segunda-feira, 22 de maio de 2017

IB E CRISTINA - CONTOS DE ANDRESEN

O Belo e claro Rio Guden na Jutlândia do Norte, vai costeando uma grande mata. O terreno, naquele lugar, se ergue e arqueia em corcova, formando uma espécie de muralha através da floresta. Na orla da mata, para o lado do poente, vê-se uma casinha de camponeses, cercada de pequenas lavouras. Mas a terra ali é muito magra. por entre o centeio e a cevada, que vão brotando com dificuldade, aponta por toda a parte a areia.
   Fazia alguns anos que os moradores daquela casa cultivavam o seu campo; possuíam três ovelhas, um porco e dois bois. Tinham de viver, se se pode chamar viver o contentar-se alguém com o que é estritamente necessário. Jeppe Jaens ocupava-se da cultura durante o verão; e no inverno fabricava tamancos. Tinha um aprendiz que, como ele, sabia fazer calçados de pau, sólidos e leves, e ainda de boa aparência. Trabalhavam também colheres e outros utensílios, que  eram vendidos. Jeppe Jeans chegava a gozar de certa abastança.
   Seu filho único, o pequeno Ib, tinha então sete anos; gostava de ver o pai trabalhar. Procurava imitá-lo, trabalhando madeira, e de vez em quando talhava também os dedos. Mas um dia mostrou aos pais, com ar de triunfo dois lindos tamanquinhos e declarou que ia dá-los de presente à sua amiguinha Cristina.
   Cristina, a Cristininha, era a filha do barqueiro. Graciosa e delicada, se vestisse belos trajes, ninguém imaginaria que tinha nascido em uma cabana, na charneca vizinha.
   Lá morava o pai, que era viúvo. Ganhava a vida carregando na grande barca a lenha cortada da mata, e levando-a para o domínio de Silkeborg, e até para a cidade de Randers. Não tenho em casa ninguém a quem confiasse a menina, trazia quase sempre na barca. Mas quando tinha de ir à cidade, deixava-a em casa de Jeppe Jaens, do outro lado da charneca.
   Cristina contava um ano menos que Ib, e as duas crianças eram muito amigas; partilhavam sempre seu pão e suas bagas de mirtilo, e juntas brincavam de fazer covas na areia. Andava, por toda  a parte, ao redor da casa brincando, saltando, divertindo-se. Um dia arriscaram-se até a entrar sozinhos mais a dentro do mato; acharam lá uma ninhada de ovos de marreca, e isso foi para eles um acontecimento memorável.
   Ib não fora nunca à casa de Cristininha, nem estivera jamais na barca do pai dela. Mas um dia este levou-o a sua casa, do outro lado do macegal, para lhe mostrar a terra e o rio. No dia seguinte, de manhã encarapitou as duas crianças, sobre um montão de feixes de lenha. E o menino olhava com tanta atenção para tudo o que rodeava, que nem se lembrava de comer o pão e as bagas de mirtilo.
   O bateleiro e seu ajudante impeliam a barca com varas; seguiam o curso da água e deslizavam rapidamente pelos lagos que o rio formava em certos trechos. Esses lagos pareciam às vezes inteiramente fechado pelos bancos de caniços e pelos carvalhos seculares que se debruçavam na água. Noutros lugares havia velhos amieiros deitado horizontalmente sobre a corrente, e todos cercados de lírios e nenúfares, formando ilhotas encantadoras, As crianças não se cansava de admirar tudo aquilo. Mas quando cegaram perto do castelo de Silkeborg, onde há grande barragem para prender as enguias, quando viram a água precipitar se com enorme fragor, escumando e fervendo, através da comporta - então Ib e Cristina declararam que aquilo era muito, muito bonito.
   Naquele tempo não havia ali nem cidade nem fábricas; apenas se avistavam algumas construções de granja, onde morava uma dúzia de  camponeses. O que dava vida a Silkeborg era o ruído da água, eram os gritos dos patos bravos.
   Descarregados os feixes de lenha, comprou o bateleiro um cesto de enguias e um leitãozinho que acabava de matar. Meteu tudo em uma cesta, que pôs na popa da embarcação, e deu volta. Içaram a vela, e como o tempo era favorável, a barca subia o rio tão depressa como se fosse puxada por uma parelha.
   Chegaram perto do lugar onde morava o ajudante. Os dois homens deviam ir até a casa. Amarraram solidamente a barca e recomendaram bem às crianças que ficassem ali sossegadas enquanto eles iam e voltavam.
   Durante alguns minutos. Ib e Cristina não se mexeram, mas estavam muito aborrecidos. Depois foram ver o que havia no cesto. Levantaram a tampa, e acharam que era preciso tirar de dentro o leitãozinho e começaram tateá-lo e a virá-lo de todos os lados. Ambos queriam segurá-lo ao mesmo tempo, e tanto fizeram que o leitão caiu na água, e lá se foi, arrastado pela corrente. Que momento horrível!
   Ib, de tão assustado, saltou imediatamente para a terra e disparou. Cristina atirou-se atrás dele, e lá se foram as duas crianças, amedrontadas, fugindo pelo mato. Afinal se sumiram.
   Não tardou que se vissem entre  espinheiros, que lhes furtavam a vista do rio - aquele maldito rio, que arrebatara o leitãozinho, com o qual esperavam divertir-se tanto!
