segunda-feira, 25 de julho de 2016

IMAGENS DOS MEUS QUERIDOS LIVROS!









A FILHA DE MARIA - CONTOS DE GRIMM

     Perto de uma grande floresta vivia em lenhador com sua mulher e sua única filha, uma menina de três anos. Eram tão pobres que lhes faltava até o pão de cada dia e não sabiam o que dar de comer à criança. Certa manhã, o lenhador saiu para o trabalho e, enquanto estava rachando lenha, com a cabeça cheia de preocupações, viu de súbito, à sua frente, uma dama alta e muito linda, com  uma coroa de estrelas. Dirigindo-se a ele, assim falou:
    - Sou a Virgem Maria, mãe do Menino Jesus. És pobre e necessitado; entrega-me tua filha para que a leve comigo. Serei sua mãe e tomarei conta dela.
    O lenhador, obedecendo, foi buscar a filha e a entregou à Virgem Maria, que  com ela subiu para o Céu. Lá a menina passou a viver bem, comendo pão doce e bebendo leite à vontade. Suas vestes eram de ouro e os anjinhos brincava com ela. Ao completar quatorze anos, a Virgem mandou chamá-la e lhe disse:
   - Minha filha, vou fazer uma longa viagem e confiarei à tua guarda as chaves das treze portas do reino dos Céus. Permito-te abrir doze delas, para contemplares que encerram. Mas a décima terceira, que se abre com esta pequenina chave, ficas proibida de abrir. Toma cuidado! Senão, será a tua desgraça.
    A menina prometeu obedecer e, quando a Virgem partiu, foi olhar as salas do Céu; cada dia abria uma porta, até completar a sequência das doze. Em cada sala se encontrava um apóstolo, cercado de grande esplendor e a menina ficava contente vendo toda aquela glória e magnificência. os anjinhos, que sempre a acompanhava, compartilhavam da sua alegria.
    Por fim só restava, ainda, a porta proibida. Sentindo, de repente, uma vontade louca de saber o que se ocultava atrás dela, dirigiu-se aos anjinhos, dizendo-lhes:
     - Não vou abrir a porta completamente, nem entrar na sala; só quero entreabri-la um pouquinho para podermos espiar pela frestinha.
     Oh, não! - exclamaram os anjinhos. - Isso seria pecado. A virgem Maria proibiu e poderá ser a tua desgraça.
    A menina, então, calou-se. Mas a curiosidade continuava a roer-lhe o coração, sem lhe dar sossego. E, certa ocasião, quando todos os anjinhos se haviam retirado, ela pensou:" Agora que estou sozinha, poderia dar uma espiada. Ninguém ficará sabendo."
    Procurou a chave dentre as outras e, tendo-a na mão, enfiou-a na fechadura e lhe deu volta. A porta abriu-se de súbito e ela viu a Santíssima Trindade, envolta em esplendor. Por algum tempo a menina ficou ali parada, olhando tudo com assombro. Depois, tocou, de leve, naquele brilho santo. E seu dedo ficou todo dourado. Logo após, sentiu-se tomada por um medo horrível, fechou a porta com força e saiu correndo. Mas o medo não a soltava e o seu coração batia cada vez mais forte. Também o dourado no seu dedo não saía, por mais que ela o lavasse e esfregasse.
     Pouco depois, a Virgem Maria  voltou da viagem. Chamou a menina e pediu-lhe as chaves do Céu. Ao recebê-las, Nossa Senhora olho-a vem nos olhos e perguntou:
   - Abriste a décima terceira porta?
   - Não, minha Nossa Senhora, - respondeu a menina.
   A Virgem colocou-lhe  a mão sobre o peito e notou como o seu coração palpitava. Percebeu logo que ela desobedecera, abrindo a porta. Entretanto, tornou a perguntar:
   - Na verdade, não abriste aquela porta?
   - Não, minha Nossa Senhora, - repetiu a menina.
    Aí a Virgem viu o dedo que se tornara dourado ao toque da luz celestial e teve a certeza de que ela pecara; e, pela terceira vez, peguntou:
   - Não abriste mesmo aquela porta?
    - Não, minha Nossa Senhora, - retrucou a menina teimosamente.
    Disse, então, a Virgem Maria:
    - Desobedeceste á minha ordem e, pior ainda, mentiste; não és mais digna de estar no Céu.
    A menina mergulhou num sono profundo e, quando acordou, estava na terra, em meio de uma floresta. Tentou gritar, mas não saiu e quis sair correndo, mas para qualquer lado  que se dirigisse, encontrava sempre umas cercas de espinhos que ela não conseguia atravessar.
   Naquele sítio onde estava encerrada, havia uma árvore velha e oca, que lhe servia de abrigo  para dormir à noite e onde encontrava refúgio, durante as chuvas e tempestades. Era, porém, uma vida miserável aquela, e, quando se lembra quanto havia sido bela e a vida que levava no Céu, com o anjinhos a brincarem com ela, começava a chorar amargamente. Seu único alimento eram morangos do mato que saía a procurar. Durante  outono recolheu as nozes e folhas caídas das árvores, que levou para a sua toca. No inverno as nozes lhe serviam de alimento, e quando caiu a neve e veio a geada, meteu-se como um pobre animalzinho entre as folhas, para não sentir frio. Em pouco tempos suas vestes começaram a rasgar-se e, peça por peça, lhe caíam do corpo. Quando o sol começou, de novo, a aquecer a terra, a menina saiu do seu esconderijo e foi sentar-se ao pé de uma árvore; e seus cabelos longos a cobriam toda como um manto. Assim ficou ali, ano após ano, sentindo toda a desgraça e misérias do mundo.
    Certa vez quando as árvores ostentavam novamente suas folhas verdes, o rei daquele país saiu a caçar pela floresta. Perseguindo um cervo, o rei apeou do cavalo e meteu-se entre os espinhadeiros onde se refugiara a caça, abrindo caminho com sua espada. Quando, finalmente, pode atravessar o matagal, viu sentada embaixo de uma árvore uma moça lindíssima cujos cabelos dourados a cobriam até aponta dos pés. O rei se deteve, contemplando-a cheio de admiração e, passados alguns minutos, falou-lhe:
   - Quem és? Por que estás sentada aqui nesta solidão?
   Não obteve resposta, pois a jovem não podia falar.
O rei prosseguiu:
    - Queres ir comigo a o castelo?
    Ela concordou com um leve aceno da cabeça. O rei ergue-as nos braços e a levou até onde estava o seu cavalo; colocou-a na sela e regressaram para o castelo. Ao chegar, mandou que lhe dessem lindos vestidos e tudo o que precisasse. Ainda que não pudesse falar, a moça era tão bela e graciosa que o rei se enamorou e pouco depois  casou com ela.
    Quase um ano depois, a rainha deu à luz um filho . Na primeira noite em ficou sozinha no leito com o menino, apareceu-lhe a Virgem Maria e lhe disse:
   - Queres dizer a verdade e confessar que abriste a porta proibida? Se assim fizeres, abrirei a tua boca e te devolverei a fala; mas se persistires em pecado, negando a tua falta, levarei comigo o teu filhinho.
   Nesse momento foi restituída a fala à rainha. Ela, porém, ainda obstinada, respondeu:
    - Não, não abri a porta proibida.
     Maria, então, tomou nos braços o recém-nascido e com ele desapareceu. Na manhã seguinte, quando não encontraram a criança, o povo começou a murmurar que a rainha matara seu próprio  filho. Ela ouvia tudo, mas nada podia dizer em sua defesa. o rei, no entanto, não acreditou nisso, porque a amava muito.
    Passou-se outro ano e a rainha deu à luz outro filho. E, novamente, a Virgem lhe apareceu durante a noite, falando-lhe:
    - Se confessares ter aberto a porta proibida, devolver-te-ei o teu filho e tua voz; mas se permaneceres em pecado e continuares negando, levarei comigo também esse menino.
    E, mas uma vez, a rainha respondeu:
    - Não, não abri a porta proibida.
    A Virgem, então, tirou-lhe o filho dos braços, levando-o consigo para o Céu. Pela manhã, como também a outra criança tivesse desaparecido, o povo começou a reclamar em voz alta e os conselheiros do rei exigiram que a rainha fosse julgada. Mas o rei a amava tanto que, sob ameça de morte, lhes proibiu que falassem no caso.
   No ano seguinte, a rainha deu à luz uma bela menina e pela terceira vez a Virgem Maria apareceu e lhe disse:
   - Segue-me.
   Tomando-a pela mão, foi com ela até o Céu, onde lhe mostrou seus dois filhos mais velhos que ali estavam rindo e brincando com a bola do mundo. Vendo que a rainha ficou cheia de alegria ao vê-los tão felizes, a Virgem perguntou:
    - Teu coração ainda continua insensível? Se confessares ter aberto a porta proibida, eu te devolverei teus filhos.
    Mas, pela terceira vez, a rainha respondeu:
   - Não, não abri a porta proibida.
   A Virgem, então, fê-la descer novamente à terra. tomando-lhe também a menina recém-nascida.
   Na manhã seguinte, quando o fato se tornou público,  o povo todo gritava em alta vozes:
   - A rainha come carne humana, tem de ser condenada à morte!
    Aí, então, o rei não pode mais conter seus conselheiros. Iniciou-se o julgamento e, impossibilitada de se defender porque não podia falar, a rainha foi condenada à morte na fogueira. Empilharam um monte de lenha e, quando as labaredas começaram a arder em torno dela, derreteu-se o duro gelo do orgulho e seu coração foi tocado pelo arrependimento. E ela pensou:
    - Se antes de morrer eu pudesse confessar que abri aquela porta!
   No mesmo instante recuperou a voz e, então, gritou alto:
   - Sim, Nossa Senhora, eu abri a porta proibida!
   E aquele mesmo instante começou a cair do céu uma chuva forte que apagou a fogueira. Uma luz surgiu sobre a sua cabeça e a Virgem Maria apareceu, tendo a seu lado os dois meninos e, nos braços a menina recém-nascida. Dirigindo-se a ela, disse-lhe suavemente:
    - Quem se arrepende dos seus pecados e os confessa, é perdoada.
   Restitui-lhe as três crianças, devolveu-lhe a capacidade de falar e lhe deu felicidade para o resto de sua vida. 
FIM

