sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

João do Rio -O Bebê de Tarlatana Rosa














 Oh! uma história de máscara! quem não tem na sua vida? O carnaval só  é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventuras não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...
   E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divâ, gozando a nossa curiosidade.
  Havia no gabinete o Barão Belfort, Anatólio de Azambuja, de que as mulheres tinham tanta implicância. Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor.  O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autêntico, parecia absorto.
   - É uma aventura alegre? - indagou Maria.
  - Conforme os temperamentos.
  - Suja?
   - Pavorosa ao menos.
  - De dia?
  - Não. Pela madrugada.
 - Mas, homem de Deus, conta! -suplicava Anatólio. - Olhava que está adoecendo a Maria.
  Heitor puxou um largo trago à cigarreta.
   - Não há quem não saia no Carnaval dispostos ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio, é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem de ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranoicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitados, tudo é possível. Não há quem se contente com uma...
   - Nem com um - atalhou Anatólio.
   - Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo à noite, para a porneia da cidade, saio como na Fenícia saíam os navegadores para a procissão da primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.
   - Muito bonito! ciciou Maria da Flor.
   - Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andamos de automóvel a percorrer os bailes, íamos indistintamente beber champanha aos clubes de jogo que anunciava bailes e os maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do recreio: - " Nossa Senhora! - disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua de São Jorge, um cheiro atroz, rolos constantes...
    - Que tem isso? Não vamos juntos?
   Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era uma desolação, com pretas beiçudas e desdentadas esparrimando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lóbregas, e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos em frascos de álcool, que tem as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel de arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tarlatana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem feito, tão acertado que foi preciso observar para verificá-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse  num suspiro: - "Ai que doí!" Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e era sem linha correr assim abandonando-as, atrás de uma frequentadora dos bailes do recreio.Voltamos para os automóveis e fomo cair no clube mais .chique e mais secante da cidade.
    - É o bebê?
   - O bebê ficou. Mas no domingo, em plena avenida, indo eu ao lado do chofer, no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e uma voz rouca dizer: " Para pagar o de ontem". Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda rive tempo de indagar:
  - Onde vais hoje?
  - A toda parte! - respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.
   - Estava perseguindo-te! - comentou Maria de Flor.
  - Talvez fosse um homem...- soprou desconfiado o amável Anatólio.
   - Não interrompam o Heitor! - fez o Barão estendendo a mão.
  Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, sorriu, e continuou:
   - Não o vi mais nessa noite, e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e caí no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assisti,. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a honra uma caceteação , o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.
    Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada de contacto familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval!
   - A quem o dizes! ...- suspiro Maria de Flor..
  - Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo São Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali,. Nada!
   - É quando se fica mais nervoso!
   - Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda a gente, e só mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiante enfumadas dos fogos de bengala, caíam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali, um som perdido de guiso! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços....E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa das máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar no largo do Rocio, e ia caminhando para os lados da Secretaria do Interior, quando vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.
   Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei.
  - Os bons amigos sempre se encontram- disse. O bebê sorriu sem dizer palavra. - Estás esperando alguém? - Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. - Vens comigo? - Onde quiseres! Peguei-lhe nas mãos. estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.
   - Por pouco...
   - Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica:
  - "Aqui, não".Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases de amor não se conversa, Não trocamos frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos volteado o jardim. diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao fundo, o silêncio das Belas artes era desolador e lúgrebe. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os meu olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a  treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela austeridade da noite. - Então, vamos? - indaguei. - Para onde? - Para tua casa. - Ah!não, em casa nos podes...Então por aí. - Entrar, sair, despir-me. Não sou disso! Que queres tu, filha? è impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. - Que tem? - Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. Que máscara? - O nariz. - Ah! sim! E sem mais dizer, puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.
  Mas meu nariz sentia o contato do nariz postiço dela, uma nariz com cheiro de resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! Ela segredou. - Não! não, custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne de chama.
 O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal-estar curioso, um estado de inibição esquisito - Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. - Disfarça sim! - Não! Procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximavam-se de minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meu lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente uma caveira com carne....
   Despreguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos - Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no carnaval e que eu posso gozar. Então aproveito, ouviste? A aproveito. Foste tu que quiseste....
   Sacudia-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da luxúria...Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semitreva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo mundo que a beijara? Não resisti. afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconsciente deitei a correr como um louco para casa, os queixos batendo, ardendo em febre.
   Quando parei à porta de casa para tirar a a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta..Era o nariz do bebê de tarlatana rosa,,,,
   Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatólio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o Barão Belfort ergueu-se, tocou a campanha para que o criado trouxesse refrigerantes, e resumiu:
    - Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.
  E foi sentar-se ao piano.