    Impelidos por esse pensamento, vão sempre avançando. De repente, Cristina tropeça em uma raiz e cai; põe-se a chorar, mas Ib diz-lhe:
   - Coragem, Cristina; nossa casinha é ali daquele lado.
    Mas o caso é que daquele lado não havia casa alguma, e as pobres crianças vão andando sempre. A seus passos estalam as folhas secas e os gravetos. De repente ouvem vozes de homens; param, a escutar. No mesmo instante retine um grito, agudo de águia que os assusta. Continuam a fugir. Avistam então os mais belos mirtilos, em assombrosa abundância. Aquela vista dissipa-lhes todo o terror, e elas atiraram-se às bagas, comendo-as à boca cheia. Já tem as faces manchadas de azul e vermelho, quando ouvem de novo os gritos longínquos de homem, e Cristina diz:
   - Que castigo vamos apanhar!"
   - Vamos fugir para casa do papai; ela fica aqui neste mato.
   Recomeçaram a andar, chegam a um caminho, e vão seguindo por ele; mas o caminho não ia dar à casa de Jeppe Jaens.
  Anoiteceu; o mato era muito escuro, e as crianças tinham um grande medo. Silêncio profundo por toda a parte. De vez em quando ouviam gritos de coruja e de outros animais que não conheciam. Estavam muito cansadas, mas continuavam a caminhar. Acabaram por se perder no meio dos espinheiros e Cristina desatou a chorar. Afinal, depois de muitos soluços, estenderam-se nas folhas secas e pegaram no sono.
   Já o sol estava muito alto no céu, quando despertaram, transidas de frio. Através das árvores avistaram uma elevação escalvada e correram para lá, para se aquecer ao sol. Julgava Ib, que, de lá de cima, descobrira a casa de seu pai; mas estava longe dela, em um lugar distante da floresta. Subiram à colina e ficaram imóveis de surpresa: avistaram embaixo um belo lago, de água verde e transparente. Nadavam à superfície muitos peixes, aquecendo-se ao sol. Junto deles havia uma aveleira carregada frutos. Apressaram-se em colher as avelãs, ainda novas e muito delicadas.
   Em dado momento, porém o espanto imobilizou-os. De pé, perto delas, como se tivesse surgido da terra, está uma mulher alta, de rosto trigueiro, cabelos reluzentes, e olhos tão brilhantes como os dos negros. Traz um saco às costas e apóia-se a um bastão nodoso. É uma cigana. Ela lhes fala, mas as crianças estão tão assustadas, que não voltam a si do assombro, e não compreendem a princípio a sua linguagem. Mostra-lhes três avelãs grandes, que tem na mão, e diz-lhes que são avelãs mágicas, que contêm as coisas mais surpreendentes do mundo.
   Ib anima-se enfim a encará-la. Falava com tanta doçura que o menino ganha coragem a pergunta se ela que dar aquelas avelãs. A cigana entrega-as e vai colher outras na árvore, enquanto as crianças examinam as três avelãs, de olhos arregalados.
   - Nesta aqui, haverá uma carruagem com dois cavalos? - pergunta Ib.
   - Há aí dentro um carro dourado com dois cavalos de ouro - respondeu ela.
   - Então dá-me essa - diz Cristina.
   Ib entrega-a; a mulher amarra avelã no fichu da menina.
   - E nesta aqui - indaga Ib - haverá um fichu tão lindo como aquele que Cristina tem no pescoço?
  - Aí dentro estão dez, mais bonitas ainda; e mais uma porção de lindos vestidos, sapatos bordados, um chapéu de plumas e um véu de renda.
  - Então também quero essa! - gritou a  menina.
  - E Ib deu-a, generosamente.
   Restava a terceira, que era toda negra. Cristina disse ao menino:
   - Essa agora deve ficar contigo; também é muito bonita.
   - Mas que é que ela tem dentro? - perguntou à cigana.
   - Aí dentro está o que há de melhor nas três.
   IB aperta na mão a preciosa avelã. A mulher promete mostrar-lhe o caminho certo, para votarem à casa; mas toma rumo contrário. Não é  que a cigana quisesse roubar as crianças, não. Ela mesma não sabia muito bem o que dizia,e não as enganava de propósito.
   A certa distância apareceu-lhe o guarda-florestal, que recohnece as crianças, e leva-as à casinha de Jeppe Jaens. Lá estavam todos inquietos, cheios de angústia. Ib e Cristina foram perdoados, é certo, mas depois de ouvirem explicar muito bem que tinham merecido um bom castigo, primeiro por terem deixado cair à água o leitãozinho, depois- e principalmente - por terem assim fugido para ao mato.
   Cristina foi levada  para casa. Quando Ib se viu sozinho, a primeira coisa que fez foi tirar do bolso a avelã que encerrava uma coisa de mais valor que uma carruagem dourada! Colocou-a com precaução entre a porta entreaberta e a ombreira, e puxou a porta. Quebrou-se a casca; nem amêndoa havia lá dentro: um verme comera-a. Só o que se via era um pozinho, semelhante a rapé, ou a terra enegrecida.
   - Era isso mesmo que eu pensava - disse Ib. - Pois como podia haver lugar, dentro desta avelãzinha, para coisas tão lindas, para o que há de melhor? Nem Cristina vai achar também seus belos vestidos, nem carruagem puxada por cavalos de ouro...
           