OS DOIS IRMÃOZINHOS - CONTOS DE GRIMM

  O irmãozinho tomou a mão de sua irmãzinha e lhe falou assim:
  - Desde que mamãe morreu, não tivemos mais uma hora de felicidade; a madrasta nos bate todos os dias e nos trata a pontapés. Como alimento só temos as duras migalhas que sobram do pão, e até o cãozinho embaixo da mesa leva uma vida melhor, pois de vez em quando lhe jogam alguma coisa boa para comer. Que Deus tenha piedade de nós! Se a nossa mãe soubesse disso! Vem, vamos sair daqui e correr mundo.
  Caminharam o dia inteiro e, quando começou a chover, disse a irmãzinha:
  - É Deus e os nossos corações que choram juntos!
  Á noite chegaram a uma grande floresta e, como estivessem cansados de chorar e de tanto caminhar, e ainda por cima com fome, sentaram-se no oco de uma árvore e ali adormeceram.
   Na manhã seguinte, ao despertarem, o sol já estava bem alto no céu e seus raios ardentes envolviam a árvore . Queixou-se, então, o irmãozinho:
   - Estou com sede, irmãzinha; se soubesse de uma fonte, iria até lá beber. Parece que estou ouvindo um barulhinho de água.
   E, levantando-se, pegou a menina pela mão e saíram à procura da fonte. A madrasta malvada, porém, era uma bruxa e percebera que as duas crianças haviam fugido de casa. Disfarçadamente, como fazem as bruxas, saíra atrás delas e enfeitiçara todas as fontes da floresta. Quando os dois encontraram um pequeno regato que saltava, alegre, por sobre as pedras, o irmãozinho quis saciar a sede, mas sua maninha ouviu que o regato murmurava:
   - Quem bebe da minha água se transforma em tigre!
   A menina, então, exclamou:
   - Por favor, não bebas, meu irmãozinho; senão te transformarás num tigre e me devorarás.
   Embora estivesse com muita sede, o menino obedeceu, dizendo:
   - Esperarei até a próxima fonte.
   Chegaram ao segundo regato e a garotinha ouviu que também esse falava:
    - Quem beber da minha água será um lobo, quem beber da minha água erá um lobo!
    Novamente ela pediu:
   - Por favor, irmãozinho, não beba; senão te transformarás num lobo e me devorarás.
   O garoto não bebeu, mas retrucou:
   - Vou esperar até encontrarmos outra fonte; aí, então, beberei , digas o que disseres, pois minha sede é grande demais.
   Quando chegam ao terceiro regato, a menina ouviu-o murmurar:
    - Quem beber da minha água será um cervo, que beber da minha água será um cervo!
    A irmãzinha voltou, de novo, a insistir:
    - Peço-te que não bebas, meu irmãozinho; senão te transformarás num pequeno cervo e fugirás de mim.
     Mas o menino já se ajoelhara junto à fonte para beber e, quando as primeiras gotas molharam os seus lábios, transformou-se num pequeno cervo.
     A garotinha pôs-se a chorar, vendo seu pobre irmão enfeitiçado e o cervinho chorou também, deitado muito triste aos pés dela. Por fim disse a menina:
   - Sossega, meu bonito cervo; eu nunca te abandonarei.
   E, desatando uma das suas ligas dourada, colocou-a no pescoço do animalzinho; depois colheu alguns juncos e trançou uma corda bem macia. Com ela prendeu, o pequeno cervo e ambos foram andando cada vez mais para o interior da mata.
   Andaram por muitas horas e finalmente chegaram a uma pequena casa. A menina espiou para dentro e, como estivesse vazia, pensou: " poderíamos ficar morando aqui.". Com folhas secas e musgos, preparou um leito macio para o cervo. Todas as manhãs saía em busca de frutinhas e nozes para si mesma; quanto ao animalzinho, trazia-lhe capim bem tenro e alegrava-se brincando ao seu redor. Quando à noite, cansada, já havia rezado as suas orações, ela deitava a cabeça sobre o dorso do pequenino cervo; era o seu travesseiro e ali adormecia suavemente. se o menino tivesse conservado a forma humana, seria uma vida maravilhosa aquela!
    Assim ficaram por algum tempo, sozinhos no bosque. Um dia, porém, o rei daquele país organizou uma grande caçada, e por toda a floresta ecoou o som das trombetas, o latido dos cães e o grito alegre dos caçadores. O pequenino cervo, ao ouvir tudo aquilo, sentiu uma vontade irresistível de assistir à caçada.
    - Irmãzinha, - disse, - deixa-me acompanhar a caçada, não posso mais conter-me.
   - E tanto pediu, que ela, por fim, o deixou partir.
   - Mas à noite terás de estar de volta, - recomendou a menina. - Fecharei a porta por causa desses caçadores. Para que possa reconhecer-te, deverás bater e dizer: " Irmãzinha, deixa-me entrar. " Se não fizeres assim, não abrirei.
   O animalzinho saiu correndo e saltando, feliz com a liberdade. O rei e seus caçadores viram-no, porém, e o perseguiram sem que o conseguissem apanhar. Quando pensavam que já iam alcança-lo, ele saltava por cima das moitas e desaparecia. Ao escurecer, regressou à casinha, bateu à porta e disse:
    - Irmãzinha,  deixa-me entrar!
     A porta foi aberta e, correndo para dentro, o cervo descansou a noite inteira em seu leito macio. Na manhã seguinte a caçada recomeçou, e mal ouviu ele o som das trombetas e o "Hô! Hô!" dos caçadores, não teve mais sossego e pediu:
   - Irmãzinha, abre a porta que eu quero sair.
    A menina atendeu, recomendado:
    - Mas presta atenção, à noite deves estar de volta e dizer as palavras que te ensinei.
    Assim que o rei e seus homens avistaram, de novo, o cervo do colar  dourado, saíram todos em seu encalço. O animalzinho no entanto, era mais rápido e ágil do que eles, A perseguição durou o dia inteiro e somente ao anoitecer os caçadores o tinham, finalmente, cercado, sendo que um deles o feriu de leve numa das patinhas. Manco, o pequeno cervo só pode escapar andando muito devagarinho. Um dos homens o seguiu até a casinha e ouviu quando ele gritou:
    - Irmãzinha, deixa-me entrar!
   Viu que lhe abriram a porta e logo a fecharam. Foi ao rei e contou-lhe o que tinha visto e ouvido. E o rei respondeu:
   - Amanhã faremos outra caçada!
   A irmãzinha assustou-se muito quando viu que seu querido cervo estava ferido. lavou-lhe a pata suja de sangue, colocou ervas na ferida e disse-lhe:
   - Vai para o teu leito, querido, até ficares bem bom.
   O ferimento, porém, era tão leve que, na manhã seguinte, o animalzinho nada mais sentiu e, ao perceber de novo, lá fora, a alegre caçada, disse à irmã:
   - Não resisto, preciso tomar parte.
   A irmãzinha, chorando, exclamou:
 - Vão matar-te e ficarei sozinha  na floresta, abandonada por todo o mundo! Não posso permitir que saia.
   - Então morrerei de tristeza, - respondeu o cervo.- Quando ouço a corneta de caça, fico doido por sair correndo.
   Incapaz de resistir àquela súplica, a garotinha abriu a pota, com o coração pesaroso, e logo o cervo se precipitou, alegre, pelo mato a dentro. O rei, ao avistá-lo, disse a seus caçadores.
    - Persigam-no até anoitecer, mas que ninguém lhe cause dano.
   Assim que o sol desapareceu no horizonte o rei chamou o caçador e lhe falou:
   - Mostra-me, agora, a casinha do mato.
    Ao encontrar-se diante da porta, bateu e pediu:
   - Deixa-me entrar, irmãzinha querida!
   Abriram o rei entrou. À sua frente apareceu uma jovem tão bela como não vira outra igual. Ela assustou-se quando viu um homem, de coroa de ouro na cabeça.entrar na casa, mas o rei olhou amavelmente para ela e, estendendo-lhe a mão , disse:
    - Queres vir comigo para o meu castelo e ser a minha esposa?
   - Sim,´retrucou a jovem, - mas o cervo terá de acompanhar-me; não me separo dele.
    - Ficará contigo enquanto viveres e nada lhe faltará. - concordou o rei.
   Nisto, o animalzinho entrou correndo e a irmã tornou a prendê-lo com a corda de juncos. A seguir, abandonaram a casinha da floresta.
    O rei colocou a linda moça na garupa e partiram para o castelo, onde foi celebrado o casamento com grande pompa. Ela passou então a ser rainha e durante muito tempo viveram felizes. O pequeno cervo era bem tratado e vivia saltando, alegre, pelos jardins do castelo.
   Entretanto, a madrasta malvada, que havia sido a causa de terem eles fugido de casa, pensava que a menina fora devorada pelas feras e seu irmão, transformado em cervo, morto pelos caçadores. Quando lhe chegou aos ouvidos que os dois viviam felizes e satisfeitos, seu coração quase arrebentou de inveja não a deixando em paz. Pôs-se a maquinar uma maneira de desgraçá-los! A filha dela, que era feia como a noite e tinha um olho só, espicaçava a mãe, dizendo-lhe:
    - Eu é que deveria ser rainha.
    - Acalma-te!- retrucou a velha. - Quando chegar a hora, saberei o que fazer.
   Passado algum tempo, a rainha deu à luz um lindo menino. Como o rei, nesse dia, se afastara para caçar, a velha bruxa tomou a forma da camareira, entrou no quarto da rainha e disse-lhe:
   - O banho está preparado e lhe fará bem; venha depressa antes que esfrie.
  A filha da bruxa também estava presente e ambas levaram a rainha, ainda debilitada, ao quarto de banho, onde a meteram na banheira. Fecharam a porta e logo fugiram, pois tinham acendido ali um fogaréu dos diabos, que asfixiou a jovem e bela soberana.
   Feito isto, a velha pôs uma touca na cabeça da filha e fê-la deitar-se na cama da rainha. Deu-lhe também a forma e o aspecto desta; só não pode restituir o olho que faltava e, para que o rei não lhe notasse o defeito, ordenou que se deitasse sobre o lado dele. À noite, quando o rei voltou da caça e soube que havia nascido um filho, alegrou-se de todo o coração e dirigiu-se ao leito da sua esposa, com o propósito de vê-la. Mas a bruxa apresou-se a dizer-lhe:
   - De modo algum! Deixe as cortinas fechadas, que a rainha não suporta a luz e necessita de repouso.
   O rei, então, se retirou, ignorando que na cama havia uma falsa rainha.
   Mas aconteceu que, à meia-noite, quando todos dormiam, a ama, que velava sozinha junto ao berço, no quarto da criança, viu a porta abrir-se e entrar a rainha verdadeira. Debruçando-se sobre o bercinho, tomou nos braços o recém-nascido e o amamentou;: depois ajeitou-lhe o travesseirinho e, feito isso, deitou novamente a criança. Também não esqueceu o pequeno cervo. Foi ao lugar em que estava deitado e lhe acariciou o pelo. Logo depois, saiu do quarto. Na manhã seguinte, a ama perguntou aos guardas se tinham visto alguém entrar no castelo durante a noite, mas eles responderam:
   - Não, não vimos ninguém.
   A cena repetiu-se ainda muitas noites, sem que a rainha fantasma pronunciasse uma só palavra. E, embora a ama sempre a visse, não se animava a contar o que estava acontecendo.
   Decorrido algum tempo, a rainha, numa de suas visitas noturnas, quebrou o silêncio e começou a falar:
      "Como vai meu filho? Como vai meu cervo?
       Virei mais duas noites, depois nunca mais."
    A ama ouviu tudo quieta, mas, depois que a rainha desapareceu, foi ao rei e lhe contou o que se passara. Este, surpreso, exclamou:
    - Meu Deus! Que significa isso? Amanhã de noite ficarei de guarda junto à criança.
   Quando anoiteceu foi ao quarto do princepezinho e à meia-moite a rainha apareceu e disse:
    " Como vai meu filho? Como vai meu cervo?
     Vim mais uma vez, depois nunca mais."
    O rei, não podendo mais conter-se, exclamou:
   - Não pode ser outra, senão minha esposa querida!
   Ao que ela respondeu:
  - Sim, eu sou a tua esposa.
 Naquele mesmo instante, com a graça de Deus, voltou à verdadeira vida. Estava tão forte, rosada e bem disposta como antes. Contou logo ao rei o crime que a bruxa malvada e sua filha haviam cometido contra ela. O rei ordenou então que ambas fossem levadas perante um tribunal. Este as condenou à morte. A filha foi conduzida à floresta, onde as feras a estraçalharam, ao passo que a bruxa, condenada à fogueira, teve morte horrível. Depois que ela foi reduzida a cinzas, o pequeno cervo, transformando-se de novo, recuperou a forma humana, e o irmãozinho e a irmâzinha viveram juntos e felizes até o fim de seus dias. 
FIM
 