                                                      ( Dentro do Noite)


álgida;O mesmo que: fria, gelada, frígida, gélida.
Gianaclis

Descrição

Traduzido do inglês-Gianaclis é um bairro em Alexandria, Egito. É nomeado após o empresário grego-egípcio Nestor Gianaclis, que estabeleceu as Vinhas Gianaclis em Alexandria e, junto com os Kyriazi Freres, fundou a indústria egípcia de cigarros.Wikipedia (inglês)

PORNEIA; porneia
/éi/
substantivo feminino
  1. 1.
    depravação de costumes; libertinagem.
  2. 2.
    m.q. PROSTÍBULO.

CICIOU ;Sibilar brandamente, como a aragem nas copas das árvores. Pronunciar palavras em cicio. Falar em voz baixa; segredar.

Significado de Fúfias

Fúfias é o plural de fúfia.

Significado de fúfia

Mulher ridícula e pernóstica.Pessoa engrandecida, mas sem méritos.[Brasil: RS] Baile, festa.
ESCONSOS; esconso1
adjetivo
  1. 1.
    que se apresenta inclinado, enviesado; oblíquo, declivoso.
  2. 2.
    substantivo masculino
    qualidade de esconso.

belbutina
substantivo feminino
  1. TÊXTIL (INDÚSTRIA)
    belbute fino.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Gaoão Alphosus - GALINHA Cega.

Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava dobrando-lhe o bigode ríspido como  a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
   - Frangos BONS E BARATOS!
    Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arames os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.
  - Psiu!
  Foi o cavalo quem ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. UM bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
  Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente o preço. Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador, brusco.
   - Olhe esta franguinha branca. Então não vale?
   - Está gordota....E que bonitos olhos ela tem. Pretotes...Vá lá!
   O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:
 - Frangos BONS E BARATOS!
 Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.
  - Olha, Inácia, o que eu comprei.
   A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas. Permaneceu calada.
   - Olha os olhos. Pretotes...
 É.
- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.
  -É.
  No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as pernas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava diveritidissimo.
   A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas, no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
   A franga não notou grande diferença entre a sua  vida atual e a que levava no seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe parra um galinheiro sobre todas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro se agitava todo, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas. Um fogo de artífício como nunca vira. Aliás, ela nunca tinha visto um fogo de artifício . Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna...
   Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.
   Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão de natal. Possuía o bastante para a sua felicidade; liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha pertuba-la incompreensivamente. Já la vinha ele, bem elegante, com plumas , forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha...Sujeito cacete.
   O galo - có, có, có - có, có, có, - rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida Sem contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo .

                          *******

     - A melhor galinha, Inácia! Boa à bessa!
   - Não  sei por que.
   - Você sempre besta. Pois eu sei...
   - Besta! Besta, hein?
   - Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto de galinha e fica me amolando.
  -Besta é você!
 - Eu sei que sou.

   Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansavam as suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A Branquinha - era o nome que o dono lhe botara - bicava o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago e repetia o golpe, repetia com desespero até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.
   O dono correu atrás da sua Branquinha, agarrou-a, examinou-lhe os olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientadamente. Atirou ainda mais com paciência até que ela se fartasse. Mas não conseguia com o gasto do milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria quilo, meu Deus do céu! Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai...Nem por sombra pensou que era a cegueira, irremediável que principiava.
     Também a galinha, coitada não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras?: Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que á não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra.
   Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu-os sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. era só ela, pobre indefesa galinha dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pôs o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda sem sofrimento,porquanto a admirável clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.
  Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o como bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam. Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! para depois cantar.
   As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.
   - A coitada está cega, Inácia! Cega!
  - É.
  Nos olhos raiados de sangue do carroceiro(ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas as enormes.
   Religiosamente, pela manhâzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, e violentas, faziam doer a palma da mão calosa. E ele sorria. Depois a conduzia ao poço onde ela beba com os pés dentro da água. A sensação direta nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça, mergulhava no líquido, e ela sacudia, assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto  ao poço. Aquela água era como uma benção para ele. Como a água benta, com um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Benção, água benta, ou coisa parecida; uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na caricia dos pingos de água, que el não enxugava e lhe secavam lentamente na pele. Impressão, alias , algo confusa, em requintes na pele. Impressão, alías, algo confusa, sem requinte psicológicos e sem literatura.
   Depois de satisfeita a sede, levava-a para o pequeno cercado de tela, separado do terreiro, que construíra especialmente par ela( as outras galinhas martirizavam muito  a Branquinha). De tardinha dava-lhe outra vez milho e água e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
  Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. O tal crescimento já lhe  atrapalhava os passos, lhe impedia a comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.
                  ********
    Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delicadas lembranças da claridade desaparecida. No terreiro plano, particular, ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame e já se acostumara a abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário. Ainda tinha liberdade -  o pouco de liberdade becessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas. e não sentir mais o galo perturbá-la com o, seu có-có-có malicioso. O ingrato.
   De repente os acontecimentos se precipitaram.

        ******

- Entra!
 - Centra!
  A menina ria a maldade atávica no deleite do futebol originalíssimo. A galinha se abandonava sem protesto na sua treva ao léu dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não a chutava com tanta força como a uma bola, mas gozavam a brincadeira..
   O carroceiro nem quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola. O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta.
                                      ******

Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta. Rubro de raiva impotente. Foi quasse que correndo para casa.
  - Onde está a galinha, Inácia?
   - Vai ver.
  Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue...
   Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.
  - Não fui eu, não! Com certeza um gambá!
   - Você não viu?
  - Não acordei! Não pude acordar!
   Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando:
   - Me acudam!

Resultado de imagem para Imagens de galinhas
                       

                                ******

   Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá. Todo gambá é pau-dágua. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. GOSTOSAMENTE.
   De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas vinte horas o sono chegou e, cansado pela insônia na prisão, ele não lhe resistiu. Mas acordou justamente na hora necessária. À porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.
   Foi-se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhares rápidos o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes e começou a rir:
   - Kiss! Kiss! Kiss!
  ( Se o gambá fosse inglês, com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era . No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas, por exemplo. Bêbedo)
    O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece o surto de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas o homem apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizando.
   - Vai embora, seu tratante!
   O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. O bichinho se sentia imensamente feliz e começou a cantarolar imbecilmente como qualquer criatura humana:
   - A lua como um balão balança!
  - A lua como um balão balança!
   A lua como um bal....
   E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.
   FIM

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

-Graciliano Ramos- Relógio do Hospital -Graciliano Ramos

 Resultado de imagem para imagens de relogio O médico, paciente como se falasse a uma criança, engana-me asseverando que permanecerei aqui duas semanas. Recebo a notícia com indiferença. Tenho a certeza de que viverei pouco, mas o medo da morte, que  me enchia de pavor, já não existe.  Olho o corpo magro estirado no colchão duro e parece-me que os ossos agudos, os músculos frouxos e reduzidos, não me pertencem .
    Nenhum pudor. Alguém me estendeu uma coberta sobre a nudez. Como é grande o calor, descobri-me, embora estivessem muitas pessoas na sala. E não me envergonhei quando a enfermeira me ensaboou e raspou os pelos do ventre.
  Ao deitar-me na padiola, deixei os chinelos junto da cama; ao voltar da sala de operações, não os vi.
   O médico se dirige em linguagem técnica a uma mulher nova, e ela me examina friamente, como se eu fosse um pouco de substância inerte, diz que os meus sofrimentos vão ser grandes.
  Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, ferros tinindo, máscaras curvadas sobre a mesa, e cheiro dos desinfetantes, as minhas pernas imobilizando-se, mãos enluvadas movendo-se em gestos rápidos, um traço na pele escura de iodo, nuvens de algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda. Uma reta na superfície. Considerava-me  quase defunto, mas no começo da operação esta ideia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras geométricas no quadro negro.
   Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado..
   Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara que surgira pouco antes da enfermaria dos indigentes. Eu ia na padiola, os serventes tinham parado em frente a uma porta aberta- a grade alvacenta parecera, feita de tiras de esparadrapo, e, por detrás da grade, manchas amarelas, um nariz purulento, o buraco negro duma boca, buracos negros de órbitas vazias. Esse tabuleiro de xadrez não me deixava, era mais horrível que as visões ferozes do longo delírio.