                           II

   Veio o inverno, e depois a primavera. E passaram-se muitos anos.
   Ib devia fazer a Primeira Comunhão e ser confirmado. Passou o inverno em casa do pastor da aldeia mais próxima, para receber a instrução religiosa necessária. Por essa época, o bateleiro foi visitar os pais de |Ib, e contou-lhes que Cristina ia servir como criada. Era uma boa fortuna, o que lhe ofereciam: entrava para a casa da gente melhor do mundo, os proprietários da estalagem de Herning, que ficava muito longe, para Oeste, a muitas léguas da floresta.
   Teria de ajudá-los nos trabalhos da casa e servir os fregueses. ficaria lá para fazer a Primeira Comunhão; se se mostrasse trabalhadora e delicada - coisa de que ninguém podia duvidar - aquela boa gente tinha a intenção de ficar com ela, como filha.
   Foram buscar Ib, para se despedir de Cristina, porque todos os chamavam de noivinhos. No momento da partida, a menina mostrou lhe as duas avelãs que ele lhe dera na mata. Disse que ainda guardava igualmente, com muito cuidado em uma caixinha, os lindos tamanquinhos que ele tinha feito quando era tão pequeno. Depois se separaram.
   Ib foi confirmado, e voltou para junto de sua mão; o pai tinha morrido. Tornou-se um tamanqueiro muito hábil. No verão, cultivava o campo, poupando a mãe a despesa de um lavrador.
   Somente de tempos em tempos tinham notícias de Cristina, por algum estafeta ou mascate. Ia bem, em casa do rico estalajadeiro. Quando se confirmou, escreveu ao pai uma longa e bela carta, enviando também cumprimentos a Ib e sua mãe. Contava que a ama lhe fizera presente de seis camisas novas e de um lindo vestido, que quase nem tinha sido usado. Eram muito boas notícias.
  Na primavera seguinte, bateram um dia à porta da mãe de Ib. E as visitas não eram outras senão o bateleiro e Cristina. A moça tinha vindo passar o dia com o pai, aproveitando o carro da estalagem, que fora enviado a um lugar próximo. Era linda como uma moça da cidade. trazia um vestido que lhe assentava muito bem, porque tinha sido feito pelas suas medidas; aqueles não eram um vestido velho da ama.
   Ali estava pois Cristina, magnificamente vestida. Ib trajava sua roupa do diário. Não pode dizer uma só palavra; contudo, pegou a mão da moça e conservou-a entre as suas. Sentia-se tão feliz...mas era-lhe impossível por  a língua em movimento. Com Cristina aconteceu o contrário; não cessava de tagarelar, de contar coisas, e abraçou Ib sem o menor embaraço.
    E quando ficaram a sós, perguntou-lhe:
   - Então não me reconheceste logo? Ficaste mudo como um peixe!
    E de fato, conservando sempre a mão dela segura, Ib continuava meio desorientado; por fim, recobrou a palavra:
   - É que tu te tornaste uma jovem tão elegante, enquanto eu aqui estou, mal vestido, como um pobre camponês...Mas se soubesse quanto tenho pensado em ti, e no nosso tempo de crianças!...
   Saíram a passear, de braço dado, pelo terreno alto que ficava por detrás da casa. Olhavam para os arredores, para o rio, a mata, as colinas cobertas de urzes. Ib pensava mais do que falava; mas quando voltaram, tinha chegado à conclusão de que Cristina devia ser sua mulher. Todos os chamavam de noivinho. Parecia-lhe claro: estavam prometidos um ao outro.
   Era preciso que Cristina voltasse naquela mesma noite à aldeia, onde o carro devia ir de manhã muito cedo buscá-la. Seu pai e Ib iriam acompanhá-la. Era uma linda noite: a lua e as estrelas brilhavam no céu. Quando chegaram, e Ib tornou a pegar na mão de Cristina, não sabia mais como havia de se separar dela. Não tirava os olhos do seu rosto tão suave. E estas palavra saíram-lhe com grande esforço, mas do fundo do coração.
