quarta-feira, 21 de novembro de 2018

CHÃO DE TERRA PRETA - CONTO - AMADEU QUEIROZ

              Antigamente, no tempo dos bugres, certo caçador que andava com outros pelo mato atirou a um macuco encontrado perto de um córrego sem nome. Daí por diante todas as vezes que os caçadores queriam se referir ao dito córrego, diziam: " O Córrego do Macuco". Por essa forma, o nome da ave passou para a água corrente, foi ficando e ficou até hoje.
               Tempos depois, um roceiro, que veio de longe, comprou terras servidas pelo Córrego do Macuco, e ali fez uma casa - casa de pobre - para sua abrigação: a  companheira e mais cinco crianças. À beira do córrego, pai e mãe, criaram a família - os filhos na enxada, as filhas na enxada e no fogão, e logo que deram conta da tarefa, os dois velhos morreram. Os herdeiro repartiram a terrinha entre si e como tocou quase nada a cada um, cada um vendeu a sua parte e gastou o dinheiro para começar a vida. As filhas se casaram, os filhos saíram mundo afora, procurando trabalho e mulher; menos o Chico, que se casou com  com gente da vizinhança e ficou  teimando no seu pedaço de chão, até o dia em que lhe nasceu o segundo filho, um menino.
                 Nessa quadra da vida, deu-lhe tanta doença em casa, a ponto de passar um ano sem trabalhar, e gastando. Por fim, quando os doentes sararam, viu-se endividado até os cabelos e teve de vender o chão e o rancho, para  pagar os empréstimos.
                  Do pouco que possuía, só salvou o crédito, o mais  perdeu tudo, até o nome que o pai lhe deixou: o córrego  pegou-lhe, para sempre, o nome que, por sua vez, recebera de um macuco. A princípio era chamado - o Chico, do Macuco: - depois - Chico Macuco, e por fim, só Macuco....
                   Mas de seu, ficou ainda com muita coisa - ficou com a obrigação e com a necessidade. Então, passou a mão na enxada, arrastou a  família, foi morar em casa alheia e trabalhar no chão dos outros...Foi dar a troco de um jornal de miséria, toda a força dos braços e tudo que é tempo de luz no dia, só guardando para si as sombras da ave-maria e o escuro da noite.
               E passaram muitas luzes e sombras, muita escuridão passou enquanto o jornal ia ficando no mesmo ser e a família nas mesmas privações. Mas, ao tempo que o camarada Macuco descansava um pouquinho, ia olhando à roda de si e, com o passar dos dias, foi à lavoura de todas as plantas, a conhecer a força das terras, a tirar proveito do ajutório do sol e da chuva.
             O fazendeiro gostou do camarada, lhe deu casa, lhe deu serviço, e pagava pontual. A casa era de sapé, ficava na vertente, numa chapada da grota, à beira de uma terra preta, gorda, em que ninguém nunca plantou. Não tinha horta nem arvoredo nem cercado em torno, tinha a bica d'água à porta da cozinha, perto do mamoeiro velho esgalhado. O mamoeiro fazia as vezes de galinheiro, a galinha de pintos deitava-se debaixo dele; o ninho de jacá estava pendurado nele; toda a criação dormia empoleirado nos seus galhos e se abrigava do sol ou da chuva embaixo da sua folhagem.
         A casa tinha dois quartos e cozinha; os quartos se encheram com as camas e com a canastra frasqueira, a cozinha ficou vazia, era maior, dava para o fogão e para se morar. Mas, porém, tudo era pobreza e pouquinho.
          De manhã cedo, a menina e o menino iam à fazenda buscar o que era preciso - leite, couve, cebola de folha. Leite vinha por paga, o mais era dado; ovo, sempre havia algum em casa.  A fazenda não ficava longe, as crianças iam sozinhas, mas era tão pequenas, que se sumiam no meio da estrada. A menina ia indo, carregando o calderãozinho, parava, olhava para trás e andava outra vez, arrastando os pés, sem brincar, sem falar,? o menino fazia a mesma coisa mascando a ponta dos suspensório de tira de pano...
          Nestas aperturas, o roceiro Macuco entendeu de dar um jeito na vida para poder vestir a família. O ganho não lhe deixava sobra: na vila só comprava mantimentos para a semana e, as vezes, um doce para as crianças: três biscoitinho de amendoim, duros e velhos, mas o roceiro não perguntava a idade deles, perguntava o preço.
          - Três por duzentos réis? Ota!
             - ...Mãe, o que é que tem em riba do doce?
           - Açucre.
               - Açucre antão é duro? Boba...
           Quando a precisão era grande, comprava também algum remédio, pouco porém. Se um bicho venenoso mordia as crianças e elas metiam as unhas, tostava um folha de mato chimango e punha em cima da inflamação: se as bichas alvoroçavam, aplicava na barriga das crianças um empacho de erva mentruz; se a mulher sentia dor de cabeça amarrava na testa um lenço molhado em pinga com alcânfor; se ele, Macuco, ficava mofino, amarrava só um lenço na cabeça e aguentava...Mas de qualquer jeito precisava vestir a família, então  pedia a Deus forças para trabalhar, mas a força brota da terra, entra pela boca, enche o peito, sai pelos braços, desce pelo cabo da enxada e entra na terra outra vez.
            Ao anoitecer, o roceiro Macuco voltava para casa, com a enxada no ombro, carregando o peso da canseira aí se encontrava com a mulher, que também ia indo com as crianças, cada uma carregando o seu feixe de lenha, e todos seguiam, juntos sem dizer uma palavra...
              De tanto maturar, teve uma ideia que dava esperança: plantar um fuma, na chapada da vertente, em redor da casa, de meias com o fazendeiro. Plantação alqueire de chão, pouco mais ou menos. Então, foi procurar o dono da terra, o fazendeiro, e explicou-lhe:
                O chão é de boa face; a terra é própria; está em roda da minha casa; a mulher me ajudando, nós dois podemos tratar vinte a vinte e cinco mil pés de fumo, que é mais que pode levar o dito chão. O senhor me adianta as despesas e, no fim, nós partimos. O lucro é bom, mas o seu há de ser melhor porque o fumo dá soca e, a terra sendo boa, a soca também é - dá bem e serve bem o que dá. Ainda, por cima, a terra do fumal fica mais estercada, mais macia; as folhas velhas do fumo, a bagaceira dos talos, das velhas, que a planta vai largando, tudo engorda a terra que, depois,dá com fartura, sem trabalho. Macuco fez a sua proposta, explicou tudo muito bem, induzindo o fazendeiro a experimentar a meação na lavoura do fumo. O dono só entrava com a terra e abria um crédito ao meeiro; mesmo assim titubeou, imaginou, perguntou tanta coisa, e deixou a resposta para mais tarde. Mais tarde aceitou com uma dose de interesse e um pouquinho de desconfiança.
