segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O PRESENTE DA FORTUNA - CONTOS DE ANDERSEN IV

     





  I. APRESENTAÇÃO

   Era em Copenhague, em uma casa da Rua Oriente. Não muito distante do novo Mercado Real. Alguém dava uma festa, uma grande festa. Porque é preciso dar uma festa de vez em quando; sem o que não se recebem convites também. Metade dos convidados já haviam sentado às mesas de jogo, e os outros estava à espera, para ver o que surgiria da pergunta da dona da casa:
    - Que vamos fazer agora?
   Até então a conversa se ia mantendo como podia. Entre outros assuntos, veio à baila a Idade Média. Sustentavam uns que foi uma época muito melhor que a nossa. E o conselheiro Knap defendeu com tanto calor essa opinião, que a dona da casa imediatamente se alistou a seu lado; e ambos, em altas vozes, criticaram acerbamente Oersted, que, num estudo comparativo das duas épocas, publicado no Almanaque, dera preferência à atualidade. O Conselheiro Knap, entretanto, sustentava  que a época do rei João, aí por 1500, foi a era mais nobre e a mais feliz.
    Enquanto prossegue essa discussão, só interrompida pela chegada de um diário que não contém nada que mereça leitura, vamos até a ante-sala, onde as visitas deixaram abrigos, bengalas, chapéus e galochas; lá encontraremos duas criadas, uma jovem e a outra já idosa. Quem as visse diria que eram aias que vinham buscar as amas - velhas viúvas ou solteironas; mas, observando-as com mais atenção, veria logo que não eram criadas vulgares, não. Tinham as mãos bem tratadas, porte e movimento graciosos, e seu traje denotava mesmo certa ousadia no corte.
    Pois saibam que ali se encontravam duas fadas. A mais nova não era a própria Fortuna, é verdade, mas enviada de uma de suas camareiras, que fora encarregada de repartir os dons menores da ama. A mais velha tinha aspecto severo.Era dona Cuidado, aquela que vai sempre em pessoa desempenhar suas obrigações, porque só assim tem certeza de que estão bem executadas.
    Falavam do seu trabalho do dia. A mensageira da Fortuna atendera a alguns negócios menores, segundo disse: resguardara da chuva um chapéu novo, proporcionara a um homem de bem um cumprimento atenciosos de um figurão, e outras ninharias semelhantes. Mas a tarefa que lhe restava era extraordinária.
   - Hoje é o meu aniversário - disse ela - e, para celebrá-lo, confiaram-me um par de galochas para a humanidade. Tem elas a virtude de transportar aquele que as calçar, ao tempo, lugar e condição de vida de sua preferência: qualquer desejo relativo ao tempo e ao espaço será instantaneamente satisfeito, de modo que um homem pode alcançar aqui mesmo na terra a felicidade perfeita.
   - Pois ouve o que te digo - opinou Dona Cuidado - esse homem será muito infeliz, e bendirá o momento em que se vir livre dessas galochas.
   - Não, não digas isso! - exclamou a outra. - Vou deixá-la aqui ao pé da porta; alguém há de enfiá-las por engano, e esse será o homem afortunado.
   E assim terminou a conversação.

 II. O QUE ACONTECEU AO CONSELHEIRO

   Era muito tarde quando o Conselheiro de Justiça resolveu recolher-se. Absorto em suas meditações sobre o bom tempo antigo do Rei João, quis a sorte que enfiasse os pés nas galochas da Fortuna, em vez de calçar as suas, e com elas saísse para a Rua Oriente. Mas a virtude que nelas se achava o fez retroceder imediatamente à época del-rei-João; e, como as ruas não eram pavimentadas naquele tempo, seus pés se enterraram na lama.
    - Mas isto é incrível! - exclamou o Conselheiro. - Desapareceu o calçamento do passeio, e todas as luzes foram apagadas!
   A lua ainda não se erguera suficientemente, e o ar estava toldado pela neblina, de sorte que, naquela escuridão, tudo lhe aparecia indistinto. Na esquina próxima ardia uma lanterna, pendurada diante de uma imagem da Madonna, mas a luz que dela irradiava era tão fraca, que não lhe servia de nada. Quando chegou bem debaixo do quadro, é que viu que representava a Virgem e o Menino.
   - Há de ser um museu de arte- pensou ele - e esqueceram-se de recolher a tabuleta.
   Passaram por ele duas pessoas, vestidas à  moda medieval.
  - Que trajes estranhos! - disse consigo. - Vem, certamente, de algum baile de máscaras.
   De repente ouviu o som de tambores e pífaros, e avistou a luz de tochas brilhantes. Parou, e ficou espantado ao ver a estranha procissão que passava, encabeçada por uma banda de tambores, que tocavam destramente seus instrumentos. Seguiam-no soldados, armados de longos arcos, e montados em bestas. O personagem principal da procissão era um clérigo de alta categoria, e o assombrado Conselheiro perguntou o que queria dizer aquilo, e quem poderia se aquele homem.
    - É o bispo da Zelândia - explicaram.
    - Mas que ideia essa do bispo? - dizia o Conselheiro, consigo.
    E, sacudindo a cabeça, declarou:
   - O bispo? Impossível!
   Ainda considerando o caso, e sem olhar para a direita nem para a esquerda, foi descendo a Rua Oriente, em direção à Praça da Ponte Grande; mas a ponte que dava passagem para a Praça do Palácio lá não estava. Afinal, à beira do arroio, viu um bote com dois homens dentro.
   - O cavalheiro quer embarcar para ir ao Holm? - perguntaram-lhe os marinheiros.
   - Ao Holm? - exclamou o Conselheiro, que não tinha a mais leve ideia de que estava vivendo em outra época. - Eu quero ir ao Porto de Cristiano, na Rua do Mercadinho.
   Os dois homens ficaram a olhar para ele, embasbacado; mas o Conselheiro pediu:
  - Tenham a bondade de me dizer onde fica a ponte. É escandaloso que ainda não estejam acessos os lampiões da rua! E há tanto barro, que mais aprece que ando dentro de um banhado!
   Mas quanto mais falava com os marujos, menos se entendiam. Afinal, acabou por dizer:
   - Não posso entender essa algaravia do Bornholm!
    E saiu dali, muito irritado. Mas a ponte! Não a encontrava; até o parapeito desaparecera.
   - Que escandaloso, tudo isto! Que maneira de conservar as coisas públicas!
   E jamais se sentira tão arreliado com o seu tempo, como naquela noite.
   - O melhor é tomar um cabriolé...
   Mas onde estavam eles? Não se avistava nenhum. 
    - É isso: tenho de voltar ao Mercado Real, onde há um parada; senão não chegarei nunca ao Porto de Cristiano.
  E lá se foi andando de novo, já fatigado, para a Rua Oriente; ia chegando quase ao fim dela quando surgiu a lua.
  - Valha-me Deus! Mas que é isto que construíram aqui?
   Chegara à Porta Oriente, que no tempo antigo ficava no fim da rua do mesmo nome. Estava ainda aberto um dos postigos e ele o atravessou, entrando no que é hoje o Mercado Novo. Mas a única coisa que viu foi um vasto campo. Aqui e ali se erguiam arbustos escassos, e o prado era cortado por um largo canal, ou arroio. Ao longe, à beira da praia, viam-se algumas cabanas de madeira já muito velhas, que pertenciam aos marinheiros holandeses; por isso naquele tempo chamavam ao lugar o Prado Holandês.----

