quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A FILHA DO REI DO BREJO - CONTOS DE ANDERSEN

   As cegonhas sabem muitas histórias, que vão contando aos filhotes, e todas essas histórias falam de brejos e banhados. E as cegonhas sabem também adaptá-las à idade e compreensão das crianças. Os mais novinhos contentam-se com parlendas infantis, e outras tolices, mas os mais crescidos querem ouvir coisas mais sensatas, ou que pelo menos falem da família. Algumas dessas histórias, das mais compridas e mais antigas, foram assim conservadas pelas cegonhas; uma delas conta de Moisés, que foi  abandonado pela mãe nas águas do Nilo, onde a filha do rei o encontrou. E conta também como a princesa o educou, e como ele veio a ser um grande homem, cujo túmulo ninguém sabe até hoje onde está. Essa história é conhecida de todos.
    A outra história não é ainda tão conhecida, porque as cegonhas até agora a guardaram em segredo. Há mais de mil anos que as mães cegonhas a vão passando umas às outras, e cada mãe sempre a contava melhor que a anterior; até que hoje em dia nós podemos contá-la melhor ainda que todas elas.
  O primeiro casal de cegonhas que contou essa história, e que de fato a viveu, tinha seu pouso de verão no teto da casa de madeira do Viking(*), construída perto do "Vidmosen" ( O Brejo Bruto), em Wendsyssel. Fica no condado de Hiorring, para os lados de Skaw, ao norte da Jutlândia - conforme dizem os entendidos. Existe lá um grande brejo, de que falam as crônicas do condado.  Aquela região era antigamente  coberta pelas águas do mar, mas o terreno foi levantando, e estende-se hoje por muitas milhas. Cercam-na de todos os lados campinas pantanosas, tremedais e turfeiras, onde crescem amoreiras e arbustos enfezados.
     Paira quase sempre sobre aqueles pauis um nevoeiro denso, e há setenta anos eram eles ainda infestados de lobos. Assentava-lhe bem o nome de Brejo Bruto, e não é difícil imaginar quão medonho e desolado seria aquilo, no meio de todos aqueles atoleiros e banhados, há mil anos atrás! As plantas, particularmente, são ainda as mesmas daquele tempo. Os juncos ainda são da mesma altura, e ostentam a mesma espécie de folhas, de pontas penugentas. Ainda cresce lá a bétula de casaca branca e folhas delicadas e pendentes. Quanto às criaturas viventes, as moscas ainda usam vestidos de gaze do mesmo feitio; e as cegonhas ainda trajam, com as daquele  tempo, roupa preta e branca, e compridas meias vermelhas.
    É claro que as criaturas humanas trajavam então roupas de corte muito diferente das de hoje em dia; e se alguma delas, servo ou caçador, ou quem quer que seja, se aventurasse a andar pelo tremedal, esperava-a o mesmo destino que há mil anos - havia de se sumir ali, e submergir, indo parar na casa do Rei do Brejo. É ele quem reina lá embaixo, sobre todo o reino dos banhados e tremedais.
   Quadrava-lhe também o nome de Rei dos Tremedais, mas preferimos chamá-lo Rei do Brejo, como diziam as cegonhas. Pouco sabemos do seu reino, mas isso é o de menos.
   Perto dos brejos, para o lado daquele braço do Cattegat chamado Limfiord ( Golfo viscoso) , assentava a casa do Viking, com sua adega de pedra, sua torre e seus três andares. As cegonhas tinham construído o ninho sobre o teto, e a mãe cegonha estava chocando seus ovos. Esperava ver todos descascados, sem perder nenhum.
  Uma tarde o pai cegonha estava tardando em voltar, e quando chegou parecia um tanto aborrecido. E disse logo à mãe cegonha:
  - Tenho uma coisa terrível para te contar!
   - Não a contes então - respondeu ela. - Lembra-te de que estou chocando, e isso talvez me perturbe e prejudique os ovos!
   - Mas é preciso que o saibas; ela está aqui, a filha do nosso hospedeiro do Egito. Aventurou-se a fazer a viagem, e agora se sumiu.
    -Ela, a parenta das fadas! Conta-me tudo, tudo...Sabes que assim choca como estou, não posso esperar nada.
   - Olha aqui, minha velha! Ela sem dúvida acreditou no que o doutor disse, conforme me contaste: acreditou que as flores do brejo que nascem aqui fariam bem ao pai, e voou  para cá, vestida de plumagem, com as outras duas princesa, aquelas que vem do norte todos os anos para tomar banhos e rejuvenescer. Ela veio, sim, e desapareceu!
    - Estás fazendo muitos rodeios; eu não posso ficar assim suspensa, à espera; os ovos apanhariam frio.
   - Tenho estado vigiando, disse o pai cegonha, e hoje, quando me encontrava no meio dos caniços, lá onde o banhado mal se aguenta, vi três cisnes voando; mas notei no seu voo alguma coisa que me chamou a atenção. E disse comigo: "Vigia-os! Aqueles cisnes não são cisnes de verdade! Vestem apenas a plumagem de cisne". Tu sabes, minha velha, tão bem como eu, que a gente sente intuitivamente se uma coisa é ou não é o que quer parecer.
   - É assim mesmo, é; mas conta-me o que houve com a princesa. Estou farta de ouvir na plumagem dos cisnes.
       - Sabes que no meio do pântano há uma espécie de lago. Poderás ver uma ponta dele daqui, se ergueres a cabeça. Havia lá um enorme tronco de salgueiro, entre os  arbustos e o tremedal, e os três cisnes pousaram nele, batendo as asas e olhando em redor. Então um despiu a plumagem de cisne, e reconheci imediatamente a princesa do Egito. Sentou-se ali, coberta apenas com seus longos cabelos negros; ouvi que ela pedia às outras que cuidassem da sua plumagem de cisne, enquanto mergulhava na água para colher a flor do brejo, que julgava encontrar lá embaixo. Elas o prometeram; mas ergueram a cabeça e levantaram voo, levando a plumagem abandonada. "Que irão fazer com aquilo?" pensei comigo; e certamente ela também fez a mesma pergunta. E a resposta, teve-a em seguida: voaram pelos ares com a roupagem de penas! E gritavam :" Mergulha agora! Nunca mais tornarás a voar disfarçada em cisne, pata! Nunca mais tornarás a ver a terra do Egito...Podes ficar ai no banhado!" E rasgaram o vestido de penugem em mil bocados, espalhando as penas por toda a parte, com uma tempestade de neve. E aquelas duas malvadas voaram para longe.
   - Que coisa terrível! - disse a mãe cegonha. - E depois?
   - A princesa lamentava-se e chorava! Suas lágrimas foram gotejando sobre o tronco do chorão; e ele começou a mover-se, porque era ao próprio Rei do Brejo em pessoa, que mora no apul. Vi o tronco virar-se e revirar-se, e vi que não era mais tronco: estendia para os lados galhos lamacentos, que eram os braços. A pobrezinha ficou aterrada, e atirou-se para o tremedal, que não suporta nem o meu peso, quanto mais o dela! Sumiu-se imediatamente, e o tronco de chorão foi atrás dela: e arrastou-a para o fundo. Brotaram no lodo grande borbulhas negras, e depois fundo ficou quieto outra vez. Agora ela lá esta enterrada no Brejo Bruto, e nunca mais voltará ao Egito, para levar as flores que veio buscar. Oh! minha velha, tu não terias suportado semelhante cena!
  - Tu nem devias - ter-me contado uma coisa assim, justamente agora: poderia fazer mal aos ovos. Mas a princesa que cuide de si! Ela há de arranjar auxílio em alguma parte. Agora, se tivesse acontecido isso contigo ou comigo, ou com alguém da nossa espécie, então sim, tudo estaria acabado!
   Ainda assim - disse o pai cegonha - eu hei de vigiar todos os dias.
  E cumpriu a  promessa.
   Passou-se muito tempo; um dia notou ele que das profundezas insondáveis brotava uma haste verde. E quando chegou à superfície da água, apareceu na ponta uma folha, que foi crescendo, dia a dia. Junto da folha apareceu depois um botão, e uma manhã muito cedo, exatamente no momento em que o pai da cegonha ia passando. Abriu-se o botão aos quentes raios de sol: e no meio estava um lindo nenê. Uma meninazinha, tão fresca como se viesse saindo agora mesmo do banho. Era  tão parecida com a princesa do Egito que a princípio a cegonha pensou que era ela mesma, que ficara outra vez pequenina; mas refletindo um pouco, compreendeu que era a filhinha do Rei do Brejo. Por isso aparecia assim numa flor de loto.
  - Ela não pode ficar ali - pensou o pai cegonha - e tenho já tantos no ninho...Mas veio uma ideia! A mulher do Viking não tem filhos, e deseja tanto um nenê..Visto que dizem que eu trago nenêzinhos, vou fazer isso de verdade, desta vez. Vou voar para a casa do Viking com o nenê, e há de ser uma grande alegria para a sua mulher.
   E a cegonha segurou o nenê e voou com ele para a casa de madeira. Chegando lá, abriu um buraco na pele de bexiga que tapava a janela, e depôs o nenê nos braços da mulher do Viking.
    Feito isto, rumou para casa e contou à mãe cegonha o que tinha acontecido. Os filhotes ouviram a história - e já estavam em idade de compreendê-la.
    - Já vês que a princesa não está morta; foi ela sem dúvida que mandou aquele nenê cá para cima, e eu achei um lar para a criancinha.
   - Desde o princípio eu o dizia - retrucou a mãe cegonha. - Agora vê se te resolves a cuidar de nossos filhos: está chegando o tempo de empreendermos a nossa viagem. Sinto de vez em quando um zunido nas asas! O cuco e o rouxinol já la se foram, e ouvi as perdizes dizerem que cedo teremos bons ventos. E, ou nossos pequerruchos farão boa figura nas manobras, ou eu não entendo disso!