    - O que for da fazenda, eu vou te fornecendo e assentando; para o que a família precisar - mantimento, remédio e roupa - eu te dou um crédito na vila; na apuração do negócio,você paga tudo o que comprou. Está combinado: é negócio a meias; tiradas as despesas, parte-se o lucro, a soca me pertence, fica de fora. Contrato escrito, não é preciso, nós somos de fiança um para o outro.
             Acertaram. Macuco deu parte à mulher e como já era mês de agosto caiu, sem demora, em cima da terra. Primeiro, formou os canteiros para a semeadura, depois, colocou por cima deles uma camada fina de gravetos, folhas secas e lenha miúda; ateou fogo em tudo e, logo que a queima se acabou, os canteiros ficaram cobertos com uma camada de cinza. Deixou esfriar a cinza, espalhou esterco de curral por cima e revirou a terra na fundura de meio palmo. Assim, a terra ficou pronta para a semeadura, livre de pragas e das sementes do mato daninho.
              Até chegar setembro - o que é o tempo de semear-se o fumo - Macuco voltou a capinar a roça, e capinou quatro semanas a fio. O tempo chegou, ele mexeu aplainou a terra, semeou a sementes nos canteiros, que a fechou a meia altura. para evitar o estrago das galinhas. Até passar dois meses - prazo que a planta pede para nascer e ficar no ponto de mudar-se - Macuco e a mulher levaram os dois meses no serviço da enxada, pois, quando iam chegando ao fim, voltava ao princípio, para repassar a capina.
         O chão era grande, o tempo curto, mas o mato era maneiro e a paciência muita, para aguentar a mesma labuta todos os dias, e todos os dias o mesmo tempo: solão desde manhã até de tarde, sem chuva para refrescar a terra, sem nuvem para tapar o sol..
           A noite já dava sinal, e o roceiro Macuco ainda lavrava a terra para a lavoura de meação. A mulher estava ao lado dele e batia enxada também, ajeitando a capina, ajuntando um monte num lugar, outro mais adiante. O menino e a menina trouxeram o fogo para queimar o cisco. O chão estava limpo em derredor, o céu também estava, a fumaça branca subia das fogueiras, acompanhando a viração.
               O roceiro trabalhava calado, reparando; só existia para a enxada e para o silêncio; a vida se lhe concentrava em torno, não tinha olhares distantes...Tudo quanto lhe pertencia estava a seu lado: a mulher, os filhos, o cachorro, o fogo e as galinhas ciscando adiante da sua enxada - seu lar vinha trabalhar com ele, e se espalhava pela terra da sua lavoura.
              Macuco suspendia o trabalho, deixava cair, a um lado do peito, o cabo da enxada na palma da mão - amarelo como cana de reino - cuspia na palma da mão - amarela e lustrosa - e olhava o ar... Todos os homens que trabalham a terra tem olhar sem vida;  os outros não. Uns tem olhar de espanto ou de mistério; outros de sonho ou da mágoa; outros de indiferença ou desengano; o trabalhador da terra tem olhar de espera...
             Quando o sol se escondia, as galinhas era as primeiras a se recolherem ao seu mamoeiro, depois, a mulher com as criança e o cachorro, e por último, o roceiro Macuco. Pela terra, a tarde espalhava as sombras, e os últimos ventos do inverno espalhavam a fumaça branca das fogueiras de cisco.
            A mulher acendia a lamparina de querosene, as crianças lavavam os pés na gamela d'água, comiam leite com farinha e iam se deitar na mesma cama, assim como vinham da capina; o roceiro e a mulher, lavavam os pés na mesma água, bebiam uma tigela de café com rapadura e farinha e iam dormir na mesma cama, assim com vinham da terra...O cachorro pulava para cima do fogão e ninguém ouvia o ressonar do homem nem o rosnar do cão, porque o roceiro cansado tem sono de pedra e o cachorro magro, esfomeado não rosna.
                    Daí a pouco clareava o dia; o roceiro Macuco abria a porta para a   luz entrar: as galinhas desciam do  mamoeiro; uma neblina rasteira cobria a terra preta da campina. O trabalhador bebia outra tigela de café com rapadura e farinha, batia a pedra, soprava na isca, acendia o cigarro, pegava na enxada e voltava para a terra. Ia sozinho, que os mais ficavam em casa - a mulher e as crianças - cada um com a sua a tigela, e o cachorro com um pedaço de angu frio; as galinhas, por sua conta, procuravam o que comer.
             O tempo estava firme, o sol subia, rendia o serviço do roceiro, e a mulher mexia o almoço. A menina permanecia de cócoras ao pé da porta da cozinha, imóvel e calada, depois, se levantava, coçava a cabeça, espreguiçava e ia se  acocorar mais adiante. O menino cortava um gomo de mamoeiro para fazer um pito comprido; neste meio, um pássaro preto cantava no pinheiro seco, o menino tirava o pito da boca, assobiava, arremedando o passarinho, e os dois ficavam cantando juntos.
            No caldeirão de ferro, desde cedinho, já se cozinhava o feijão, e a mulher punha ao lado dele a panela de barro, de fazer arroz. Mexia um pouquinho cada qual, dava uma voltinha, atiçava o fogo, espiava dentro das panelas e ia se encostar à porta do terreiro. Ficava olhando o Chico, parado no meio do terreno preto, descansando um pouco. O marido, com chapéu de palha rasgado, enfiado na cabeça, a roupa pendurada no corpo, mal comparando, imitava um judas de espantar passarinhos de arrozal...Voltava ao fogão, mexia outra vez a panela de arroz, picava as couves e ia buscar os torresmos.
