudência achou melhor não dançar mais. Sentou-se, pois, a olhar para toda aquela gente que girava e saltava. Sentou-se o arquiteto a seu lado. Notou-o o general, que disse, ao passar por ele:
   - Creio bem que o senhor lhe daria obra-prima da arquitetura a basílica de São Pedro, se pudesse dispor dela...
   E sorria, como a estátua da benevolência.
   E foi com aquele  mesmo sorriso afável que acolheu Jorge, alguns dias depois, pensando lá consigo:
   - Sem dúvida o moço vem agradecer o convite...Não vejo outro motivo da visita!
   Havia, porém, outro motivo. Jorge pronunciou palavras surpreendentes, inauditas, insensatas. O general não acreditava mais nos próprios ouvidos. Ninguém poderia ter previsto semelhante coisa - nem sequer em sonhos. E sem voltar a si do estupor repetia:
   - Mas é inimaginável!
    Jorge vinha pedir a mão de Emília.------
   E, vermelho de cólera, o general continuou:
   - Mas que diz o senhor? Não o compreendo...é impossível! O senhor quer...Mas, senhor, eu não o conheço! Quem teria podido inspirar-lhe a audácia de pretender entrar na minha família? Que fiz eu, para merecer tal afronta?
   E, direito como um poste, foi andando aos recuões para o seu quarto, onde entrou, deixando o  senhor Jorge sozinho na sala. Esperou este alguns minutos a volta do general para se retirar. Emília esperava-o no corredor, e perguntou com voz tremula:
   - Que respondeu meu pai?
    Apertando-lhe a mão, respondeu o moço:
   - Furtou-se ao meu pedido. Mas, com isso, não devemos desesperar: hão de vir melhores dias.
   A moça tinha os olhos cheios de lágrimas. Os dele exprimiam confiança e coragem. O sol, que naquele momento rasgava as nuvens, veio inundá-los de luz; era como se lhes trouxesse a bênção do céu.
   Sentado no seu quarto, achava-se ainda o general incapaz de se refazer daquela emoção. Tremia de indignação e de cólera. Depois de ferver interiormente, transbordou-lhe a fúria em gritos e exclamações:
  - Que loucura! O filho de um porteiro! Já se viu alguma dia coisa semelhante?
   Antes de uma hora sabia já a generala da incrível audácia de Jorge. Chamou Emília e disse-lhe:
   - Pobre criança! Compreendo tua dor...Ofender-te dessa maneira! Ferir assim nossa dignidade! É horrível! E tens razão de chorar...As lágrimas ficam-te bem, é verdade, e nunca te vi tão linda como neste momento: és absolutamente o meu retrato, na época do meu casamento. Chora, chora, minha filha querida, que isso te fará bem.
   - Sim, eu hei de chorar a vida inteira, se não derem o consentimento!
    - Misericórdia! Minha filha, que dizes? Perdeste então o juízo? Mas estará o mundo virado? Ai! Vou ter uma enxaqueca tão horrível como nunca senti na vida...É a desgraça que se abate a nossa casa...Emília, não faças tua mãe morrer de desgosto!
   E seus olhos encheram-se de lágrima, só de se lembrar da morte, ideia que não pudera jamais suportar.
                                           VI
   "O senhor Jorge foi nomeado professor da Academia de Belas Artes".
   Era uma notícia de jornal.
  - Que pena que já não vivam os pais, e não possam ler o jornal de hoje...- diziam os novos porteiros.
   Moravam naquele mesmo subsolo onde habitavam dantes os pais de Jorge, e sabiam que ele ali se criara.
   - É, agora terá de pagar o imposto de profissão - disse o porteiro.
   - Não é demais para um filho de gente pobre?
   - Dezoito escudos por ano - respondeu o homem: sim, é muito dinheiro.
   - Não falo disso, mas da sua nomeação, honrosa demais para um menino como era ele. Quanto ao dinheiro, ora...ele não vai atrapalhar-se por causa de alguns escudos: ganha quanto quer! Certamente há de casar com moça rica. Escuta, se algum dia tivermos um filho, há de ser arquiteto e professor!
   Se no subsolo se falava bem de Jorge, não era menor o louvor no sobrado. O velho conde podia bem fazê-lo, sim. Serviram de pretexto os desenhos que Jorge fizera em criança. Falavam da Rússia, de Moscou. Isso lhes trouxe a ideia o Kremlin que o menino desenhara para a senhorita Emília.
   - Ele já desenhava muito naquele tempo - disse o conde- e recordo-me principalmente do castelo de Emília, como lhe chamava ele. É um rapaz de talento. Há de vir a ser conselheiro de palácio, e mesmo conselheiro privado. Quem sabe se não construirá algum dia esse castelo que imaginou na infância? E por que não?
    E, com um sorriso, despediu-se.
  - Que estranha alegria! - murmurou a general.
   O general sacudiu a cabeça com ar grave. Depois saiu para o seu passeio a cavalo, mas teso que nunca. E ai da ordenança, se não se mantivesse a distância respeitável!