sexta-feira, 22 de julho de 2016

HISTÓRIA DE UM RAPAZ QUE QUERIA TER MEDO - CONTOS DE GRIMM

   Um pai tinha dois filhos, o mais velho dos quais era inteligente e esperto e se saía bem em tudo. O mais moço, porém, era um palerma que nada conseguia entender ou aprender. As pessoas, quando o viam, comentavam: "Este ainda vai dar muito trabalho ao pai." Se era preciso fazer alguma coisa, o mais velho sempre realizava o trabalho. Mas, quando se tratava de sair a serviço ao entardecer ou à noite, e o caminho passava pelo cemitério ou outro local horripilante, ele se esquivava, dizendo:
   - Não, meu pai, não posso ir. Dá-me arrepios.
    E, de fato, o rapaz sentia medo. À noite, quando todos se reuniam à vola do fogão e alguém contava uma dessas histórias que dão calafrios e os ouvintes exclamavam de vez em quando: " ai, que medo!" , acontecia que o filho menor, sentado em seu canto, ouvia tudo e não conseguia entender o que significavam aquelas exclamações.
   - Vivem dizendo: " Sinto medo!" "Estou arrepiado!" Pois eu não sinto nada; deve ser alguma habilidade de que não sou capaz.
   Um dia o pai lhe disse:
   - Tu aí, no canto! Estás bem crescido e forte; tens de aprender alguma coisa para ganhar a vida. Não vês como teu irmão se esforça? Mas tu és um caso perdido!
    - Bem , meu pai, - respondeu ele, - estou disposto e aprender algo. Se fosse possível, gostaria de aprender a ter medo.
    O irmão riu ao ouvir  aquelas palavras e pensou: "Meu Deus, como é idiota o meu irmão! Nunca será coisa alguma na vida. Cada um revela suas qualidades desde cedo."
    O pai suspirou e respondeu:
   - Chegará o dia em que aprenderás a ter medo, mas com isso é que não irás ganhar o teu sustento.
   Poucos dias depois, receberam a visita do sacristão. O pai confiou-lhe seu desgosto, contando que o filho mais moço era um inútil, que nada sabia e nada conseguia aprender.
    -I magine só que , quando lhe perguntei como pretendia ganhar a vida , respondeu-me que queria aprender o que é o medo.
     - Se é apenas isso, - retrucou o sacristão, - poderá aprender comigo; mande-o para minha casa e me encarregarei de tirar-lhe a cisma.
   O pai, satisfeito, pensou: "O rapaz vai endireitar um pouco."
   E assim o sacristão o recebeu em sua casa e lhe ensinou a tocar o sino. Depois de alguns dias , foi despertá-lo à meia-noite, ordenando-lhe que subisse à torre da igreja e tocasse. "Hás de aprender o que é o medo", pensou ele. Saiu, sorrateiramente, antes do rapaz e, quando este chegou ao alto da torre  e voltou para apanhar a corda do sino, viu um vulto branco na escada, parado diante de uma abertura na parede.
   - Quem está aí? - gritou o rapaz.
   Mas o vulto não respondeu nem fez um só movimento.
    - Responde! - insistiu ele, - ou então retira-te. Nada perdeste aqui à meia-noite.
   Mas o sacristão permaneceu imóvel para que o jovem pensasse que era um fantasma. O rapaz gritou-lhe pela segunda vez:
   - Que queres aqui: Fala, se és uma pessoa direita, ou atiro-te escada abaixo.
    O Sacristão pensou: " Não chegará a tanto" e, sem dizer palavra, continuou imóvel como se fosse de pedra. O rapaz, então, interpelou-o pela terceira vez e, vendo que isso de nada adiantava, investiu contra o fantasma. Dando-lhe um forte empurrão, jogou-o escada abaixo, deixando-o atirado a um canto. Feito isso, tocou o sino; depois foi para casa deitar-se e continuou a dormir.
    A mulher do sacristão esperou o esposo por muito tempo. Vendo que ele não voltava, foi, muito inquieta, despertar o rapaz e o interrogou:
   - Não sabes onde está meu marido? Foi à igreja na tua frente.
   - Não, - respondeu o jovem. - Só vi alguém parado na escada diante duma abertura na parede, mas como não me respondeu também não quis retirar-se, pensei que fosse um ladrão e o atirei escada abaixo. Vai até lá e veja se não será ele. Se for, peço-lhe mil desculpas.
    A mulher saiu correndo e, ao chegar, encontrou o marido atirado a um canto, com a perna quebrada. Carregou-o para baixo como pode, e depois apressou-se a chegar à casa do pai do rapaz. Lá, entrou dizendo:
   - Seu filho acaba de provocar uma grande desgraça! Atirou meu marido escada abaixo de tal forma que ele quebrou a perna. Tire já aquele patife da minha casa!
    O pai correu assustado para a casa do sacristão e pôs-se a ralhar com o jovem:
    - Que espécie de patifarias são essas? Parece que estás com o diabo no corpo.
   - Sou inocente, meu pai, - contestou o rapaz. - Ele estava parado ali, de noite, como quem não planeja boa coisa. Não sabendo quem era, disse-lhe três vezes para sair dali.
    - Arre! - exclamou o pai. - Só me trazes desgraça. Sai da minha presença, que não quero mais ver-te.
   - Está bem, meu pai. Espere só que amanheça e então  partirei para aprender o que é medo. Assim pelo menos saberei algo que me ajude a ganhar o pão.
   - Aprende o que quiseres, - disse o pai, - pouco me importa. Aqui tens cinquenta moedas; com isso corre o mundo e não contes a ninguém de onde vens, nem quem é o teu pai; só serviria para me envergonhar.
    - Sim, meu pai, como queira. Se não exige mais que isso, será fácil obedecer.
   Ao raiar do dia, o jovem embolsou as cinquenta moedas, saiu para a estrada e, enquanto caminhava, ia repetindo em voz alta:
   - Se ao menos eu soubesse o que é ter medo! Se ao menos eu soubesse o que é ter medo!
   Nisto, passou um homem que ouviu o que o rapaz falava. Depois de terem caminhado juntos um bom pedaço e quando se aproximavam de uma forca, o homem lhe disse:
   - Olha, naquela árvore estão sete sujeitos que se casaram com a filha do cordeiro e agora estão aprendendo a voar. Senta-te ali embaixo e espera a noite, que vais saber o que é ter medo.
   - Se não é mais que isso, - retrucou o rapaz, - será muito fácil. Mas, se realmente aprender tão depressa o que é o medo, eu te darei minhas cinquenta moedas. Volta a procurar-me aqui, pela manhã. 
   O rapaz foi até a forca, sentou-se embaixo e esperou que anoitecesse. Como sentia frio, acendeu um fogo; mas por volta da meia-noite, passou a soprar um vento tão gelado que não conseguiu aquecer-se, apesar da fogueira. Quando o vento começou a fazer entrechocarem-se os copos enforcados, balançando-os de um lado para outro, ele pensou: " Se tu, aqui perto do fogo estás com frio, como não estão tiritando e dando pinotes esses aí em cima!" E como era compassivo por natureza, apanhou uma escada, subiu nela e foi desamarrando os cadáveres, um por um, até que todos os setes estavam no chão. Em seguida soprou o fogo para avivá-lo e sentou todos ao redor , para que se aquecessem. Mas os mortos permaneceram imóveis e o fogo começou a incendiar-lhes as roupas. Vendo isso, o rapaz disse:
    - Se não tiverem mais cuidado, eu tornarei a pendurar vocês!
   Os mortos, porém, não responderam e o fogo continuou queimando-lhes a roupa. O jovem então, irritou-se.
    - Se insistirem em não ter cuidado, nada  posso fazer; não estou disposto a queimar-me junto com vocês.
   E pendurou-os novamente, um por um, na forca; feito isto, deitou-se e dormiu.
   Na manhã seguinte, o homem apresentou-se, reclamando as cinquenta moedas.
   -Sabes agora o que é medo? - perguntou.
    - Não, - retrucou o rapaz - Como posso saber? Esses aí em cima não abriram a boca e se portaram de maneira tão idiota que deixaram queimar os trapos velhos que tem no corpo.
    Viu, então, o homem que, daquela vez, não embolsaria o dinheiro, e afastou-se , dizendo:
   - Nunca encontrei um tipo assim!
   O jovem também prosseguiu seu caminho, repetindo, novamente:
   - Se ao menos eu soubesse o que é ter medo! Se ao menos eu soubesse o que é ter medo!
    Um carroceiro que vinha atrás dele, indagou:
    - De onde vens?
    - Não sei.
    - Quem é teu pai?
    - Não posso dizer.
     - Que andas falando o tempo todo?
     - Ora! - respondeu o rapaz, - eu gostaria de aprender o que é ter medo, mas ninguém consegue ensinar-me.
     - Deixa de conversa fiada! - exclamou o carroceiro. - Vem comigo e verei se encontro um alojamento para ti.
     O rapaz acompanhou o homem e, à noite, chegaram a um albergue. Quando atravessaram a porta, o jovem disse me voz alta:
   - Se eu pudesse saber o que é ter medo! Se eu pudesse saber o que é ter medo!
    O hospedeiro, ao ouvir aquilo, desandou a rir e falou:
    - Se, de fato, tens vontade de saber, aqui terás uma boa oportunidade.
    - Ora, cala-te! - disse sua mulher. - Mais de um homem corajoso já perdeu a vida, Seria uma pena se esses lindos olhos não retornassem a ver  a luz do dia.
   Mas o jovem retrucou:
   - Por mais dificil que seja, faço questão de aprender o que é esse tal de medo.
   E não deixou em paz o hospedeiro até que o homem contou que ali perto havia um castelo encantado, onde certamente aprenderia o que é o medo, caso se decidisse a passar três noites nele. Disse-lhe ainda que o rei prometera casar sua filha, que era a moça mais linda que o sol já iluminara, com o homem que quisesse arriscar-se às provas. Havia, também, grandes tesouros no castelo, capazes de tornar rico a quem os merecesse e que eram guardados por espírito maus.
    Na manhã seguinte, o rapaz apresentou-se diante do rei e falou:
    - Se me for permitido, passarei de vigília três noites no castelo encantando.
    O rei olhou para o jovem e, tendo-se agradado dele, disse-lhe:
   - Podes pedir três coisas para levar ao castelo.
    A isso respondeu o rapaz:
    - Dê-me, então, um torno, um banco de carpinteiro e uma faca.