             Pouca panela, pouca comida, trabalho pouco - logo o almoço ficava pronto. A mulher dava mais uma voltinha, empilhava três pratos de folha, à beira do fogão, e gritava pelo Chico. E assim que o marido chegava, cada um recebia o seu prato, a sua colher, cada um ia se acocorar num canto da cozinha, e ninguém dizia uma palavra. A mulher servia o prato seu, dela, e ficava de pé, encostada ao fogão, comendo. O cachorro, sentado sem se mexer, olhava o prato do menino, depois, olhava a menina; por fim, olhava só para a mulher e ficava, com os olhos compridos, esperando.
           Os pratos de folha se empilhavam de novo à beira do fogão; o roceiro Macuco puxava um tamborete, sentava-se, olhava a mulher e dizia:
           - Agora, vamos descansar um pouco...
            Lá fora, o joão-bobo cabeçudo vinha voando com a sua companheira, pousavam no mesmo galho da árvore e gritavam simultaneamente, um ao outro; " Currupiro!" "Currupiro!" Depois, se achegavam, corpo com corpo e ficavam imóveis, bem juntinhos...
            O roceiro Macuco não afrouxou na labutação nem perdeu a hora do dia, afora os domingos, que tinha de ir à vila buscar mantimento e querosene, tudo fiado. O fazendeiro respondia pelos seus gastos, é certo, mas precisava ter sempre dinheiro para comprar uma ou outra coisa de necessidade. Então, vendia frangos, ovos, juás, pinhão, fruta e tudo quanto o fazendeiro deixava tirar do mato, sem apagar.
              E foi indo nessa toada, até preparar a terra e chegar o tempo da plantação das mudas. Aí ele e a mulher não largaram mais o chão - abrindo cova e plantando, abrindo cova e plantando. Os dois ficaram tão mestres na abertura das covas, que conservavam, entre uma e outra, a distância certinha de cinco a seis palmos, o que era preciso ser feito, por via de ser a terra de boa qualidade.
             O plantio pedia muito cuidado: só se aperta, na terra, a raiz e não a haste; portanto, para ajudar, eles ensinaram os filhos, e os filhos plantavam com delicadeza e perfeição, que as mãos das crianças não tinham tamanho nem força para machucar as plantas novas.
            O tempo corriam bem todos os dias, e assim que o campo ficou plantado, choveu uma chuva mansa, fresca, criadeira, as mudas se firmaram nas covas, as folhas se aprumaram e principiaram a crescer à vista dos olhos.
           O roceiro e a mulher redobraram de cuidados e de interesse, tratando com enxada a terra da plantação, removendo a areia das covas e qualquer outra coisa que pudesse prejudicar o desenvolvimento da planta. Os filhos continuavam aprendendo e ajudando; sabiam apanhar as folhas que iam morrendo e secando, na parte inferir dos pés de fumo, a arrancar o mato com as mãos, sem ofender uma folha que fosse.
          Toda a gente pensava só no fumal, e ninguém viu que o fumal tomou conta da terra, cresceu, cresceu gordo, mole, viçoso: tinha pé do tamanho de um homem, tinha folha larga, de mais de gêmeo. Nem um pé falhado, nem um folha praguejada. A terra preta, macia e boa, criava, por igual, o fumo, planta que quer força do chão para vingar.
           O dono da terra foi ver a lavoura, andou abaixo e acima, espiando aqui e ali; calculou, com uma olhada, o valor da colheira, gostou do que viu mas não disse nada. O roceiro Macuco, que estava junto el, também e calava. Por fim, ao voltar para a fazenda, o homem disse isto:
      - Como é que vai o seu gasto, na vila?
    - Vai indo, eu compro só meizinha e mantimento...
   - É isso mesmo. As coisas estão ficando ruins, a gente precisa minguar as despesas...
              O fumal começou a apendoar; as flores tinham pressa de nascer; então, marido e mulher deixava o trabalho e se recolhiam, esperando que também os botões apontassem logo.
          O pai, a mãe, os filhos, levantavam-se ao romper do dia e iam para a desponta; almoçavam e iam para a desponta; de noite, deitavam-se para dormir, com os dedos doloridos de tanto despontar, de tanto arrancar um botãozinho tão mole e tão mimoso!
         E assim, despontaram muitos mil pendões; os dias foram passando, e chegou o tempo da desolha - que é o trabalho de se tirarem os brotos que nascem entre as folhas e a haste - trabalho incessante porque o fumo brota sempre. Enquanto o broto é novo, se quebra facilmente com os dedos por isso as mulheres e as crianças ajudam muito; mas é preciso se desolhar com cuidado, para não maltratar as folhas.
            As crianças aprenderam o serviço, e cedinho já iam para a lavoura. O fumal mandou na casa; levou a gente do roceiro para o seio da sua folhagem; governou a boca e a força da família; mandou em toda a gente, e toda a gente lhe mostrava respeito e amizade, porque não parava nem se cansava.
          A mulher e o marido já não trabalhavam pensando só no ganho, no lucro prometido; a ambição deles era também a ambição do pai que quer ver os filhos criados; do criador que quer criar o seu gado; do trabalhador que  deseja concluir sua obra. Macuco percorria o fumal, examinava pé por pé; todos eram irmãos, cresceram juntos, porque a força era igual naquela terra e tanto. E o roceiro quedava, olhando o chão preto, fincava no chão o dedo grande do pé e remexia, com ele, a terra fofa, como se fosse um porco foçando.
           A terra, ao redor das plantas, estava coalhada de borboletas arrancadas. A mulher e as crianças tosquiava, tosquiavam, até ficaram com as mãos amortecidas, com um mau jeito nos pulsos, com as unhas descarnadas, doídas, de tanto quebrar o brotinho...
               - Corta, gente! 
             -  Dói, mãe...
              - Corta, gente!
   Dessa maneira foram arrancadas milhares e milhares de borbulhas, até se acabar o ano e começar o outro. Mas antes que viesse a colheita, o meeiro Macuco tratou de construir o rancho, livre de sol e de chuva, com os seis andaimes para a seca das folhas do fumo. O rancho era coisa simples: quatro esteios de pouca altura, um pau de cumeeira, uma coberta de sapé, dos dois lados, até o chão, e dentro, os varais para se estenderam as folhas colhidas. Como na fazenda não havia sapé para a coberta, o fazendeiro mandou cortar no vizinho, e pôs na conta das despesas: a madeira - meia dúzia de varas - foi tirada ali mesmo...