    - Ou o que vejo é o que se chama fata morgana, ou estou embriagado - resmungou o Conselheiro. - Que espécie de lugar será este? Onde me encontro eu?
    E deu volta, convencido de que estava muito doente. Andando de novo pela rua ia olhando agora com mais atenção para as casas. Muitas delas eram de madeira, e muitíssimas cobertas de palha.
    - Não! Não estou em mim! - murmurou outra vez, suspirando. - Tomei um único copo de ponche, mas é que aquilo não me serve, não...Também, que ideia! - servir ponche com salmão quente! Hei de falar a esse respeito com a dona da casa - a mulher daquele comissário. E se eu voltasse lá, e lhe dissesse que não me sinto bem? Não! Seria de mau gosto. Além disse, certamente a esta hora estão todos acomodados.
   E, pensando estas coisas, ia procurando a casa, com os olhos muito atentos.
   - É horrível! Nem sequer reconheço mais a Rua Oriente!Não se vê sequer uma loja...Só vejo velhas cabanas desmanteladas, como se estivessem em Roskilde ou em Ringstedt. Estou mesmo muito doente!Não vou fazer cerimônias...mas onde foi parar a casa do comissário? Esta choça não se parece nem de longe com a casa dele. Há rumor lá dentro - é que ainda estão acordados. Ah! Estou mesmo muito doente! 
   Chegou a uma porta entreaberta; de dentro filtrava uma réstia de luz, pela fresta da porta. Era uma casa de bebidas daquela época - espécie de botequim. A sala tinham a aparência de uma cozinha de chão batido em uma quinta de Holstein, e os que ali estavam sentados eram marinheiros, cidadãos de Copenhague, e dois estudantes. Profundamente absorvidos na sua conversação, diante de suas canecas, pouca atenção prestavam ao recém-vindo.
   - Desculpe - disse o Conselheiro à dona da casa que veio atendê-lo - não me sinto bem. Quer ter a bondade de mandar alguém chamar um cabriolé para me levar ao Porto de Cristiano?
   Encarou-o a mulher por um momento; depois sacudiu a cabeça e falou-lhe em alemão. Julgando que ela não entendia o dinamarquês, repetia o Conselheiro o seu pedido em alemão. Isso, e o corte de sua roupa, convenceram-na de que era estrangeiro. Mas, compreendendo logo que o homem não se sentia bem, trouxe-lhe ela uma caneca de água salobra, pois fora tirada de um poço que ficava ao nível do mar.
  O Conselheiro apoiou a cabeça nas mãos, respirou profundamente, e ficou a refletir sobre todas aquelas coisas esquisitas que o cercavam.
   - É O Dia? - perguntou, pela força do hábito, vendo que a mulher punha de lado, uma grande folha dobrada.
  Ela não o entendeu lá muito bem, mas deu-lhe o papel. Era uma gravura em madeira, representando um meteoro que fora visto no céu de Colônia.
     - Mas isto é muito antigo - disse o Conselheiro, já mais animado diante daquela descoberta. Onde obteve a senhora esta gravura, tão velha e tão rara? É muito interessante, apesar de que tudo isso não
 passa de um mito. Nos nossos dias, estes meteoros são explicados pela aurora boreal, e são devidos, provavelmente, à eletricidade.
   Os que estavam perto deles, ouvindo a observação, olharam-no, admirados. Um dos homens levantou-se tirou respeitosamente o chapéu, e disse com a maior gravidade:
   - Cavalheiro, o senhor é um homem muito douto!
    - Eu? Não, não,,,Apenas posso dizer alguma coisa sobre assuntos que todos conhecem.
    - É a modéstia uma virtude admirável - declarou o homem, - Agora quanto à sua explicação, devo dizer: mihi secus videtur, ainda que me sinta feliz de suspender meu judicium.
  - Posso saber com quem tenho o prazer de tratar? - indagou o Conselheiro.
   - Sou bacharel em Teologia - disse o homem em latim.
   A resposta satisfaz o Conselheiro, porque o grau harmonizava com o traje do sujeito.
  - É sem dúvida um mestre-escola antigo - pensava o Conselheiro - um desses esquisitões, que ainda se encontram de vez em quando Jutlândia.
   - Ainda que não estejamos agora em um locus docendi- continuou o homem - rogo-lhe que nos honre com a sua palestra. É, certamente, muito versado nos clássicos.
   - Assim, assim...concordou o Conselheiro. Gosto de ler os antigos - e os novos também, é claro, que quando não se trata dessas " Histórias Vulgares", de que já está cheia a vida real.
  -"Histórias Vulgares"? - repetiu o bacharel.
   - Sim: quero dizer, as novelas modernas.
 - Ah! - disse o outro sorrindo. - Pois olhe que elas são interessantes, e gozam  de grande favor na Corte. O Rei João gosta muito do "Romance de Iwain e Jawain", que fala do Rei Artur e de seus cavaleiros da Távola Redonda. Ele até caçoa com seus cortesãos a respeito do livro.
  - Oh! Sim...nem todos podem estar sempre a par de todos os livros novos...Sem dúvida esse foi publicado por Heiberg, não?
   - Não; não foi Heiberg, mas Gotfres von Ghemen.
  - Sim? É um belo nome antigo para um literato. Porque Gotfres von Ghemen foi o primeiro impressor na Dinamarca.
   - Sim - concordou o homem - é o nosso primeiro e mais importante editor.
     Até ali a conversação tinha corrido tranquilamente. Agora, um dos homens da cidade começava a falar da epidemia que tinha grassado alguns anos antes, referindo-se à peste de 1484. O conselheiro julgou que ele falava da última epidemia de cólera, de sorte que não houve discordância.
    A Guerra dos Corsários, de 1490, era tão recente, que não podia deixar de entrar também na discussão. Disseram que os piratas ingleses tinham apresado navios no nosso porto, e o Conselheiro, situado o caso em 1801, fez coro com eles no ataque aos ingleses. Mas dali por diante a palestra foi caindo de contradição em contradição. Acontece que o digno bacharel era de um ignorância crassa, e as observações mais simples do conselheiro pareciam-lhe ousada demais, e até fantásticas. Encaravam-se então, admirados, e quando surgia novo mal-entendido, o bacharel embarafustava pelo latim, na esperança de se fazer melhor compreender, mas nem isso dava resultado.



   - Já se sente melhor, senhor? - perguntou  a dona do botequim, puxando pela manga do Conselheiro.
   Ora, no entusiasmo da conversação, esquecera ele o que lhe sucedia; mas agora, prêsa de grande agitação, pensava de novo no estranho caso:
   - Meu Deus! Onde estou eu?
   - Vamos tomar agora vinho clarete, hidromel e cerveja de Bremen! - disse um dos fregueses. E o senhor vai beber conosco!
   Entraram duas moças; uma tinha uma touca de duas cores. Encheram os copos e depois fizeram uma cortesia. O conselheiro sentia arrepios na espinha dorsal.
   - Que significa isto? Que significa isto? - dizia consigo.
   Mas era impossível recusar convite tão atencioso. E tanto o cumularam de gentilezas, com boa intenção é claro, que perdeu a cabeça; e quando um dos convivas disse que ele estava bêbado, não lhe opôs dúvida alguma. Tudo o que pediu foi que lhe obtivessem uma droschke.( cabriolé, em dinamarquês.) E julgaram então que falava russo.
  Não! Nunca se ivra em companhia de gante tão baixa e vulgar!
   Veio-lhe a ideia de escorregar para baixo da mesa, e ir rastejando até a porta: dali poderia escapulir. Mas justamente quando chegava à soleira, descobriram-no os companheiros e seguraram-no pelos pés, puxando-o para trás. E tanta foi a sua felicidade, que lá lhe ficaram a galochas - e com ela o encantamento.
   Via agora distintamente um lampião de rua, em frente de um grande edifício, que logo reconheceu, assim como os outros da vizinhança. Era a Rua do Oriente, como a conhecemos hoje. O conselheiro estava estendido no pavimento, com as pernas apoiadas a um portão; e do outro lado da rua estava sentando um guarda-noturno, que pegara no sono.
   - Valha-me Deus! Terei sonhado assim, caído ao chão? Não há dúvida: é a Rua Oriente...E como está iluminada, e linda! Mas que espantoso efeito o daquele único copo de ponche!
   Dali a dois minutos estava sentado em um cabriolé, a caminho do Porto de Cristiano. E, recordando as angústias e o terror que padecera, exaltou de todo o coração a época atual, a nossa feliz idade. Com todas as suas deficiências, era preferível, sem dúvida, àquela era que caíra momentos antes.
   Parecia-lhe que ninguém de bom-senso pensaria de outra forma.

   III. AS AVENTURAS DO GUARDA-NOTURNO

   -Olá! Um par de galochas! - exclamou o guarda. - Hão de ser do tenente que mora lá em cima, pois que estão à porta da sua casa.
   Estava disposto a tocar a campainha e subir, para entregá-las ao dono, pois ainda havia luz no último andar; mas receando importunar os outros moradores, deixou as galochas onde estavam.
   - Há de ser muito confortável, uma coisa destas- dizia consigo. - São tão macias...
    - Calçou-as, e viu que lhe serviam perfeitamente.
  - Que mundo esquisito este nosso - continuou a pensar. - O tenente, por exemplo, podia estar a esta hora bem agasalhado na cama macia; mas  mas prefere dar voltas no quarto, e passa e torna a passar em frente da janela. É um homem feliz, isso lá é! Não tem mulher nem filhos, e todas as noites vai a alguma festa. Se eu fosse ele, que ditoso não me sentiria!
   Mal expressara esse desejo e já as galochas que calçara o transformaram no tenente - corpo e alma - e lá os achou no quarto do sobrado. Tinha na mão uma folha de papel cor-de-rosa, na qual o tenente tinha escrito uma poesia. Quem é que não teve já na vida um momento de inspiração poética? E se a gente escreve nesse instante o que tem no pensamento, seja lá como for, isso é poesia.
    No papel estava escrito:
" Oh! Se eu fosse rico! Quando era menino
Queria ser rico, e ser oficial;
E usar espada, e altivo penacho,
E um rico uniforme da escolta real.
O grau de tenente já mo trouxe tempo.
Porém as riquezas - ainda não as vi;
Estão escondidas, não pude encontrá-las;
E só as espero, Senhor, Deus, de ti!

 "Quando era bem jovem, recebi um beijo
De linda menina. Feliz me senti.
Com belas histórias e contos de fadas,
De que era então rico, lhe correspondi.
Por única paga queria poesia,
E eu, nesse tempo, era rico de amor;
Mas não de ouro e prata, que não encontrava
Em parte nenhuma. Onde estão, Senhor?

"Oh! Se eu fosse rico! De noite e de dia
A Deus eu pedia, pedia este dom!
A bela menina crescia, crescia;
E hoje uma moça, tem coração bom.
Se ao menos soubesse que tesouro encerra
 Minha alma! Se a língua pudesse expressar
Tudo quanto sinto...talvez me quisesse!
Por que,Senhor Deus, não sei eu falar?

"Oh! Se eu fosse rico, tranquilo viveria;
E não acharias, escritos aqui,
Os duros pesares que abatem minha alma
Neste louco anseio de pensar em ti!
Mas se minha história souberes um dia,
Verás que fui pobre, sozinho, obscuro,
E passei meus dias orando e pedindo
Que Deus te reserve risonho futuro."