   O rei mandou levar tudo aquilo ao castelo, enquanto era dia. Ao anoitecer, o jovem foi até la, acendeu fogo numa das salas, colocou ao lado o banco de carpinteiro com a faca e sentou-se no torno.
    - Ah! Se pelo menos aqui ficasse conhecendo o medo! - disse.- Mas receio que nem neste lugar me ensinarão o que é.
     Por volta da meia-noite quis avivar o fogo, e, enquanto assoprava as brasas, ouviu, de repente, vozes que vinham de um canto:
   - Au, miau! Que frio estamos sentindo!
   - Ora, seus tolos! - exclamou ele. - Por que gritam dessa maneira? Se estão com frio, cheguem perto do fogo e aqueçam-se.
   Mal havia pronunciado essas palavras, surgiram , de um salto, dois gigantes gatos pretos que se sentaram um de cada lado, cravando nele seus olhos ardentes e ferozes. Passado algum tempo, quando já se tinham aquecido, disseram:
    - Companheiro, que acha de um joguinho de cartas?
    - Por que não? - retrucou ele. - Mas antes disso deixem-me ver as patas.
   Os animais mostraram-lhe as garras.
   - Arre! exclamou o jovem. - Que unhas mais compridas! Primeiro vamos cortá-las.
   Dizendo isso pegou os dois pela nuca, ergueu-os e lhes atarraxou as patas no banco de carpinteiro.
    - Bem que lhes adivinhei as intenções, - disse,  até perdi a vontade de jogar.
    A seguir, matou-os de um golpe e foi joga-los na água, fora do castelo. Mal, porém, liquidara aqueles dois, surgiram, de todos os cantos, gatos e cachorros pretos, arrastando correntes em brasa e em número cada vez maior, de modo que o rapaz não sabia onde meter-se. Miavam e uivavam horrivelmente; pisotearam o fogo, espalhando-o por todos os lados com a intenção de apagá-lo. Durante algum tempo o rapaz observou-os com toda calma, até que, por fim, perdeu a paciência. passou a mão na faca e exclamou:
   - Fora daqui, seus malandros!
    E começou a atacar a bicharia. Parte deles conseguiu escapar, mas o resto ele matou e foi jogar os corpos no lago.
   De volta à sala, reanimou o fogo, soprando as brasas restantes e aqueceu-se. Enquanto estava sentado, veio-lhe o sono e suas pálpebras se tornaram pesadas. Olhou em redor e num dos cantos avistou uma boa cama.
    - " Em boa hora te vejo!" - pensou ele, e deitou-se.
    Mas quando cerrou os olhos, a cama começou a mover-se e saiu rodando por todo o castelo.
   - Muito bem! - disse ele. - Quanto mais depressa melhor.
   A cama continuou rolando como se fosse puxada por seis cavalos, atravessou portais, subiu e desceu escadas. Upa! De repente virou de pernas para o ar e o rapaz ficou por baixo dela como  se uma montanha lhe tivesse caído em cima. Ele, porém, atirou longe cobertas e travesseiros, levantou-se e exclamou:
    - Agora que passeie quem quiser!
   Na manhã seguinte veio o rei e, vendo-o deitado no chão, pensou que estivesse morto.
   - Que pena!- murmurou. - Morreu. Era um belo rapaz!
   O jovem, ao  ouvir as palavras do rei, ergueu-se e falou:
   - Ainda estou longe disso!
   O rei, surpreso e contente, perguntou-lhe como passara a noite.
   - Otimamente!- respondeu ele, Já passei a primeira e passarei as outras duas também.
   Quando se apresentou diante do hospedeiro, o homem ficou espantado.
   - Nunca pensei- disse ele- que tornaria a ver-te com vida, Aprendeste, agora, o que é o medo?
   - Não, - retrucou o rapaz, - é inútil, não encontro quem me ensine o que seja.
    Na noite seguinte, voltou ao castelo; sentou-se perto do fogo e iniciou sua ladainha: " Se ao menos  eu soubesse o que é ter medo." Pouco antes da meia-noite ouviu um ruído. Primeiro baixinho, depois cada vez mais forte; seguiu-se um momento de silêncio e, por fim, soltando  gritos agudos, desceu pela chaminé a metade de um homem, que foi cair a seus pés.
    - Ei! - exclamou o rapaz, - falta uma metade; isso aí é pouco!
   Mas o barulho começou novamente e, entre gemidos e gritos, também a outra metade do homem caiu no chão.
    - Espera aí, -disse o jovem. - Primeiro quero assoprar o fogo.
    Quando terminou  e olhou em redor, as duas metades se haviam unido e um homem com cara de poucos amigos estava sentado no seu lugar.
   - Não foi esse o trato, -disse o rapaz, - quem se assenta aí sou eu.
   O homem quis afastá-lo, mas ele não cedeu e, dando-lhe um empurrão, sentou-se novamente no seu lugar. Nesse momento, mais homens começaram a descer pela chaminé, um após outro. Traziam consigo nove tíbias e duas caveiras com que passaram a jogar bolão. O jovem, sentindo vontade de participar do jogo, perguntou:
    - Ei! Posso jogar também?
    - Sim, se tiveres dinheiro.
   - Dinheiro de sobra, - respondeu, - mas essas bolas não são bem redondas.
    Apanhou as caveiras e, prendendo-as no torno, as modelou devidamente.
   - Agora rolarão melhor, - afirmou. - Será um prazer jogar elas.
    Jogou e perdeu um pouco do seu dinheiro. Quando, porém, soaram as doze badaladas da meia-noite, tudo desapareceu diante de seus olhos. Deitou-se e adormeceu tranquilamente.
   Na manhã seguinte o rei apresentou-se, de novo, e quis saber:
    - Como te arranjaste desta vez?
    - Joguei bolão - retrucou o jovem - e perdi alguns vinténs.
   - E não sentiste medo?
   - Qual nada! Diverti-me a valer. Se ao menos soubesse o que é o medo!
   Na terceira noite sentou-se novamente, no seu banco e, muito desgostoso, começou a remoer sua ideia fixa: " Se eu pudesse aprender a ter medo!
   - Era já bem tarde quando entraram seis homens, carregando um caixão de defunto. Pensou, então, o rapaz:
    - " Vão ver que é o meu primo falecido há poucos dias!" - E, acenando com o dedo, chamou:
   - Vem, priminho, vem!
    Os homens colocaram o ataude no chão. O rapaz aproximou-se  ergueu a tampa. Dentro havia um homem. Tocou-lhe o rosto; estava frio como gelo.
      - Espera. - disse, - vou aquecer-te um pouco.
     Acercou-se do fogo, aqueceu as mãos e foi colocá-las no rosto do cadáver. Este continuou gelado. Tirou, então, o corpo do caixão, e sentando-o perto do fogo, começou a esfregar-lhe os braços para que o sangue voltasse a circular. Como também isso não surtia efeito, lembrou-se que "dois juntos em uma cama, sempre consegue se aquecer". Carregou o defunto até o leito, pôs-lhe as cobertas por cima e depois deitou-se a seu lado. Passados alguns momentos, o morto começou a aquentar-se e se moveu. disse, então, o jovem:
    - Vês, priminho, se eu não tivesse te aquecido!
   Subitamente, o morto começou a falar, dizendo:
    - Agora vou te estrangular!
   - O que?!- exclamou o jovem. - É este o teu agradecimento? Poi vais voltar já para o teu caixão.
    E, levantando-o, meteu-o de novo no ataúde, colocando a tampa por cima. Nisso entraram outra vez os seis homens e carregaram o defunto.
   - Não consigo saber o que é o medo- disse o rapaz - e aqui jamais aprenderei.
    Nesse instante entrou um homem na sala, maior que todos os outros e de aspecto horrível; era muito velho e tinha uma longa barba branca.
   - Ah, rapazola! - gritou.- Já vais aprender o que é o medo, pois fica sabendo que vais morrer.
   - Calma, calma! - respondeu o rapaz. - Se queres matar-me, é preciso que me apanhes.
   - Verás, se te agarro! - disse o homenzarrão.
    - Devagar, devagar! Estás achando muito fácil. Sou tão forte quanto tu.
   - Veremos, - disse o velho. - Se fores, deixo-te em paz. Vem comigo, vamos experimentar.
    E, atravessando longos corredores escuros, conduziu-o a uma forja. Ali apanhou um machado e de um só golpe enterrou uma das bigornas no chão.
   - Sei fazer isso ainda melhor, - comentou o rapaz, dirigindo-se a outra bigorna.
  O velho, com suas longas barbas , colocou-se ao lado, para poder enxergar melhor. Empunhando o machado, o jovem, de um golpe, rachou a bigorna, prendendo nela, ao mesmo tempo, a barba do velho.
   - Agora estás em minhas mãos- disse ele- e quem vai morrer és tu. Pegou uma barra de ferro e começou a bater no velho até que o homem, gemendo, suplicou que parasse, prometendo-lhe grandes riquezas. O rapaz, então, puxou o machado e o libertou. O velho o conduziu ao porão do castelo, onde lhe mostrou três arcas abarrotadas de ouro.
   - Uma parte desse dinheiro é para os pobres, a outra pertence ao rei e a terceira é tua.
   Nesse momento bateu meia-noite e o espírito desapareceu.
   Na manhã seguinte o rei veio de novo e lhe disse:
   - Agora deves ter aprendido o que é o medo.
   - Não, - replicou o moço. - Que coisa será isso? Esteve aqui o meu priminho morto e apareceu, também, um homem barbudo que me mostrou muito dinheiro, lá no porão. Nenhum deles, no entanto, soube dizer-me o que é o medo.
   Falou então o rei
 - Desencantaste o castelo e casarás com minha filha.
   A seguir foram ao porão, porém, apesar de amar muito sua esposa e de sentir satisfeito, continuava dizendo:
   - " Se ao menos soubesse o que é o medo!"
   Aquela ideia fixa acabou, por fim, irritando a princesa. Sua camareira, então, disse-lhe:
   - Deixe por minha conta. Vou ensinar-lhe o que é o medo.
   Dirigiu-se a um arroio que passava pelo jardim e mandou que enchessem um balde com muitos peixinhos. À noite, quando o jovem príncipe dormia, sua esposa, ensinada pela camareira, lhe tirou bruscamente a coberta e derramou-lhe por cima o balde de água fria com os peixinhos, que começaram a saltar sobre o seu corpo. o príncipe despertou sobressaltado e gritou:
   -Ai! Que medo, que medo! Estou todo arrepiado! Agora sim minha boa mulherzinha, agora sei o que é ter medo! FIM