            Chegou o mês de maio, As folhas da parte inferior dos pés de fumo começaram a amadurecer tomando uma cor amarelada ao mesmo tempo que a parte de cima- a feição da folha - ficava toda empipocada.
          Principiou a colheita. Enquanto o roceiro limpava a cultura - que a colheita se deve fazer no limpo - a mulher apanhava as folhas de vez, que as crianças iam transportando para o rancho...
    - Mãe, ocê é que nem formiga.
   - Ocê é que nem formiga-carregadeira...
   A colheita se faz aos poucos, e leva tempo - cada pé dá duas, três e mais apanhadas. As folhas vão sendo penduradas nos varais do rancho, onde ficam uns cinco dias, para depois se tirar, com todo o cuidado o talo de cada uma. O talo cai com facilidade, basta dobrar a folha sobre ele mesmo para logo se separar.
       Então se faz a torcida, o cordão e, por fim, o rolo, que se entrega ao fabricante.
        O fazendeiro foi passear na roça para ver a a colheita e, decerto gostou porque se mostrou conversando. Aí,o Macuco lhe disse que não podia dispensar o ajutório de camarada. O fazendeiro concordou, e resolveu mandar ver por conta da meação um prático no serviço de torcer e de encordoar o fumo.
          Logo depois, veio um prático trabalhador e diligente. A apanha levou um avanço; as crianças aprenderam, também, a estender e destalar as folhas e, desse modo, todo o mundo trabalhava em tudo, e tanto trabalharam que um dia a colheira se acabou, todas as folhas forma torcidas, encordoados, enroladas e entregues ao fabricante.
          O fumal ficou que era vara só...
            No mês de julho, o fabricante deu conta do fumo, preparado e enrolado, A quadra era boa; o fazendeiro aproveitou e vendeu bem  num lote só. Mandou tirar as contas do Macuco tanto as da vila, com as da fazenda; descontou as despesas feita; apurou a rendição e acertaram o trato. A parte que tocou a cada um foi de um conto e muito, quase dois. A do fazendeiro saiu inteirinha, e a do roceiro. Macuco, descontadas todas as despesas, deu-lhe para salvar um jornal de cinco mil e quinhentos - não se contando a o ajutório da mulher - com uma sobra de setenta e cinco mil réis...
           O fumal produzira com abundância de compensar, mas o trabalhador ficou na mesma. A meação só lhe deu para viver um ano, com jornal um pouquinho melhor que jornal de enxadeiro...Está certo. A mulher e as crianças ficaram doentes, a família teve de comer e o dinheiro num ano subverte-se.
          O fazendeiro não explorou trabalho de ninguém, com maldade ou com imposição, fez negócio limpo e tratado. Não lhe cabia culpa pelo sucedido; tanto que, vendo o meeiro desapontado, sem lucro no bolso e pior de miséria, ficou com dó e lhe deu uns cem mil-réis, do seu bolso.
        - Mas olhe que este dinheirinho que estou te dando não tem nada com o trato da meação. Trato é trato.
        O roceiro Macuco recebeu o dinheiro, com os olhos no chão, sem dizer uma   palavra; por fim, levantou a cabeça e disse:
   - E agora, o que eu hei de fazer?
   - Pois, uaí! você continua aí, vai trabalhando de jornal: cinco mil-réis a seco. E já pode pegar, amanhã, na corta do fumal, para a soca.
         O trabalhador não disse nada a ninguém, nem permitiu que ninguém lhe dissesse nada. De tarde, foi à bica, amolou a foice e, no outro dia cedo, principiou a cortar as hastes desfolhadas do fumal colhido. O fumal velho, podado em agosto, torna a se enfolhar, dá boa soca e seve bem o que dá...
               A poda se faz conservando cada pé na altura de três quartos, mais ou menos. A princípio, o roceiro não cortava na medida certa, depois, pegou a toada e a foice ia e vinha, cortando as plantas na mesma altura. O homem, sem se interromper, avançava para a frente, para a direita, para a esquerda, golpeando com braçadas largas. Olhando de longe, parecia um possesso, de foice em punho matando a torto e a direita. Dir-se-ia que o lavrador enfurecido se vingava da planta. Mas o roceiro Macuco não era homem para destruir os frutos da terra, ele reconstruía a sua obra de lavrador...
             Acabou-se a poda. quando a última vara caiu, o roceiro parou na orla do campo arrasado, cruzou os braços e, apoiando-se no cabo da foice, ficou matutando e contemplando.
            À sua frente estende-se o chão preto, a terra limpa, seca, ouriçada: nem um fiapo de capim, nem um olho de broto espiando; cada pé de fumo podado virou um estrepe agudo. Mas as raízes estão vivas no fundo da terra, esperando que voltem as chuvas criadeiras do tempo das brotas; então, tudo vai outra vez nascer e verdejar, crescer e ocupar a terra erma. A soca vai cumprir a promessa do roceiro Macuco...
         De repente a tarde entristeceu.
            Pelos ouvidos do roceiro passa zunindo o vento que vem trazendo de longe ma nuvem cor de chumbo. Macuco levanta a cabeça e acompanha com a vista a nuvem escura que vai lenta pelos ares...
             A ventania invade os matos, balanceia os pinheiros duros, fustiga desde a graminha até a perobeira que sobe céu acima, enche o espaço e vai levando, para mostrar mais adiante, a todos os trabalhadores da terra, a nuvem escura cor de chumbo, que prenuncia o tempo fecundo das águas.

FIM -

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O Santo - Conto - Afonso Schmidt

 O noturno da capital só passa às 2 horas da madrugada, de modo que, se o senhor quiser descansar um pouco poderá entrar aqui para o depósito das encomendas e deitar-se no estrado, sobre os sacos de milho. Não tenha receio, que a mercadoria é da colheita deste ano e ainda não tem carunchos.