Resultado de imagem para imagens de relogio


   O trabalho dos médicos iria prolongar-se, cacete, meses e meses, ou findaria vinte e quatro horas depois no necrotério? Cortado em pedaços, uma salmoura esbranquiçada cheirando a formol o atestado de óbito redigido à pressa, um cirurgião de mangas arregaçadas, lavando as mãos, extraordinariamente distante de mim.
  Agora espero os sofrimentos anunciados. Um gemido fanhoso de relógio fere-me os ouvidos e fica vibrando. Insensível, imóvel, olho as pernas compridas A dobra que entre ela se forma na coberta. Outras pancadas vagarosas tremem abafando os cochichos que fervilham na sala. Parecem-me virem juntas à primeira: a meia hora decorrida  perdeu-se completamente.
     Inércia, um vácuo enorme, o prognostico da mulher nova ameaçando-me. Sono fadiga, desejo de ficar só. Alguém se debruça na cama, encosta a orelha ao meu coração. Fura-me  o braço, uma agulha procura lentamente a veia.
     Escuridão, silêncio. Depois um instrumento de música a tocar, a sombra adelgaçando-se, telhados, árvores e igrejas esboçando-se a distância. Tenho a sensação de estar descendo e subindo, balançando-me como um brinquedo na extremidade dum cordel.
    A dormência prolongada pouco a pouco se extingue. Os dedos dos pés mexem-se, em seguida os pés, as pernas - e enrosco-me como um verme. Uma angústia me assalta, a convicção de que me aleijaram. Esta ideia é tão viva que, apesar de terem voltado os movimentos, afasto a coberta, apalpo-me para certificar-me de que não me amputaram as pernas. Estão aqui, mas ainda meio entorpecidas, e é como se não fossem minhas.
     As idas e vindas, as viagens para cima a para baixo, cansam-me demais, penso que uma delas será a última, que o cordel vai quebrar-se a deixar-me eternamente parado.
   Noite. A treva chega de repente, entra pelas janelas, vence a luz da lâmpada. uma friagem doce. A chuva açoita as vidraças. Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos espaçados - rolar de automóveis, um canto de bêbedo, lamentações dos outros doentes - avultam as pancadas fanhosas do relógio. Um som arrastado, encatarrado e descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca  houve  relógio que tocasse de semelhante maneira. Deve ser um  mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar os pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a máquina decrépita vai descansar.
   Bem. Daqui a meia hora não ouvirei as notas roucas e trêmulas. Vultos amarelos curvam-se sobre a cama, que sobe e desce, levantam-me, enrolam-me em pastas de algodão e ataduras, esforçam-se por salvar os restos deste outro maquinismo arruinado. Um líquido acre molha-me os beiços. Serventes e enfermeiros deslocam-se, com movimentos vagarosos de sonâmbulos, a luz esmorece, dá aos rostos parados feições cadaverosas.
   Impossível saber se é esta a primeira noite que passo aqui. Desejo pedir os meus chinelos. mas tenho preguiça, a voz saí-me flácida, incompreensível. E esqueci o nome dos chinelos. Apesar de saber que eles são inúteis, desgosta-me não conseguir pedi-los. Se estivessem ao pé da cama, sentir-me-ia próxima da realidade, as pessoas que me cercam não seriam espectrais e absurdas. Enfadando-me, quero que me deixem. Acontecendo isto, porém, julgar-me-ei abandonado, rebolar-me-ei com raiva, pensarei na enfermaria dos indigentes, no homem que tinha uma grade de esparadrapos na cara?
    Silêncio. Porque será que esta gente não fala e o relógio se aquietou? Uma ideia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem dos esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir os olhos diante da amaldiçoada porta? Um abalo na padiola, uma  parada repentina - e a figura sinistra começara a aperrear-me, a boca desgovernada, as órbitas vazias negrejando por detrás da grade alvacenta. Por que se detiveram junto àquela porta? Dois passos aquém, dois passos além - e eu estaria livre da obsessão.
    O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível. Parece que ele tenciona encher a noite com a sua gemedeira irritante.
  Dr. Nogueira, principiando a falar, não acaba; é um palavreado infinito que nos enjoa, deixa-nos embrutecido, mudos, mastigando um sorriso besta de cumplicidade.