    Quando a mulher do Viking acordou, e encontrou a seu lado o nenêzinho, ficou contentíssima. Beijou-o e cobriu-o de carícias; mas o nenê gritava e esperneava, e não havia nada que o contentasse. Afinal depois de muito chorar, adormeceu, e era sem dúvida a coisa mas linda que se podia ver. A mulher do Viking estava na maior alegria - corpo e alma inundados de felicidade. Estava agora certa de que o marido com todo os seus homens iam voltar tão inesperadamente como tinha aparecido aquele nenê. E ela e toda a criadagem trataram imediatamente de por a casa em ordem para esperá-los. As extensas tapeçarias que ela e suas criada tinham tecido, e que representavam seus deuses - Odin, Thor e Freya - foram penduradas. Os servos arearam e poliram os velhos escudos que pendiam das paredes; as almofada foram espalhadas pelos bancos, e encheu-se de lenha a grande lareira do vestíbulo, de sorte que ficava pronta para acender no momento preciso. A própria mulher do Viking ajudava em todos os trabalhos, de modo que ao escurecer estava fatigada, e dormiu profundamente.


   Ao despertar, de manhã cedo, ficou muito assustada, porque deu falta do nenê: tinha desaparecido. Sentou-se e, acendeu alguns galhos de pinheiros para ver se enxergava a criança. Não a encontrou, mas aos pés da cama estava um sapo horrendo. Assustou-se ao ver aquele animal tão feio, e ia dar-lhe uma bordoada com uma bengala pesada, mas o sapo deitou-lhe um olhar tão estranho e tão triste, que ela não teve coragem de desferir o golpe. Continuou a procurar a criança, e nisto o sapo saltou um gemido fraco, que a sobressaltou. Saltou da cama e foi abrir a janela; o sol, que ia surgindo, iluminou com seus raios a cama e o enorme sapo. Imediatamente a boca do monstro foi se contraindo, foi ficando pequena e rosada, os lábios estenderam-se, tomando lindas formas, e ali estava de novo sua linda filhinha, em lugar do horrendo animal.
  - Mas que é isto? - exclamou ela. - Que sonho horrível! - É a minha querida filhinha...
   Beijou-a e apertou-a ao peito, mas a criança lutava e mordia-a, como uma gatinha furiosa.
   O senhor, Viking, não chegou nesse dia, e nem no seguinte; estava já a caminho, mas o vento não lhe era favorável; soprava para o sul para as cegonhas.
   - Um mau vento, que não presta para nada!
   Dentro de alguns dias já a mulher do Viking compreendera o que se passava com o seu nenê: algum poder maléfico a dominava. De dia era tão linda como uma fada, mas tinha então um temperamento perverso; à noite virava em um sapo medonho, tranquilo e dócil, de olhos tristes e suaves. Duas naturezas viviam em continua alternativa no seu corpo e na sua alma. É que a criancinha, que provinha da rã, de dia tinha a forma da mãe e a natureza má do pai; mas à noite seu parentesco com ele revelava-se na forma exterior, enquanto a natureza suave e o espírito delicado da mãe irradiavam daquele monstro disforme.


   Quem poderia libertá-la do poder daquele encantamento?
  Por maior que fossem o desgosto e desassossego da mulher do Viking, ela sentia uma imensa piedade daquele serzinho infeliz. Sentia que jamais poderia contar ao marido aquela história toda, porque bem sabia que ele, conforme o costume do tempo, havia de abandonar a pobre criança na estrada, para quem quisesse vê-la. A boa mulher não tinha coragem de suportar semelhante coisa, e resolveu definitivamente que o marido só havia de ver a menina durante o dia claro.
   Uma manhã ouviu-se o barulho de asas de cegonhas zunindo no teto: durante a noite mais de cem casais tinham pousado ali para descansar, depois das grandes manobras, e experimentavam as asas antes de empreender o longo voo para o sul.
   - Todos os homens prontos! - gritavam elas. - E também todas as mulheres e crianças!
   E as mais novinhas diziam:
   - Sinto-me tão leve! Minhas pernas latejam, com se estivessem cheias de rãs vivas! Que coisa esplêndida, viajar por terras estrangeiras!
   - Em linha! - disseram os pais. - E não batam tanto o bico: não é bom para o peito.
   E lá se foram voando.
   Naquele instante soou uma trompa na charneca. Chegara o Viking, com todos os seus homens; traziam um opulento despôjo, arrancado da costa da Gália, lá onde o povo gritava de terror, como fazia o povo da Bretanha:
   - Livrem-nos dos selvagens do Norte!
   Que vida, que movimenta havia agora na casa do Viking, perto do Brejo Bruto!" Veio para o saguão o barril de hidromel, acendeu-se a grande lareira, e muitos cavalos foram mortos para a festa, que devia ser estrondosa. O sacerdote aspergiu os escravos com o sangue dos cavalos, como uma consagração. O fogo crepitava e rugia, arrojando a fumaça para o teto, e dos barrotes escorria a fuligem; mas eles estavam habituados àquilo.
   Todos os convidados receberam lindos presentes. Todas as contendas, todas as desconfianças foram esquecidas. Os homens beberam copiosamente, e, depois de roerem toda  a carne, batiam com os ossos no rosto uns dos outros - mas isso tudo eram sinais de amizade. O Skald -o menestrel daqueles tempos- era também um guerreiro. Acompanhara-os na expedição, e sabia muito bem o que dizia quando cantava . O Skald cantou, pois, uma balada, narrando todos os feitos de guerra, todas as proezas daqueles homens. E após cada estrofe, vinha um estribilho: " A fortuna se pode perder, os amigos podem morrer, a gente morre um dia - mas um nome glorioso nunca morre!"
    E o homens tangiam os escudos, batiam com as facas nos ossos de vitela que estavam sobre  a mesa, e todo o vestíbulo retinia.
     A mulher do Viking estava sentada no banco que atravessava o salão do banquete. Trajava um vestido de seda, e tinha pulseiras de ouro e grandes contas de âmbar. O Skald mencionou seu nome no canto, falou do tesouro de ouro que ela trouxera ao seu marido, e da alegria dele, com a vinda da linda criança( que atá agora ele só vira sob a sua amável aparência diurna). Admirava a natureza apaixonada da menina, e dizia que ela viria a ser uma valente donzela de armas, uma daquelas pessoas que não pestanejavam, nem que uma mão destra lhe arranque as sobrancelhas, por brincadeira, com uma espada aguçada.
   O barril de hidromel esgotou-se, e rolaram outro para o salão; Não tardou que o outro se esvaziasse até a borra, mas aquela gente tinha a cabeça tão forte, que não se abalava. Havia entre eles então um provérbio: " Os irracionais sabem quando é hora de deixar a grama e ir para casa, mas os loucos não sabem quando chega de beber". Sim...eles bem o sabiam, mas muitas vezes as pessoas sabem uma coisa e praticam outra, apesar disso. Sabiam também que " o amigo mais íntimo torna-se importuno, se se  demora demais na nossa casa"; mas mesmo assim iam ficando. Comidas e bebidas são coisas muito boas! A sociedade era muito jovial! À noite os escravos dormiam entre as cinzas quentes; mergulhavam os dedos na gordura cheia de fuligem e lambiam-nos. Estranhos tempos eram aqueles, na verdade!
   Naquele ano o Viking tornou a partir para uma excursão, quando os ventos do outono já começavam a soprar. Navegou com seus homens para a costa da Bretanha.
   - E ali, do outro lado da água...- dizia ele.
   A mulher ficou em casa com a criança; a mãe adotiva parece que já gostava mais do pobre sapo de olhos melancólicos e suspiros queixosos, do que da linda menina que mordia e despedaçava tudo.
   - Já o frio e pegadiço nevoeiro do outono, o "verme roedor" que rói as folhas das árvores, se estendia por sobre bosques e campos; e "ave de penas soltas, como eles chamavam a neve, cerrada, por toda a parte. Era o inverno que vinha chegando. Os pardais tomaram sob a sua proteção os ninhos das cegonhas, e criticavam os ausentes lá a seu modo. O casais de cegonhas e seus filhotes...onde andaram eles?
   As cegonhas estavam na terra do Egito, onde gozavam um sol como nós temos em um dia de verão! Achavam-se cercadas de tamarindos e de acácias. O crescente de Maomé luzia nas cúpulas das mesquitas, e muitos casais pousavam nas torres esguias, descansando da longa viagem. Bandos inteiros delas tinham os ninhos lado a lado, nos imensos pilares, ou nas arcadas arruinadas dos templos desertos. A tamareira erguia bem alto seu abrigo de palmas, como se quisesse formar um guarda-sol. As pirâmides, de um branco acinzentado, desenhavam na clara atmosfera do deserto o seu perfil sombrio, onde a avestruz sabia que acharia lugar para se aninhar. O leão agachava-se, contemplando  com seus grandes olhos inteligentes a Esfinge de mármore meio enterrada na areia. As águas do Nilo tinham recuado, e a terra formigava de rãs; para a cegonha era aquela visão mais esplêndida em toda a extensão da terra. Os olhos dos filhotes estavas deslumbrados, diante daquele espetáculo.
  - Vejam o que há por aqui; tudo isso nós sempre temos, no nosso quente país - disse a mãe cegonha.
   E os pequenos sentiram o estômago tinir. Um deles perguntou:
   - Não há mais nada por aqui? Nós não vamos mais para o interior?
   - Não há por lá muito que ver não. Na margem fértil há apenas matos isolados, onde as árvores estão tramadas de trepadeira. Só o elefante, com aquelas pernas grossas e fortes, é que pode abrir caminho lá dentro. As cobras ali são demasiado grandes para nós, e os lagartos muito ariscos. Se vocês saírem para o deserto, durante o bom tempo a luz do sol os cegará e, se houver mudança, poderão ficar soterrados com uma tempestade de areia. Não, é melhor ficar onde estamos; há rãs de sobra, e gafanhotos. Eu fico aqui!
    E assim ficaram todos.