   - Se tu não estás muito habituada ao conforto, Cristina, e se quiseres morar na casa de minha mãe, como minha esposa, casaremos em um dia...Mas podemos ainda esperar um pouco.
   - É verdade, temos tempo - respondeu ela, apertando-lhe a mão. - Não nos apressemos muito. Tenho confiança em ti e creio bem que te amo; mas quero ter toda a certeza disso.
  Ib abraçou-a ternamente, e separam-se.
   De volta à casa, disse ao bateleiro que ele e Cristina eram o mesmo que noivos, e desta vez, de verdade. O pai respondeu que jamais desejara outra coisa. Acompanhou Ib à casa de sua mãe e ficou lá até muito tarde; e não se falou senão no futuro casamento.
   Passou-se um ano. Foram trocadas duas cartas entre Ib e Cristina, e o que se lia no fim delas era: "Fiel até a morte".
   Um dia o bateleiro foi visitar Ib, e levar-lhe recados de Cristina. Pôs-se depois a contar muitas coisas diferentes, mas sem muita ligação no que dizia, e sempre com certo embaraço. Afinal Ib pode compreender o que ele queria dizer.
  Cristina ficara cada vez mais bonita. Todos a mimavam, todos gostavam dela. O filho do estalajadeiro, que tinha um excelente emprego em um grande estabelecimento em Copenhague, fora visitar os pais. Achara a moça encantadora, e agradara-lhe também. Os pais estavam muito contentes de ver que os dois se entendiam bem. Mas Cristina não esquecera quanto Ib lhe queria. E estava pronta a repelir a sua felicidade.
   E, chegando aqui calou-se o barqueiro, mais embaraçado que no começo.
  Ib tudo ouvira sem dizer palavra, mas ficara mais branco que a cal da parede. Por fim, sacudia a cabeça, e balbuciou:
    - Não! Cristina não deve rejeitar a felicidade!
    - Pois bem; escreve-lhe algumas palavras.
   Ib tomou pena e papel. Depois de muito refletir, escreveu algumas palavras, que logo riscou. Traçou outras, que riscou também. Depois rasgou a folha e escreveu uma outra, que acabou rasgando ainda. Enfim, foi somente no outro dia de manhã que ele conseguiu escrever, sem emendar, a seguinte carta que foi enviada a Cristina:
   " Li a carta que escreveste a teu pai. Por ela soube que até agora tudo tem saído à medida de teus desejos, e que ainda podes vir a ser mais feliz. Interroga teu coração, Cristina, e reflete na sorte que te espera se casares comigo. O que possuo é bem pouca coisa. Não penses em mim, nem no que eu poderia sofrer, mas lembra-te do teu próprio futuro. Não estás ligada a mim por promessa alguma, e se, no teu coração, tinhas feito uma em meu favor, desligo-te dela. Que a felicidade espalhe sobre ti, Cristina, seus mais ricos dons! Deus saberá dar consolo ao meu coração.
   " Teu amigo, que te será para sempre devotado. Ib"
   Cristina acho  que ele era um rapaz muito generoso. No mês de novembro foram feitos os pregões, e ela seguiu para Copenhague com a futura sogra, pois o casamento devia celebra-se na capital: o noivo não podia sair de lá em vista de sus afazeres. De caminho, o pai foi reunir-se a ela. A moça indagou de Ib; não tornara o bateleiro a vê-lo, mas soubera, pela mãe, que viva taciturno e ensimesmado.
   Em suas reflexões, recordara-se Ib das três avelãs que lhe dera a cigana. As duas em que deviam estar o carro com os cavalos dourados, e os ricos vestidos, tinha oferecido a Cristina; e de fato, ia ela agora possuir todas essas coisas maravilhosas. Do seu lado, também se cumpria a predição: tocara-lhe em partilha a terra negra.
   - Era o que havia de melhor- dissera a cigana.
   - Como adivinhou! A terra mais negra, o túmulo mais sombrio - não é o que mais me convém?
  