  Sim, um homem enamorado escreve muitas poesias que um homem são de espírito não publica. Um tenente, o seu amor e a sua pobreza - eis aí um eterno triângulo, uma vida despedaçada, que jamais poderá ser consertada. Bem o sabia o tenente. Apoiando a cabeça na vidraça, suspirou, murmurando:
   - Aquele pobre guarda que lá está na rua é muito mais feliz do que eu. Não conhece o que eu chamo necessidade. Tem um lar. Tem esposa e filhos que choram com ele nas suas tristezas, e tomam parte nas suas alegrias. Ah! Eu seria muito mais feliz se pudesse trocar com ele, porque é muito mais bem aquinhoado do que eu!
   Instantaneamente o guarda voltava a ser ele mesmo. As galochas tinham-no transformado no tenente, como vimos. Achou-se muito menos afortunado lá em cima, e preferia ser justamente o que fora antes.
  O guarda urbano voltou a ser guarda urbano.
   - Tive um mau sonho - disse consigo. - Coisa estranha!Imaginei que era o tenente, e não gostei nada disso! Achava falta de minha mulher e de nossos filhinhos, que quase me afogam em beijos.
   Sentou-se e começou a cabecear de novo; não conseguia afastar aquele sonho do espírito. Tinha ainda as galochas calçadas quando viu uma estrela cadente riscar o firmamento.
   - Lá se foi uma- murmurou ele. - Mas são tantas que as caem nem fazem falta. Eu gostaria de ver aquelas bugigangas mais de perto...Principalmente a Lua, que não é coisa que se possa apanhar nas mãos. Aquele estudante que dá a roupa para a minha mulher lavar, diz que quando morremos saímos a voar de estrela em estrela. Isso não passa de fantasia, é claro. mas seria lindo, ainda assim, se eu pudesse dar um pequeno salto pelo firmamento. Meu corpo podia ficar aqui na escada...isso era o de menos!
  Ora, há certas palavras que não devem ser pronunciadas senão com muita cautela; e quando a gente está com as galochas da Fortuna nos pés, então é preciso pensar duas vezes antes de falar. Vejamos, pois, o que aconteceu ao guarda.
   Sabemos que o vapor nos transporta com grande rapidez de um sítio a outro, quer viajemos em um trem, quer embarquemos em um navio. Tudo isso no entanto, não passa de andar de preguiçoso, ou antes de passo de caracol, comparado com a velocidade da luz, que viaja dezenove milhões de vezes mais depressa do que o mais veloz cavalo de corrida. Pois a eletricidade anda ainda mais depressa. A morte não é mais que um choque elétrico no nosso coração e a alma voa livre, nas asas da eletricidade. A luz solar gasta oito minutos e alguns segundo para percorrer cerca de cento e cinquenta milhões de quilômetros. Nas asas da eletricidade a alma pode fazer a mesma viagem em um momento. E para uma alma libertada, os corpos celestes ficam tão próximos uns dos outros como estão para nós os nossos vizinhos aqui na Terra. Contudo, esse choque elétrico nos separa do corpo para sempre - a não ser que, como aquele guarda-noturno, tenhamos calçados as galochas da Fortuna.
   Em poucos segundos percorreu ele os trezentos e oitenta mil quilômetros que nos separam da Lua. Sabemos que o nosso satélite é feito de um material muito mais leve que a Terra, e tão brando como neve recém-saída. O guarda aterrou em uma  daquelas numerosas crateras que já conhecemos do grande mapa lunar do Dr.Maedler. O interior da cratera era uma grande bacia de seis quilômetros de profundidade, e lá no fundo jazia uma cidade. Poderemos ter uma ideia de sua aparência, deitando uma clara de ovo em um copo d'água. A cidade era de uma matéria tão mole como a albumina do ovo. E aquilo formava torres translúcidas, e cúpulas, e terraços, tudo flutuando no ar.
   Sobre a cabeça do guarda pendia a nossa Terra, como um enorme globo vermelho escuro. Notou ele a presença de seres que correspondiam certamente aos homens e mulheres da Terra, mas com aparência muito diferente da nossa. Tinham também a sua linguagem. Não seria de esperar que a  alma de um guarda-noturno a compreendesse. Pois bem ele entendeu perfeitamente a língua do povo da Lua! Discutiam a nossa Terra, duvidando que pudesse ser habitada. Diziam que o ar da Terra devia sem muito denso para que um homem da Lua, um ser inteligente, pudesse viver nela. E concluíram afirmando que só a lua era habitada, porque constituía o globo primitivo, em que vivia a gente do Mundo Antigo.
    Tornemos agora à Rua Oriente, para ver o que foi feito do corpo do guarda. Lá estava ele sem vida, na escada. Sua estrela d'alva - o pau crivado de puas, arma do guarda-noturno - caíram-lhe das mãos.Tinha os olhos voltados para a lua, que àquela hora sua alma simples andava explorando.
    Que horas são? - perguntou-lhe um transeunte.
     Não obtendo resposta, deu um leve puxão no nariz do guarda, que perdeu o equilíbrio e caiu. E ali ficou o corpo, estendido de todo o comprimento; estava morto. O que lhe puxara o nariz levou um tremendo susto, mas o guarda estava morto, e morto ficou. Foi feito o relatório do caso, houve investigações, e quando amanheceu levaram o corpo para o hospital.
   Seria coisa engraçada se alma voltasse à Rua Oriente, à procura do seu corpo, e não o encontrasse...Mas talvez ela se dirigisse em primeiro lugar à Delegacia de Polícia, depois ao escritório da diretoria, onde podia deixar um aviso de objeto perdido - e só depois de tudo isso se lembrasse de ir ao hospital. Mas deixemos  de conjeturas! Não há necessidade de nos preocuparmos com isso, não. A alma é bastante sensata, quando em liberdade. Só quando está unida ao corpo é que comete disparates.
   Como já dissemos, foi o corpo do guarda levado para o hospital. Depositaram-no em uma sala onde devia ser lavado, e naturalmente a primeira coisa que fizeram foi tira-lhe as galochas dos pés. Viu-se então a alma obrigada a voltar a toda a brida, e em um abrir e fechar de olhos o guarda recobrou aos sentidos. Declarou logo, até jurou, que nunca tinha passado noite tão medonha na vida, e que não quereria repetir a experiência por nada no mundo - não! Por dinheiro nenhum! Felizmente estava tudo acabado, e ainda bem!
   Foi-lhe permitido deixar no mesmo dia o hospital, mas as galochas lá ficaram.


   
    IV. UM MOMENTO DE APUROS - JORNADA EXTRAORDINÁRIA
 
   Quem já morou em Copenhague conhece a entrada do Hospital de Frederico; mas como nem todos os que lerem esta história lá estiveram, vamos fazer uma rápida descrição do edifício.
  Fica o hospital separado da rua por uma grade de ferro, de altura considerável, e cujos varões são muito espaçados -  pelo menos assim dizem as crônica - para que os estudantes internos mais magrinhos possam esgueirar-se entre entre eles e fazer excursões pela cidade. O mais difícil de espremer e fazer passar entre as grades era a cabeça. Nisto, como sucede tantas vezes no mundo, os de pouca cabeça eram os mais afortunados. E é o que queríamos dizer sobre o edifício.
   Ora, uma noite estava de plantão um dos jovens estudantes, de quem se podia dizer que tinha uma grande cabeça - somente no sentido físico. Chovia torrencialmente, mas apesar dessas dificuldades ele estava resolvido a sair por um quarto de hora.  E nem seria preciso que o porteiro soubesse que saíra.  - pensou ele- se pudesse passar pela grade. Ali estava as galochas que o guarda esquecera, e conquanto o interno nem por sombras imaginasse que eram as da Fortuna, sabia que lhe prestariam um bom serviço, se as levasse nos pés. Calçou-as, pois: e agora a questão se resumira em passar pelas grades, coisa que nunca tentara. E lá estava ele, examinando as barras de ferro.
   - Quem me dera poder meter a cabeça por entre estas grades! - exclamou afinal.
   E, posto que sua cabeça fosse maior que o espaço entre as varas, o certo é que passou imediatamente, e com a maior facilidade, para o lado de fora. Obra das galochas. Restava apenas passar o corpo; mas este não conseguia seguir a cabeça.
   - Que pena! - dizia o interno. - É que sou muito gordo. julgava que o mais difícil era passar a cabeça...Mas enganei-me: nunca conseguirei passar!
   Tentou então recolher a cabeça de novo, mas também não o conseguiu. O mais que podia fazer era mover o pescoço facilmente. Começou por se enfurecer. Logo depois a cólera foi diminuindo, e o moço ficou muito acabrunhado. As galochas da Fortuna tinham-no metido em uma situação embaraçosa, e infelizmente não lhe ocorria a ideia de querer sair dali. Não: em vez de desejar sair, lutava e se esforçava, sem resultado algum. Continuava a chover torrencialmente, e nem uma alma passava na rua; e não alcançava o cordão da campainha, que ficava ao pé do portão. Como havia de se libertar? Só lhe restava ficar ali até que amanhecesse, e alguém fosse chamar um ferreiro para limar o varão de ferro. E isso levaria tempo. Todos os rapazes da escola fronteira estariam já de pé e andariam pelas imediações, e a população inteira de "Nyboder", o bairro dos marinheiros, acorreria para ver o homem no pelourinho. Porque ele ia reunir ali uma multidão maior do que a que fora ver os jogos do campeonato de luta no ano interior!
  E o estudante ofegava. Afinal exclamou:
   - Arre! Já o sangue me sobe à cabeça! Vou enlouquecer! Sim, vou enlouquecer! Oh! se me visse livre, fora deste arrocho! Tudo estaria sanado!
   Por que não o dissera mais cedo! Mal deu forma ao seu desejo, e já pode libertar a cabeça; correu então para o seu quarto, ainda aturdido com o grande susto que lhe tinham pregado a galochas da Fortuna. Mas pensam que ficou só nisso? Não! Faltava ainda o pior!
   Amanheceu, passou-se o dia, e ninguém procurou as galochas. À noite realizava-se um espetáculo no teatrinho da Rua Kannike. Encheu-se a sala, e entre os espectadores achava-se o nosso amigo, o interno, nada abalado, ao que parecia, pelos acontecimentos da véspera. Calçara de novo as galochas. Ora, afinal, ninguém as reclamara, e as ruas estavam muito enlamadas: elas bem podiam servi-lo outra vez, agasalhando-lhe os pés contra a umidade.
   Representava-se uma peça nova: " Os óculos da Vovó". Eram uns óculos mágicos: quem os usava podia ler o futuro das pessoas no seu rosto, tal como um cartomante o lê nas cartas.
   O moço gostou da ideia. Quem lhe dera possuir um par de óculos assim! Usados com discernimento, habilitaram uma pessoa a ler mesmo no coração alheio. E isto, o que vai acontecer no próximo ano. Os acontecimentos futuros hão de ser conhecidos no tempo devido, mas ninguém sabe jamais os segredos que se escondem no coração do próximo.
  E o estudante dizia consigo:
  - Ah! Se eu pudesse ver o que está oculto no coração daquelas damas e cavalheiros da primeira fila! Que montão de coisas - que sortimento de gêneros diversos não havia de ver! Era o mesmo que percorrer uma série de grandes armazéns bem sortidos! Em cada coração feminino encontraria, é claro, uma loja de modas completa. Lá está uma, cuja loja está vazia, mas uma boa limpeza não lhe faria mal. E algumas lojas haviam de estar bem sortidas!
   Suspirou, depois prosseguiu:
   - Sei de uma onde todos os gêneros são de melhor qualidade, e é justamente a que eu desejaria administrar...mas - ai de mim! Já tem o seu lojista, e é o único artigo de má qualidade que se encontra em toda a loja. Algum desses corações que aí estão talvez dissesse: "Não quer entrar?" E bem que eu gostaria...Havia de passar por aqueles corações, como um lindo pensamento.
    Ora, o seu desejo foi logo satisfeito: as galochas pegaram-lhe na palavra. O interno, reduzido quase  a nada, empreendeu uma viagem extraordinária, pelos corações dos espectadores da primeira fila. O primeiro que visitou foi o de uma dama, mas a princípio tomou-o por uma sala de Instituto Ortopédico, ou hospital, em cujas paredes se vêm pendurados moldes de membros deformados, feitos de gesso, A única diferença é que no hospital, em cujas esses moldes são feitos quando os pacientes entram, e os que estavam assim conservados no coração da dama era preparados quando partiam as pessoas sãs. Porque cada defeito, físico ou mental, dos amigos que ela perdera, tinham sido cuidadosamente armazenados ali.
    Apressou-se o estudante a entrar no coração de outra mulher; parecia-se esse com uma enorme catedral. Sobre o altar-mor flutuava a pomba branca da inocência, e o interno de boa vontade ficaria ali de joelhos, mas tinha de ir ligeiro para o coração mais próximo. Contudo, ainda teve tempo de ouvir os acorde do órgão, e sentia-se agora um homem novo, e melhor - um homem não de todo indigno de penetrar no santuário próximo. Era esse um pobre sótão, onde jazia uma mulher doente; mas pelas janelas entrava os raios do sol, quentes e brilhante. Os canteirinhos de madeira do telhado estava cheios de rosas, e duas alvéolas cantavam, celebrando a infância feliz, enquanto a mãe doente orava, pedindo pela filha ausente.
  Entrou depois em um açougue apinhado - e tinha de andar ali da gatinhas. Era só carne, carne e mais carne, para qualquer canto que olhasse naquele coração - era o de um homem rico e respeitável, cujo nome se encontra facilmente no guia comercial.
   Ao lado, estava a esposa daquele homem, e o seu coração não passava de um pombal em ruínas. O retrato do marido servia apenas como um cata-vento, em comunicação com as portas, de sorte que esta abriam ou fechavam, conforme o marido mudava de opinião.
    No coração seguinte encontrou uma câmara de espelhos; mas neste coração os espelhos tinham a propriedade de aumentar consideravelmente os objetos. Como se fosse o Grande Lama do Tibete, o insignificante do dono sentado no meio da sala, perdia-se na contemplação da própria grandeza.
   Pareceu-lhe em seguida que se enterrava em uma agulheiro, cheio de pontas aguçadas, e disse consigo:
   - Isto há de ser, com toda a certeza, o coração de uma solteirona.
   Como errara longe! Era o coração de um moço, oficial ainda jovem, cheio de medalhas, de quem diziam todos:
  - É um homem de coração e de talento!
   E o pobre interno achava-se completamente atordoado, quando saiu do coração da última pessoa da primeira fila. Não conseguia por em ordem os próprios pensamentos, e julgava-se vítima de sua imaginação, exaltada em alto grau.
  - Santo Deus! - murmurou ele. - Estou certamente a caminho da loucura! Faz aqui um calor insuportável, e sinto que o sangue me sobe à cabeça...
  Nesse momento lembrou-se de tudo quanto lhe acontecera na véspera, quando se vira preso entre os varões da grade do hospital.
  - Sem dúvida foi aquilo que me pôs neste estado - pensou ele. - Preciso tomar alguma medida, enquanto ainda é tempo. Acho que um banho russo viria a propósito. Quem me dera estar já estendido na prancha!
   Mal acabara de formular este desejo e já se achava mesmo deitado no estrado do banho de vapor, completamente vestido, até de sapatos e galochas! E sentia as gotas quentes do vapor condensado que, caindo do teto, lhe mostravam o corpo.
    - Uff! - gritou ele, saltando dali, para tomar uma ducha fria.
  Quando o assistente viu um homem todo vestido na sala dos banhos de vapor, pôs-se aos gritos; mas o estudante teve bastante presença de espírito para lhe murmurar:
  - É uma aposta! 
   Contudo, a primeira coisa que fez ao  chegar ao seu quarto, foi aplicar sinapismos na nuca e nas costas, para evitar a loucura.
  No dia seguinte amanheceu com as costas cheias de empolas - e foi tudo quanto ganhou, por ter calçado as galochas da Fortuna.