   Como o senhor está vendo, a estação é pobre e sem movimento; foi construída pela Companhia para servir ao desvio e à meia dúzia de casebres perdidos nessa colina. Aqui não há mais nada. são apenas 9 horas da noite e já desapareceram todas as luzes, a não ser as lanternas verdes e vermelhas no alto dos sinaleiros. De um lado e de outro, os trilhos se perdem no escuro e, nos charcos, por debaixo do pontilhão, só se escuta o sonolento coaxar das rãs.
  Mas não se sente no banco da plataforma porque o vento está friozinho e durante as cinco horas que terá de esperar o SP-16 apanhará certamente um defluxo... Não se espante...Essa longa e dolorosa lamentação que lhe está fazendo mal aos nervos é do gado, no desvio, a meio quilômetro da distância. A gente aqui já se habituou tanto a ela que nem escuta; mas no começo...   
  Nos primeiros tempos da minha remoção para este purgatório eu também senti a mesma coisa. A primeira noite foi danada! Dizem que esta localidade não progride por cauda dos gemidos dos bois engaiolados. E daí este cheiro de estrume, de amoníaco...não sente? Quando faz calor, parece que até as motucas fogem daqui. Vejo que o senhor aceitou o meu conselho e vai acomodar-se o melhor possível. Pite este cigarro de palha grossa enquanto eu acendo o meu velho cachimbo. Tem fogo? Esqueci a binga na mesa do telégrafo. Obrigado.
  Nesta estaçãozinha só aparece um passageiro de semana em semana de modo que, quando temos um homem como o senhor, a gente aproveita para conversar um pouco e sentir que ainda é um cristão como os demais. Olhe, agora, que estamos sentados um defronte do outro, neste canto agasalhado e aquecido pelo cereal, à luz mortiça do candeeiro de querosene, vou contar-lhe a história do santo. É para matar o tempo.
   Sim, senhor, do santo. Passou-se aqui mesmo, há por aí uns dois anos mais ou menos. Vejo que o senhor se interessa pelo caso. Pois então escute. Uma vez surgiu por aqui, vindo não seu de onde, um homenzarrão ruivo e de braços tão compridos que batiam pelos joelhos. Devia ter estado muito tempo na prisão, ou perdido no mato, porque parecia esquecido da linguagem dos homens. O andante chamou logo a atenção dos boiadeiros e da gente que estava à sua passagem. Nós o vimos sumir do lado do desvio e, no dia seguinte admirados do que nos contaram os trabalhadores da manobra. O senhor não conhece o desvio? Pois precisa conhece-lo.
   Para nós aquilo já tem significado: é coisa de todo dia. A  sua vizinhança endurece o coração. As crianças aqui, já se criam de maus instintos, por causa do desvio. Imagine o senhor que os bois destinados à capital e outras cidades mais distantes vem do Triângulo, em vagões estreitos a que chamamos gaiolas. As reses viajam atravessadas e unidas, de modo que muitas delas, as mais corpulentas se conservam em arco durante dias e dias....Acontece que a viagem é muito longa e interrompida a cada passo. Aqui é um dos pontos de pernoite.
 O trem do gado chega ao escurecer e é manobrado  para o desvio, até o dia seguinte, em que prossegue viagem, às 6:25. Quando o gado aqui chega, já se encontra engaiolado há vários dias e assim, ficara outros tantos. Ao cabo desse tempo, em consequência dos choques, das marchas e contra-marchas, ou mesmo por causa de fraqueza, cansaço ou doença, os bois já tombaram no carro,  ferindo-se uns aos outros.
  Muitos ficam de chifres partidos e olhos vazados; há também os que descalçam as unhas e se firmam no chão com a ponta de um osso sangrando. E os de pernas esmigalhadas...Não se admire. Antes procure completar o quadro, lembrando que durante o percurso não se dá água nem comida ao gado e que, nos dias de calor, atmosfera de dentro da gaiolas poderia cozer um pão-de-ló. Não há, pois, exemplo de tamanho suplício....
   O homem ruivo, passando pelo desvio e compreendendo a queixa que vai nos mugidos lancinantes dos bois, não teve coragem de abandoná-los e ali ficou entregue à obra de caridade de minorar os seus sofrimentos. Quando chegava o trem boiadeiro e a composição era manobrada para o desvio, ele, munido de um velho balde, punha-se a conduzir a água do riacho, e dar de beber aos animais. Ia de um a um dizendo coisas que os bichos pareciam entender. Em seguida, fazia distribuição do capim cortado durante o dia, de modo que horas depois cessava o mugido das reses e o desconhecido ia dormir ao pé de uma fogueira de gravetos que, ventasse ou chovesse, nunca se extinguia.
   Vivia não sei como. É verdade que os maquinistas dava-lhe o resto das marmitas e as crianças da escola atiravam-lhe da passagem as merendas. Ficou-se habituado àquele homem. Em uma espécie de santo protetor dos bois. Mas no ano atrasado, se não me falha a memória, ao abrir a estação de caça, desembarcou aqui uma turma de alegres caçadores da cidade. Armaram barracas nas proximidades do desvio. Falava-se até que apareceram mulheres. O ruivo foi o bode expiatório. Sua maluquice - que por maluquice tomara o seu devotamento pelos animais - deu motivo a uma engraçada farsa...
   Um dos caçadores disse:
   - "Se você fizer tudo quanto eu mandar, porei um criado para tratar de cada boi! Olhe que eu sou o dono do trem".
   O ruivo topou a parada. Ele era simples, simples que nem uma criança de peito. Então, foi uma noite divertida, uma farra que alarmou os caboclos da redondeza.
   Gritavam-lhe:
  - "Ruivo, ande com um pé só!"
   O gigante se punha a saltar como um bugio.
  - "O ruivo, atire-se no riacho!"
   Ele mergulhava no lodo.
   -" Ruivo, beba, sem pestanejar, este copo de pinga!"
  E ele emborcava até rolar sem sentidos pelo chão.
  No dia seguinte, a tropa fandanga de uns tiros pela mata e regressou à cidade, levando na cinta muitos  pássaros, os mais deliciosos cantores destes vales. Ao embarcarem, eram admirados pelos outros passageiros e recebiam felicitações.