 



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quinta-feira, 21 de julho de 2016

OS TRAPACEIROS - CONTOS DE GRIMM

   Disse o galo à galinha:
   - Chegou o tempo das nozes; vamos subir a montanha e comer à vontade antes que o esquilo as leve todas.
    - Boa ideia! - respondeu a galinha. - Vamos, e nos divertiremos a valer.
   Saíram juntos para a montanha e por lá ficaram até anoitecer.
   Não sei se comeram demais ou se a fartura os tornou pretensiosos, o certo é que não quiseram voltar a pé para casa e o galo armou uma carruagem com a casca das nozes. Depois de pronta, a galinha acomodou-se nela e disse ao galo:
    - Agora puxa o carro!
   - Era só o que faltava! -exclamou ele. - Antes ir apé do que atrelado. Concordo em ser cocheiro e me sentar na boleia, mas eu mesmo puxar? Isso é que não!
    Enquanto estavam discutindo, uma pata se aproximou, grasnando:
    - Ladrões! Quem lhes deu licença para entrar no meu nogueiral? Esperem, vocês vão me pagar caro!
    E, de bico aberto, lançou-se sobre o galo. Este, sem perda de tempo, atacou a pata com toda a força que tinha e tanto lhe meteu os esporões que ela acabou pedindo misericórdia, deixando-se atrelar à carruagem, como castigo. O galo sentou-se na boleia, fazendo as vezes de cocheiro, e lá se foram eles em disparada.
    - Corre, pata, o mais que puderes!
   Percorrido um trecho do caminho, encontraram dois pedestres. Eram um alfinete e uma agulha de costura, que lhes gritaram:
    - Parem! Parem!
    Os dois queriam uma carona, pois, conforme alegaram, logo estaria escuro como pixe e não poderiam dar mais um passo; e também porque havia muito barro na estrada. Vinham da taverna do alfaiate, onde se tinham atrasado tomando cerveja. Como se tratava de gente magra que não ia ocupar muito espaço, o galo mandou que embarcassem, recomendando, porém, que não pisassem nos seus pés nem nos da galinha. Tarde da noite, chegaram a um albergue e, como não quisessem viajar no escuro e também porque a pata não era boa andarilha, resolveram entrar. A principio o estalajadeiro opôs-se, dizendo que não havia mais lugar na casa, pois decerto pensou que aqueles hóspedes não eram gente muito distinta. Afinal, diante da conversa comprida que eles fizeram, prometendo-lhe o ovo recém posto pela galinha e mais o da pata, que punha um todos os dias, o estalajadeiro concordou em dar-lhes pousada por aquela noite. Mandaram, então, servir uma mesa bem farta e regalaram-se com o que havia de bom e de melhor. Pela madrugada, quando todos ainda dormiam, o galo acordou a galinha, trouxe o ovo, quebrou lhe a casca a bicada e ambos o saborearam; as casca, jogaram ao fogão. Depois foram onde estava agulha, que ainda dormia, pegaram-na pela cabeça e a espetaram na almofada do estalajadeiro; o alfinete, enfiaram na sua toalha de rosto. Feito isto, a partiram, sem mais aquela. A pata, que gostava de dormir ao livre e ficara no pátio, ouviu quando os dois se afastavam. Espanejou-se, saiu do seu canto e logo encontrou um arroio, pelo qual escapou a nado.
   Só depois de alguma horas é que o estalajadeiro saiu da cama. Lavou-se e, ao enxugar na toalha, o alfinete lhe arranhou rosto, fazendo-lhe um risco vermelho de orelha e a orelha. A seguir dirigiu-se à cozinha com a intenção de acender o seu cachimbo, mas quando se aproximou do fogão as cascas do ovo lhe saltaram nos olhos.
   - Esta manhã tudo me sai às avessas! - disse, aborrecido, e deixou-se cair na cadeira de balanço. Mas no mesmo instante ergueu-se de  um salto e berrou: "Aí"!. A agulha o espetara ainda mais do que o alfinete...e não no rosto! Tomando de fúria, começou  a desconfiar dos hóspedes que haviam chegado tão tarde no dia anterior. Saiu a procurá-los, mas já se tinham ido. Jurou, então, que nunca mais acolherá em sua casa gente trapaceira, que muito come, não paga e, ainda por cima, em agradecimento, faz uma porção de patifarias. FIM

A CHAVE DE OURO - CONTOS DE GRIMM

  Certa vez, num rigoroso inverno, quando espesso manto de neve cobria a terra, um pobre rapaz teve de sair para buscar lenha num trenó. Depois de a ter recolhido e empilhado, quis aquecer-se um pouco, antes de votar para casa, pois estava que não podia aguentar mais de frio. Ao remover a neve de um trecho do solo, para acender uma fogueira, ele encontrou uma chavezinha de ouro. Acreditando que, onde estivesse a chave, devia estar a fechadura, continuou a escavar a terra e achou um cofre. " Tomara que a chave sirva", - pensou ele, - "na certa há coisas preciosas aí dentro". Embora procurasse muito, não via nenhum buraco de fechadura. Finalmente, encontrou-o, mas tão pequenino que mal se podia ver. Experimentou e, de fato, a chave serviu. Deu volta e...paciência! Pois temos de esperar que a abra de todo e que levantasse a tampa. Só então saberemos que coisas maravilhosas havia dentro do cofre.  Fim

O ESPÍRITO APRISIONADO - CONTOS DE GRIMM

     Era uma vez um pobre lenhador que trabalhava desde madrugada até tarde da noite. Quando, finalmente, conseguiu economizar algum dinheiro, disse a seu filho:
    - És o meu filho único. O dinheiro que pude juntar com o meu suor vou empregar na tua educação. Se aprenderes um oficio útil e honrado, poderás sustentar-me na velhice, quando eu estiver fraco e passar o dia sentado à porta da casa.
   O rapaz entrou para Universidade e estudou com tanta aplicação que mereceu o louvor de seus mestres.
   Passado algum tempo, esgotou-se o pouco dinheiro juntado pelo pai, e o rapaz, sem terminar seu curso, foi obrigado  a voltar para casa.
   - Meu filho, - disse o lenhador tristemente, - nada mais posso dar-te, pois nestes tempos dificieis ganho apenas o suficiente para  o pão de cada dia.
   - Querido pai, - respondeu o jovem,- não se aflija por isso. Se a vontade de Deus é essa, será para o meu bem, e me conformo.
    Quando o pai se aprestava a ir à floresta, em seu ofício de lenhador, disse-lhe o filho:
   - Eu também vou, para ajudá-lo.
    - Não, filho, - respondeu o homem. - Estranharás muito, pois não estás habituado a esse tipo de trabalho; não resistirias. Além disso, só tenho um machado e não há dinheiro para comprar outro.
   - Peça a um vizinho que lhe empreste seu machado até que eu tenha o suficiente para comprar um.
   O lenhador, então, pediu emprestado um machado e, na madrugada seguinte, encaminharam-se ambos para a floresta. O filho ajudou o pai, trabalhando, alegremente, com todo afinco. Ao meio-dia, quando o sol estava alto, disse o velho:
     - Agora vamos descansar para comer; depois continuaremos o trabalho.
    Apanhando  o  seu pedaço de pão, o rapaz respondeu;
   - Descanse o senhor, meu pai; eu não estou fatigado. Vou dar uma volta pela mata e procurar ninhos de pássaros.
    Oh, seu malandro! - exclamou o lenhador,- Vais cansar correndo por aí e depois não poderás nem levantar um braço; fica aqui, fazendo-me companhia.
     Mas o filho embrenhou-se na floresta, comendo seu pão e olhando, alegremente, para os galhos verdes das árvores à procura de um ninho. Assim foi andando, sem rumo, até que chegou a um carvalho alto e forte, que teria, na certa, vários séculos de existência. Seu tronco era  tão grosso que nem cinco homens o teriam abrangido de braços abertos. Deteve-se e pensou: " De repente pareceu-lhe ouvir uma voz. Aguçando o ouvido, percebeu umas palavras em tom abafado:
   - Deixa-me sair, deixa-me sair!
   Olhou em redor, mas não descobriu nada. A voz parecia vir do interior da terra. Gritou, então:
  - Onde estás?
  Responderam:
  - Estou aqui, entre as raízes do carvalho. Deixe-me sair, deixe-me sair!
   O estudante se pôs a procurar ao pé da árvore, removendo e limpando a terra entre as raízes até que, enfim, descobriu uma garrafa metida num pequeno buraco. Ergueu-a contra a luz e viu algo parecido com uma rã, que saltava no seu interior.
   - Deixa-me sair, deixa-me sair! - voltou a dizer a voz. E o rapaz, sem pensar em nada de mal, desarrolhou a garrafa.
    Imediatamente saiu dela um espirito que começou a crescer tão rapidamente que, em poucos instantes, se converteu num vulto horrendo, alto como a metade do carvalho.
    - Sabes - disse o monstro com voz terrível - qual será tua recompensa por me haveres libertado?
   - Não, - respondeu o jovem, sem sentir medo. - Como posso saber?
   - Pois eu te direi, - gritou o espírito. - Como prêmio, terei de torcer-te o pescoço.
   - Poderias ter-me dito antes- replicou o estudante - e eu te haveria deixado onde estavas. Quanto à minha cabeça, ficará no seu lugar e, para tirá-la daí é preciso ouvir a opinião de outras pessoas.
    - Que me importam outras pessoas?! - gritou o espírito. - Receberás o prêmio que mereces. Pensas que me encerraram tanto tempo nessa garrafa para fazer-me um favor? Não, foi por castigo. Sou o  poderoso Mercúrio. E, a todo aquele que me puser em liberdade, tenho de torcer-lhe o pescoço.
    - Calma, calma! - replicou o estudante. - Não nos precipitemos. Antes devo saber se eras tu mesmo quem estava aprisionado nessa pequena garrafa e se és, de fato, um autêntico espírito. Se fores capaz de voltar para dentro dela, acreditarei em ti e, então, poderás fazer comigo o que quiseres.
   - Isso é facílimo! - respondeu o espírito com  arrogância. - E, contraindo-se até ficar pequenino como antes, deslizou pelo gargalo da garrafa e se meteu dentro. Mal entrou ali, o estudante voltou a tapar a abertura com a rolha e jogou a garrafa no lugar de onde a tirara, entre as raízes do carvalho.
    O jovem se dispôs a voltar para junto de seu pai, mas o espírito exclamou com a voz muito triste:
     - Deixa-me sair, deixa-me sair!
    - Não, - respondeu o rapaz, - não me pegas uma segunda vez. - Não torno a soltar quem quis me tirar a vida, agora que o tenho aprisionado.
    - Se me libertas, - insistiu o espírito, - eu te darei riqueza para o resto de teus dias.
    - Não. Tu me enganarias como antes.
   - Estás jogando fora tua felicidade, - insistiu o espírito. - Não te causarei o menor dano, mas te recompensarei com abundância.
   O estudante pensou: " Vou arriscar. Talvez cumpra sua palavra. De qualquer modo, não me apanhará". Desarrolhou a garrafa e, como da primeira vez, o espírito saiu e cresceu até ficar do tamanho de um gigante.
    - Agora te darei a recompensa prometida, - disse ele, e entregou ao jovem um pedacinho de pano parecido com um pequeno emplasto. Depois prosseguiu: - Se esfregares uma ferida com a ponta deste paninho, ficará logo curada, e se, com a outra ponta, esfregares um objeto de ferro ou aço, no mesmo instante se converterá em prata.
    - Isso terei de ver primeiro, - respondeu o estudante.
    Aproximou-se de uma árvore e, com o machado, fez um corte profundo no tronco. Esfregou o local com a  ponta do pano e, em seguida, o corte fechou-se e desapareceu.
   - Muito bem, não me enganaste, - disse ele ao espírito. - Agora podemos separar-nos.
   O espírito agradeceu ao estudante por havendo libertado e este, por sua vez, agradeceu-lhe o presente. Em seguida voltou para onde estava seu pai.
   - Por onde andaste? - indagou o velho. - Esqueceste o teu trabalho? Eu bem te disse que não serias capaz de executá-lo.
   - Não faças caso, pai. recuperarei o tempo perdido.
   - Veremos! - exclamou o lenhador, zangado. - Isso não são maneiras de se portar.
   - Pois prestes atenção, meu pai. Cortarei aquela árvore e vai ser um gosto vê-la cair.
   Esfregou o machado com seu paninho e aplicou um golpe tremendo; mas como o ferro se havia transformado em prata, o gume virou.
   - Pai, que machado ruim o senhor me deu! Veja como ficou torto!
    Assustou-se o velho e exclamou:
    - Santo Deus, que fizeste! Agora terei de pagar o machado e não sei como. Este é o benefício que tirei do teu trabalho.
    - Não se zangue, - pediu o filho, - eu pagarei  a ferramenta.
    - Oh, seu bobinho! - exclamou o lenhador. - Com que pensas pagá-la? Não tens senão aquilo que eu te dou. Na tua cabeça só há traquinices de estudante; do ofício de lenhador nada entendes.
   - Pai, é a primeira vez que venho ao bosque e não sei o caminho. Vem comigo.
    Apaziguando-se, o lenhador cedeu, finalmente, ao pedido do filho. Regressaram juntos e, durante o caminho, o velho disse ao rapaz:
   - Vende o machado estragado e tenta conseguir o máximo de dinheiro por ele. O restante terei eu de pagar ao vizinho.
   O jovem foi com a ferramenta para a cidade e entrou na loja de um ourives, oferecendo-a à venda. O homem examinou-a e, depois de a ter pesado, disse:
    - Vale quatrocentas moedas de prata, mas de momento não tenho tanto dinheiro.
   - Dê-me o que tem, o resto me pagará depois, - propôs o jovem.
   O ourives pegou-lhe trezentas moedas e ficou devendo cem. A seguir, o estudante retornou à sua casa.
    - Pai, - disse ele, - tenho dinheiro. Pergunte ao vizinho o que quer pelo machado.
    - Não preciso perguntar, - respondeu o lenhador. - Vale uma moeda de prata e seis de cobre.
    - Pois dê-lhe duas de prata e doze de cobre. É o dobro e ele ficará contente. Veja, tenho bastante dinheiro. - E , entregando a seu pai cem moedas, prosseguiu:- Nada nos faltará daqui por diante. O senhor poderá viver tranquilamente.
    - Meu Deus! - exclamou o homem. - Onde obtiveste esse dinheiro todo?
   O filho, então, contou-lhe o sucedido e como, fiando-se na sorte, tivera tão grande êxito. Com o resto do dinheiro, partiu e continuou seus estudos na Universidade. E, como graças ao seu emplasto, curava todas as feridas, tornou-se o médico mais famoso do mundo. FIM