   As cegonhas velhas pousaram nos seus ninhos, nos minaretes esbeltos, descansando; mas ao mesmo tempo estavam muito ocupadas, alisando as penas e esfregando o bico nas meias vermelhas. Ou senão erguiam o comprido pescoço, inclinando gravemente a cabeça, com uma luz de sabedoria nos olhos pardacentos. As senhoritas cegonhas passeavam gravemente entre os caniços sumarentos, deitando olhares para os moços cegonhas, ou travando conhecimento com eles. De três em três  passos engoliam uma rã, ou iam andando com uma cobrinha segura no bico - o que lhes parecia de muito bom efeito, e era muito gostoso. Os moços armavam brigas a cada passo, e batiam as asas com fúria, ferindo-se mutuamente com o bico, até escorrer sangue. Depois da briga escolhiam uma companheira e iam construir seu ninho.; era para isso que viviam. Não tardava que rompessem novas disputas, porque naqueles países as pessoas são muito ardorosas. Mas tudo o que os filhos faziam estava bem feito. O sol brilhava todos os dias, não faltava alimento; em nada tinham de pensar, a não ser no prazer!
     Mas no grande palácio do seu hospedeiro egípcio, como diziam as cegonhas não reinava a mesma alegria. O rico e poderoso senhor jazia estendido no leito, com os membros tão rígidos como se fosse uma múmia. O grande saguão todo pintado era tão cheio de esplendor, como se ele estivesse deitado dentro de uma tulipa. Cercava-no os parente e amigos; não estava morto, e contudo, mal se poderia dizer que vivia. A flor milagrosa do brejo das terras do norte, que tinha de ser achada e colhida pela pessoa que mais o amasse, nunca foi trazida. Sua filha, tão jovem e tão linda, que voara para o norte longínquo, atravessando terras, que voara para o norte longínquo, atravessando terras e mares, vestida com a plumagem de um cisne, nunca voltara. As outras duas princesa cisnes voltaram, e contaram esta história:
   - Nós voávamos muito alto nos ares quando um caçador nos viu e disparou uma flecha; acertou mesmo no coração da nossa amiga e ela caiu lentamente. Desceu cantando o seu canto de despedida, e foi cair em um lago no meio do mato. Nós a enterramos lá perto da praia, à sombra de uma bétula; mas também a vingamos: amarramos fogo debaixo das asas de uma andorinha que tinha o ninho no beiral do telhado dele. Prendeu fogo no teto e o chalé inteiro ardeu, ele morreu queimado lá dentro. As chamas iluminarem a lagoa onde ela jazia, terra da terra, debaixo do vidoeiro. Nunca mais ela votará à terra do Egito.
   Choravam ambas, e o pai cegonha , que as ouvia, bateu com o bico e disse:
   - Tudo mentira; eu bem queria meter meu bico com toda a força no peito delas!
   - Onde teu bico se quebraria, e ficarias em bonito estado! - disse a mãe cegonha. - Pensa primeiro em ti e na nossa família, e tudo o mais virá em segundo lugar!
    - Eu vou pousar sobre a cúpula aberta amanhã, quando todos os sábios e pessoas instruídas se reuniram para falar no homem doente: talvez eles cheguem um pouco mais perto da verdade!
   Reuniram-se os sábios, e falaram longa e eruditamente, mas a cegonha achou que tudo o que disseram não tinha pés nem cabeça. E nada resultou da discussão, nem para o homem doente nem para afilha, enterrada lá no Brejo Bruto. contudo, nós também pudemos ouvir o que disseram, e talvez compreendêssemos melhor - ou pelo menos tão bem com a cegonha.
   - É o amor que sustenta a vida! O amor mais elevado nutre a vida mais elevada! Só pelo amor pode esta vida ser recuperada!
   E os sábios declararam que aquilo era uma grande verdade.
   - É uma bela ideia! - disse o pai cegonha, imediatamente.
   - Eu não a entendo muito bem - declarou a mãe cegonha - entretanto a culpa não é minha, mas a ideia. Afinal, isso não me preocupa muito: tenho mais em que pensar!


   Tinham os sábios falado longamente sobre o amor; a diferença entre o amor dos namorados e o amor que une os pais aos filhos , as plantas à luz ; e lembraram como os raios do sol beijavam o lodo e logo brotava a vida dos tenros gominhos.
    O discurso inteiro era tão erudito que o pai cegonha não pode entendê-lo, quanto mais repeti-lo depois. Ficou pensativo, pousado sobre uma perna o dia inteiro, com os olhos meio fechados. A ciência era para ele fardo muito pesado.
   Entretanto uma coisa a cegonha ficara sabendo perfeitamente; ouvira de ricos e pobres que grande infortúnio era para milhares de pessoas e para todo o país que aquele homem estivesse assim tão doente, e sem esperança de cura. Seria na verdade um dia abençoado aquele em que viessem recuperar a saúde. mas perguntavam uns as outros;
   -  Onde é que viceja a flor milagrosa que há de curá-lo?
   E consultaram todos os escritos eruditos; e as estrelas cintilantes; os ventos e as ondas do mar foram interrogados. Mas os sábios só puderam dar uma resposta:
   - É o amor que sustenta a vida.
   Mas como aplicar o provérbio, isso é que nenhum deles sabia.
   Afinal concordaram todos em que o socorro devia ver pela mão da princesa, que amava o pai de todo o coração e de todo o entendimento. E decidiram enfim o que ela teria de fazer. E agora já se tinha passado mais de uma ano e um dia que a tinham mandado ir à noite, pela lua nova , ao deserto, para consultar a Esfinge. Lá teria ela de afastar a areia da porta até a soleira, e caminhar pela longa passagem que ia direito ao meio da pirâmide, onde um dos mais poderosos de seus antigos reis jazia enfaixado nas suas ligaduras de múmia, no meio do maior esplendor e glória. Ela devia curvar a cabeça para o corpo, e ser-lhe-ia então revelado o sítio em que havia de achar a cura e salvação de seu pai.


   E ela fez tudo isso, e em sonhos lhe foi revelado o lugar exato onde, nas profundezas do pantanal, acharia a flor do loto, que lhe havia de tocar o peito debaixo da água. E ela devia levar essa flor para sua terra.
    A princesa voou, vestida da plumagem do cisne, para o Brejo Bruto, lá no norte longínquo.
   Ora, o casal de cegonhas sabia de tudo isso desde o princípio, e nós compreendemos o caso melhor do que elas. Sabemos que o Rei do Brejo a levou para o fundo, e ficou com ela, e que para agente do seu país a princesa estava desaparecida e morta. Os  mais sábios disseram como a mãe cegonha:
   - Ela há de saber cuidar de si!
   E ficaram esperando que voltasse, por não saberem o que fazer.
   - Estou com vontade de tomar a plumagem de cisne das duas princesas hipócritas - disse o pai  cegonha. - Assim elas não podrão tornar a ir ao Brejo Bruto, para fazer outros malefícios. Guardarei as plumagens em lugar alto, até que achemos alguma utilidade para elas.
   - E onde vais guardá-las?
   - No nosso ninho, no Brejo Bruto. Eu e os pequenos podemos carregá-las, e se isso for muito difícil, há pelo caminho muitos lugares onde poderemos ocultá-las até nosso próximo voo. Uma plumagem é bastante para ela, mas duas ainda será melhor. É prudente ter cobertas que cheguem nas regiões do norte!
   - Ninguém te agradecerá isso; mas és o chefe. Nada tenho a dizer, senão quando estou chocando.
    Durante este tempo a criancinha, já no salão do Viking, perto do Brejo Bruto, para onde as cegonhas voavam na primavera, recebera um nome: Helga.Era, porém, um nome muito delicado para um espírito  tão selvagem como o que se encerrava nela. Aquilo ia ficando pior, de dia em dia, de mês em mês. E todos os anos, enquanto isso, as cegonas faziam a mesma viagem, para o Nilo no outono, para o Brejo Bruto na primavera. A criancinha cresceu; era agora uma menina grande, e nem se sabe como foi que de repente se transformou em um mocinha lindíssima. Aos dezesseis anos, a casca era linda, mas a amêndoa dura e áspera; mais feroz do que nunca, mesmo para aqueles tempos, tão grosseiros e selvagens.
   Seu maior prazer era mergulhar as alvas mãos no sangue dos cavalos do sacrifício; e, no meio de seus caprichos selvagens, era capaz de arrancar a dente as cabeças dos galos pretos que o sacerdote ia sacrificar. Um dia disse com a maior seriedade ao pai adotivo:
   - Se teu inimigo viesse aqui e amarrasse uma corda nos barrotes da tua casa, passando-as depois pelas tuas orelhas, eu não te acordaria. Fingiria não o ouvir, por causa daquele puxão de orelhas que me deste há anos, e que me magoou. Não esqueci, não!
    Mas o Viking não acreditava no que  ela dizia. É que, como todo mundo, estava encantado na beleza da menina, e nem sequer sonhava que transformação se operava no corpo e alma da pequena Helga nas horas sombrias da noite.
   Helga montava um cavalo em pelo, como se fizesse parte dele, e nem sequer desmontava enquanto o animal lutava, a dentadas, com os outros cavalos selvagens. Arrojava-se muitas vezes ao mar do alto do rochedo toda vestida, e nadava ao encontro do Viking, quando o seu bote se aproximava da praia; cortava os fios mais longos de sua bela cabeleira, para encordoar seu arco.
   - O que a  gente faz por suas mãos é o melhor- dizia.
    A mulher do Viking, como todas as daqueles tempo, era forte de espírito e tinha uma vontade firme; mas ainda assim, para aquela filha, era tão fraca e tão solícita como qualquer outra mãe, porque sabia que pesava sobre ela um terrível encantamento. Muitas vezes, vendo a mãe no balcão, Helga, ao que  parecia só para assustá-la, sentava-se no bocal do poço, estendia mãos e pés, e atirava-se de costas naquele buraco estreito e escuro. Depois, graças a sua natureza de rã, tornava a erguer-se e subia como um gato, escorrendo água.