   Passaram alguns anos, não muitos. Para Ib, contudo, passaram um século. O velho albergueiro morreu; morreu depois a mulher. Deixaram ao filho único, milhares de escudos. Cristiha teve então uma bela carruagem e magníficos vestidos, em quantidade.
   Correram mais dois anos. O bateleiro quase não recebia notícias da filha. Afinal chegou uma longa carta. Tudo estava bem mudado. Nem ela nem o marido tinham sabido gerir sua riqueza. Até parecia que Deus não a abençoara. Começavam a se sentir em dificuldades.
   De novo refloriu a urze*, para tornar a secar. A neve abateu-se sobre  mata, que protegia a casa de Ib contra a violência do vento. Depois a primavera trouxe  de novo o sol. Ib lavrava seu campo. De repente a charrua* encontrou um obstáculo muito resistente. Ele remexeu a terra e tirou dela um objeto que parecia uma argola de pau, enegrecida; mas o ponto em que o ferro da charrua tocara, brilhava ao sol. Era um bracelete de ouro maciço, que provinha de um túmulo de gigante. Cavou e achou outras peças de ornato de um herói dos tempos antigos. mostrou aquilo ao pastor, que encaminhou ao burgomestre, com algumas palavras de recomendação. e o burgomestre( prefeito) disse-lhe:
   - O que encontraste na terra é o que há de mais raro, e de melhor!
  - É que ele entende, sem dúvida - dizia Ib consigo, amargamente - que é tudo o que há de melhor para um homem como eu. Mas vem a dar no mesmo; se estes objetos são considerados como o que há de melhor, a cigana predisse certo, afinal de contas, em tudo.
   A conselho do burgomestre partiu Ib ,para levar seu tesouro ao museu de Copenhague. Para ele, que raras vezes tinha atravessado o rio  que passava perto de sua casa, aquela viagem era como a travessia do oceano.
   Chegou a Copenhague, onde lhe deram grande soma: seiscentos escudos. Saiu a passear na cidade, que pretendia deixar na manhã seguinte, partindo no mesmo barco que o trouxera. À noite extraviou-se em um dédalo de ruas e achou-se no arrabalde de Christianshavn. Entrou em uma viela de aparência muito pobre, onde não viu  ninguém . Contudo, saiu de uma das casa mais miseráveis uma meninazinha, e ele lhe perguntou por onde devia ir para voltar ao centro. Olhou-o a criança com ar tímido e se pôs a chorar. Tomado de compaixão, interrogou a criança, e ouviu-a murmurar algumas palavras incompreensíveis. Andaram assim alguns passos e chegaram juntos de um lampião, cuja luz deu em cheio no rosto da menina. Ib ficou desorientado: via diante de si Cristina, absolutamente como ela era em pequena. Não, não podia enganar-se, tinha seus traços gravados com muita precisão na memória!
   Pediu à criança que o levasse á sua casa, e a menina, vendo-lhe o ar tão bondoso, deixou de chorar e entrou com ele na pobre morada. Subiram uma escada estreita e vacilante. Lá bem em cima, debaixo do telhado, entraram em um peça miserável, onde o ar era pesado e malsão (nocivo à saúde; insalubre, doentio) Não havia luz, e ouviu-se alguém respirar penosamente em um canto, suspirando e gemendo.
   Ib acende um fósforo e percebe que sobre um catre jaz a mãe da meninazinha.
   - Posso se-lhe útil em alguma coisa? - perguntou ele. - A menina me trouxe aqui, mas sou estranho na cidade. A senhora não conhece algum vizinho, ou outra pessoa, que eu possa chamar apara auxiliá-la?
   Vendo que a cabeça da doente resvalara do travesseiro, ergueu-a para acomodá-la. Olhou então para o rosto da infeliz; era Cristina , era aquela que fora a rainha da charneca!