    V. A TRANSFORMAÇÃO DO ESCRIVÃO

   Lembrou-se o guarda-noturno - de quem também nós não nos esquecemos- das galochas que tinha achado, e que devia ter nos pés quando o levaram para o hospital. Foi buscá-las e, como nem o tenente, nem qualquer outra pessoa as reclamou, levou-as à Delegacia de Polícia.
   - São exatamente iguais às minhas - disse um dos escrivães, colocando as galochas sem dono ao pé das suas. - Nem um sapateiro poderia diferençá-las.
  Nesse momento entrou uma ordenança, trazendo alguns papéis.
  Voltou-se o escrivão para falar com o polícia, e quando tornou para junto das galochas ficou em dúvida: seria o par da direita ou o da esquerda, o seu? Afinal decidiu:
  - Certamente as minhas são as que ainda estão úmidas. Mas estava enganado: aquelas eram as da Fortuna. Também os empregados da polícia se enganam de vez em quando.
   Calçou, pois, as galochas da Fortuna, meteu alguns papéis no bolso, pegou em um manuscrito, para ler em casa, e saiu. Era uma manhã de domingo, o tempo estava lindo, e ele pensou:
   - Um passeio até o parque de Frederisksberg há de me fazer bem.
   E para lá seguiu. É difícil encontrar homem mais tranquilo, mais digno de confiança do que aquele moço. Deixem-no dar o seu passeiozinho! Sem dúvida lhe será salutar, depois de estar tantas horas sentado.
   Foi andando a princípio sem pensar em coisa alguma, de sorte que as galochas não tinham oportunidade de mostrar sua virtude mágica. Na avenida encontrou um conhecido, um jovem poeta, que ia partir no dia seguinte para uma excursão. Uma viagem de veraneio.
   - Que! Já vais fazer outra viagem? - perguntou o escrivão. - Que feliz és tu, assim livre! Podes ir para onde bem te aprouver, enquanto nós temos de ficar aqui, sempre amarrados por uma perna.
       Sim, amarrados mas amarrados a uma árvore que dá frutos - replicou o poeta. Não tens preocupações pelo dia de amanhã, e quando vier a velhice, dar-te-ão uma pensão.
   - Seja como for, estás melhor do que eu. Há de ser coisa muito agradável sentar-se a gente a escrever poesias...Tu, exemplo: Todos te dizem palavras amáveis, e, além disso, és senhor do teu tempo., podes fazer o que bem entendes. Se soubesse o que é viver um homem a vida inteira a lidar com a rotina comum do tribunal...
   O poeta sacudiu a cabeça; fez o escrivão à sua opinião.