  Uma coisa, entretanto, detinha sempre a pequena Helga; era o lusco-fusco. À hora do crepúsculo, ela ficava quieta e pensativa, e consentia até que a chamassem à ordem. Ao se aproximar o momento, uma percepção interior a levava a procurar a mãe, e quando o sol se punha, e a transformação se operava , ela ficava triste e quieta, e encolhia-se toda, tomando a forma de sapo. O corpo era muito maior mais disforme e feio. Parecia um mísero anão, com a cabeça de rã e dedos membranosos. Tinha então nos olhos uma expressão digna de lástima: voz, não a tinha - era apenas um grasnido rouco, como os soluços sufocados de uma criança que sonha. Então a mulher do Viking punha-o sobre os joelhos, e, vendo o seu olhar, esquecia a forma desfigurada, dizendo muitas vezes:
  - Chego quase a preferir que ficasse sempre a minha muda rãzinha nova...Tens aparência  mais terrível quando estás vestida de beleza.
   E escrevia runas contra as doenças e a feitiçaria, arremessando-as sobre a infeliz menina - mas sem nenhum resultado.
   Um dia o pai cegonha disse:
   - A gente nem pode crer que ela já foi tão pequenina que cabia dentro de um lírio! Agora está crescida, e á imagem perfeita de sua mãe egípcia, que não tornamos a ver. Ela não tratou de cuidar de si tão bem como tu e os sábios disseram que havia de fazer. Esvoaço por cima do pantanal todos os anos, e nunca vi o mais leve traço dela. Sim, digo-te agora que todos os anos, quando eu voltava  antes de ti para ver se o nosso ninho, estava em condições, passei mais de uma noite  voando como uma coruja ou um morcego, esquadrinhando a água, mas sem nenhum resultado. Nem tivemos ainda em que aproveitar as duas plumagens de cisne que eu e os meninos trouxemos com tanta dificuldade: foi preciso três viagens, para conseguir trazê-las até aqui! Lá estão há anos no fundo do ninho, e se acontecer algum desastre - um incêndio nos caibros da casa, por exemplo - ficarão todo perdidas.
    - E nosso rico ninho ficaria então perdido também - disse a mãe cegonha - mas isso te preocupa menos do que teus vestidos de penas, e a tua princesa do brejo. Seria melhor que fosses lá procurá-la um dia, e ficasses para sempre no meio do lodo. És um mau pai para teus próprios filhotes, e sempre eu disse isso mesmo, desde a primeira ninhada que choquei. De admirar é que nós ou um de nossos pequerruchos não tenhamos já sentido as asas varadas por uma flechada daquela maluca, a rapariga Viking. Ela não sabe nada do que lhe aconteceu. Nós estamos aqui mais em nossa casa do que ela, e devia lembrar-se sempre disso. Nunca esquecemos nossas obrigações. Todos os anos pagamos nosso tributo de uma pena, um ovo e um filhote, como é nosso dever. Pensas que quando ela anda por aqui eu baixo o voo, como costumava, e como faço lá no Egito, onde estou " em boa camaradagem" com todo o mudo, e posso até ir espiar nas suas panelas e chaleiras, se me der na fantasia? Pois sim! Fico aqui em cima, indignada com ela, aquela raposa! E eu também. Devias tê-la deixado na flor de loto, que ela a esta hora estaria morta.
   - O que vale é que tu és muito melhor que a tua língua - disse o pai cegonha. - Conheço-te melhor do que tu mesma, querida.
   Deu um salto e bateu as asas três vezes, esticando altivamente o pescoço, e saiu voando, sem mover as asas distendidas. Quando ganhou certa distância deu mais alguns golpes de asa vigorosos, cabeça e pescoço airosamente esticados, enquanto a plumagem resplandecia ao sol. Que força e que rapidez naquele voo!
     - É ele ainda o mais belo de todos - disse a mãe cegonha - mas eu não lhe digo isso...
   Naquele outono o Viking voltou ceso, trazendo muito despojos e prisioneiros; entre esses havia um jovem padre cristão, um daqueles homens que perseguiam os deuses pagãos do norte.
  Ultimamente havia discussões frequentes, tanto no salão como no camarim das mulheres, a respeito da nova fé que se estava espalhando em todos os países do sul. Através do sagrado Ansgarius tinha-se alastrado até Hedeby, no Schlei. A pequena Helga tinha ouvido falar no "Cristo Branco" , que por amor dos homens se tinha dado a si mesmo, para salvá-los. Mas aquelas palavras lhe tinham entrado por um ouvido e saído pelo outro, como  se diz. O verdadeiro sentido da palavra " amor" só parecia penetrar no seu entendimento quando estava toda encolhida no corpo de uma rã, no seu quarto secreto; mas a mulher do Viking tinha ouvido a história, e sentira uma estranha comoção quando falaram do Filho do único Deus verdadeiro.
   Voltando de suas excursões contavam os homens que tinham visto custosos templos, construídos de pedra polida, dedicados Àquele que viera como uma mensagem de Amor. Um dia trouxeram dois vasos de ouro, primorosamente trabalhados a mão, e que exalavam um perfume especial. Eram os turíbulos que os sacerdotes cristãos sacudiam diante dos altares, em que jamais corria sangue.
   O jovem sacerdote foi encerrado nas profundas adegas de pedra da casa de madeira, e ligaram-lhe os pés e as mãos com cordas de fibra vegetal. Disse a mulher do Viking que ele era " tão belo como Baldur", e sentiu grande piedade dele; mas Helga propôs que fosse jarretado e amarrado à cauda de bois selvagens.
   - E eu soltarei nele os cães. Havia de ser um alegre espetáculo, e mais alegre ainda se eu acompanhasse a corrida!
   Não era essa, porém, a morte que o Viking lhe reservava; como negava  e perseguia os grande deuses, seria oferecido em holocausto de manhã, sobre a pedra da ara, na floresta. Pela primeira vez ia ser sacrificado ali um  homem. A jovem Helga pediu que a deixassem aspergir as efígies dos deuses e o povo com o seu sangue. Poliu bem a sua aguda faca, e quando um dos enormes e ferozes cães que abundavam por ali, se atirou a ela, enterrou-lhe a faca no flanco " para experimentar; mas a mulher do Viking olhou com profunda tristeza para aquela menina tão selvagem e má.
    Quando chegou a noite, a mãe disse-lhe ternas palavras de mágoa, brotadas da tristeza do seu coração. O feio sapo, com aquele corpo grosseiro, fixou nela os tristes olhos castanhos, escutando-a; e parecia compreender-lhe as palavras com o espírito de um ser humano.
   - Eu jamais disse a meu marido uma única palavra sobre o duplo pesar que me vem de ti- disse a mulher do Viking. - Meu coração está cheio de tristeza por tua causa - tal é o amor de mãe! Mas o amor é sentimento que nunca penetrou no teu coração: ele é como a argila fria. Como conseguiste entrar na minha casa?
   Então a disforme criatura estremeceu, como se aquelas palavras lhe tocassem alguma corda invisível entre o corpo e alma, e de seus olhos caíram grandes lágrimas.
   - Virão para ti dias terríveis, e para mim também! Melhor fora que , em pequenina, tivesses sido abandonada na estrada, e embalada pelo frio sono da morte!---
    E a mulher do Viking derramando lágrimas amargas, saiu, cheia de mágoa e de tristeza, passando sob a cortina de pele que pendia dos caibros, dividindo o salão ao meio.
    O sapo, todo encolhido, agachou-se em um canto, e reinou na sala um silêncio de morte. De vez em quando agitava o corpo do animal um suspiro meio abafado; parecia que alguma coisa lutava, angustiada, por surgir para a vida, no seu coração. Deu um passo e escutou, depois deu mais alguns passos e segurou a pesada tranca da porta com suas mãos desajeitadas. Puxou-a devagarinho para trás, e ergueu a aldrava sem ruído; depois pegou na lâmpada que estava na ante-sala. Parecia que um poder muito forte lhe dava forças. Ergueu o ferrolho da porta trancada da adega e entrou. O prisioneiro dormia; tocou-o com a mão fria e viscosa, e quando ele acordou e viu aquela criatura horrenda, estremeceu, como se visse uma aparição diabólica. Ela puxou a faca e cortou as cordas. Chamou-o, depois, com um aceno. Invocando o Santo Nome, fez ele o sinal da cruz, e como a forma não se alterou, repetiu as palavras do salmista: " Bem-aventurado é o que atende ao pobre e necessitado: o senhor o livrará no dia do mal". Depois perguntou-lhe:
   - Quem tu és, que tens a aparência de um animal, enquanto praticas voluntariamente ações de misericórdia?
   O sapo apenas fez-lhe um aceno e guiou-o, abrigado pelas cortinas, por uma longa passagem que ia dar ao estábulo; lá mostrou-lhe um cavalo, no qual o padre montou; acompanhou-o o sapo, que se colocou na frente, segurando-se às crinas do animal. Compreendeu o prisioneiro a sua intenção e seguiram apressadamente por um caminho que ele jamais poderia ter descoberto, em direção à charneca. Esqueceu a horrenda forma, porque sabia que a misericórdia do Senhor trabalhava através do espirito da escuridão. Orava e cantava hinos sacros que faziam a rã estremecer. Seria o poder da oração e dos seus cânticos que operava nela, ou era o ar fresco da madrugada que se aproximava? Quais seriam seus sentimentos?



    Ela se ergueu e quis deter o cavalo e saltar, mas o sacerdote cristão segurou-a firmemente, com toda a força de que dispunha, a cantou em voz alta um salmo, como se isso pudesse libertá-la do feitiço que a dominava.
   O cavalo deu um salto mais violento  do que todos os outros, o céu avermelhou-se, e os primeiros raios de sol surgiram entre as nuvens. No que os raios de luz a tocaram, deu-se a transformação. Era uma vez mais uma linda moça, mas seu espírito demoníaco continuava a ser o mesmo. O sacerdote, perplexo, viu, que tinha agora nos braços uma bela jovem. Deteve o cavalo e saltou ao chão, julgando que era vítima de um novo ardil do demônio. Mas a jovem Helga desmontou também. Seu  vestido curto apenas lhe chegava aos joelhos. Tirou do cinto a afiada faca e lançou-se sobre o homem espantado, gritando:
   - Espera! Espera que minha faca vai picar-te em pedacinhos, escravo sem barbas!