    Há muito tempo não ouvia falar nela: todos evitavam pronunciar seu nome diante dele, para não despertar recordações penosas, tanto mais que que as notícias que vinham eram cada vez mais dolorosas. O marido, ao herdar os bens legados pelos pais, perdera a cabeça; julgara-os inesgotáveis. Renunciara ao emprego que tinha e saíra a correr países estrangeiros, com aparato de grande senhor. De volta a Copenhague, continuara a gastar do mesmo modo. E, quando lhe faltou o dinheiro, endividou-se, afundando-se cada vez mais na ruína. Os amigos e camaradas, que tão prontamente o tinham ajudado a devorar seus haveres, voltaram-lhes as costas, dizendo ainda que bem merecera aquele infortúnio porque cometera tantas loucuras. Afinal, uma manhã acharam seu corpo no canal.
   Desde muito tempo trazia Cristina a morte na alma. Seu filhinho mais novo, vindo ao mundo já no meio da miséria, morrera. Restava-lhe uma filha, a Cristina aquela que Ib encontrara. Viviam, a -mãe a criança, naquele miserável retiro, abandonadas, padecendo frio e fome. E por fim viera a doença.
   Ib ouviu-a murmurar:
   - Vou morrer e deixar esta pobre criança sem nada, sem proteção. que vai se dela?
   Já sem forças, calou-se. Ib acendeu um coto de vela que descobriu e o quarto ficou menos sombrio. Olhava para a criança e nela via cada vez mais distintamente os traços de Cristina naquela idade; e compreendeu imediatamente que aquela menina, que via pela primeira vez, lhe era já muito cara, por amor da mãe.
   Avistou-o a moribunda, que abriu os olhos desmesuradamente. Tê-lo-ia reconhecido? Ele jamais o soube. Dali a um momento ela expiava, sem ter proferido uma palavra.
   E eis-nos de novo no bosque, perto do Rio Guden. Já não há flores na charneca. As tempestades do outono varrem com violência as folhas secas, atirando-as contra a casa do bateleiro, onde moram hoje pessoas estranhas. Mas, abrigada por uma elevação do terreno, protegida por grandes árvores, a casa de Jeppe Jaens está toda rebocada e caiada. Lá dentro arde o fogo na lareira; se o sol está oculto, atrás das nuvens, a casa é alegrada pelos olhos brilhantes de uma linda criança. Quando ela move os lábios rosados e sorridentes, é como o canto dos passarinhos. Com a menina, entraram na casa a vida e a alegria. Neste momento dorme nos joelhos de Ib, que é para ela a um tempo, pai e mãe.

   Ib vive hoje na abastança; seu trabalho não foi estéril: ele fez frutificar aquele ouro que tirou do seio da terra - e achou outra vez a sua Cristininha!
                     FIM





*URZE:  São espontâneas em terrenos pobres em cal e com flores de cores diversas. As espécies existentes em Portugal são muito comuns e encontram-se em todo o país, mas sobretudo nas montanhas de granito a norte de Portugal continental. Contudo esta espécie chega até as ilhas da Madeira e do Porto Santo, podendo ai ser encontradas desde a sua descoberta.




Continua....
Meus querido amigos, eu transcrevo minhas histórias quando eu tenho um tempinho, e quando paro relato o que eu vou fazer.

Hoje é o primeiro dia de junho, como está passando rápido este ano. Estou adorando esta história, mas tenho consciência que estpu demorando para transcreve-la. Hoje está muito chuvoso aqui , portanto vou terminar hoje este conto. Beijos amo vocês!

dia 28 , domingo, vou tomar meu café da manhã. 

dia 23  e maio mais uma folha transcrevo , mas o dever me chama, se Deus permitir um dia viverei de escrever, ganhando algum dinheiro para pagar uma pessoa para fazer o serviço doméstico, que não é pouco. Beijos




Bom dia, hoje dia 22 de maio de 2017 ,  aqui cidade Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul país Brasil está um lindo dia de outono. Ontem deixei meu serviço todo adiantado para poder transcrever minhas histórias. Agora vou tomar café da manhã e se der digito um pouco mais mais desta incrível história. Eu estava pensando sobre a ingenuidade de uma criança. Até o momento em que ela cria uma memória seja boa ou má ela não tem nenhuma experiência. Por isso os pais tem que falar várias vezes sobre um assunto seja bom ou não para a criança poder pensar sobre suas decisões. Elas estão conversando com uma estranha sem medo algum.Que fome , vou tomar meu leite de soja com bolacha integral, requeijão e mel. Amo tudo isso