terça-feira, 19 de julho de 2016

OS TRÊS RAMOS VERDES - CONTOS DE GRIMM

    Era uma vez um eremita que vivia no meio da floresta ao pé de uma montanha, passando o tempo todo a rezar e a praticar boas ações. Sempre, ao anoitecer, carregava, ainda, alguns baldes de água até o cume da montanha, em honra ao Senhor. Muito animal podia, assim saciar a sede e muita planta era refrescada, pois nas alturas sopra um vento quente que resseca o ar e a terra. As aves selvagens que temem aos homens voam bem alto e procuram com seus olhos aguçados descobrir um lugar onde beber. Como fosse muito piedoso, um anjo de Deus, visível a ele, o acompanhava na escalada, contava seus passos e, feito o trabalho, lhe trazia comida, assim como acontecera com aquele profeta que, por ordem de Deus, era alimentado pelos corvos. Alcançara já, o piedoso homem, uma idade avançada, quando viu certa vez, ao longe, levarem um pobre diabo para a forca. Falou para si mesmo:
    - Esse aí está recebendo o que lhe é devido.
   Á noite, quando se dispunha a carregar a água, o anjo não se apresentou e também não lhe trouxe comida. O eremita, então, assustou-se; examinou sua consciência para descobrir por que razão poderia Deus estar zangado com ele, mas não chegou a conclusão alguma. Deixou de comer e beber; jogou-se ao chão e rezou dia e noite. Uma vez, quando estava na mata, a chorar amargamente, ouviu um pássaro que cantava de um modo maravilhoso. Ficando ainda mais triste, disse o velho:
    - Como cantas bem ! Sim, contigo Deus não está zangado! Ah, se me dissesses como o ofendi, eu faria penitência para que a alegria voltasse a meu coração.
   Aí o passarinho começou a falar:
    - Cometeste um pecado ao condenares um pobre pecador que era levado a forca. É por isso que Deus Nosso Senhor está zangado contigo. Só a Ele cabe julgar. Mas se fizeres penitência e te arrependeres do teu pecado, Ele te perdoará.
   E eis que o anjo surgiu a seu lado, trazendo nas mãos um galho seco. E assim lhe falou:
    - Carregarás contigo este galho seco até que brotem nele três ramos verdes. À noite, quando quiseres dormir, tu o porás embaixo da tua cabeça. Esmolarás teu pão, de porta em porta, e não ficarás mais que uma noite em cada casa. Esta é a penitência que o Senhor te impõe.
   O eremita pegou o galho seco e com ele voltou ao mundo que há tanto tempo não via. Só comia e bebia o que lhe alcançavam às portas. Muitos pedidos, porém, não foram satisfeitos e muita porta não se abriu ao seu chamado, de modo que, as vezes, passava dias inteiro sem ter uma migalha de pão. Certa vez andou de manhã à noite batendo de porta em porta, sem que lhe dessem coisa alguma para comer ou abrigo para passar a noite. Saiu, então, pela mata e chegou, finalmente, a uma caverna onde estava sentada uma velha. Dirigindo-se a ela, o eremita disse:
   - Boa mulher, dá-me abrigo por esta noite.
    Mas a velha respondeu:
    - Não, não poderia abrigá-lo mesmo que o quisesse. Tenho três filhos malvados. Se, ao voltarem de suas excursões, o encontrassem aqui, eles matariam a nós dois.
    Insistiu o eremita:
   - Deixa que eu fique, nada nos farão.
   A mulher teve pena e consentiu em acolhê-lo. O eremita deitou-se embaixo da escada por onde os bandidos desciam para o seu covil e pôs o galho seco sob a cabeça. Vendo-o fazer isso, a velha indagou o motivo e ele, então, contou que levava o galho consigo como penitência e que à noite fazia dele travesseiro. Ofendera ao Senhor, pois ao ver que levavam um pobre criminoso para ser executado, dissera que lhe estava sucedendo o que bem merecia. A mulher começou a chorar e exclamou:
   - Ai! Se o Senhor castiga dessa maneira umas poucas palavras, o que será de meus filhos quando se apresentarem ante Ele para serem julgados!
   Á meia-noite os bandidos regressaram, fazendo um grande alarido. Acenderam uma fogueira e descobriram que havia um homem embaixo da escada. Ficaram furiosos e, aos gritos, indagaram da mãe:
   - Quem é esse homem:? Não te proibimos receber qualquer pessoa?
   - Deixem-nos em paz, - respondeu a velha. - É um pobre pecador que está cumprindo uma penitência.
    Perguntaram os bandidos:
   - Que foi que ele fez? - E, acordando  o eremita:- Velho, conta-nos os teus pecados.
   O velho levantou-se e contou-lhes como, com algumas palavras, pecara tanto que Deus se zangara com ele e tinha agora de fazer penitência. Sua história comoveu de tal forma os bandidos que, assustados com a vida que levavam, se arrependeram e decidiram penitenciar-se. O eremita, após ter convencido os três pecadores, deitou-se de novo embaixo da escada, para dormir. Pela manhã o encontraram morto. Do galho seco que lhe servia de travesseiro haviam brotado três ramos verdes, prova de que o Senhor lhe restituíra suas graças e o acolhera em seu seio


FIM

OS DOZE APÓSTOLOS - CONTOS DE GRIMM

   Há cerca de trezentos anos antes do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivia  uma mulher que tinha doze filhos. Chegara a tamanha pobreza e necessidade que já não sabia  como sustentá-los. Diariamente pedia a Deus que seus filhos encontrassem o Cristo prometido na terra. Como sua miséria aumentasse de dia para dia, mandou que os meninos, um após outro, saíssem pelo mundo para ganhar seu próprio sustento. O mais velho chamava-se Pedro. Quando saiu de casa e já havia andado durante um dia inteiro, chegou a uma floresta muito grande. Procurou um caminho para sair, mas não conseguiu encontrar, e acabou embrenhando-se mais no fundo da mata. Sentia tanta fome que mal podia estar de pé! Afinal ficou tão fraco que foi obrigado a deitar-se, convencido de que iria morrer. De repente apareceu a seu lado um menino com uma auréola brilhante e que era tão lindo e amável quanto um anjo. Bateu as mãozinhas para chamar atenção de Pedro e este, então, levantou os olhos. Disse-lhe o menino:
    - Por que estás aí tão triste?
     - Aí! - suspirou Pedro. - Ando pelo mundo para ganhar o meu pão e para ver se ainda encontro o Cristo prometido; é este o meu maior desejo.
     E a criança o convidou:
   - Vem comigo o teu desejo será satisfeito.
   Tomou a mão de Pedro e o levou, por entre escarpadas rochas, até uma caverna grande. Ali dentro tudo era de ouro, prata e cristal e ao centro havia doze berços, um ao lado do outro. Aí o pequeno anjo disse:
     - Deita-te no primeiro berço e dorme um pouco, que eu vou embalar-te.
     Pedro assim fez e o anjinho o ninou e embalou até que ele adormecesse. E, enquanto dormia, veio seu segundo irmão, também guiado pelo seu anjo da guarda, e que foi, como Pedro, embalado até adormecer. E assim, vieram todos os outros até que os doze ficaram dormindo nos berços de ouro. E dormiram trezentos anos até a noite em que nasceu o Menino Jesus. Aí, então, acordaram e viveram com Ele na terra. Foram chamados os doze apóstolos.FIM