    Felizmente o homem dos esparadrapos vive. Repito que ele vive e caio num marasmo agoniado. No silêncio as notas compridas enrolam-se como cobras, estiram-se pela casa, invadem a sala, arrastam-se devagar nos cantos, sobem à cama onde me agito apavorado. Que fim levaram as pessoas que me cercava? Agora só há bichos, formas rastejantes que se torcem com lentidão de lesmas. Arrepio-me o som penetrante no sangue, percorre-me as veias, gelado.
   As vidraças, a chuva os ruídos, sumiram-se. Há uma noite profunda, um céu pesado que chega até a beira da minha cama. As coisas pegajosas engrossam, vão enlaçar-se nos seus anéis. tento esquivar-me ao abraço medonho, revolvo-me no colchão, grito.
   Aparecem de novo as figuras atentas, lívidas. A beberagem acre umedece-me a língua seca, dura como língua de papagaio.
   - Obrigado.
   Puxo a coberta para o queixo, o frio diminui. Há um frio enorme, precipícios sem fundo - seguro-me a ramos frágeis para não cair neles.
  Ouço trovões imensos. Volto a ser criança, pergunto a mim mesmo que seres misteriosos fazem semelhante barulho. Meus irmãos pequenos iam deitar-se com medo, minhas tias ajoelhavam-se diante do oratório, a chama das velas tremia, as contas dos rosários chocavam-se como bilros de almofadas, um sussurro de preces enchia o quarto dos santos.
   Por que estão chiando aqui perto de mim? Estarão rezando? Não houve trovões. Nuvens brandas e altas correm por cima das árvores, das igrejas, do telhado da penitenciária. Olho os tipos que me rodeiam. Afastam-se, falam em voz baixa, presumo que me espiam desconfiados. Acham-me com certeza muito mal, pensam que vou morrer, procuram decifrar as palavras incoerentes que larguei no delírio. envergonho-me. terei dito segredos e inconveniências?
  Desejo atraí-los, conversar, mostrar que sou um indivíduo razoável e as maluqices do sonho findaram. Mas a linguagem foge. Procuro chamá-los com um gesto, a mão tomba-me sobre sobre o peito, uma fraqueza paralisa-me.
   Certamente estou ha dias entre a vida e a morte. Agora a febre diminuiu e os monstros que me perseguiam se desmancharam. As dores do ferimento são intoleráveis. Inclino-me para um lado e para outro, certifico-me de que não me trouxeram os chinelos, imagino que vou aguentar uma eternidade de martírios.
   Gritos agudos de crianças rasgam-me os ouvidos como pregos.
   Querem ver que a minha operação foi ontem e ficarei aqui amarrado semanas ou meses?
   Uma balada corta-me o pensamento. Estremeço: parece que ela me chegou aos nervos através da ferida aberta, entrou-me a na carne com lâmina de navalha.
   Aqueles soluços desenganados devem vir da enfermaria dos indigentes, talvez o homem dos esparadrapos esteja chorando. Com esforço consigo encostar as palmas das mãos nas orelhas. Desejo ficar assim, mas a posição é incomoda, os braços fatigam-se, o choro escorrega-me entre os dedos. Se não fosse isto, distrair-me-ia vendo as árvores, o céu, os telhados, falaria aos enfermeiros e aos serventes.Resultado de imagem para imagens de relogio
   Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança, recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose, a pernas trotas como paus de cangalhas. talvez estejam consertando uma daquelas pernas.
    Os gritos baixam, transforma-se num estertor.
   - Por que bolem com aquela criança?
   A enfermeira avizinha-se, espera que eu repita a pergunta. Aborreço-me por não me haver feito compreender, viro-me com dificuldade e minutos depois ouço os passos da mulher, que se afasta nas pontas dos pés.
   Fará somente vinte e quatro horas que me deixaram aqui derreado? Somo: vinte e quatro, quarenta  e oito, setenta e duas. Talvez uns três dias. Isto, setenta e duas horas. Os chinelos despareceram: ficarei  provavelmente um mês, dois meses. Multiplico: sessenta dias, mil quatrocentos e quarenta horas. Fatigo-me, e a conta se complica, ora apresenta um resultado, ora outro. Convenço-me afinal de que são mil quatrocentos e quarenta horas. É bom que a ferida se agrave e me mate logo. Dois meses de tortura, um tubo de borracha atravessando-me as entranhas, visões pavorosas, os queixumes dos indigentes que se acham junto ao homem dos esparadrapos. Duas mil, oitocentas e oitenta vezes o relógio caduco de peças gastas rosnará, ameaçando-me com acontecimentos funestos. Sessenta dias de imobilidade, o pensamento a emaranhar-se em cipoais obscuros.