    Atirou-se a ele, e travaram luta; mas parecia que um poder invisível dava força ao cristão; segurou-a, e era como se o velho carvalho a cuja sombra combatiam quisesse ajudá-lo, porque ela tropeçou nas raízes soltas e salientes. Ali percorria um regato murmurante e ele a burrifou com água, ordenando ao espírito imundo que a deixasse, e fazendo sobre ela o sinal da cruz, conforme o uso cristão. Mas a água do batismo não tem poder, se o rio da fé não mana do interior. Ainda assim, alguma coisa mais do que a força do homem se opunha, por intermédio dele, ao mal que lutava dentro dela. Os braços caíram-lhe, e ela olhou pálida e assombrada, para aquele homem que parecia ser um mágico poderoso, adestrado nas artes secretas, que repetia runas sombrias e traçava no ar sinais cabalísticos. Helga não recuaria, nem que ele brandisse uma espada chamejante, ou uma acha aguçada diante dela. Mas tremeu quando ele lhe traçou o sinal da cruz sobre a fronte e o peito, e sentou-se diante dele, de cabeça baixa, como uma ave selvagem enfim domada.
   E o sacerdote falou-lhe então com delicadeza do ato de amor que ela praticara por ele naquela noite, entrando na sua cela, sob a forma de um horrendo sapo, cortando as cordas que o prendiam e levando-o para a luz e para a vida. Ela também estava amarrada, e com liames mais forte do que os dele; mas por seu intermédio, podia alcançar a luz e a vida eterna, Ia levá-la para Hedeby, para o sagrado Ansgarius, e lá naquela cidade cristã o feitiço seria anulado; porém agora não iria sentada à sua frente, no cavalo, nem que o acompanhasse de livre vontade: não ousava mais carregá-la assim.
    - Deves ir sentada atrás de mim; tua beleza mágica tem um poder , outorgado pelo demônio, que eu temo. Mas mesmo assim, hei de obter a vitória, por Cristo!
    Ajoelhou-se e orou humildemente, com todo o fervor. Era agora como se o bosque tranquilo se tivesse transformado em um templo divino, consagrado por aquela coração. Os passarinhos começaram a cantar, como se pertencessem a um coro sacro, e fragrância das flores silvestres era como o perfume ambrosíaco do incenso, enquanto o jovem padre recitava as palavras da Santa Escritura.
    " A alvorada do alto visitou-nos; para dar luz aos que estão nas trevas e na sombra da morte. Para guiar os seus pés no caminho da paz".
   Falou do anseio de toda a natureza pela redenção: e enquanto falava, o cavalo que os levava esteve ao pé deles, roçando-se nas moitas de amoreiras, cujos frutos suculentos e maduros fazia cair nas mãozinhas de Helga, como se quisesse convidá-la a se desalterar. A jovem deixou, pacientemente , que ele a erguesse e depusesse no dorso do animal, e sentou-se ali como uma criatura meio inconsciente, indiferente a tudo e sem vontade própria.
    O cristão, com duas estacas, fez uma cruz que levou na mão erguida, enquanto iam pela floresta. O matagal ia ficando cada vez mais denso, e acabou num emaranhado inextricável de arbustos. Moitas de abrunheiros silvestres obstruíam o caminho, e tinham de controlá-las. Os arroios sussurrantes transformavam-se em lagoas estagnadas, que era preciso também rodear.
   Mas hauriam forças e encontravam alívio na brisa pura da floresta - e também novo poder lhes vinha das palavras suaves de amor e de fé que o jovem sacerdote dizia no seu fervente desejo de levar aquela pobre criatura desgarrada ao caminho da luz e do amor.
   Dizem que as ondas do mar podem arredondar e polir os rochedos mais escabrosos; assim foi que o orvalho da misericórdia, caindo sobre a menina, abrandou tudo o que nela era duro e a alisou todas as asperezas. Não quero dizer que tal efeito se observou imediatamente: ela própria teve tanta consciência do que se passava em si, como a semente enterrada no solo tem da ação das chuvas refrigerantes e do calor do sol sobre a sua florescência e frutificação.
   Quando o canto da mãe cai no coração do filhinho, este vai gaguejando as palavras após ela, sem as compreender; mas mais tarde elas se cristalizam em pensamentos, e com o tempo se tornam claras para ele. Foi assim também que a "Palavra" operou no coração de Helga.
    Afinal saíram da mata, entrando em uma charneca, depois tornaram a atravessar uma floresta densa. Ao entardecer encontraram um bando de ladrões. Era um grupo numeroso; fizeram parar o cavalo e deitara ao chão os viajantes, gritando para o padre:
   - Onde roubaste esta linda rapariga?
   O sacerdote não tinha outra arma senão a faca que tomara à jovem, e vibrou-a para a direita e para a esquerda. Um dos ladrões ergueu a acha sobre a sua cabeça, mas ele conseguiu saltar para um lado; não fora isso teria sido atingido. O golpe foi apanhar o pescoço do cavalo, que caiu morto, esguichando sangue. Então Helga pareceu despertar de um longo e profundo desmaio; atirou-se para o animal agonizante. O padre pôs-se na frente dela, como um escudo: mas um dos ladrões vibrou-lhe tamanha pancada na cabeça com o seu cajado de ferro, que ele caiu morto, e sangue e cérebro espalharam-se para todos os lados.
   Os ladrões seguraram  a jovem pelos braços, mas o sol naquele instante ia entrando, e quando os últimos raios se sumiram ela estava transformada em rã. Uma boca esverdeada atravessa-lhe o meio do rosto ; os braços foram ficando fininhos e viscosos, e as mãos enormes, de dedos membranosos, abriam-se como leques.
   Abandonaram-na os ladrões, aterrorizados, e ela ali ficou, como um horrendo monstro. E, obedecendo á sua natureza de rã, começou apular, dando saltos enormes, e desapareceu nas moitas densas. Então perceberam os ladrões que aquilo devia ser o mau espirito do Loki, ou alguma outra feitiçaria, e fugiram a toda a pressa, muito assustados.
   Surgira já a lua cheia, que brilhava com todo o esplendor, quando ela saiu da moita. Parou junto ao corpo do padre cristão e do cavalo morto; seus olhos pareciam banhados de lágrima, ao olhar para eles, e o sapo soltou um suspiro, como fazem as crianças quando rompem a chorar. Lançou-se sobre os cadáveres, um depois do outro; trouxe água na mão que, larga e membranosa como era, tinha a forma de uma taça. Borrifou-os; mas ...estava mortos, e mortos tinham de permanecer! Bem o compreendeu ela. Não tardaria que animais selvagens viessem para devorá-los; mas não, isso não era possível! E ela cavou, cavou o chão até onde pode: queria cavar uma sepultura para eles. De nada dispunha, senão das mãos e de um galho de árvore, e lacerou a membrana que lhe ligava os dedos, até escorrer sangue. Viu logo que era tarefa superior à suas forças e foi buscar mais água para lavar o rosto do homem, cobrindo-o com folhas verdes fresquinhas. Trouxe depois galhos de árvores para cobri-lo, e espalhou entre os ramos folhas secas. Foi buscar então as pedras mais pesadas que pode carregar, depondo sobre o corpo, e encheu os espaços como musgo. Achou então que a muralha estava  bastante forte, mas o difícil trabalho ocupara a noite inteira; erguia-se já o sol, e lá estava a pequena Helga em todo o esplendor da beleza, com as mãos a escorrer sangue, e, pela primeira vez, as faces rosadas banhada de lágrimas.
   Naquela transformação parecia que sua duas naturezas travavam luta. Ela estremeceu e olhou em roda, como se acabasse de despertar de um sonho agitado. Apoiou-se no tronco de uma faia nova, e afinal subiu como um gato pelo tronco, sentando-se firmemente nos mais altos galhos. E lá permaneceu sentada o dia inteiro, como um esquilo assustadiço, na solidão do mato onde tudo é tranquilo e morto, segundo dizem.
   Morto...lá voava um casal de borboletas, girando em roda e perseguindo-se; e perto havia alguns formigueiros, em cada um dos quais centenas de criaturinhas andavam de um lado para outro. No ar dançavam mosquitos sem conta, e enxames e enxames de moscas, joaninhas, libelinhas de asas de ouro, e outras criaturinhas aladas. Do chão úmido saíam minhocas e toupeiras...mas tudo o mais era tranquilo e morto no mato. Mas quando alguém diz isto, não sabe o que diz. Ninguém notou a presença de Helga senão um bando de gralhas que voavam parando ao redor da árvore onde ela estava, com ar atrevido e interrogativo, mas um olhar da menina bastou para afugentá-las. Não podiam compreendê-la, como ela mesma não se entendia mais a si mesma.
   Ao entardecer, quando o sol começou a desaparecer no poente, a proximidade da transformação deu-lhe forças para continuar o trabalho. Desceu devagarinho da árvore, e quando se sumiu o último raio de sol, lá estava ela outra vez pequenina e transformada em rã, com as mãos dilaceradas. Mas agora brilhavam-lhe os olhos com uma beleza nova, que não possuía quando ela se via cheia de altivez com a sua beleza. Eram os mais suaves e mais ternos olhos de donzela que resplandeciam agora na face da rã. Eram o testemunho vivo da existência de um profundo sentimento e de um coração humano; e os lindos olhos estavam úmidos de lágrimas, e deixavam cair gotas preciosas que lha aliviavam o coração.
   A cruz, último trabalho daquele que agora ali estava morto e frio, ainda jazia ao pé do túmulo. Inconscientemente, ergue-a e colocou-a entre as pedras que cobriam o homem e o cavalo. Àquela triste recordação brotaram-lhe de novo as lágrima. Cheia de saudade, ela traçou o mesmo sinal na terra, sobre a sepultura - e quando formava com ambas as mãos o sinal da cruz, a pele membranosa lhe caiu dos dedos, como uma luva que se rompe. Foi lavar as mãos no arroio e ficou admirada de sua delicada brancura. Fez outra vez o sinal sagrado no ar, entre ela e o homem morto; seus lábios começaram a tremer, a língua moveu-se-lhe , e o nome que na sua cavalgada pela floresta ouvira tantas vezes subiu-lhe aos lábios - e ela pronunciou as palavra " Jesus cristo".