   Depois da sua partida, o Ruivo sentou-se numa pedra, ao pé da fogueira e começou a esperar seriamente o que lhe haviam prometido. Esperou assim muito tempo. Um dia acharam-no morto. A turma da conserva fez um buraco a algumas braçadas do desvio e enterrou-o.
    Agora estão dizendo por aí que ele era santo. Sabe por quê? Venha até aqui, na porta, e olhe lá longe, no fundo da noite. O senhor está vendo aquela luzinha perdida? É a fogueira do Ruivo. Ele, como lhe disse, desapareceu há muito tempo, mas a luz que  deixou sobre a terra ainda não se extinguiu. Já se contam milagres. Bobagem de caboclos...  FIM
         ( O tesouro de Cananéia)

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

PEDRO BARQUEIRO - Conto - AFONSO ARINOS

"Eu lhe conto" - dizia-me o Flor, quase ao chegar à Cruz de Pedra. " Naquele tempo eu era franzinozinho, maneiro de corpo ligeiro de  braços e pernas. Meu patrão era avalentoado, temido e tinha sempre em casa uns vinte capangas, rapaziada de ponta de dedo. Eu tinha uma meia-légua, trochada de aço, que era meu osso da correia". E, consertando o corpo no lombilho, soltou as rédeas à mula ruana, que era boa estradeira. Inclinou-se para o lado, debruçando-se sobre a coxa, e apertou na unha polegar o fogo do cigarro, puxando uma baforada de fumo.
  "Estávamos, um dia, divertindo-nos com os ponteados do Adão, à viola. Eu estava recostado sobre os pelegos do lombilho, estendidos no chão.  A rapaziada toda em roda. Pouco tínhamos que fazer e passava-se o tempo assim.
  "Eis senão quando entra o patrão, com aquele modos decididos, e, voltando-se para um moço que o acompanhava disse: "Para o Pedro Barqueiro bastam estes meninos! " apontando-me e ao Pascoal com o indicador; não preciso bulir nos meus peitos largos. "O Flor e o Pascoal dão-me contado crioulo aqui, amarrado a sedenho".
  "Para que mentir, patrãozinho? o coração me pulou cá dentro, e eu disse comigo - estou na unha! O pascoal me olhou com o rabo dos olhos. Parece que o patrão nos queria experimentar. Éramos os mais novos dos camaradas, e nunca tínhamos servido senão no campo juntando a tropa espalhada, pegando algum burro sumido. Eu tinha ouvido falar sempre no Pedro Barqueiro, que um dia aparecera na cidade sem se saber quem eram nem donde vinha. Cheguei uma vez a conhecê-lo e falamo-nos. Que boa peça patrãozinho! Crioulo, alto, troncudo, pouco falante e desempenado. Cada tronco de braço que nem um pedaço de aroeira.
  "Estou com ele diante dos olhos, com aquela roupa azuleja, tingida no Barro Preto; atravessando à cinta um ferro comprido, afiado, aluminado sempre, maior que um facão e menorzinho do que uma espada. Esse negro metia medo de se ver, mas era bonito. Olhava a gente assim com ar de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter certeza de que, em chegando a encostar a mão num cabra, o caba era defunto. Ninguém bolia com ele, mas ele não mexia com os outros. Vivia seu quieto, em seu canto. Um dia, pegaram a dizer que ele era negro fugido, escravo de um homem lá lá das bandas do Carinhanha. Chegou aos ouvidos do patrão esse boato. Para que chegou, meu Deus. O patrão não gostava de ver negro, nem mulato de proa. Queria que lhe tirasse o chapéu e lhe tomassem a benção.
   "Daí, ainda contavam muita valentia do Barqueiro, nome que lhe puseram por ter vindo dos lados do rio São Francisco. Essas histórias esquentavam mais o patrão, que eu estava vendo de uma hora para outra estripado  no meio da rua, porque era homem de chegar quando lhe fizessem alguma.
  "Tanto eu como Pascoal tínhamos medo de que o patrão topasse Pedro Barqueiro nas ruas da cidade.
   "Subiram de ponto esse nosso receio e a ira do patrão, quando soube de uma passagem do Pedro, num batuque, em casa de Maria Nova, na rua da Abadia
 "Chegara uma precatória da Pedra-dos-Anjicos e o juiz mandou prender a Pedro. Deram cerco à casa onde ele estava na noite do batuque. Ah! meu patrãozinho! o crioulo mostrou aí que canela de onça não é assobio. Não é dizer que estivesse muito armado, nem por isso só tinha o tal ferro aluminando sempre; e com esse ferro  deu pancas. Quando cercaram a casinha e lhe deram voz de prisão, o negro fechou a cara e ficou feito um jacaré de papo amarelo. Deu frente à porta da rua e encostou-se a uma parede. Maria Nova estava perto e me disse que ele cochichou uma oração, apertando nos dedos um bentinho, que branquejava na pele negra de sua peitaria lustrosa. 
   "Chegaram a entrar a casa três homens da escolta e todos três ficaram estendidos. Pedro tinha oração, e muito boa oração contra armas de fogo, porque José Pequeno, o caboclinho atarracado, ao entrar, escancarou no negro o pinguelo de um clavinote e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou sobre ele na fumaça da pólvora e, quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como um boi sangrando.
   "Dois rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e pôs as tripas de fora a outro, que escaparam, é verdade, mas ficaram lá no chão gemendo por muito tempo.
   "Daí para cá, Pedro evitava andar pela cidade, onde só aparecia de longe em longe, e à noite. Mas  todo o mundo, tinha medo dele e vivia adulando-o.
   "Um dia, como já lhe contei, apareceu lá em casa um moço pedindo auxílio a meu patrão para agarrar o negro. Era mesmo escravo, O Barqueiro; mas há muitos anos vivia fugido. Já lhe disse que o patrão queria tirar o topete ao valentão,e, para isso, escolheu pobre de mim e Páscoal.
    - Que dizes, Flor? falou o patrão rindo-se.
  - Uai, meu branco, vossemecê mandando, o negro vem mesmo, e no sedenho.
   - Quero ver isso.
 - Vamos embora, Pascoal!
   "Quando íamos a sair, o patrão bateu-me no ombro e,voltando-se para o moço, disse muito firme: " Pode prevenir e escolta para vir buscar o Barqueiro aqui, de tarde. Hão de dar duzentos mil-réis a estes meninos".