   Os gritos da criança elevam-se , o calor aumenta, as árvores e os telhados aproximam-se.
  Lá estão novamente as horas a pingar do corredor como duma torneira, gotas pesadas escorrendo lentas.
   Gargalhadas na rua, barulho de automóvel, pregão dum vendedor ambulante. Talvez o automóvel seja do médico que me vem fazer o curativo. Não é, passou com um ronco de buzina. Agora o que há são rufos de tambor, vozes  de comando.
  O berro do vendedor ambulante caiu na sala de supetão e ficou rolando, misturando ao choro dos indigentes e ao rumor de ferros na autoclave.
   - Porcaria, tudo uma porcaria.
   Zango-me. Não me tratam, deixam-me acabar à míngua, apodrecer como um corpo morto. Um silêncio demorado. Penso na criança e no homem que se esconde por detrás da máscara de esparadrapos.
   - Como vai o menino?
  A enfermeira responde-me que vai bem, mas certamente procura iludir-me. Há um cadáver miúdo perto daqui, vão despedaçá-lo, na mesa do necrotério, os servente levarão a roupa suja para lavanderia. Um colchão pequeno dobrado na cama estreita.
  As vozes de comando, os rufos de tambor, o pregão do vendedor ambulante, o rumor dos ferros na autoclave, fazem-me falta. Convenço-me de que o silêncio é de mau agouro. Quando ele se quebrar, uma infelicidade surgirá  de repente, então poderei livrar-me dela, O suor corre-me na cara. O primeiro som que vier anunciará desgraça, esta ideia desarrazoada não me larga. Reprimo um acesso de tosse, acredito que ele é indício de hemoptises abundantes.
   Começo a perceber um toque-toque surdo, tropel de cavalo cansado. Naturalmente é o sangue batendo-me nos ouvidos. Um coração quase inútil finda tarefa maçadora.
   O cadáver pequeno vai ser transformado em peças anatômicas.
   Toque-toque. Não é o sangue, é qualquer coisa que vem de fora, provavelmente do corredor. Duas pancada próximas, uma distanciada, andadura irregular de bicho que salta em três pés. Ainda há pouco estava tudo calmo. De repente o relógio velho começou a mexer-se e a viver. Cerro os olhos, digo a mim mesmo que me fatigo à toa, bocejo, tento lembrar-me de fatos que julgo importantes e logo se torna mesquinhos.Afinal não veio a desgraça. Vou restabelecer-me em pouco dias. Vou restabelecer-me, passear nas ruas, entrar nos cafés. Se não tivessem levado os chinelos, convencer-me-ia de que não estou muito doente.
   Procuro dormir, esquecer tudo, mas o relógio continua a martelar-me a cabeça dolorida. Espero em vão o fonfonar dum automóvel, a cantiga dum bêbedo, as vozes de comando, o rumor dos ferros na autoclave. Tenho a impressão de que a pêndula caduca oscila dentro de mim, ronceira e e desaprumada.
   Os infelizes calaram-se, todos os sofrimentos esmoreceram, fundiram-se naquela voz áspera e metálica.
   Os meus braços descarnados movem-se como braços de velho. Passo os dedos no rosto, sinto a dureza dos pelos, as faces cavadas, rugas. Se tivesse um espelho, veria esta fraqueza e esta devastação.
   Velhinho, trocando as pernas bambas nas calçadas. Olho as pernas finas como cambitos. A vista escureceu. Velhinho, arrimado a um cacete, balbuciando, tropeçando. Toque-toque - o cajado a bater nos paralelepípedos.
   O pensamento escorrega dum objeto para outro. A barba crescida deve ter ficado branca, o pescoço engelhou como um pescoço de galinha.
   A mulher desapertava a roupa, despia-se cantando, e eu me conservava distante, encabulado, tentando desamarrar o cordão do sapato, que tinha dado um nó. Não podia descalçar-me e olhava estupidamente um despertador que trabalha muito depressa. Os ponteiros avançavam, e o laço do sapato não queria desatar-se.
   O professor explicava a lição comprida numa via dura de matraca, falava como se mastigasse pedras.
  O político influente entregava-me a carta de recomendação. Eu gaguejava um agradecimento difícil, atrapalhava-me por causa da dactilógrafa bonita, descia a escada perseguindo pelos óculos dum secretário e pelo tique-taque da máquina de escrever.
  Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas.
   Vou diluir-me, deixar as cobertas, subir na poeira luminosa dos réstias, perdr-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancada medonhas do relógio velho.