   - É uma raça esquisita, essa dos poetas - ia pensando o escrivão. - Pois eu gostaria de experimentar o seu ofício... Estou certo de que não havia de escrever tantas lamentações, como fazem quase todos eles. E o dia hoje está esplêndido - um verdadeiro dia de primavera, um dia próprio para inspirar um poeta! O ar está mais transparente do que de costume, as nuvens são tão lindas, a relva verde tão cheirosa...Há anos e anos que não sentia estas coisas tão bem como as estou sentindo agora!
    Já não há dúvida de que o homem se tornara poeta. Não que ele tivesse ficado diferente - porque loucura seria pensar que um poeta difere grandemente das demais pessoas: algumas delas possuem até mais sentimento poético, por natureza, do que muitos grandes poetas, aceitos como tal. A diferença é que um poeta tem melhor memória para as coisa do espírito. Pode reter uma emoção e uma ideia, e expressá-las firmemente - e claramente - em palavras; e isso é o que os outros não conseguem fazer. Mas um homem prático pensar em termos de poesia! É coisa verdadeiramente curiosa! E esta transformação acabamos de presenciar naquele homem burocrático.
   - Que perfume delicioso, este que anda no ar! - exclamava ele. - Até me faz lembrar as violetas da tia Lone...Nunca mais tinha pensado nelas, desde o tempo de menino...Querida tia, a velha solteirona! Morava lá para os lados do Canal. Tinha sempre em um vaso um galho, ou ao menos umas folhas verdes, por mais rigoroso que fosse o inverno. E eu sentia o perfume das violetas, mesmo quando tinha de aquecer uma moeda, para abrir um olhete na vidraça! Navios bem encostados uns aos outros, imóveis no Canal. todos vestidos de neve, e abandonados pela tripulação. Um corvo solitário, que crocitava, era a única criatura vivente a bordo deles. mas quando sopravam as brisas da primavera, tudo renascia, tudo revivia ali. E eram gritos e risadas quando o gelo se rompia. Alcatroados e equipados de novo, zarpavam para navios para terras distantes.  E eu ficava aqui,e aqui devo ficar para sempre, sentado no gabinete da polícia, onde outros vão tirar seus passaportes para ir aos países estrangeiros. Sim! Foi o que me tocou por sorte! É o meu destino!
   Suspirou; depois parou de repente.
   - Céus! Que tenho eu? Nunca pensei, nem senti jamais estas coisas...Há  de ser doa ar da primavera! É assustador, mas muito agradável também...
   Remexeu nos papéis que tinha no bolso, dizendo:
   - Aqui acharei em que pensar!
   Olhou para o papel e viu na primeira página: " Lady Sigbrida - tragédia original em cinco atos." 
- Mas ...que vem a ser isto? Quando foi que escrevi isto. Mas é minha letra! Então eu escrevi uma tragédia? 
   E continuou a ler: " Uma Intriga nas Muralhas ou O Dia de Jejum - Vandeville."
   - Mas de onde teria vindo isto? Foi alguém, certamente, que meteu estas coisas no meu bolso...E uma carta! Há também uma carta!
   Era dos empresários de um teatro, que rejeitavam a seu peça - carta nada delicada, por sinal.
   - E esta! - disse o escrivão, sentando-se em um banco.
   Eram elevados seus pensamentos, e tinha o coração sensível. Colheu maquinalmente uma flor, um malmequer comum, E aquilo que um professor de Botânica nos explica em várias lições, a flor lhe disse em um instante. Ela lhe falou do mistério do seu nascimento, e do poder da luz solar, que abriu suas pétalas tão delicadas, e lhes deu perfume. Isso o levou a pensar na luta da vida, que suscita também na nossa alma emoções semelhantes. O ar e a luz são namoradas das flores, sim; mas é luz a preferida. É para ela que a flor se volta constantemente e só quando a luz desaparece é que ela fecha as pétalas e adormece nos braços do ar.
     ----É a luz que me dá beleza - disse a flor.
  - Mas o ar - murmurou a voz do poeta - o ar te dá a respiração.
   Não muito longe, um menino batia com a sua bengala em uma poça d'água lamacenta, e as gotas voavam até os galhos verdes das árvores. O escrivão pensou então nas inumeráveis criaturinhas microscópicas que viviam nas gotas d'água. Para ela, aquele salto era o que seria para nós um impulso que nos atirasse às nuvens. E o poeta sorriu, ao pensar naquelas coisas, e mais na grande mudança que se operara nele.
  - Estou certamente dormindo, e sonhando - dizia consigo.- E é maravilhoso, sonhar assim tão naturalmente, e saber ao mesmo tempo que estou sonhando! Quem dera que me lembrasse de todo este sonho, ao despertar, amanhã! Sinto em mim um alegria fora do comum. Tenho uma percepção tão nítida das coisas, e sinto-me tão perfeitamente acordado! Mas sei que quando me recordar deste sonho, tudo ficará reduzido a um montão de tolices, como já me tem acontecido. Todas as observações brilhantes e atiladas que a gente faz e ouve em sonhos, são como as moedas de ouro que os gnomos amontoam debaixo da terra: brilhantes e lustrosas, mas vistas à luz do sol, não passam de pedrinhas e folhas secas.
   Olhando, triste, para os passarinhos, que cantavam, esvoaçando alegremente de ramo em ramo, disse suspirando:
   - Aquele sim, são mais bem aquinhoados do que eu. Voar é uma nobre arte, e feliz a criatura que nasceu com asas. Sim! Se eu pudesse transformar-me no ser que me apetecesse, queria ser um passarinho, uma pequenina calhandra.
   E...dito e feito! Num ápice , as abas e as mangas do casaco viraram em asas, a roupa toda se transformou em penas, as galochas em patinhas. Vendo-se desse jeito, o homem riu; ria de si próprio. 
    - Agora -disse ele- sei bem que estou sonhando; e nunca tive sonho tão disparatado!
   Voou para uma árvore, e foi cantar entre os ramos, mas agora já não havia poesia nenhuma no seu canto, pois já não era mais um poeta. Com todas as pessoas que procuram fazer as coisas bem-feitas, as galochas só podiam efetuar uma tarefa de cada vez. Quando ele desejou ser um poeta, tornou-se poeta. Agora desejara ser um passarinho, e nessa segunda transformação perdeu o caráter anterior. 
   - Realmente, isto é divertido! Durante o dia sento-me num escritório da polícia, cercado da papelada oficial mais prosaica do mundo, mas à noite posso sonhar que me converti em calhandra, e estou no parque de Frederiksberg. Que esplêndido assunto para uma comédia popular!
   Desceu, voando, para a relva; virava a cabecinha para todos os lados, espicaçando as folhinhas de grama que ondulavam à brisa, e que, em proporção ao seu porte, lhe pareciam palmeiras africanas. Foi só um momento, porém. De repente tudo ficou escuro, e pareceu que lhe caíra em cima um enorme objeto. Era um gorro que um garoto de Nyboder atirara em cima do passarinho. Passou por baixo  do gorro uma mão, que o segurou pelas asas, e com tanta força, que arrancou um grito. o terror inspirou-lhe estas palavras:
  - Malandro!Sou o escrivão da polícia!
   Mas, para o menino, tudo aquilo eram somente pios:
   - Tuiiit! Tuiiit! tuuu-iit!...
   E, dando um piparote no bico da calhandra, foi-se embora.
  Na avenida encontrou dois colegiais. Pertenciam, na sociedade, à classe mais alta; mas, devidamente classificados na escola segundo o próprio mérito, ocupavam ali um lugar na ultima, isto é, na mais baixa.  Compraram o passarinho por alguns centavos, e nas suas mãos o escrivão voltou a Copenhague, e foi parar na casa de uma família que morava na Rua dos Godos.
   - Ainda bem que isto é um sonho! - disse consigo o escrivão. - Do contrário, seria para enfurecer um homem!  Ainda há pouco, era um poeta, e agora sou uma calhandra! Sem dúvida foi meu temperamento poético que assim me converteu nesta criaturinha . - É coisa muito triste, principalmente se a gente cai nas mãos de dois rapazinhos...Mas o que eu desejaria saber é como acabará isto tudo.
  Levaram-no os meninos para uma sala luxuosamente mobiliada, onde foram recebidos por uma senhora gorda e de aspecto afável. Não gostou que levassem para casa aquele passarinho silvestre, tão vulgar - como chamou à calhandra. Disse-lhes, contudo, que por um dia - e um somente! - podiam conservá-lo na gaiola vazia que estava ao pé da janela.
   - Pode ser que o Louro goste ele- disse ela, sorrindo para um grande papagaio, que se equilibrava, todo orgulhoso, no arco da sua gaiola de arame.
  E continuou, como uma simplória que era:
   - É o aniversário do Louro. O passarinho silvestre quer cumprimentá-lo.
  O Louro não disse uma palavra; continuou a virar-se para um lado e outro, balançando o corpo. mas um lindo canário pequenino, que tinham trazido no verão de sua terra quente e perfumada, começou a cantar o melhor que podia.
   - Gritalhão! - disse a dama, atirando um lenço branco por cima da gaiola.
   - Tuit! Tui-it! Tu-it!...Que tempestade de neve! suspirou o canário.
   E ficou quietinho na gaiola,
    ---O escrivão - ou, como lhe chamara a dama, o passarinho silvestre - foi metido em uma gaiola, não longe do canário e do papagaio. As únicas palavras humanas que o papagaio sabia dizer, e que soavam , às vezes, de maneira bem cômica, eram estas:
   - Ora pois! Sejamos homens!
   Tudo quanto papagagueava, além dessa frase, não era mais inteligível do que os trinados do canário. Contudo o escrivão que era agora um passarinho, compreendia perfeitamente o que diziam os companheiros.
   - Eu voava por entre as verdes palmeiras, e as amendoeiras em flor - cantava o canário. - Esvoaçava alegre, com meus irmãos, por cima das lindas flores e sobre o mar sereno, vendo as plantas que crescem debaixo d'água a nos acenar. Encontrávamos muitos papagaios, todos muito lindos, que nos contavam histórias divertidas, algumas bem longas.
    - Eram papagaios selvagens! - disse o Louro. -Aves sem nenhuma educação. Ora pois! Sejam homens! Por que não ris? Se a senhora e todos os que a visitam riem das minhas observações, também tu deves rir. É coisa muito triste, ser assim insensível ao espírito! Ora pois! Sejamos homens!
   - Não te lembras das lindas moças que dançavam nas tendas espalhadas à sombra das árvores em flor! - continuou o canário, cantando. - Não te lembras daqueles frutos tão doces, tão deliciosos? E do suco tão fresco das plantas silvestres?
   - Sim, lembro-me - disse o papagaio. - Mas é que estou muito melhor aqui, onde nada me falta; tenho excelente alimentação, e tratam-me bem. Sei que sou uma ave inteligente, e isso me basta. Ora pois! Sejamos homens! Tu tens alma de poeta, como dizem os homem, e eu, um espírito são, e profundos conhecimentos. Possuis gênio, sim, mas falta-te discrição. Desandas a cantar como uma torrente. Por isso te abafam logo. A mim, porém, não tratam desse jeito. Não! Tenho-lhes dado bastante trabalho: meu bico é muito aguçado - é como meu espírito. Ora pois! Sejamos homens!
   - Oh! Minha terra, tão quentinha e tão florida! - dizia o canário. - Quero cantar tuas árvores de um verde sombrio, e tuas enseadas tranquilas, onde os galhos se curvam para beijar o claro espelho das águas...Hei de cantar o júbilo de meus companheiros, que esvoaçam sobre as taças cheias de orvalho - as flores de cacto do deserto...
   - Faze o favor de acabar com essa canção choramingas - replicou o papagaio. - Canta alguma coisa que nos faça rir. O riso é índice do mais elevado desenvolvimento intelectual. Já viste rir um cão, ou um cavalo? Não! Eles podem chorar, mas o riso - oh! o riso é dom que somente a humanidade possui. Ho! Ho! Ho!...
   E, depois de casquinar esta risadinha ainda repetiu:
   - Ora pois! Sejamos homens!
   - E tu, pobre passarinho cinzento da Dinamarca!- 
disse o canário á calhandra - eles também te prenderam? Por mais frios que sejam teus bosques, lá ao menos terás liberdade...Foge! Voa! Esqueceram-se de fechar a tua gaiola...A porta está aberta...Foge! Voa!
   Sem esperar mais nada, fez o escrivão o que lhe dizia o canário, e num instante estava fora da gaiola. Mas no mesmo momento em que escapava da prisão. A porta da sala vizinha, que ficara entreaberta, começou a ranger. Furtivamente, vinha  entrando um gato da casa, de olhos verdes e brilhantes. E armou um salto. O canário, lá dentro da gaiola, batia as asas violentamente; o papagaio, sacudindo-se todo, gritava:
   - Ora pois! Sejamos homens!
   E o escrivão, num susto espantoso, saiu voando pela janela, e lá se foi, por sobre ruas e casas,  até que teve de parar para descansar.
    Parecia-lhe conhecer aquela casa, do outro lado da rua .                 Uma janela estava aberta, e ele se enfiou por ali a dentro.                 E quando se empoleirou na mesa, viu que estava no seu quarto. E então, imitando sem querer o papagaio, exclamou irrefletidamente :     - Ora pois! sejamos homens!  
  E instantaneamente readquiriu o corpo do  escrivão, e ali estava sentado, em frente à mesa.
  - Credo! - exclamou ele. - Como peguei no sono aqui: E que sonho maluco tive...tudo asneiras, do princípio ao fim!  

   VI. A ÚLTIMA PEÇA DAS GALOCHAS

Na manhã seguinte, muito cedo, antes mesmo que o escrivão tivesse saído da cama, alguém lhe bateu à porta. E entrou um vizinho, um jovem estudante de Teologia, que morava no mesmo andar.