    Caiu-lhe então do corpo a pele de rã; ela era a linda mocinha, mas a cabeça inclinou-se-lhe pesadamente e seus membros exigiram repouso. E adormeceu. Curto foi o sono; despertou à meia-noite; diante dela estava o cavalo morto, cabriolando, agora cheio de vida: vida que lhe irradiava dos olhos e do pescoço ferido. Ao pé dele apareceu o padre cristão assassinado" mais belo do que Baldur", como bem poderia dizer a mulher do Viking, e todo cercado de chamas de fogo.
   Transparecia ansiedade nos seus grandes e humildes olhos, e um julgamento reto no olhar penetrante, que perscrutava os mais remotos recessos do coração. Helga estremeceu, e sentiu despertar dentro do seu ser todas as memórias, como se tivesse chegado o dia do juízo final. E a cada prova de bondade que recebera, cada palavra de carinho que ouvira, apareciam-lhe agora nítidas e vivas no espírito. Compreendeu então que tinha sido o amor que a sustentara naqueles dias de provas, pelos quais todas as criaturas formadas de pó e de argila, corpo e alma, tem de passar, e lutar e combater. Compreendeu que apenas tinha ido para o lugar para onde fora chamada e que nada fizera por si mesma: tudo lhe fora dado. Curvava-se agora, cheia de humildade, cheia de vergonha, diante daquele que podia ler todos os impulsos do seu coração; e naquele momento sentiu a chama purificadora do espírito Santo que lhe penetrava na alma.
   - E tu, filha da terra - disse o mártir cristão- da terra brotaste e da terra nascerás outra vez! Dentro de ti a luz do sol tornará conscientemente à sua origem; não os raios do sol, que vemos, mas os de Deus! Alma alguma será perdida; as coisa temporais só nos trazem fadiga e desgosto, mas a eternidade vivifica. Venho da terra da morte; tu também viajarás um dia pelos vales profundo, para chegar à montanha radiante em cujo vértice moram a graça e a perfeição. Não posso levar-te a Hedeby, para o batismo cristão; antes disso terás de romper o escudo líquido, e trazer das profundezas do pantanal, viva, aquela que te deu a vida; terá de cumprir a tua tarefa antes de receberes a consagração!
    Ergueu-se então, colocando-a sobre o cavalo e deu-lhe um turíbulo como os que ela tinha visto no salão do Viking. Evolou-se do incensório um perfume intenso, e a ferida aberta na fronte do mártir brilhou como um diadema radiante. Ele tirou a cruz do túmulo, levando-a alçada, enquanto cavalgavam pelo espaço em rápida carreira, através dos bosques sussurrantes e por sobre as alturas onde os valentes guerreiro de outrora estava enterrados, montando seus cavalos de guerra, também mortos.
   Os guerreiros fortes ergueram-se e cavalgaram para o vértice dos montes; os largos círculo de ouro que lhes circundavam a cabeça brilhavam ao luar, e suas roupagens flutuavam ao vento. O grande dragão que amontoa tesouros ergueu a cabeça para vê-los, e hostes inteiras de anões espiavam de seus montículos, onde enxameavam luzes vermelhas, verdes e azuis, como centelhas que surgem das cinzas de papel queimado.
   E lá se iam eles, por sobre matas e charnecas, rios e lagoas, para o norte, para o Brejo Bruto; e lá chegados pairaram no ar, formando grandes círculos. O mártir ergueu bem alto a cruz, que brilhava como ouro, e seus lábios começaram a cantar a santa missa. Helga cantou com ele, como uma criança acompanha o cântico de sua mãe. Ela ergueu o turíbulo, de onde se evolava um perfume de altar tão intenso e tão extraordinário que os juncos e caniços rebentaram em flores, e das profundezas do brejo brotaram talos e mais talos, em números infinito. Tudo o que tinha vida dentro do paul alçou-se para o ar e floresceu. Os lotos espalharam-se pela superfície da lagoa, como um tapete de flores bordadas, e sobre o tapete jazia uma mulher adormecida. Era moça e linda: Helga julgou ver-se ; pensou que sua imagem se espelhara na lagoa tranquila. Era sua mãe, a mulher do rei do Brejo, a princesa do rio Nilo.
   O padre martirizado ordenou que a mulher adormecida fosse posta sobre o dorso do cavalo, mas o animal mergulhou ao peso do fardo, como se não tivesse mais substância do que uma mortalha flutuando ao vento. O sinal da cruz deu, porém, força ao fantasma, e os três cavalgaram pelo ar, para a terra seca. Nesse momento o galo cantou no saguão do Viking, e a visão diluiu-se no nevoeiro que o vento impelia para longe - mas a mãe e filha ficaram juntas.
    - Sou em mesma, que vejo refletida na água profunda? - perguntou a mãe.
   E a filha dizia:
   - Estarei vendo o meu retrato, no espelho de um escudo brilhante?
     Mas quando se aproximaram uma da outra, e se abraçaram, coração contra coração e o da mãe pulsou mais depressa, ela compreendeu.
  - Minha filha! A flor do meu coração! Meu loto das páguas profundas!
   E ela chorou. E suas lágrimas, caindo sobre a filha, foram para este um novo batismo de amor e de vida.--
   - Eu vim aqui coberta com uma plumagem de cisne - disse a mãe- e neste lugar a despi. Mergulhei no pântano, que se fechou por cima de mim. Uma força me arrastava para o fundo. Senti a mão do sono me apertar as pálpebras. Adormeci, e sonhei...parecia-me que estava outra vez na imensa Pirâmide do Egito; mas diante de mim estava ainda o tronco movediço de salgueiro que me assustara na superfície do banhado. Olhei para as fendas da casca, que eram de cores vivas e brilhantes, e elas foram se transformando em hieróglifos; eram bandas que envolviam a múmia, que eu via. As cobertas despedaçaram-se, e delas surgiu, caminhando, o rei múmia de mil anos, negro como breu, negro como caracol lustroso do mato, ou como o barro peganhento do tremendal. Se era o Rei Múmia ou o Rei do Brejo, não o sabia eu. Segurou-me nos braços e senti do que ia morrer. Quando tornei à vida senti sobre o peito alguma coisa que tinha calor; um passarinho agitava as asas e pipilava.Voou do meu peito, subiu para aquele dossel escuro e pesado, mas ainda ficava presa a mim um longa fita verde; e eu ouvi o seu canto e compreendi-lhe as notas: "Liberdade! Sol! Para o Pai!" Lembrei-me então de meu pai, lá na terra cheia de sol, do meu lar, da minha vida, do meu amor! E soltei a fita e deixei-me flutuar e voar...para casa, para meu pai. Desde essa hora nunca tornei a sonhar. Creio que dormi um sono longo e pesado até agora, até o instante em que aquela música suave e um delicado perfume me despertaram e me restituíram a liberdade.
   Onde iria a fita verde que prendia o coração da mãe às asas do passarinho? Só a cegonha o vira. A fita era a haste verde, o ramo a flor brilhante que embalara o nenezinho, agora desabrochada em plena beleza, e mais uma vez descansando no seio materno. E enquanto elas ali estava, coração contra coração, girava a cegonha acima delas em grandes círculo: afinal voou para o seu ninho e trouxe as plumagens de cisne que há tanto tempo guardava com carinho. Atirou uma sobre cada uma delas; as penas se cerraram, e mãe e filha ergueram-se no ar como dois alvos cisnes.
   - Agora vamos conversa -disse o pai cegonha - porque compreendemos mutuamente nossa linguagem, ainda que cada um de nós tenha o bico diferente, conforme a espécie. Foi a coisa mais feliz deste mundo que tivessem aparecido hoje. Amanhã temos de partir, eu, a mãe e os filhotes. Vamos voar para o sul. Sim, porém bem olhar para mim! Sou um velho amigo do Nilo, e a minha mulher também; ela não tem o coração tão aguçado como o bico, não! Disse sempre que a princesa havia de cuidar de si mesma. Eu e os pequerruchos trouxemos para cá as duas plumagens. Que alegre estou, e que sorte estar ainda aqui! Assim que amanhecer vamos partir - um grande bando de cegonhas; assim não poderão extraviar-se , e nós as vigiaremos durante a viagem.
    - E a flor do loto, que eu devia levar - disse a princesa egípcia - voa a meu lado vestida de cisne. Levo comigo a flor do meu coração, e assim está decifrado o enigma. agora- para casa! Para casa!...
   Mas Helga disse que não podia deixar a terra da Dinamarca sem ver ainda uma vez sua dedicada mãe adotiva, a mulher do Viking. Porque na memória da menina, surgiam agora todas as palavras ternas e todas as lágrimas que a mãe adotiva derramara por ela, e até parceia que por isso mesmo amava mais ainda sua mãe.
    - Sim, devemos ir ao saguão do Viking- disse o pai cegonha - é lá que nos esperam a mãe e os pequerruchos. Como vão arregalar os olhos, e bater as asas! Minha velha não fala quase ; é um tanto seca e brusca, mas reflete muito. Vou fazer um grande barulho, para avisá-los de nossa chegada.
   E ele abria e fechava o bico; e , com os dois cisnes, voou para o saguão do Viling.
   Lá dentro todos dormiam profundamente; a mulher do Viking só se acomodava para repousar já alta noite, porque estava muito aflita com o desaparecimento de Helga, que sumira há três dias. Desaparecera com o padre cristão, e parecia que ajudara na fuga, porque era o seu cavalo que faltava na estrebaria. Que poder a levara a assim proceder? A mulher do Viking pensava em todos os milagres que diziam ter feito o " Cristo Branco", e também aqueles que acreditavam nele e o seguiam. Todos esses pensamento tomavam forma em seus sonhos, e aprecia-lhe que estava ainda acordada, sentada, pensativa, na beira da cama, na escuridão do quarto.