Fim








estertor
/ô/
substantivo masculino
MEDICINA
  1. 1.
    respiração ruidosa dos moribundos; agonia.
  2. 2.
    inspiração ruidosa como a que é percebida no coma ou no sono profundo.


DERREADO
adjetivo Que não se pode endireitar por fadiga, efeito de pancadas ou peso demasiado. Pop Descadeirado. Etimologia (origem da palavra derreado). Particípio de derrear.




Renda de bilros

Descrição

A renda de bilros é produzida pelo cruzamento sucessivo ou entremeado de fios têxteis, executado sobre o pique e com a ajuda de alfinetes e dos bilros. O pique é um cartão, normalmente pintado da cor açafrão para facilitar a visão por parte da rendilheira, onde se decalcou um desenho, feito por especialistas. Wikipédia

Significado de fonfonar. O que é fonfonar: 1. Buzinar2. Resmungar3. Fazer barulhos estranhos com a boca.

Significado de engelhou. O que é engelhou: Do verbo engelhar.1. Encarquilhar, enrugar.2. Fazer gelha (prega ou dobra casual num tecido).3. Murchar ou ..

quinta-feira, 18 de julho de 2019

-Graciliano Ramos MEU SÓSIA ---Graciliano Ramos

  Aquilo já não podia ser uma simples coincidência, e o fato, a força de se repetir, acabou por me impressionar. Era a quarta ou quinta vez que eu pedia uma obra para ler e, decorrido algum tempo, o funcionário vinha me avisar que a mesma já estava em mãos de outro consultante. Ora, os assuntos que me preocupavam então e, por longos meses me fizeram um assíduo frequentador da Biblioteca Nacional, são todos de interesse restrito: antigas relações de viagens, velhas crônicas fradescas - tudo relativo à História da America. É que tinha um romance em preparo e nele haveria páginas de evocação ao brutal despertar do Novo mundo, sob o pulso implacável dos Conquistadores.
    Note-se que sempre fui avesso a revelar os meus projetos literários e nem mesmo aos amigos mais íntimos costumo falar no que ando fazendo ou ainda pretendo escrever. Não será isso, talvez, um traço de modéstia, mas porque tenha a superstição de que as obras muito anunciadas dificilmente se realizam, ou quando chegam a ser executadas, nunca correspondem ao que delas se esperava. Haverá também outra razão. Não sei contar muito bem o que ganhará quando for definitivamente passado para o papel . Aliás, Flaubert também sofria desse mal e nada lhe era mais penoso do que resumir, em conversa o que seria o entrecho de qualquer dos seus romances.