   "Desci ao quarto dos arreios, passei a mão na  meia-légua e no facão e apertei a correia à cinta.
   " Pascoal já estava na port da rua, assobiando. Tinha por costume, nos momentos de aperto, assobiar sempre uma trova, que diz assim:

   "Na mata de Josué
     Ouvi o mutum gemê;
     Ele geme assim:
     Ai-rê-uê, hum! airê"

"Quando Pascoal me viu, soltou uma risada.
 -Estás doido, rapaz! gritou-me.
 - Por quê?
- Queres mesmo enfrentar com o Pedro Barqueiro? Ele faz de nós paçoca. A coisa se há de fazer de outro modo.
 "Pascoal tinha tento e eu sempre tive fé nele. Era um cabritozinho mirrado. Saía-lhe cada ideia...Mandou-me guardar a meia-légua e o facão. Depois foi à venda, escolheu anzóis de pesca e veio para casa encastoá-los. Eu, nem bico! Ajudei a acabar o serviço certo de que Pascoal tinha alguma na mente.
  - Deixa a coisa comigo, ajuntava ele.
  "Isso ainda era cedo; o sol estava umas três braças de fora, no tempo dos dias grandes. Lá por casa madrugávamos sempre para ir ao pasto e trazer os animais de trato.
  - Vamos fazer uma pescaria, disse-me o Pascoal. - Ali para os lados do Batista, perto de um baruzeiro grande, há um poço, onde as curumutãs e os piaus são como formigas. O rancho do Pedro Barqueiro fica perto. Ele mora só e eu conheço bem o lugar. Pela astúcia havemos de prendê-lo. Quando eu gritar: " Segura, Flor!" - tua agarras o negro, mas segura rente!
   " E fomos. Nessa hora me veio bastante vontade de fugir ao perigo, de ir passear, porque tinha como certo suceder-nos alguma. "Que é lá, Flor!" - disse de mim para mim. "Um homem é para outro. " E, depois o Pascoal não me deixava nas embiras. Quando descemos meio sorumbático. Nesse tempo, eu andava arrastando a asa à Emília, filha do José Carapina. Era uma roxa bonita deveras e não estava muito longe de me querer. Posso dizer mesmo que na véspera olhou muito para mim, ao passar com a saia de chita sarapintada de vermelho, umas chinelas nova e de cordovão amarelo. Ah! que peitinho de jaó, patrãozinho! empinado, redondo, macio como um couro de lontra. Com o devido respeito, patrãozinho, eu estava na peia, enrabichado e foi nesse mesmo dia que ela me deu esta cinta de lã, tecida por sua mãos, que guardo até hoje.
  "Aí! roxa da minha paixão" - pensava eu - " como hei de morrer assim, fazendo cruz na boca?" - O diabo da ideia me atarantou pelo caminho e cheguei a dar tremenda topada numa pedra, no meio da estrada. Curvei-me sobre a perna, agarrei o pé  com as mãos estive dançando, sem querer, um pedacinho de tempo. Depois, levantei a cabeça. Pascoal sentara num barranco e encarava para mim, rindo. levantei a cabeça e olhei pra cima, assuntando. No céu galopavam umas nuvens escuras. Um vento áspero passava, arrancando do jenipapeiro as frutas maduras, que esborrachavam no chão assim - prof! - espantando os juritis que andavam esgaravatando a terra e comendo grãozinhos. Duas seriemas guinchavam, esgoelavam. depois, vi que estavam brigando - me lembra como se fosse hoje - e uma avançava para outra dando pulinhos, sacudindo as asas, com o cocuruto arrepiado e os olhos em fogo. O coração pareceu dizer-me outra vez - " olha, Flor, o que vais fazer". Nesse entretanto, o Pascoal, que me encarava sempre do ponto onde estava sentado, gritou-me:
   - Esqueceste a cabeça nalgum lugar? Vamos embora, que vai tardando já.
   "Fiquei descochado; cai em mim e fui marchando disposto. Daí em diante, fui brincando com o Pascoal, que era muito divertido e tinha sempre um caso a contar. Chegando embaixo, arrregaçamos as calças e descemos o córrego, cada um com seu anzol na vara, ao ombro.
   " Era preciso que ninguém desconfiasse do nosso concluio para prendermos o Pedro Barqueiro.
 "Aí, quase que tínhamos esquecido o perigoso mandado, tão diferente andava a conversa com as caçoadas do Pascoal.
   "Para encurtar a história, patrãozinho, achamos Pedro Barqueiro no rancho que só tinha três divisões: a sala, o quarto dele e a cozinha.
   "Quando chegamos, Pedro estava no terceiro debulhando milho, que havia colhido em sua rocinha ali perto.
   - "Vocês por aqui meninos? Olhem! vão ali àquele poço, para baixo da cocheira. Tem lá uma laje grande e de cima dela voçês podem fazer bichas com os piaus.
  - "Louvado seja Cristo, meu tio!' havia dito o Pascoal, e nisto o imitei.
   - "Se quiserem comer uma carne assada ao espeto, tirem um naco; está na fumaça, por cima do fogão, uma boa manta. Olhem a faca aí na sala, se vocês não tem algum caxerenguengue.
  Pascoal entrou, e viu recostado a um canto da parede  o ferro aluminando. Pegou nele, saiu pela porta da cozinha e escondeu-o numa restinga, ao fundo. Depois, me assobiou, eu acudi e fui procurar a lazarina de Pedro - boa arma, de um só cano, é verdade, mas comedeira.
   - Há alguma jaó por aqui, tio Pedro? perguntou Pascoal.
  - Nem uma, nem duas, um lote delas. Se você quer experimentar minha arma, vá lá dentro e tire-a. Não errando a pontaria, você traz agora mesmo uma jaó.
  - Quero matar um passarinho para fazer isca, meu tio
  - Pois vá, menino
  "E Pascoal descarregou a arma.
  "Pedro tinha-se levantado e falava com Pascoal do vão da porta da entrada.
"Era hora.
   "Pascoal me fez um sinalzinho, eu dei volta e entrei pela porta do fundo para agarrar o Barqueiro pelas costas. A combinação era essa. Enquanto Pascoal o foi entretendo, eu fui chegando soturno, quando ele gritou -"segura!" - eu pulei como uma onça sobre o negro desprevenido.