   Desabou uma tempestade: ouvia agora o marulho dos vagalhões do Mar do Norte, que vinham de leste e de oeste, e das águas do Cattegat. A serpente monstruosa que, segundo a sua fé, cingia a terra nas profundezas do oceano, tremia em convulsões e medo de "Ragnarok", a noite dos deuses. Personificava o dia de Juízo, em que tudo se consumirá, até os próprios deuses poderosos. Soou a trompa de Gialler, e os deuses se foram montados no arco-íris vestidos de aço para a última batalha; diante deles voavam as Valquírias, donzelas armadas de escudos, e fechavam a marcha os fantasmas dos guerreiros defuntos. Toda a atmosfera resplandecia, sob a radiante luz do norte, mas por fim a escuridão venceu. Era uma hora terrível, e em seu sonho a pequena Helga estava ao seu lado, toda encolhidinha no chão, na figura horrenda de sapo. Tremia e chegava-se cada vez mais para a mãe adotiva, que a depôs nos joelhos, e, porque muito a amava, apertou-a ao peito, apesar da horrível pele de sapo.
   E o ar retinia com o fragor de espadas e de paus ferrados, e zunia com o silvo das flechas como se estivesse caindo uma medonha saraivada de granizos. Chegara a hora em que céu e terra deviam acabar, as estrelas tinham de cair, e tudo devia sucumbir ao fogo de Surtur - e contudo uma nova terra e um novo céu haviam de surgir, e campos de trigo haviam de ondular aonde agora ao mares rolavam sobre a areia dourada.
    O Deus que ninguém podia nomear havia de reinar, e para Ele ascenderia Baldur, o humilde, o amante, redimido do reino da morte...lá vinha ele...a mulher do Viking via-o nitidamente ela lhe conhecia o rosto...era o padre cristão, o prisioneiro do marido. E ela gritou, em altas vozes:
    - O " Cristo Branco"!
    E quando clamava este nome depunha um beijo na fronte do asqueroso sapo. A pele da rã caiu e diante dela estava a pequena Helga, em todo o esplendor da beleza, gentil como jamais se tinha mostrado, e com um fulgor novo nos olhos. Beijou as mãos da mãe adotiva e abençoou-a por todo o cuidado e amor que lhe dispensara nos dias de sua provocação e miséria. Agradeceu-lhe os pensamentos que incutira nela, e por ter proferido o nome que ela agora repetia: " O Cristo Branco"!
   E a pequena Helga ergueu-se nos ares como um grande cisne branco e distendeu-se as asas, ao mesmo tampo que se ouvia o rumor violento de um bando de aves de arribação que voavam.
    O estrondo das asas lá fora despertou a mulher do Viking; sabia que era o tempo das cegonhas voarem, e compreendeu que era esse o rumor de asas que ouvia. Queria ver mais uma vez as cegonhas empreenderam a viagem para lhes dizer adeus; levantou-se e foi até o balcão. Viu as cegonhas pousarem uma por uma, nos tetos das construções que cercavam o pátio, e bandos delas que voavam em grandes círculo. Justamente em frente dela, na beirada do poço onde a pequena Helga tantas vezes lhe causaram sustos com a sua selvajeria, pousavam dois cisnes alvíssimos, que olhavam para ela com olhos inteligentes. Lembrou-se então do seu sonho, que ainda lhe parecia realmente vivido. Lembrou-se da pequena Helga na figura de cisne. Lembrou-se do padre cristão, e uma grande e súbita alegria lhe brotou na alma. Os cisnes batiam as asas e inclinavam a cabeça, como se a estivessem cumprimentando, e a mulher do Viking estendeu os braços para eles, como se compreendesse tudo, e sorria-lhes, com os olhos inundados de lágrimas.
   - Nós não vamos esperar os cisnes - disse a mãe cegonha - se eles querem viajar conosco, que venham duma vez. Não podemos ficar aqui a perder tempo até que as tarambolas nos passem! É muito bonito viajar como nós, toda a família reunida; não é como as tarambolas e os pavoncinos, que voam separados das fêmeas. Isso é feio! E por que estão aqueles cisnes a bater as asas daquele jeito?
   - Ora essa! Cada um voa conforme a sua espécie - disse o pai cegonha. - Os cisnes voam em linha oblíqua, os grous em forma de triângulo, e as tarambolas em uma linha curva, como uma cobra.
   - Não fales em cobra enquanto estamos voando por aqui- disse a mãe. - Isso desperta nos pequenos desejos que não podem se satisfeitos.
   Enquanto voavam, Helga, vestida de cisne, perguntava à mãe:
  - Que é aquilo? São as altas montanhas, de que tenho ouvido falar?
  - Aquilo são nuvens tempestuosas, que o vento impele abaixo de nós.
  - E aquilo lá longe, aquelas nuvens brancas tão altas? - indagou de novo a filha.
  - Aquilo são altas montanhas cobertas de neve perpétua - disse a mãe, quando atravessavam os Alpes, em direção ao Mediterrâneo azulado.
   - Terra da África! Praia do Egito! - cantava a filha do Nilo, no auge da alegria, quando lá do alto do espaço na sua alva plumagem, avistou a delgada linha amarela e sinuosa, que era o seu berço. As outras aves também a avistaram, e apressaram o voo.
   - Já sinto o cheiro de lobo e das rãs do Nilo - disse a mãe cegonha. - Estou toda excitada! Agora sim, vocês vão ter coisas excelentes para comer; e coisas para ver, também. Aqui é que vivem o marabu, o ibis e o grou. Pertencem todos eles à nossa família, mas nenhum nos iguala em beleza; são muito cheios de si, apesar disso, especialmente o ibis - os egípcios lhe dão tanta importância...Fazem até múmias deles, recheando-as com especiarias. Pois eu antes queria ser estufada de rãs vivas, e tu também! E serás mesmo! É melhor ter alguma coisa no papo enquanto a gente está viva do que todo aquele barulho depois que morremos...Este é o meu parecer, e sei que estou com a razão!
   - As cegonhas já voltaram!
    Isto se dizia na grande casa do Nilo, cujo senhor jazia ainda no grande salão, deitado sobre almofadas de penas e coberto com uma pele de leopardo. Mal se podia dizer que estava vivo, e contudo não morrera ainda, sempre à espera da flor de loto do profundo paul do norte.
   Servos e parentes rodeavam-lhe o leito, quando viram dois grandes cisnes brancos, que tinham chegado com as cegonhas, entraram voando no saguão. Despiram sua plumagem deslumbrante de alvura, e dela saíram duas lindas mulheres, tão semelhantes uma à outra como duas gotas de sereno. Curvaram-se sobre o ancião, pálido e fanado, afastando do rosto seus longos cabelos.
  Quando Helga se inclinou sobre o avô, voltou a cor às faces do velho, que parecia sentir nova vida nos membros. Levantou-se, pois tinha agora a saúde e a energia restaurada. Filha e neta abraçaram-no como se tivessem vindo trazer-lhe a alegre saudação da manhã, após uma noite longa e perturbada.
  E a alegria reinou então na casa - e também no ninho da cegonha; mas neste o regozijo maior era um razão da abundância de alimento, principalmente minhocas e rãs.
  E enquanto os sábios rabiscavam a história das duas princesas e da flor da saúde, que viera trazer tão grande alegria e bençãos à terra, o casal de cegonhas narrava a mesma história - lá à sua maneira- à família. Isto, porém, foi somente depois que todos tinham satisfeito seu apetite, senão...teriam coisa melhor a fazer do que ouvir histórias.
  - Com certeza agora hão de fazer alguma coisa de ti, afinal - murmurava a mãe cegonha. - É de toda a justiça.
  - Mas que é que podem fazer de mim? - dizia o pai. - E que fiz eu? Nada, nada!
  - Fizeste mais do que todos eles! Não fosses tu e os meninos, jamais as princesa teriam tornado a ver o Egito, nem o velho teria recobrado a saúde. Tu serás alguma coisa! Eles te darão afinal o grau de doutor, e nossos filhos já nascerão com o título, e os filhotes deles também. Pois tu já pareces um doutor egípcio mesmo...ao menos para mim é isso que digo.
    Então reuniram-se os homens ilustrados e os sábios, para estabelecer o princípio nuclear, como declararam eles, que se oculta na raiz do assunto:" É o amor que sustenta a vida". Vieram então as explicações: " A princesa era o raio de sol; ela desceu até onde vivia o Rei do Brejo, e da sua união resultou a flor".
   - Não posso repetir exatamente as palavras deles- disse o pai cegonha, que escutara do teto, e agora queria contar tudo no ninho. - Tudo o que disseram era tão complicado e tão erudito, que não só eles obtiveram honras, mas todos os presentes também: até o cozinheiro mereceu uma distinção - provavelmente por causa da sopa!
    - E ti, que foi que deram? - perguntou a mãe cegonha. - Não deviam esquecer a pessoa mais importante, que és tu. os sábios só o que fizeram foi tagarelar em tudo isso. Mas a tua vez há de chegar, certamente!
   Por noite alta, quando já toda a gente da casa dormia, tranquila e feliz, havia ainda uma pessoa acordada. Não era o pai cegonha, posto que ele se conservasse de pé no seu ninho, descansando  em uma só perna, como uma sentinela vigilante no seu posto. Não: era Helga. Debruçada no balcão, na noite clara, olhava para as estrelas rutilantes, maiores e mais puras naquele fulgor do que ela jamais as vira no norte; e ainda assim, era as mesmas estrelas. Pensava na mulher do Viking, lá perto do Brejo Bruto; pensava nos olhos tão meigos da mãe adotiva, nas lágrimas que ela derramara sobre a pobre menina-rã, que agora ali estava, gozando o fúlgido brilho das estrelas e o delicioso ar da primavera, junto às águas do Nilo. Pensava no amor que ela dispensara a uma criatura miserável, que sob a forma humana era um animal feroz, e no corpo de um animal era odiosa à vista e ao tato. Olhava para a estrelas cintilantes e lembra-se da luz ofuscante que brilhava na fronte do padre martirizado, quando voava sobre charcos e florestas. Recordava-se dos tons de sua voz, das palavras que dissera enquanto ela se sentia abatida e humilhada- palavras que falavam na fonte sublime de amor, o mais elevado amor, que abrangia todas as gerações da humanidade. Que haveria que não fosse ganho e conseguido por semelhante amor?