   Chegou o dia do aniversário de Emília. Recebeu ela flores, livros, cartas, cartões. A generala beijou-a na boca; o general, na fronte. Não há negar; ambos amavam muito a filha. À tarde chegaram as visitas, uma multidão de gente fina, até dois príncipes. Falou-se dos bailes, do governo, das peças do teatro, do estado da Europa, dos negócios dos país, dos homens notáveis que naquele momento possuía - e dessa maneira a conversação veio a cair sobre o inevitável arquiteto.
  - O fato é que ele está argamassando uma brilhante fama - dizia um dos visitantes. - Não seria até de admirar se viesse a construir uma torre para si, em uma de nossas primeiras famílias.
   - Uma de nossas primeiras famílias? - comentava mais tarde o general com a esposa - Qual poderá ser?
   - Bem sei a quem fazia alusão - espondeu a generala. - Mas é claro que não vou dizê-lo; não quero nem mesmo pensar nisso! Deus dispões de nós segundo a nossa vontade; se tal acontecimento se realizar, eu não me admirarei de nada neste mundo!
  O visitante que fizera a referência sabia bem o que dizia. Conhecia o poder da graça que vem do alto, isto é, a graça da corte, da qual Jorge cada vez gozava mais abertamente - sem contar que a graça divina o protegia visivelmente também em todas as suas empresas. Mas voltemos à festa.
    Estava o quarto de Emília todo perfumado das flores que lhe tinham enviado as amigas. A mesa vergava de presentes. Não havia, contudo, nenhum de Jorge; nem  podia haver, é claro. Entretanto, ele não estava ausente. Não o recordava a casa inteira? Lá estava na escada o desvão onde Emília se escondera, quando a cortina do seu quarto pegou fogo, e Jorge correu a abafar o incêndio. No pátio erguia-se ainda a acácia a cuja sombra brincavam as crianças. Estava toda coberta de geada e de gelo, porque era inverno, e parecia um enorme ramo de coral branco; brilhava, cintilava, à luz do luar; e a lua também não tinha mudado desde aquele dia memorável em que Jorge repartira a sua torrada com a pequena Emília.
   A grande Emília foi buscar uma linda caixa; tirou dela desenhos antigos de Jorge, o palácio dos czares e o castelo; contemplou-os, enquanto muitos pensamentos lhe atravessavam o espírito. Recordou o dia em que, sem que seus pais o percebessem, descera e fora para junto da boa porteira moribunda. Assentara-se ao lado dela, pegara-lhe na mão, e ouvira as últimas palavras da pobre mãe:
  - Deus...benção...Jorge...
  Reconhecia que os votos da boa mulher tinham sido exalçados, e que Deus abençoara seu filho.
  Não! Jorge não estava ausente!
   No dia seguinte foi o aniversário do general. É que pai e filha eram vizinhos no calendário. Nova afluência de presentes. Entre outros chegou uma sela magnífica, trabalho de acabamento perfeito, de um gosto refinado, tão cômoda com rica de ornatos. Dizia-se que apenas um dos príncipes da família real possuía outra tão bela. De onde vinha aquele presente, que dera tanta alegria ao general? Um bilhete dizia apenas:
     "Da parte de uma pessoa que o general não conhece".
   - Mas quem é que eu não conheço? Vamos, procuremos...Não: não há ninguém que eu não conheça. Conheço todo o mundo, todo o mundo!
  É que o general não pensava senão na alta sociedade, onde conhecia até as crianças de berço.
    Afinal, descobriu:
  - Já sei, é um presente de minha mulher; é uma boa brincadeira que ela quer fazer. Encantador, na verdade! Encantador!
                                                        VII
     Pouco tempo depois houve uma festa na residência de um dos príncipes: um grande baile a fantasia, em que era permitida a máscara. O general compareceu, em costume de Rubens, trajo espanhol, com gola pregueada e manto, e espada ao lado. E, com sua  arrogância natural, levava bem as vestes de fidalgo. A generala representava naturalmente a senhora Rubens: vestido de veludo preto, subindo até o queixo, com uma imensa gola: parecia que tinha uma mó presa ao pescoço. Era copiado de um  retrato holandês que o general possuía, no qual todos admiravam principalmente as mãos: as de generala assemelhavam-se-lhe inteiramente.
    Emília disfarçara-se de Psique - toda coberta de gazes e rendas. Eram tão leves, tão graciosos seus movimentos, que se diria, ao vê-la andar, a penugem mais fina do cisne que esvoaçava no ar. Tinha asas, por causa do trajo; não seria, porém, um simples cumprimento, se alguém lhe dissesse que não lhe faziam falta.
     Tamanha era a profusão de flores, de luzes; tantas eram as magnificências a admirar, que ninguém deu atenção às belas mãos de Madame Rubens. Dançava com Psique um dominó preto, com flores de acácia no capuz.
   - Quem é? - perguntou a generala.
   - Sua Alteza Real - respondeu o general - estou certo de que é : reconheci-o no modo afetuoso com que se dignou apertar-me a mão.