   - Empreste-me suas galochas - pediu ele. Há muita umidade no jardim, mas faz um sol esplêndido, e gostaria de fumar umas cachimbadas lá fora.
   Calçou as galochas e desceu. O jardinzinho era tão pequenino, que só se viam ali duas árvores: uma ameixeira e uma pereira. Mas em Copenhague, mesmo um cantinho de terra daquele tamanho é precioso.
   Eram apenas seis horas. Passeando para um lado e para outro, ouviu o estudante a trombeta da mala-posta que passava na rua.
   - Ah! Viajar! Viajar! - exclamou ele. - É a coisa mais agradável que há no mundo. E foi sempre o meu sonho mais caro. Se eu pudesse viajar...sinto que isso me curaria este anseio que me sufoca. Mas havia de ser para muito, muito longe. Como eu gostaria de ver a Suíça, e a Itália,e...
   Por sorte, as galochas entraram a funcionar imediatamente, senão o moço poderia ter viajado, muito mais que lhe convinha. Sim, viajar, ele viajou. Andou lá pelas alturas, na Suíça, metido em uma diligência, com mais oito companheiros. Sentia dor de cabeça, e dor no pescoço, e já não lhe circulava o sangue nas pernas. Tinha os pés inchados, e as botinas, muito pesadas, incomodavam-no. Estava  meio desperto, meio acordado. Levava no bolso da direita suas cartas de crédito, no da esquerda o passaporte, e, cosidas em um saquinho, oculto no bolso do peito, algumas moedas de ouro. Cada vez que passava por uma soneca, sonhava que tinha perdido algum desses objetos. Despertando agitado, seu primeiro movimento era traçar com a mão um triângulo, da direita para esquerda, e dali até o peito, para verificar se seus tesouros ainda ali se achavam.

      Esta é a vista mais bela do mundo.
     Monte Branco, sublime, altaneiro!
     Eu quisera viver viajando,
     Se sentisse, meu bolso apalpando,
     Sempre e sempre, o tinir do dinheiro...
   
  Imensa, sombria e austera era toda a paisagem que o cercava. Os pinheiros pareciam apenas macegais, entre os altos rochedos, cujos picos se perdiam entre as nuvens e o nevoeiro. Começou a nevar, e soprava agora um vento gelado. E o estudante murmurava, suspirando:
   - Ah! Se estivéssemos do outro lado dos Alpes, lá seria o verão, e eu poderia obter dinheiro, com a minha carta de crédito. Essa preocupação das finanças estraga-me todo o prazer que poderia proporcionar-me a Suíça. Quem me dera estar do outro lado?
   E lá estava ele agora, no centro da Itália, entre Florença e Roma. Tinha diante dos olhos o Lago Trasimeno, que , à luz do poente, parecia uma folha de ouro flamejante, entre os montes de um azul sombrio. No lugar onde Aníbal derrotou Flamínio, vinhas pacíficas seguravam-se umas às outras pelas verdes gavinhas. Ao lado da estrada, crianças lindas, e meio nuas, guardavam uma vara de porcos negros como carvão, à sombra dos loureiros em flor; e se pudéssemos reproduzir em um quadro aquela cena, com as suas cores verdadeiras, todos diriam, ao vê-lo: " Magnífica Itália!" Mas nem o estudante, nem seus companheiros de diligência fizeram exclamações semelhantes.
   Um enxame de moscas e mosquitos peçonhentos invadiu o carro. Vinham aos milhares, e era em vão que os viajantes procuravam enxotá-los com galhos de murta. Nem um único passageiro escapou: tinham todos o rosto intumescido emanchado de picadas. Os cavalos - coitados! - pareciam carcaças. Estavam em estado lastimável, e apenas tiveram um alívio momentâneo quando o cocheiro desceu e afugentou as nuvens de insetos que os atormentavam.
   Dali a um momento, o sol entrou a um frio súbito caiu sobre todas as coisas. Não era nada agradável, não. Entretanto, montes e nuvens apresentavam um admirável cor verde, clara e brilhante. Sim - vai ver com os teus próprios olhos: é muito melhor do que todas as leituras. Era um belo panorama, e os viajante também assim o julgavam , mas tinham o estômago vazia, o corpo exausto, e todos o seus pensamentos se concentravam em um único desejo: um albergue para a noite. Mas onde se alojariam? Olharam então para a estrada que tinham em frente, com muito mais atenção do que tinham examinado a esplêndida paisagem.



   A estrada atravessava um olival, e o estudante podia imaginar que estava no seu país, passeando em um bosque de salgueiros nodoso. E via-se, além, uma estalagem solitária. Do lado de fora acampava um bando de mendigos aleijados, e o que inspirava menos lástima parecia o filho mais velho da Fome, já chegando à maioridade. Os demais eram cegos, ou tão mutilados que tinham de se arrastar, apoiando-se nãos mãos - quando não as tinham mirradas, como os braços, sem vestígios de dedos. Era na verdade a miséria coberta de andrajos.
   - Eccellenza, miserabili! - choramingavam eles, mostrando os membros mutilados.
   A própria estalajadeira andava descalça. Desgrenhada, com uma blusa suja, assim mesmo recebeu os hóspedes. As dobradiças das portas eram de corda; metade dos tijolos do pavimento já tinham sido retirados para outros fins; de todos os lados esvoaçavam morcegos, junto ao teto; e o cheiro...
   - Seria melhor servir a ceia na estrebaria - disse um dos viajantes. - Lá ao menos a gente sabe o que está respirando.
   Abriram-se as janelas, para que entrasse o ar fresco, mas mais rápidos do que o ar entraram por elas aquele braços definhados e o perpétuo lamento:
   - Miserabili, eccellenza!
   As paredes estavam cobertas de inscrições, e metade delas diziam muito pouco em favor de la bellla Italia.
   Afinal foi servida a ceia, que consistia em uma sopa aguada, temperada com pimenta e azeite rançoso. E era o mesmo azeite que havia na salada. Depois, ovos duvidosos e cristas de galo, fritas. E o próprio vinho tinha um gosto detestável. Foi uma refeição repugnante aquela!
    Nessa noite, os hóspedes amontoaram as bagagens contra a porta, e um deles montava guarda, enquanto os outros dormiam. O estudante foi o primeiro a ficar de vigia. O calor era insuportável, naquele quarto fechado. Os mosquitos zuniam e picavam, e lá fora os miserabili, mesmo em sonhos, se lamentavam.
  - Viajar - disse o estudante - seria muito bom, se a gente não tivesse corpo. Ah! se o corpo pudesse ficar imóvel, enquanto o espírito voasse sem ele....Onde quer que me ache, sinto sempre falta de alguma coisa, sinto um desejo, que me oprime o coração. Há sempre alguma coisa melhor do que o presente, e que almejo. Sim! Anseio por uma coisa melhor - o que há de melhor no mundo - mas em que consiste isso? Onde o acharei? Do fundo do coração, bem sei eu a que aspiro: quero alcançar um alvo feliz - o mais feliz de todos os alvos.
  Mal eram ditas estas palavras, e já o estudante se achava de volta à sua casa. Viu longas cortinas brancas que pendiam das janelas; no meio da sala, um caixão negro, e dentro dele, dormindo o quieto sono da morte, jazia seu próprio corpo. Fora satisfeito o seu desejo: O corpo descansava ali, e o espírito era livre agora para viajar. Já Sólon dizia - e mais uma vez se confirmava suas palavras:
    " O homem só é feliz quando descansa no túmulo."
    Um cadáver é uma esfinge de imortalidade. A esfinge que contemplamos  no seu negro esquife não nos poderia dizer mais do que o homem vivo escrevera dois dias antes: 

    Ó Morte, anjo sombrio! Para além nada existe 
   senão a sepulturas que abres a cada passo?
  Subirá nossa alma a escada de Jacó?
   Ou acaba na erva, que se desfaz em pó,
   por cima dos covais, sem deixar nenhum traço?

   Não pode ver o mundo as dores que se ocultam...
    Mas vós, que repousais, já liberto do mundo, 
    Dizei: não foi mais dura aqui vossa jornada?
    Não sentiste acaso a vida mais pesada
   do que a terra que o corpo voz retém lá no fundo?

   Movia-se na sala duas figuras. São ambas nossas conhecidas: as duas figuras que se curvaram sobre o defunto são Dona Cuidado e a mensageira da Fortuna.
  - Estás vendo - falou Dona Cuidado - que felicidade tuas galochas trouxeram ao gênero humano?
   - Ao menos a este que aqui jaz dormindo, elas concederam o eterno descanso - replicou a outra.

   - Não! Não! -asseverou Dona Cuidado. - Ele foi por sua própria vontade: não tinha sido chamado. Seu poder espiritual não era bastante forte para empreender as magníficas tarefas que lhe estavam destinadas. Mas vou conceder-lhe um favor...
   E, dizendo isto, tirou as galochas dos pés do morto.
   Imediatamente o sono da morte se desvaneceu e o estudante tornou a despertar para a vida.
   Dona Cuidado desaparecera, levando, zelosamente, as galochas consigo.
FIM
   
                                                                 







sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O VELHO DO SONO - CONTOS DE ANDERSEN




                                                     




   Não há ninguém no mundo que saiba tantas histórias como o Velho-do-Sono. E são histórias tão lindas, as que ele conta! De noite, quando as crianças estão ainda à mesa, muito quietinhas, ou sentadinhas em seus bancos, ele tira os sapatos e sobe a escada, muito devagar, abre a porta sem fazer barulho e sopra pó nos olhos delas. Vai então, sempre no maior silêncio, para trás das crianças e sopra-lhes na nuca, muito suavemente, para que elas não sintam. E imediatamente as crianças sentem a cabeça pesada! Mas isso não é para lhes fazer mal: o Velho-do-Sono só quer que fiquem bem quietinhas e que vão para a cama. Se não ficarem bem quietinhas ele não poderá contar as suas histórias.
   Quando elas dormem ele se senta aos pés da cama. Tem umas roupas muito alegre, mas ninguém pode dizer de que cor são: a seda dos seu casaco era é verde, ora vermelha, ora parece azul - é conforme bate nela a luz. Leva uma sombrinha debaixo de cada braço: uma é toda pintada e ele a abre sobre as crianças boas, para que tenham sonhos agradáveis a noite inteira; a outra não tem pintura nenhuma- é que ele abre por cima das crianças más, e essas dormem um sono pesado, e acordam de manhã sem ter sonhado nada, nada.
   Agora vou contar as histórias que o Velho-do-Sono contou a um menino chamado Hialmar; o velho visitou-o durante uma semana, todas as noites, e cada noite contou um conto diferente: são portanto sete casos.