   " Conheci o que era homem, patrãozinho! saltando-lhe nas costas, dei-lhe um abraço de tamanduá no pescoço. Mas o negro não pateou, e, mergulhando comigo para dentro da sala, gritou:
    - " Nem dez de vocês, meninos! Ah! se eu soubesse..."
   "Patrãozinho, eu sei dizer que o negro me sacudia para cima como um touro bravo sacode uma garrocha. Mas eu via que, se o largasse, estava morto, e arrochei os braços.
   - "Chega, Pascoal", gritei.
  - "Eu quero manobrar de fora. Ânimo! Segura bem que nós amarramos o negro.
  "Que tirada de tempo! O negro, às vezes, abaixava a cabeça, dando de popa, e minhas pernas dançavam no ar, tocando quase o teto de rancho. Lutamos, lutamos até que Pascoal pode meter um tolete de pau entre as canelas de Pedro, de modo que ele cambaleou, e caiu de bruços. Nós dois pulamos em riba dele. Eu, triunfante gritava: "Conheceu , crioulo? Negro é homem?" Ele era teimoso, porque dizia ainda: " Nem dez de vocês, meninos! Ah! se eu soubesse..." Pascoal trazia à bandoleira um embornal para carregar peixe e veio dentro dele escondida uma corda de sedenho, comprida e forte. O Barqueiro estava no chão; e foi preciso ainda fazermos bonito para agarrá-lo.
  - Agora, puxe na frente, seu negro! - gritou-lhe o Pascoal.
   "Havíamos juntado os braços dele nas costas e apertamos com vontade. Ficou completamente tolhido.
   " Eu ia segurando a ponta de sedenho e levava o negro na frente. Mesmo assim, houve uma hora em que ele me deu um tombo, arrancando de repente a correr. Por seguro, a corda estava-me enrolada na mão e eu não a leguei. Nesse instante Pascoal tinha corrido atrás dele e lhe descarregando na nuca um tremendo murro, que o fez bambear um pouco e me deu tempo de endurecer o corpo e segurar firme a corda.
   " O Barqueiro, depois que saiu do rancho, não piou.
   "Chegamos à casa de tarde e o negro ia no sedenho.
   - " Eu não disse", gritava o patrão muito contente, " que só bastavam a esses dois meninos para o Barqueiro? Está aí o negro".
   "E o povo corria para ver  e a frente da casa do patrão estava estivada de gente.
  "Recebemos os duzentos mil-réis.
  - Tinha-me esquecido de contar-lhe que eu fizera uma promessa à Senhora da Abadia, de levar-lhe ao altar uma vela, se voltasse são e salvo. Cumpri a promessa no dia seguinte e arranjei uma festinha para a noite. queria um pé para estar com a Emília.
  "Comprei um trancelim de ouro para aquela roxa de meus pecados e um xale azul. Ela era esquiva. Fez u muito momo nessa noite, e não quis dar nem uma boquinha, com o devido respeito ao patrãozinho.
   "Saí da casa de José Mendes, onde deu a festa, quando os galos estavam amiudando.
   "A estrela-d'alva, no céu escuro, parecia uma graça lavando-se na lagoa. O orvalho das vassoura me molhou as pernas e eu estremeci um bocadinho. Entrei num beco beco que ia sair na rua deTrás, onde eu então morava.
   "Ia meio avexado e peguei a banzar. Emília! Emília do coração! por que me amofinas com esse pouco caso? E desandei a cantar, bem chorada, esta cantiga:
    
Ta  trepado no pau
De calça pra baixo,
com asas caídas
Gavião de penacho!

Todo o mundo tem seu bem,
Só obre de mim não tem!
Ai! gavião de penacho!

"De repente, pulou um vulto diante de mim. Quem havia de ser, patrãozinho? Era o Pedro Barqueiro em carne e osso. Tinha não sei como, desamarrado as cordas e escapado da escolta, em cujas mãos o patrão o havia entregado.
   "O ladrão do negro tinha oração até contra sedenho!
  "Sem me dar tempo de nada, o Barqueiro me agarrou pela gola e sujigou. levantou-me no ar três vezes, de braço teso, e gritou-me:
   - "Pede perdão, cabrito, desvergonhado, do que fizeste ontem, que te vou mandar para o inferno! Pede perdão, já!
   "A gente precisa de ter um bocado de sangue nas veias, patrãozinho, e um homem é um homem! Eu não lhe disse pau e nem pedra. Vi que morria, criei ânimo e disse comigo que o negro não me havia de por o pé no pescoço.
   " Exigiu-me ele, ainda muitas vezes, que lhe pedisse perdão, mas eu não respondi. Então, ele foi-me levando nos braços até uma pontezinha que atravessava uma perambeira medonha. A boca do buraco estava escura como breu e parecia uma boca de sucuriú querendo engolir-me. Suspendeu-me arriba do guarda-mão da ponte e balançou meu corpo no ar. Nessa hora, subiu-me um frio pelos pés e um como  formigueiro me passeou pela regueira das costas a té a nuca; mas minha boca ficou fechada. Então o Barqueiro, levantando-me de novo, me pousou no chão, onde eu bati firme.
  " O dia estava querendo clarear. O negro olhou para mim muito tempo, depois disse:
  - "Vai-te embora, cabritinho, tu é o único homem que tenho encontrado nesta vida!
  " Eu olhei para ele, pasmado.
   "Aquele pedaço de crioulo cresceu-me diante dos olhos e vi- não sei se era o dia que vinha raiando - mas eu uma luz estúrdia na cabeça de Pedro.
   "Desempenado, robusto, grande, de braço estendido, me pareceu, mal comparando o Arcanjo São Miguel, sujigando o Maligno. Até claro ele ficou essa hora! Tirei o chapéu e fui andando de costas olhando sempre para ele.
   "Veio-me uma coisa na garganta e penso que me ia faltando o ar.
  "Insensivelmente, estendi a mão. As lágrima me saltaram dos olhos, e foi chorando que eu disse:
  - "louvado seja Cristo, tio Pedro!
   " Quando caí em mim, ele tinha desparecido'.   FIM ( pelo sertão)