  A generala não parecia muito convencida. O general, que não admitia que se lhe pusesse em dúvida, a sagacidade, aproximou-se do dominó negro, tomou-lhe a mão e traçou nela, com o dedo, as armas reais. O dominó sacudiu a cabeça, negativamente, dizendo:
   - Minha divisa é que levava um dos presentes que lhe foram oferecidos no seu dia natalício: " Alguém que o senhor não conhece".
     - Mas então eu sei quem é o senhor: foi quem me enviou a sela!
   Sem replicar, o dominó desapareceu entre a multidão.
   - Emília - perguntou a generala - quem era aquele dominó negro com quem dançaste?
    - Não lhe perguntei o nome.
   - Porque já a sabias: é o professor.
   E, dirigindo-se ao conde;
   - O seu protegido está aqui: traz um dominó preto com flores da acácia.
     - É bem possível, graciosíssima dama; digo-lhe mais: um dos príncipes reais traja do mesmo modo.
 

   - É isso, é isso - disse o general. - Eu o reconheci perfeitamente, pelo seu afetuoso aperto de mão, e foi ele quem me fez presente da sela. Preciso convidá-lo para jantar amanhã.
   - Pois vá - disse o conde. - Se é o príncipe, aceitará, certamente.
    - E se for o outro, não irá. Não há inconveniente, portanto, em fazer o convite.
   E o general avançou para o dominó negro, que justamente nesse momento falava com o rei. Fez  o convite com ar respeitoso. Sorria pensando que se ia ver quem adivinharia - ele ou a generala.
   O dominó negro levantou a máscara; era Jorge.
   - O senhor general repetira agora o convite?
    O general empertigou-se e cresceu bem meio palmo; interiçou-se, deu dois passo para trás, depois um para a frente, como se fosse dança o minuete. O rosto tomou um ar de extrema gravidade, tornando-se tão expressivo quando é permitido ao rosto de um general.
   Afinal disse:
   - Não retiro jamais a minha palavra. o senhor está convidado, senhor professor.
   Inclinou-se, deitando um olhar ao rei, que tudo ouvira, e parecia satisfeito.
                                                   VIII

   Havia pois grande banquete no dia seguinte em casa do general. Mas os convidados eram apenas o velho conde e seu protegido. E Jorge dizia consigo:
   - Ora aí está posta a primeira pedra do alicerce.
   E ela fora posta, de fato, com muita solenidade, e era difícil que ficasse só naquilo.
   - Este moço- dizia o general à esposa - tem na verdade excelentes maneiras; e que conversação! Não se conversa com mais espírito na melhor sociedade.
  E é certo que Jorge se distinguira muito durante o banquete, e dissera coisas tão interessantes, que muitas vezes o general, arrebatado, o interrompera, quase involuntariamente, com o seus "Encantador! Encantador!"
  O general falou daquele jantar a uma das senhoras mais espirituosas da corte, e esta se convidou a si mesma para a próxima vez que o professor jantasse em casa dele. Era pois preciso convidá-lo de novo. E foi o que aconteceu; e Jorge mostrou-se ainda mais brilhante do que da outra ocasião.
  Descobriu-se até que sabia jogar xadrez, o jogo favorito do general.
   - Não - dizia este consigo! - Não é um filho do subsolo, mas um rapaz de linhagem. Ninguém me tira isso do espírito. Por que cargas d'água foi parar no porão? É o que não sei explicar; mas em todo o caso não é culpa dele!
   O senhor professor, que era recebido no palácio do rei, podia certamente ser admitido em casa do general. Nada havia nisso de surpreendente. E que dentro em breve havia ele de ficar morando lá é o que toda a cidade anunciava. Mas em casa do general não se falava nisso.
   E todavia o fato consumou-se, exatamente como o proclamavam. A graça caiu sobre Jorge. Foi nomeado conselheiro privado. Emília veio a ser conselheira. Nem a corte, nem a cidade se sentiram chocadas.
   E o general dizia, filosoficamente:
   - A vida é ora uma tragédia ,ora uma comédia. Na tragédia a gente morre, na comédia casa-se.
   Jorge e Emília tiveram três belos rapazinhos; e quando os meninos estavam em casa do general, e andavam a galope nos seus cavalinhos de pau, o avó acompanhava-os, montando também um cavalo de madeira, e fingia de ordenança - a ordenança dos senhores conselheirinhos privados. E a generala, sentada no sofá, sorria ao vê-los, mesmo que estivesse com a sua grande enxaqueca.
    E aí está onde chegou Jorge ; e com o seu talento foi bem mais longe ainda.
    Aliás, se não fosse isso, não valeria a pena contar a história do filho de um porteiro.
FIM

Amigos mais uma história maravilhosa , longa , com isso preciso postar aos poucos, vocês são muito importantes para mim e para as histórias. Vamos ler amores , queridos anjos, que gostam de contos e que me ajudam a ser mais feliz! Beijo!

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