        SEGUNDA-FEIRA

  - Escuta! - disse o Velho-do-Sono, assim que Hialmar se viu bem acomodado na sua cama. - Agora vou enfeitar todo o teu quarto.
   E enquanto ele estava falando as flores dos vasos foram ficando árvores enormes, e os galhos se estendiam pelas paredes, e subiam até o teto, de modo que o quarto parecia um lindo caramanchão. Os galhos estavam cheios de flores, mas lindas que as próprias rosas; e se a gente provava uma delas, achava-a mais doce que confeitos. Frutas brilhantes que nem ouro pendiam das árvores; e pudinzinhos, cheios de passas. Nunca se vira coisa semelhante! Mas, no meio de tudo aquilo, ouvia-se uma lamentação, que saía da gaveta da mesa onde Hialmar guardava os livros da escola.
  - Que será isto? - disse o Velho-do-Sono, indo abrir a gaveta.
   Era a ardósia a causa daquela balbúrdia. Havia um algarismo errado na soma, e apedra parecia querer desconjuntar-se toda; enquanto isso, o lápis dava pulos e estirava o barbante que o prendia à ardósia, como um cachorrinho para ver se corrigia a soma; e não o conseguia. Mas adiante estava o caderno, de onde saíam também lamentos e queixas doloridas: no começo de cada linha havia uma letra maiúscula e outra minúscula, para serem copiada. Adiante delas viam-se outras letras que pretendiam imitar aquelas. Tinham sido escritas por Hialmar; mas pareciam ter caído deitadas sobre a s linhas, em vez de me se manterem de pé, como as do modelo.
    - Olhem para nós - diziam as do modelo - É assim que devem manter-se: um pouco inclinada...assim...e com uma voltinha.
   - Bem o quiséramos - diziam as letras de Hialmar - mas não  podemos; estamos muito malfeitas.
   - É que vocês estão precisando do pó das crianças - disse o Velho-do-Sono.
  - Não, não! - gritaram as letras, erguendo-se  e ficando direitas que dava gosto.
   - Bem, por hoje não posso mais contar histórias - disse o Velho-do-Sono. - Tenho de ensinar estas letras - direita, esquerda! direita, esquerda!
  E ele exercitou as letras, até que ficaram tão direitas, tão perfeitas, como só se veem nos modelos de caligrafia.
   Mas, depois que ele foi embora...Oh! no dia seguinte, quando Hialmar olhou para elas...que horríveis! Estavam tão malfeitas como antes.
              TERÇA-FEIRA
    Assim que Hialmar foi para cama, o Velho-do-Sono tocou com a sua varinha de condão todas as peças da mobília do quarto; imediatamente elas começaram a falar. Falavam todos de si próprios, menos a cuspideira, que ficou calada, e muito escandalizada da vaidade dos que só se ocupavam de si, sem pensar nela, que ali estava, tão modesta, em um cantinho, e até suportava que lhe cuspissem em cima!  Sobre a comoda estava pendurado um quadro de moldura dourada; era uma paisagem onde se viam grandes árvores, relva matizada de flores, e um rio que atravessava o mato e passava em frente de um velho castelo antes de se ir lançar no mar.
    O Velho-do-Sono tocou o quadro com sua varinha mágica e imediatamente os passarinhos começaram a cantar, os galhos das árvores moveram-se, balançando à brisa, e as nuvens flutuavam no céu, projetando sombra sobre a paisagem.
   Então o Velho-do-Sono pegou em Hialmar e colocou-o na beira da moldura; o menino sentou-se nela, com as pernas para dentro do quadro, depois se pôs a correr na grama. O sol inundava tudo de luz, através da folhagem. O menino foi até a beira do rio e entrou em um barco pintado de vermelho e branco, com velas prateadas ; seis cisnes, de colar de ouro, passando junto de um verde bosque, cujas árvores estavam contando casos de ladrões e de feiticeiras, enquanto as flores narravam histórias de lindas fadas pequeninas, e coisas que as borboletas lhes contavam.
   Iam nadando atrás do bote peixes lindíssimos, de escamas de ouro e de prata; de vez em quando um deles dava um  salto na água, que esborrifava a cabeça de Hialmar. Pássaros vermelhos e azuis, grande e pequenos, voavam acompanhando o bote, em duas longas filas; os mosquitos dançavam formando pequenas nuvens,e  os moscados zumbiam. Queriam todos seguir Hialmar, e todos tinham coisa para lhe contar.
   Era um passeio encantador! O bosque ora parecia denso e sombrio, ora se mostrava florido e iluminado pelo sol. Por ente as árvores erguiam-se grandes palácios de cristal ou de mármore, em cujos balcões se debruçavam princesas, todas elas conhecidas de Hialmar, pois eram crianças com quem tinha brincado muitas vezes. Estendiam-lhe as  mãos, oferecendo-lhe figurinhas de açúcar, com a gente vê nas confeitarias. E eram lindas! Hialmar pegou na ponta de um  daqueles doces quando ia passando, mas a princesa ficou sempre segurando  





na outra ponta, e como ele ia navegando, o doce se partiu, ficando um pedaço na mão da princesa, outro - o maior na mão dele. Em todos os castelo erguidos meninas montando guarda, com as espada s erguidas atiravam-lhe passas e soldadinhos de chumbo. Eram princesas de verdade! Hialmar navegava ora pelo meio dos bosques, ora por dentro de grandes salões, ora pelas ruas de uma cidade. E foi assim que atravessou a cidade onde vivia sua amada, aquela o que trouxera nos braços durante tanto tempo, e que muito o amava. Ao vê-lo passar, ela abanou-lhe a mãos, fez muitos cumprimentos, e cantou os lindos versos que lhe mandara, e que ela mesmo tinha composto:
      " Em ti pensando, Hialmar, passo as horas
       Recordo quando eras pequenino,
       E eu me curvava para o teu bercinho,
       Beijando-te nas faces, meu menino!

        Meus foram teus primeiros balbucios;
        Hoje te envio este saudoso adeus,
        Pedindo que o Senhor sempre te guarde
         Para que alcances teu lugar nos céus!"

     E todos os passarinhos cantavam com ela, as flores dançavam nas hastes e as velhas árvores sacudiam a fronde, porque o Velho-do-Sono contava suas histórias para eles também.

                QUARTA-FEIRA

         Como chovia! Hialmar ouvia o barulho da chuva mesmo dormindo, e quando o Velho-do-Sono abriu a janela, a água já estava tocando o peitoril: havia um verdadeiro lago em frente à casa, e nele se via um lindo barco.
    - Queres embarcar comigo, pequeno Hialmar?- perguntou o Velho-do-Sono. - Visitaremos esta noite terras estrangeiras, e amanhã cedo estaremos de volta.
    E no mesmo instante Hialmar, trajando sua roupa domingueira, estava a bordo do navio.
    Já tinha cessado a chuva, e o tempo agora era claro; navegavam rua abaixo, passaram pela igreja, e já estavam flutuando sobre o mar imenso. Não tardou que perdessem de vista a cidade e a terra; só avistavam um bando de cegonhas que vinham do país de Hialmar, e iam em busca de outra terra mais quente. Voavam uma atrás da outra, em fila, e já tinham deixado a terra muito para trás. Uma delas, porém, estava tão fraca, que as asas mal podiam sustê-la; vinha no fim da fila, e distanciava-se pouco a pouco das outras. Por fim foi baixando o voo, de asas distendidas; ainda tentou continuar a movê-las, mas em vão: elas tocaram a cordoagem do navio, a ave foi deslizando pela vela, e zaz! caiu no convés.
    Apanhou-a então o grumete e levou-a para o galinheiro, onde viviam misturados, além de galinhas, patos e perus, tudo na maior confusão.
   - Mas olhem, que sujeito esquisito! - disseram todas as galinhas.
   O peru inchou até onde pode, e depois perguntou-lhe quem era, enquanto os patos iam recuando, empurrando-se uns aos outros, e dizendo somente:
   - Quá, quá, quá! como quem dizia; Idiota, idiota, idiota!
   Contou-lhes então a cegonha o que sabia; falou-lhes na sua África, tão  quente, nas pirâmides; e da avestruz, que corre no deserto, como um cavalo selvagem. Mas os patos não entenderam nada do que ela contou, e só o que faziam era empurrar-se uns aos outros, dizendo:
   - Pois já se viu ave mais estúpida?

      QUINTA-FEIRA

   - Sabes o que trago aqui na mão? - perguntou o Velho-do-Sono. Não tenhas medo: é um ratinho.
   Abriu a mão, e lá estava mesmo um camundongo pequenino, e muito lindo.
   Vem convidar-te para a boda de dois ratinhos, que se casam hoje. Moram debaixo do soalho da despensa da tua mamãe: para eles  é casa de muito luxo!
   - Mas como vou entrar pelo buraquinho que é a porta deles?
   - Deixa isso ao meu cuidado - replicou o Velho-do-Sono, - Vais ficar pequenininho.
   E tocou-o com sua varinha de condão; o menino foi minguando, minguando, até que ficou do tamanho de seus dedos.
  - Agora vai pedir ao soldado de chumbo que te empreste o uniforme. Creio que há de te servir, e a farda fica muito bem em uma festa de cerimônia.
   - É mesmo - disse Hialmar.
    E num abrir e fechar de olhos estava fardado.
   - Quer ter a bondade de se sentar no dedal de sua mãe? -disse o ratinho. - Terei a honra de arrastá-lo.
   - É muita amabilidade sua - disse o menino. - Mas por que vai ter esse trabalho?
   E lá se foram, para o noivado dos ratos.
   Seguiram primeiro por um corredor, debaixo do soalho, e tão baixinho que mal dava para andarem por ali com o dedal; era todo iluminado com mecha.
   - Não é agradável o perfume que se sente aqui? - perguntou camundongo. - Todo o corredor foi esfregado com toucinho. Não há aroma mais delicado!
   Entraram no salão da boda. À direita estava todas as senhoras ratinhas; falavam animadamente, e pareciam muito alegre. À esquerda ficavam os cavalheiros, e todos cofiavam os bigodes com a patinhas. No centro do salão estavam os noivos, sentados em uma casca oca de queijo; beijavam-se a cada instante, diante de todos. Ora, eram noivos, e iam casar dali a pouco.