segunda-feira, 18 de julho de 2016

SÃO JOSÉ NO BOSQUE - CONTOS DE GRIMM

    Era uma vez uma mulher que tinha três filhas. A mais velha era má e indisciplinada; a segunda, um pouco melhor, embora também tivesse defeitos; a terceira, porém, era uma menina religiosa e cheia de bondade. Mas a mãe preferia a filha mais velha e não suportava  a menor. Por isso muitas vezes mandava a pobre menina a um bosque, na esperança de livrar-se dela, convencida de que um dia se perderia no mato sem saber voltar para casa. Mas o anjo de guarda, que acompanhava todas as crianças boas, não abandonava e sempre a conduzia pelo caminho certo. No entanto uma vez o anjo se fingiu de distraído e a menina não conseguiu sair do bosque. Continuou andando até anoitecer e, vendo ao longe uma luzinha, seguiu direito a ela, apressadamente. Quando lá chegou, encontrou-se ante uma cabana pequenina. Bateu; a porta foi aberta e, ao entrar, viu-se diante de outra porta, à qual bateu também. Um velho de aspecto venerável e barbas brancas veio abrir-lhe. Era o próprio São José, que lhe disse amavelmente:
   - Entra, minha filha; senta-te junto ao fogo e aquece-te. Irei buscar água fresca se estiveres com sede; mas, quanto à comida, aqui no bosque não tenho nada para oferecer-te a não ser algumas raízes, que terás de descascar e cozinhar.
   São José deu-lhe as raízes e a pequena as descascou cuidadosamente; depois tirou o pedacinho de panqueca e o pão que sua mãe lhe havia dado; pôs tudo numa panelinha ao fogo e preparou uma refeição.
     Quando estava pronta, disse-lhe São José:
   - Tenho tanta fome! - Dá-me um pouco de tua comida.
    A menina serviu-lhe de bom grado uma porção  maior que para si mesma. Deus, porém, abençoou a refeição e a pequenina ficou satisfeita. Depois de haverem comido, disse o santo:
    - Agora vamos dormir. Tenho só uma cama, mas tu te deitarás nela e eu ficarei no chão, sobre a palha.
     - Não, - respondeu a menina, - ficarás na cama; para mim a palha é suficientemente macia.
    Mas São José a tomou nos braços e a levou para o leito, onde ela dormiu após ter feito suas orações. Ao acordar-se pela manhã, quis dar bom-dia ao velho, mas não o avistou. Procurou-o por toda parte, sem encontrá-lo, até que, finalmente, atrás de uma porta, descobriu um saco com dinheiro, tão pesado que mal podia carregá-lo; em cima estava escrito que era para a menina que dormira ali aquela noite. Apanhou, pois, o saco e, tomando o caminho de volta, chegou, sem mais novidades, à sua casa. E, como entregasse o dinheiro todo à sua mãe, esta só teve de dar-se por satisfeita.
    No dia seguinte, a segunda irmã quis ir, também, ao bosque. A mãe deu-lhe um pedaço de panqueca e um pão bem maiores do que havia dado à filha menor. As coisas aconteceram do mesmo jeito que com a irmãzinha. À noite chegou à cabana de São José, que lhe deu raízes para uma refeição e, quando estava preparada, lhe disse igualmente:
    - Tenho fome. Dá-me um pouco de tua comida.
  Respondeu-lhe a menina:
   - Pois vai comendo!
   E quando São José lhe ofereceu a cama, dizendo-lhe que dormiria ele sobre a palha, respondeu a pequena:
   - Não, dorme na cama comigo; há lugar para dois.
    Mas São José a tomou nos braços e deitou-a na cama e ele se acomodou sobre a palha. Pela manhã, quando a menina despertou e saiu a procurar São José, encontrou atrás da porta um saquinho de dinheiro que tinha apenas um palmo de largura; em cima estava também escrito que era para a menina que havia passado ali a noite. A garotinha partiu com o saquinho e, ao chegar à sua casa, o entregou à sua mãe; antes, porém, havia tirado duas ou três moedas de dentro.
    Tudo isso deixou curiosa a irmã mais velha e ela também quis ir ao bosque no dia seguinte. A mãe lhe deu panquecas à vontade, pão e, além disso, queijo. À noite a moça encontrou São José na cabana, bem como havia sucedido às outras duas. Preparada a refeição, o santo lhe disse:
    - Tenho fome. Dá-me um pouco de tua comida.
    Respondeu-lhe a jovem:
    - Espera até que eu me farte. Poderás então comer o que tiver sobrado.
   E comeu quase tudo, deixando que São José raspasse o prato.
   Depois o bom velho lhe ofereceu sua cama, propondo-se a dormir no chão; a jovem aceitou sem rodeios, acomodando-se no leito e deixando que o velhinho dormisse nas palhas duras. Ao despertar pela manhã, não viu o  santo em parte alguma, mas não se preocupou com isso e foi logo procurar o saco de dinheiro atrás da porta. pareceu-lhe que havia algo no chão e, não podendo distinguir o que era, abaixou-se e deu com o nariz contra o objeto, o qual ficou preso a ele. Ao levantar-se, notou horrorizada que era um seguindo nariz, que se grudara ao primeiro. Começou a chorar e a gritar. mas de nada lhe adiantou; era obrigada a olhar sempre para aquela enorme saliência em seu rosto. Saiu correndo  e gritou até que encontrou São José e, caindo a seu pés, de joelhos, suplicou tanto que o bom do velho, compadecido, lhe tirou o novo nariz e lhe deu ainda duas moedinhas.
    Ao chegar em casa, sua mãe estava parada na porta e lhe perguntou:
    - Que ganhaste de presente?
   A garota respondeu, mentindo:
    - Um saco grande de dinheiro, mas eu o perdi no caminho.
   - Tu o perdeste? - exclamou a mulher. - Ora, nós o acharemos. E, tomando-lhe  a mão, quis levá-la ao bosque.
    De início a moça chorou e negou-se a acompanhá-la, mas por fim obedeceu. Na estrada, porém, foram atacadas por um grande número de lagartas e serpentes, de que não puderam defender-se. Os bichos acabaram matando, aquela menina má e, quanto à sua mãe, picaram-na nos pés como castigo por não haver educado melhor sua filha. FIM
 

O SAPO ENCANTADO - CONTOS DE GRIMM

   Nos velhos tempos, quando as fadas ainda atendiam a nossos pedidos, vivia um rei cujas filhas eram lindíssimas. A mais jovem, porém, era tão linda, que até o sol, que já tinha visto tantas coisas neste mundo, ficava maravilhado cada vez que lhe iluminava o rosto.
    Nas proximidades do castelo real, estendia-se uma floresta, grande  e sombria, onde, sob  uma velha tília, havia um poço. Nos dias  de muito calor a princesinha saía para o bosque, indo sentar-se à beira desse poço. Se começava a aborrecer-se, ela entretinha-se com uma bola de ouro que jogava ao ar, aparando-a com as mãos. Era esse o seu brinquedo favorito.
     Certa vez, a bola de ouro não voltou a cair nas mãozinhas erguidas da princesa, mas foi ter ao chão, de onde rolou para dentro do poço. Seguindo-a com olhar, a menina viu quando desapareceu nas águas, pois o poço era tão profundo, tão profundo que não se podia medir. Começou então a soluçar, sem poder conformar-se. De repente, enquanto assim chorava, ouviu alguém dizer:
    - Que aconteceu, princesa? O teu choro é capaz de comover até pedras.
   Ela voltou-se para ver de onde vinha aquela voz e avistou um sapo, que metera sua cabeça chata e feia para fora  da água.
    - Ah!, és tu, velho saltador! - exclamou ela. - Estou chorando por causa da minha bola  de ouro que caiu no poço.
    - Acalma-te e não chores mais, - retrucou o sapo. - Posso ajudar-te. Mas que me darás em troca, se eu trouxer o teu brinquedo?
   - Tudo o que desejares, meu  bom sapo, - disse ela. - Meus vestidos, minhas pérolas e pedras preciosas; até a coroa de ouro que estou usando.
     O sapo retrucou:
   - Não quero teus vestidos, tuas pérolas e pedras preciosas, nem a tua coroa de ouro. Mas se prometeres gostar de mim, se permitires que seja teu amiguinho e companheiro; que me sente a teu lado na mesa, coma do teu pratinho de ouro, beba de teu copinho e durma em tua caminha, eu descerei ao fundo do poço e te trarei a bola de ouro!
    - Oh, sim!- exclamou a princesinha. - Prometo tudo o que quiseres, desde que tragas a minha bola.- Mas consigo mesma, pensava: " Conversa fiada deste sapo pretensiosos! Vive dentro da água com os seus semelhantes, coaxa o dia inteiro, e nunca poderá ser companheiro de uma pessoa."
    O sapo, depois de ouvir a promessa, mergulhou na água e foi ao fundo. Passados alguns momentos, apareceu à tona, trazendo na boca a bola de ouro que atirou sobre a relva. A princesa, ao rever seu lindo brinquedo, ficou toda contente, apanhou-o e saiu correndo.
    - Espera, espera! - gritou  animalzinho. - Leva-me contigo, não posso correr assim tão depressa!
    Mas de nada lhe adiantaram os gritos. A princesinha não o atendeu, apressando-se a chegar em casa e, pouco depois, tinha esquecido o pobre sapo, que se viu obrigado a voltar ao poço.
   No dia seguinte, estando a princesinha à mesa, em companhia do rei e dos membros da Corte, comendo em seu pratinho de ouro, eis que - plique-plaque, plique-plaque, - algo veio subindo a escadaria de mármore e, ao chegar ao topo, bateu à porta, dizendo:
    - Princesinha caçula, abre a porta para mim!
    Ela saiu correndo para ver quem era, mas quando abriu a porta, deparou com o sapo lá fora. Logo tornou a fechá-la e, toda amedrontada voltou a sentar-se à mesa. O rei, notando como lhe batia o coração, disse-lhe:
     - Por que está com medo, minha filha? Há por acaso algum gigante  lá fora, que pretende levar-te?
   - Oh, não! - respondeu a menina. - Não é um gigante, mas um sapo nojento.
    - E que deseja o sapo?
    - Ah, querido pai! Ontem , quando eu estava na floresta brincando perto do poço , a minha bola de ouro caiu na água. E, como chorei muito, o sapo foi buscá-la para mim; depois , devido à sua insistência, prometi-lhe que seria meu companheiro, mas nunca imaginei que pudesse sair do poço. Agora está aí fora e quer entrar.
   Nesse momento bateram novamente à porta e ouviu-se uma voz que dizia:
                      Ó princesinha caçula,
                     Abre a porta para mim!
                     Já esqueceste de tudo
                     E das promessas sem fim?
                     Ó princesinha caçula,
                     Abre a porta para mim!
Disse então o rei:
   - Deves cumprir o que prometeste; vai e deixa que ele entre.
   A menina obedeceu e foi abrir a porta. O sapo saltou para dentro, seguindo-lhe os passos até a sua cadeira. Ali plantou-se e gritou:
    - Agora levanta-me do chão.
   Ela hesitou , mas o rei ordenou que assim fizesse. Uma vez na cadeira, o sapo quis ir para a mesa e, depois de estar ali, insistiu:
   - E agora, aproxima de mim o teu pratinho de ouro para podermos comer juntos.
    A princesa obedeceu, mas bem se via como estava contrariada. O animalzinho regalou-se com a comida; ela, porém, mas pode engolir um bocado.
   Finalmente disse o sapo:
   - Comi bastante e sinto-me cansado. Leva-me agora à tua caminha de seda; vamos deitar juntos.
   A menina rompeu em choro. Sentia pavor daquele sapo frio no qual ela nem se atrevia a tocar e que agora pretendia dormir no seu leito de seda, tão limpinho. Mas o rei, zangado, repreendeu-a:
   - Não deves desprezar a quem te prestou serviços quando estavas necessitada.
   Ela então pegou o sapo com dois dedos e levou-o para cima, onde o largou num canto. Mas logo que estava deitada, veio ele se aproximando aos saltos, dizendo-lhe:
   - Estou cansado e quero dormir tão bem como tu; levanta-te, senão contarei a teu pai.
    Aí a princesinha perdeu a paciência. Enfurecida levantou s sapo do chão, e, com toda a força, jogou contra a parede.
    - Agora vais sossegar, sapo imundo!
    Mas quem foi que falou em sapo imundo? Ao cair no assoalho, não era mais um sapo; tinha se transformado num príncipe de olhos belos e amáveis. Contou-lhe, então, que uma feiticeira má o havia encantado e ninguém a não ser ela, a princesinha, o podia libertar e tirar do poço. Disse-lhe ainda que no dia seguinte iriam juntos para o seu reino. Adormeceram e, quando despertaram pela manhã, apareceu uma carruagem com oito cavalos brancos, adornados com plumas brancas de avestruz e correias de ouro. Na parte de trás do carro, de pé, vinha o criado do jovem rei, o fiel Henrique. Este ficara tão triste ao ver seu amo transformado em sapo que tinha mandado passar três aros de ferro em torno de seu coração, para que não se partisse de dor e tristeza.
    A caruagem devia levar o jovem rei de volta a seu reino. O fiel Henrique auxiliou os dois a subirem nela. Depois foi colocar-se no seu posto, cheio de alegria pela libertação de seu amo. Quando já haviam percorrido um trecho do caminho, o príncipe ouviu um estalo, como se alguma coisa se estivesse quebrando. Voltou-se e indagou:- Henrique, por que estala o carro?
               -Não é o carro que estala:
               É apenas meu coração
               Que não podia de dor
               Quando o meu amo e senhor
               Mudado num sapo imundo
               Coaxava, triste e sozinho,
               Daquele poço fundo.
    Ainda mais duas vezes se ouviu o estalo durante a viagem e sempre o príncipe pensava que a carruagem se partia, mas eram apenas os aros que iam saltando do coração do fiel Henrique, por ver seu amo salvo e feliz. FIM