quinta-feira, 4 de maio de 2017

A PULGA E O PROFESSOR - CONTOS DE ANDERSEN

   Era uma vez um aeronauta, que não tinha muita sorte: seu balão estourou, e ele caiu, e despedaçou-se todo. Por sorte, fizera o filho descer em um pára-quedas dois minutos antes, e foi assim que o moço se salvou. Saiu ileso, e desde esse dia não lhe saíam da cabeça projetos: queria ser aeronauta.
   Mas ele não tinha balão, nem meios para adquirir um. Entretanto, era preciso viver, e por isso mesmo tratou de se especializar nas artes do malabarismo. Aprendeu também a falar com o estômago - ventriloquia, como diziam as pessoas. Era moço bem-parecido; com aquele bigode, e com as boas roupas que conseguira obter, poderia passar por um filho de conde. As damas achavam-no bonito, e uma moça ficou a tal ponto enfeitiçada pela sua beleza e pelas suas artes, que se decidiu até a acompanhá-lo para terras e cidades estrangeiras. Lá longe, ele se chamava professor, pois não se contentava com título mais humilde.
   Sua ideia fixa era obter um balão, para subir aos ares, com a sua mulherzinha; mas nunca conseguia obter os recursos necessários para comprá-lo. Sempre, porém, acabava dizendo:
   - Eles hão de vir, hão de vir!
    - Tomara que venham logo! - suspirava a esposa.
   - Nós somos moços, e eu sou professor. É de migalhas que se formam um pão...
   Ela o ajudava diligentemente; sentava-se à porta e vendia as entradas para os espetáculos - e no inverno era aquele um divertimento muito fresco. Auxiliava-o também em um truque: metia-a ele em uma gaveta de mesa - uma gaveta enorme. Dali ela passava, de rastos, para a gaveta de trás, de modo que o público não a via mais na da frente: e é isso o que se chama ilusionismo.
   Ora, uma bela noite, quando ele puxou a gaveta, a mulher se sumira de verdade; não estava em parte alguma da casa. E ninguém a via em parte alguma, nem a ouvia: era esse o seu malabarismo, o dela. E nunca mais voltou.
Estava farta daquela vida, da qual também ele acabou por se fartar; perdera o bom humor, já não podia rir, em fazer palhaçadas. O resultado foi que o público o abandonou. As rendas foram ficando ruins, e ruins também foram ficando as suas roupas. Chegou um dia em que já nada mais possuía, a não ser uma grande pulga, herança da esposa; por isso mesmo queria muito àquela pulga. Amestrou-a, ensinou-lhe atos de malabarismo, e a apresentar armas; ensinou-lhe até a disparar um canhão. Mas era apenas um canhãozinho minúsculo.
   O professor orgulhava-se da pulga, e ela também se orgulhava muito de si. Aprendera alguma coisa; tinha nas veias sangue humano; andara pela maiores metrópoles. Fora vista por príncipes e princesas, e até merecera seus aplausos ilustres. Era isso o que se lia nos jornais e nos cartazes. A pulga sabia que era celebridade, que podia sustentar um professor, e até uma família inteira.
   Era soberba, e via-se coberta de fama; e todavia quando viajava com o professor, iam na quarta classe. Mas afinal esta corre com a mesma velocidade da primeira.
   Havia entre ambos um convênio tácito: jamais se separariam, nem casariam: a pulga queia ficar solteira, e o professor, viúvo, o que vem a dar no mesmo. E ele explicava:
   - Não devemos tornar a procurar a felicidade onde a encontramos da primeira vez!
   É que o professor conhecia os homens, o que é também uma ciência.
   Afinal viajara já por todos os países, menos pelas terras dos selvagens. E daí vinha que desejava muito conhecê-los. Sabia que comiam gente cristã; mas achava que não era um cristão verdadeiro, e, quanto à pulga, não era também gente de verdade. Assim, julgava que poderiam viajar tranquilamente, obtendo ainda por cima bons lucros.
   Viajaram primeiro em um vapor, depois em um veleiro. A pulga exibia suas artes, e assim conseguiram passagens e sustento de graça. E chegaram ao país dos selvagens.
   Reinava lá uma princesinha. Tinha apenas oito anos, mas reinava. Arrebatara o poder aos pais, pois era obstinada, e além disso incrivelmente graciosa e mal-educada.
   Quando a pulga a presentou armas e disparou o canhão, a princesa sentiu-se a tal ponto arrebatada, que declarou:
    - É este! Este, ou nenhum!
   Não é muito de admirar o seu engano, porque na sua língua o nome de pulga é masculino.
    Debalde o pai observou:
   - Mas, minha querida, minha dócil e sensata menina, escuta: se ao menos a gente pudesse transformar esta pulga em um ser humano...