    A cada momento chegavam convidados; tantos que já não cabiam na sala, e como o par de noivos se postara bem no meio da porta de entrada, ninguém mais podia entrar nem sair. Toda a sala, bem como o corredor, estava untada de toucinho: era com isso unicamente que obsequiavam os convidados, Mas à hora da sobremesa passou de mão em mão um grão de ervilha, em que um ratinho, parente dos noivos, gravara a dentadas as iniciais do par. Não foi uma ideia original?
   Todos os ratos estavam de acordo em que foi uma festa de noivado magnífica, e que nela reinara a maior harmonia e cordialidade.
   Ao voltar a casa, reconhecia Hialmar que estivera em uma sociedade muito distinta; mas nem por isso se sentia menos amesquinhado, por ter ficado tão pequenino; e ainda por cima, vestira o uniforme de seus soldadinhos de chumbo!
                   
                                        SEXTA-FEIRA

        - Parecia mentira - dizia o Velho-Sono - parece mentira que haja tanta gente velha que suspire ainda por mim, e me queira ver a seu lado! Principalmente os que praticaram alguma maldade. E estão sempre a me dizer: " Velhinho querido, não podemos pregar olho a noite inteira, atormentados por nossas más ações! Elas se sentam na beira da cama, como duendes medonhos, e nos escaldam com água fervendo. Se tu ao menos viesses enxotá-las, poderíamos dormir um bom sono!" Suspiram então, do fundo da alma, e depois dizem: " Nós te pagaremos bem...Boa-noite, Velho-do-Sono! O dinheiro está na janela!" Ah! Mas eu não venho por dinheiro, não!
    E hoje, que vamos fazer? - perguntou Hialmar;
   - Não sei se gostaria de assistir a outro casamento...É muito diferente daquele de ontem. A boneca de tua irmã, aquela que parece um homem, e se chama Germano, vai casar com a outra, a Beatriz. Além disso é o dia do aniversário da noiva, e hão de receber muitos presentes.
    - Sim, sim! Já sei - disse Hialmar - Quando as bonecas querem vestidos novos, minha irmã diz que é o dia do aniversário, ou do casamento delas. Acho que já se casaram cem vezes, pelo menos!
     - Sim; mas hoje é o casamento número cento e um. E quando chega a essa conta, elas não podem casar mais. Por isso o casamento de hoje será uma festa esplêndida! Olha, olha só para aquilo!
    Hialmar olhou para a mesa onde estava a casinha das bonecas. As janelas apareciam iluminadas, e à porta soldados de chumbo apresentavam armas. Os noivos estavam sentados no chão, apoiados à perna da mesa. Pareciam muito preocupados - e para isso, certamente, não faltariam motivos! Nesse meio tempo o Velho-do-Sono enfiara o vestido preto da avó, e casou-os. Terminada a cerimônia, todos os móveis se puseram a cantar esta canção, escrita pelo Lápis:
                  Leva, brisa gentil, nossos adeuses
             À casinha dos noivos, tão amena,
             Com seu teto de pele de cabrito.
             Direitos ele são como a açucena
             Esticada na haste. E que bonito
             O belo par, lá na casinha amena...
              Leva, brisa gentil, nossos adeuses!"
  
  Começou então a apresentação dos convidados. E os noivos recusaram delicadamente os comestíveis, pois bastava o amor recíproco para alimentá-los.
      - E agora - perguntou o noivo - o que será melhor; ir para o campo, ou fazer uma viagem ao estrangeiro?
     Para resolver esta questão foram consultadas a andorinha, que tinha viajado muito e uma galinha velha, que já descascara cinco ninhadas. E a andorinha falou daqueles cachos enormes de uvas suculenta; onde o ar é lépido e perfumado, e as montanhas se tingem de cores nunca vistas em nossa terra.
   - Mas lá não há couves verdes, como as nossas!- disse a galinha. - Passei um verão no campo, com toda a minha ninhada; havia lá um buraco cheio de areia, onde a gente podia esgravatar á vontade. Além disso tínhamos licença de entrar na horta, cheia de couves verdes. E como eram verdinhas! Não creio que haja nada mais lindo no mundo!
   - Mas ora! um pé de couve é exatamente igual a outro pé de couve - disse a andorinha. - Quem vê um vê todos. Além disso, aqui o tempo é tão úmido!
    - Ora! É só a gente se habituar a isso - disse a galinha.
    - Mas faz tanto frio...e cai neve!
    - Pois se isso é o melhor que há para a couves! De mais a mais, aqui também pode fazer calor, de vez em quando: não tivemos, há quatro anos, um verão que durou quatro semanas? Era tanto o calor, que a gente nem podia respirar. E aqui não temos animais venenosos que vivem nos países estrangeiros; e estamos livres de ladrões. Só mesmo um ente desnaturado não acharia o nosso país mais belo que todas as outras regiões do mundo! E semelhante criatura não merece viver aqui! 
    E a galinha começou a chorar. E repetia:
   - Eu também tenho viajado, tenho viajado, sim: viajei mais de doze milhas dentro de uma cesta. Não há prazer nenhum em viajar, não!
     - A galinha tem razão - disse Beatriz. - Não acho graça em andar abaixo e acima, viajando por montes e vales! Não: nós iremos ali àquele monte de areia ao pé do portão, e daremos um passeio pela horta, a ver as couves.
    E estava resolvida a questão.

         SÁBADO

     Logo que Hialmar se viu na cama, na noite seguinte, foi perguntando ao Velho-do-Sono:
    - Não me contas uma história hoje?
     - Não tenho tempo - disse o Velho - abrindo a sombrinha, aquela toda pintada, Olha estes chineses!
    A sombrinha era uma paisagem chinesa, cheia de árvores azuis  e pontes muito altas, por onde passeavam chinesinhos, movendo a cabeça para os lados.
    - Amanhã, cedo, o mundo inteiro tem de estar todo em ordem -disse ele. - É dia de festa, é domingo. Vou ao campanário, a ver se o gnomos, estão areando os sinos. Devem cantar amanhã um repique alegre. Depois irei ao campo, a ver se os ventos estão varrendo bem o pó das ervas e das folhas. O mais difícil é fazer descer as estrelas, para dar-lhes brilho. Junto-as todas no avental, mas primeiro é preciso numerá-las, assim como os furos em que estão cravadas, lá no céu, para que fique depois cada uma no seu lugar, Senão ficariam frouxas, e começariam a cair...e era uma chuva de estrelas cadentes.
    - Escuta, Velho-do-Sono - disse então um antigo retrato, pendurado perto da cama de Hialmar - Não sabes que sou o tataravô do Hialmar? Agradeço-te muito as histórias que vens contar ao menino; mas não deves estar metendo caraminholas na cabeça dele...As estrelas não saem do seu lugar para serem polidas, não: elas são mundos, como a nossa Terra!
    - Obrigada, velho tataravô! - disse o Velho-do-Sono. - Muito obrigado! És muito velho na verdade, mas eu ainda sou mais velho do que tu! Sou mais velho pagão; os gregos e romanos chamavam-me o Deus dos Sonhos. Tenho sempre visitado casas de famílias muito importante, e casas de pobre; e ainda faço a mesma coisa. E sei muito bem como me haver com os grandes e com as crianças. Agora é a tua vez: conta uma história, conta o que te parecer!
    E o Velho-do-Sono foi embora, com suas sombrinhas.
   - Ora esta! - dizia o retrato da parede. - Então a gente não pode expor a sua opinião?
   Nisto Hialmar despertou.

                 DOMINGO


      - Boa-noite! - disse o Velho-do-Sono.
   Hialmar, mais que depressa, levantou-se na cama e virou o retrato do tataravô de cara para a parede, para que não interrompesse a história, como o fizera na véspera.
   - Conta-me agora a história das cinco ervilhas verdes, que viviam dentro da vagem, e a do galo que namorava a galinha, e a da agulha de cerzir, que era tão fina que se julgava uma agulha de bordar.
   - Até as coisas boas podem ser demais - disse o Velho. - Antes quero hoje mostrar meu irmão. Ele nunca visita a ninguém mais de uma vez; e quando visita uma pessoa leva-a na garupa. E vai contando histórias: uma delas é de beleza inexprimível, tão linda como ninguém pode imaginar; a outra é medonha, espantosa...nem é bom descrever.
    E o Velho-do-Sono ergueu o pequeno Hialmar até a janela, dizendo-lhe:
   - Lá está  meu irmão, o outro Velho-do-Sono; seu nome é Morte! Estás vendo que não é tão feio como se vê nos livros de estampas, onde parece uma caveira. Não: ele tem uma roupagem toda bordada de prata- um belo e alegre uniforme! Vê o manto de veludo negro que lhe caí dos ombros, e se estende pela garupa do cavalo! Olha como galopa!
   E Hialmar viu o outro Velho-do-Sono galopando, levando consigo gente velha e gente moça; punha uns na frente, outro atrás - mas depois de perguntar a cada um que espécie de notas trazia.
   - Boas - respondiam todos.
   - Deixa-me vê-las - retrucava ele.
   E todos eram obrigados a lhe mostrar as notas. Os que tinham "muito boa", "ótima, iam na frente, e ouviam a história linda; mas os que tinham apenas a palavra "regular", ou "má", escrita no certificado, deviam ficar na garupa do cavalo, e ouviam a história horrível. Tremiam, e choravam; tentavam saltar do cavalo abaixo, mas não o conseguiam, pois pareciam amarrados firmemente, como se houvessem criado raízes ali.
   - A Morte é um Velho-do-Sono muito bonito- Disse Hialmar - Eu não tenho medo dela.
      - Nem precisas ter - afirmou o Velho-do-Sono.
      -  É só tratares de ter uma boa nota para lhe mostrar.
   - Ora aí está uma história muito instrutiva! - disse o retrato do velho tataravô. Então sempre serve para alguma coisa a gente dar a sua opinião...
   E soltou um grande suspiro de contentamento.
   E esta história do velho-do-Sono. Quem sabe se ele não virá em pessoa, esta noite, contar-te alguma outra?

     FIM                                 

       
Este é o ultimo conto deste volume, portanto vamos degustá-lo bem carinhosamente! É um conto longo, portanto vou digitando aos poucos