     Noite e dia vivia Helga absorta no pensamento da sua felicidade; perdia-se completamente naquela contemplação, como uma criança que volta as costas, apressada, ao doador, para examinar os lindo presentes. Feliz era, na verdade, e aquela felicidade parecia ir sempre aumentando; podia ainda aumentar; havia de aumentar. E tanto se emaranhou nesses pensamentos, que chegou a não pensar mais no Doador.
   E assim foi na insensatez da juventude que ela pecou. Luzia nos seus olhos o orgulho, mas subitamente sentiu-se despertar daquele sonho vão. Ouviu um grande alarido lá embaixo, no pátio, e olhando para lá viu círculos. Nunca vira aquelas aves enormes, pesadas e rústicas, cujas asas pareciam ter sido aparadas; estavam muito fatigadas,e ela perguntou o que lhes suceder. Pela primeira vez ouviu então a lenda que os egípcios contam sobre a avestruz.
  Contam eles que dantes a avestruz pertencia a uma raça bela e gloriosa de aves, que possuíam asas grandes e vigorosa. Um dia, ao escurecer, as grandes aves da floresta disseram-lhe:
   - Irmã, vamos amanhã, se Deus quiser, descer ao rio para beber ?
   E a avestruz respondeu:
   - Eu quero ir!
   Ao raiar do dia saíram voando, alçando primeiro o voo bem alto para o sol, o olho de Deus. A avestruz voava cada vez mais alto e mais alto, muito acima das outras aves, no seu voo orgulhoso para a luz. Confiava nas próprias forças, e não nas que lhe vêm do Doador; ela não dissera "Se Deus quiser!"
    Mas o anjo vingador afastou o véu do oceano flamejante de luz, e num instante pegou fogo nas asas da orgulhosa ave, que caiu por terra em mísero estado.
   Desde esse dia a avestruz e a sua raça nunca mais puderam erguer-se no ar; quando se vê acuada, no cúmulo do terror, ela mal pode alçar-se em um voo rasteiro, beirando a terra, em círculos que vão diminuindo de diâmetro. Isto é uma advertência para a humanidade: lembra-nos que em todas as nossas ações e pensamento devemos dizer sempre: "Se Deus quiser!"
   Séria e pensativa, Helga curvou a cabeça e olhou para a avestruz perseguida e notou-lhe o temor e também o mesquinho orgulho ao ver a grande sombra que projetava na parede branca, que o luar iluminava. E seus e pensamentos iam se tornando mais graves e mais inquietos. Já lhe fora outorgada uma vida tão rica de alegrias; que mais viria depois? O melhor de tudo, talvez - "se Deus quisesse"!
   No começo da primavera, quando as cegonhas já estavam se preparando para a emigração, a pequena Helga tirou a sua pulseira de ouro, riscou nela o seu nome, chamou o pai cegonha e fechou-a no seu pescoço. Disse-lhe que a levasse à mulher do Viking, para que ela visse que a filha adotiva vivia, era feliz, e não a esquecera.
   - Isto é muito custoso para carregar! - pensou o pai cegonha, quando sentiu aquele peso no peito- mas a gente não deve desprezar nem o ouro nem as honras! Dizem por aí que a cegonha traz felicidade ...
   - É, tu produzes ouro, e eu ovos - disse a mãe cegonha - mas tu dás ouro uma única vez, e eu ponho ovos todos os anos. E mesmo assim, ninguém nos dá valor; isto é na verdade muito triste!
   - Ora, minha velha, lembra-te de que a gente tem a consciência do próprio valor, e não te mortifiques.
    - Pois sim! Mas não podemos carregar por fora; isso também não nos traz bom vento, nem fartura de nutrição!
   E lançaram-se no espaço.
  O pequeno rouxinol, que cantava na moita de tamarindos, ia também para o norte; Helga ouvira o seu canto muitas vezes no Brejo Bruto e resolveu mandar também uma mensagem por ele. Conhecia a linguagem das aves, porque tinha vestido uma plumagem de cisne, e não a esquecera, porque conversava com as cegonhas e com as andorinhas. Compreendeu-a muito bem o rouxinol, e ela pediu-lhe que voasse até o bosque de faias, na Jutlândia, onde ela tinha feito a sepultura de pedras e galhos; pediu-lhe que dissesse aos outros passarinhos que cuidassem do túmulo e cantassem por ali. O rouxinol voou.
   Com ele voou também o tempo. No outono, uma águia empoleirada em uma das pirâmides, avistou uma magnifica caravana que se aproximava. Os camelos vinham muito carregados, e os homens em armadura, montando altivos cavalos árabe, brancos como prata, de narinas palpitantes e crinas flutuantes que caíam até o chão. Era um príncipe real da Arábia, belo como o mais belo dos príncipes, que chegava à majestosa mansão onde agora o ninho da cegonha estava vazio. Seus habitantes ainda permaneciam na morada setentrional; mas não tardariam a voltar - não, justamente no dia em que as festas eram mais solenes eles chegaram. Era um noivado que se festejava, e Helga era a noiva, toda vestida de seda e coberta de ricas jóias. O noivo era o jovem príncipe árabe e sentaram-se ambos à cabeceira da mesa, entre a mãe e o avô.
   Mas Helga não olhava par ao belo rosto do noivo, nem fitava os olhos altivos, que se fixaram nela. Olhava para uma estrela brilhante, que fulgurava no céu. Naquele momento ouviu-se o ar retinir com o bater de grandes asas: eram as cegonhas que voltavam. E o velho casal, mesmo cansado como estava, necessitado de repouso, baixou o voo e foi pousar na grade da varanda.
   Não sabiam da grande festa. Tinham ouvido dizer na fronteira do país que Helga os tinha pintado na parede, porque pertenciam à história da sua vida.

   - Isso é muito bonito da parte dela - disse o pai cegonha.
   - Pois eu acho que é muito pouco - disse a mãe  - também, se nem isso fizessem...
    Ao avistá-los ali, ergue-se Helga da mesa e saiu para a varanda, para lhes acariciar as asas. O casal de cegonhas velhas curvou a cabeça, e as mais novas, vendo aquilo, sentiram-se lisonjeadas com aquela grande honra. Helga ergueu os olhos para a estrela, que parecia ainda maior e mais pura; entre ela e a estrela flutuava uma forma mais pura ainda que o próprio ar, visível entretanto só para ela. A forma aproximava-se, e ela viu que era o padre martirizado, que também chegara para a sua grande festa - viera mesmo do reino celestial.
 - A glória e a bem-aventurança de lá são mais radiosos do que todos estes esplendores terrestres - disse ele.
   A pequena Helga pediu, em oração mais humilde e mais ardente do que nunca, que por um único instante lhe fosse dado contemplar o reino do Céu. Sentiu-se então erguida acima da terra; parecia que era levada em uma suave corrente de música e doces pensamentos. Era uma música extraterrena, que não somente a cercava, mas estava também dentro do seu ser. E não há palavra humana que possa exprimi-la.
   - Agora devemos voltar -disse o mártir - senão darão falta de ti.
   - Só mais um olhar! - suplicou ela - um momento, um instante só!
   - Devemos tornar à terra; os convidados já estão se despedindo.
  - Um só olhar mais - o último!
   Helga viu-se de novo na varanda mas todas as tochas lá fora estavam extintas e as luzes do salão do banquete também se tinham apagado. As cegonhas haviam ido embora. Não estava li mais nenhum convidado; nem o noivo. Tudo se desvanecera naqueles três minutos tão curtos.
   Sentiu então Helga um grande temor; atravessou o grande salão vazio e entrou na sala próxima, onde dormiam guerreiros estranhos. Abriu uma porta, que dava para o seu quarto, mas achou-se em um jardim que nunca tinha visto. No céu surgiam clarões vermelhos; era a madrugada que vinha. Somente três minutos no céu e uma noite inteira escoara na terra.
    Avistou então as cegonhas; chamou-as na linguagem delas. O pai cegonha voltou a cabeça, escutou e acercou-se dela.
   -Tu falas a nossa língua- disse ele. - Que queres?  Por que vieste aqui, mulher estrangeira?
   - Mas eu sou Helga. Não me conheces? Nós estivemos conversando na varanda, há poucos minutos.
  - É engano teu - disse a cegonha. - Sem dúvida sonhaste.
   - Não, não! Não foi sonho.
   E ela falou-lhe da fortaleza do Viking, do Brejo Bruto, e da viagem que tinham feito juntos.
   O pai cegonha piscou os olhos e disse:
   - Ah! Mas isso é uma história muito velha! Creio que esse caso aconteceu no tempo da bisavó da bisavó da minha avó. Sim: é verdade que houve no Egito uma princesa que veio da Dinamarca, mas essa princesa desapareceu na noite do casamento. Isso foi há muitas centenas de anos. podes ler essa história ali, no monumento do jardim. Lá estão esculpidos cisnes e cegonhas, e tu estás bem alto, toda de mármore branco.
   E assim era: Helga compreendeu tudo e caiu de joelhos.
   Surgiu o sol; e, como nos antigos tempos caía a  pele da rã à lua dos seus raios, revelando a linda menina, assim agora, ao batismo de luz, uma visão de beleza. Mais radiosa e mais pura do que o próprio ar - um raio de luz - ergue-se para o céu. O corpo terrestre se desfez em pó - só ficou uma flor de loto, já seca, no lugar onde ela estivera.
    - Ah! - disse o pai cegonha. - É um fim diferente para a história...Não o esperava, mas acho-o lindo!
    - Que dirão dele as nossas crianças? - perguntou a mãe cegonha.
   - Ah! Isso é que é o mais importante - disse o pai cegonha.
FIM











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