A BOTA DE COURO DE BÚFALO - CONTOS DE GRIMM

   Um soldado que nada teme, também não se importa com coisa alguma. Certa vez, um desses foi dispensado e, como nunca aprendera outro ofício não conseguiu arranjar emprego. Assim saiu a correr mundo, vivendo da esmola de pessoas bondosas. Levava  nos ombros uma capa velha e nos pés um par de botas de couro de búfalo; era o que lhe havia sobrado. Numa ocasião em que estava a vagar pelo campo, sem prestar atenção por onde andava, perdeu-se numa floresta. E viu um homem bem vestido, com um chapéu verde de caçador, sentado num toco de árvore. O soldado cumprimentou-o, sentou-se na relva a seu lado e espichou as pernas.
          - Vejo que usas umas botas finas; tão limpas que chegam a reluzir, - disse para o caçador. - Se tivesses de andar pelo mundo como eu, não duraram muito. Olha para as minhas; são de couro de búfalo e já prestaram muito serviço andando por toda espécie de caminhos.
     Passando algum tempo, levantou-se e disse;
     - Não posso demorar muito, a fome me toca para a frente; mas dize-me uma coisa, amigo "Botalimpa", para onde vais?
        - Eu mesmo não sei,- respondeu o outro, - estou perdido na floresta.
         - É o que me acontece - falou o soldado - e como igual com igual forma um bom par, continuemos juntos à procura do caminho.
    O caçador sorriu e partiram juntos, andando sem parar até anoitecer.----
          - Não conseguimos sair do mato, -disse o soldado. - mas vejo uma luz brilhar lá longe.            
  Acredito que ali conseguiremos algo para comer.
     Chegaram a uma casa de pedra; bateram e uma velha lhes abriu a porta.
    - Procuramos um abrigo para a noite - disse o soldado - e algo para encher o estômago. O meu está vazio que nem saco furado.
       - Aqui não podes ficar, - respondeu a velha,- esta é uma casa de bandidos. Farão bem em afastar-se o mais depressa possível, antes que chegue o bando ; se os encontram aqui, vocês estão perdidos.
         - A coisa não há de ser tão ruim assim, - retrucou o soldado, - faz dois dias que não como e me é indiferente se dão cabo de mim aqui ou se morro de fome no mato. Eu vou entrar!
        O caçador não queria acompanhá-lo, mas o outro puxou-o pela manga do casaco, dizendo-lhe:
   - Vem comigo; não irão matar-nos em seguida.
       A velha ficou com pena deles e sugeriu:
   - Escondam-se atrás do fogão. Se sobrar comida depois que eles estiverem dormindo eu lhes darei algo.
   Mal se haviam escondido, entraram doze bandidos fazendo uma algazarra dos diabos. Sentaram-se à mesa, que já estava posta, e exigiram ruidosamente, a comida. A velha trouxe um assado bem grande e os ladrões comeram à vontade. Quando o cheiro bom dos pratos chegou às narinas do soldado, ele disse ao caçador:
     - Não aguento mais, vou me sentar à mesa e comer com eles.
    - Isto nos custaria a vida, - retrucou o outro, segurando-o pelo braço.
    Mas o soldado pôs-se a tossir bem alto, de propósito. Ao ouvirem aquilo, os bandidos largaram facas e garfos, levantaram-se de um salto e descobriram os dois atrás do fogão.
    - Vejam só! - gritaram. - Estão aí, heim? Que fazem nesse canto? Que pretendem? São espioes? Esperem um pouco que logo vão aprender a dançar num galho de árvore.
     - Calma, calma! - disse o soldado. - Estou com fome. Deem-me algo para comer, depois façam comigo que bem entenderem.
    Os bandidos se entreolharam surpresos e o chefe do bando falou:
    - Vejo que és corajoso. Bem...terás comida à vontade, mais depois vais morrer..
    - Isso veremos! - respondeu o soldado. Sentou-se à mesa e principiou a comer sofregamente. - Irmão Botalimpa, vem comer! - disse ele, de boca cheia, ao caçador. - Hás de estar com tanta fome quanto eu e um assado melhor não encontrarás nem em casa.
    O caçador, porém, não quis comer. Os bandidos ficaram olhando, assombrados, para o soldado e comentaram:
    - Esse sujeito não fez cerimônia!
     Daí a pouco o soldado disse:
    - A comida está boa; falta, agora, um bom traguinho.
    O chefe, que estava de bom humor, permitiu, ainda, isso e ordenou à velha:
    - Traz uma bebida do porão e que seja das melhores.
    O soldado desarrolhou a garrafa e dirigindo-se, com ela, ao caçador, disse:
   - Presta atenção, amigo. Irás assistir a uma coisa espetacular. Brindarei à saúde de todo o bando.
   Ergueu a garrafa, agitou-a sobre as cabeças dos bandidos e gritou:
   - Á saúde de todos vocês, mas ...de boca aberta e mão direita para alto!
   Mal havia pronunciado essas palavras, o bando inteiro ficou imobilizado, como se fossem de pedra; tinham as bocas escancaradas e o braço direito erguido. O caçador disse ao soldado:
    - Vejo que és cheio de truques! Mas agora vem, vamos sair daqui o quanto antes.
    - Pois sem, amigo! Isso seria bater em retirada cedo demais. Vencemos o inimigo e temos de nos ocupar da presa. Estão aí sentados, de boca aberta, e não se poderão mover até que eu permita. Vem, come e bebe.
     A velha teve de trazer mais uma das melhores garrafas de vinho e o soldado não se levantou da mesa antes de ter comido por três dias. Finalmente, quando amanheceu, ele disse:
    - Agora sim, chegou a hora de partirmos; e para não precisarmos andar muito, a velha nos mostrará o caminho mais próximo para a cidade.
   Quando lá chegaram, o soldado foi procurar seus velhos companheiros e lhes contou:
   - Encontrei lá fora, no mato, um ninho de pássaros para a forca. Venham comigo. Vamos apanhá-los:
    Pôs-se à frente do grupo e disse ao caçador:
   - Acompanha-me e verás como esvoaçam quando os pegarmos pelos pés.
    Colocou os seus homens ao redor dos bandidos, apanhou a garrafa, tomou um gole e, agitando-a no ar, gritou:
    - Vivam todos!
    Instantaneamente  recobraram seus movimentos, mas logo foram derrubados ao chão e atados pelas mãos e pés. A seguir, o soldado mandou jogá-los no carro, como se fossem sacos e ordenou:
    - Levem-nos diretamente para a prisão.
    Enquanto isso, o caçador chamou um dos soldados à parte e lhe deu uma incumbência.
    - Irmão Botalimpa, - disse o soldado, - vencemos, felizmente, o inimigo e nos alimentamos muito bem. Agora marcharemos atrás do grupo com toda a calma.
   Quando se aproximaram da cidade, o soldado viu que um número grande de pessoas vinha a seu encontro, dando gritos de alegria e agitando ramos verdes no ar. Viu, também, que toda a guarda real se aproximava deles.
    - Que significa isso? - perguntou admirado.
    - Não sabes - respondeu o caçador- que o rei esteve ausente muito tempo? Está voltando hoje e por isso todos vem a seu encontro.
     - Mas onde está o rei? - indagou o soldado. - Não o vejo .
    - Aqui, - respondeu o caçador. - Eu sou o rei e mandei anunciar minha chegada.
    Abriu o casaco e embaixo apareceram suas vestes reais. O soldado assustou-se; caiu de joelhos e pediu perdão por te-lo tratado, em sua ignorância, como a um igual e, ainda, por lhe ter dado um apelido. O rei, porém, estendeu-lhe a mão e disse:
    - És um bravo soldado e me salvaste a vida. Não passarás necessidade novamente, pois cuidarei de ti. E se algum dia quiseres comer um bom assado, tão bom quanto aquele da casa dos bandidos, vem à cozinha do palácio. Mas, se quiseres fazer um brinde, terás de me consultar primeiro. FIM