   - E que tens tu com isso, velho?
   Ora, era muito feio, mesmo para uma princesinha, falar assim com o pai. Mas a menina era mesmo selvagem. E depôs então a pulga na palma da mãozinha, dizendo-lhe: 
   - De agora em diante serás um homem, e tomarás parte no governo; mas terás de fazer o que eu quiser. Senão mato-te, e mato o professor!
    Este teve para sua morada um grande salão, cujas paredes eram de cana-de-açúcar. Podia, quando lhe apetecesse, mordiscá-las; mas ele não era lambareiro.( 
  1. 1.
    que ou aquele que se mostra guloso, que gosta muito de comer lambarices; lambaraz, lambeiro, lambisqueiro.
  2. 2.
    diz-se de ou indivíduo cuja tagarelice visa malquistar, intrigar; mexeriqueiro, lambaraz.)
Deram-lhe uma rede para dormir: e parecia-lhe então que realizara a sua ideia fixa, pois era como se estivesse deitado em um balão.
   A pulga ficou com a princesa, que a acomodou na mãozinha, e no lindo pescoço. A menina arrancou um fio de cabelo, que o professor amarrou na perna da pulga. A princesa prendeu a outra ponta a um grande galho de coral, que usava no lóbulo da orelha.
   Foram tempos muito agradáveis para a princesa, e, na opinião dela, também para a pulga. Mas quem não estava muito satisfeito era o professor. Habituara-se às viagens, e gostava de andar de cidade em cidade, e de ler nos jornais, com grandes elogios, a notícia da infatigável paciência e inteligência com que ensina à pulga proezas humanas. E agora ali ficava, dias e dias, deitado na rede, dormindo, ou comendo bons manjares: ovos frescos, olhos de elefante, lombo de girafa assado; os antropófagos não vivem só de carne humana; essa constitui quitute rara. A rainha-mãe costumava dizer.
   - Ombro de criança com molho picante é o pitéu mais delicado.
   Andava aborrecido o  professor, e muito desejoso de sair daquele país selvagens. Mas seria necessário levar também a pulga, que era a sua obra maravilhosa e seu ganha-pão. Ora, apanhá-la - e, conservá-la em seu poder - não era nada fácil!
  Fez apelo a todo o seu engenho, e por fim pode dizer:
   - Achei a solução!
   Foi ter com o rei disse-lhe:
   - Pai da princesa! Dá-me  licença para realizar uma coisa. Deixa-me ensinar aos habitantes do país como apresentar armas, pois é isso que se chama cultura nos maiores países.
    - E a mim que é que podes ensinar? - perguntou o pai da menina.
   - A minha arte suprema: disparar um canhão que fará tremer a terra,  e as aves mais tenras caírem assadas ao solo, com a força da explosão.
   - Pois traze-me o canhão!
   Mas não havia nenhum no país inteiro, a não ser o da pulga, que era pequenino demais.
   - Fundirei outro maior - declarou o professor - se me deres os materiais necessários; fino pano de seda linha agulha, cordas e cabos, e gotas estomacais para o canhão. Elas o intumescem, de sorte que o canhão fica mais leve, e se ergue nos ares. E por fim causam a explosão no estômago do canhão.
   E recebeu tudo quanto exigira.
   Toda a população do país correu a ver o grande canhão. O professor não falou antes que o balão estivesse cheio, e pronto para subir.
   A pulga estava sentada na mão da princesa, olhando aquilo. Encheram o balão, que ficou estufado, de modo que mal podiam contê-lo.
   - Agora é preciso que suba para resfriar - disse o professor.
   Sentou-se então na cesta suspensa embaixo do balão, e declarou:
   - Não posso governá-lo sozinho. Preciso de alguém para me ajudar, mas é preciso que seja uma pessoa perita no assunto, e neste caso, somente a pulga poderá servir.
    Consinto, não lá de muito boa vontade - disse aprincesa.
   E passou a pulga para as mãos do professor.
   - Cortem as amarras - gritou ele - para que suba o balão!
   Os selvagens julgaram ouvi-lo dizer "canhão".
   Foram cortadas as cordas, e o balão foi subindo, subindo cada vez mais alto, acima das nuvens...e desapareceu.
   A princesinha, seus pais e todo o povo ficaram esperando por ele. E ainda lá estão, à espera.
   Se não me acreditas, vai até o país dos selvagens. Todas as criança, naquela terra, falam do professor e da pulga, e acham que ambos voltarão quando o canhão estiver frio.
   Mas eles não voltarão. Estão aqui, na sua pátria, e viajam agora de trem, na primeira classe e não mais na quarta. Tem boas rendas, e possuem um grande balão. Ninguém pergunta de que maneira o construíram, nem onde o obtiveram.
  São pessoa abastadas, são gente de bem, a pulga e o professor.

FIM