Resultado de imagem para imagens de bibliotecas


   Por isso tudo, não é sem muito constrangimento que me reporto ao livro que estava escrevendo e era sem dúvida alguma a minha máxima preocupação de todos os instantes. Pelo menos até um mês atrás, quando fiz atroz descoberta. Mas como não falar nele se foi por ele, justamente, que conheci o meu sósia, o homem que passou a infernar a minha vida, que me impede de escrever, e até roubou as minhas ideias? Por outro lado, que me importa agora falar num livro, que já sei irremediavelmente perdido, ao qual nunca mais, pelo menos eu, pude ajuntar uma só linha, e que se algum dia vier a ser publicado, mesmo trazendo o meu nome não terá sido concluído por mim?
    E é tanta essa a minha certeza que, mesmo sem o sentir, já vou contando tudo isso no passado e, linhas acima, caiu-me naturalmente da pena: "É que eu tinha um romance em preparo". Tinha. Já não tenho mais. O outro que o continue, se quiser. E há de continuar. Pois se de um mês para cá, enquanto eu não posso fazer mais nada, ele se dedica ativamente ao mesmo assunto e dados que eu ainda pretendia colher, ilações a que esperava chegar, já foram conseguidos por ele e enchem os seus cadernos de notas, que deveriam, ser tomadas por mim, se o seu cérebro não se adiantasse ao meu, ou melhor, não se apropriasse de todas as minhas ideias.
   Mas ainda se se tratasse apenas de um trabalho histórico e puramente documental, de que as fontes bibliografias teriam de ser as mesmas, principalmente para dois indivíduos que se servem da mesma biblioteca....Contudo , ainda assim, haveria a espantosa coincidência na seriação com que vinham sendo feitas as pesquisas: todos os livros lidos numa mesma ordem e quase que ao mesmo tempo. Mas se fosse só isso...E o que trabalho  propriamente de criação individual, a fabulação artística, a trama do romance? Ainda aí, tudo ele me havia roubado: os personagens que entrariam em ação, o desenrolar dos acontecimentos, os lances mais emocionais.
   Mas não vamos precipitar as coisas. Tenho tanto o que contar...
   Como disse, a primeira suspeita que tive do meu sósia, ou melhor, de alguém que se entregava à mesma natureza de estudos que eu, foi quando notei que os livros solicitados por mim, na sala da biblioteca, já estavam em mãos de outra pessoa, que pelos mesmos se interessava.

Resultado de imagem para imagens de bibliotecas

            Se da primeira ou da segunda vez essa coincidência não me deu o que pensar, da quarta ou quinta cheguei a supor certa má vontade do servente que habitualmente me atendia. Este porém, manteve-se no que me informara e, ante o meu ar de dúvida, prontificou-se a mostrar-me a papelada em que o livreiro fora requisitado. Disse-lhe que não precisava, embora não deixasse se achar estranho que a História del Orinoco, do Padre Joseph de Gumilla, já estivesse outro consultante de olhos grudados na mentiralhada de suas páginas. Enfim,,,Mas dois dias depois, cena idêntica se repetiu com relação à obra de Labat:  Nouveau voyage aux iles I'Amerique, depois, com o trabalho de Barrere. Nouveau relation  de  la France Èquinoxiale. Era demais. Contra os meu hábitos, relanceei os olhos pela sala, a ver se me palpitava quem seria o meu competidor de estudos. O funcionário pareceu adivinhar-me o pensamente e veio em meu auxiíio: -  " O senhor quer saber quem é que está lendo esse livro? Hoje eu sei, porque fui eu quem ainda há pouquinho trouxe ele. É um moço que está lá naquele canto, o segundo a contar da janela". E apontou um tipo que ficava de costas para mim e, mesmo assim, eu mal podia divisar, devido a uma das colunas que guarnecem a sala. E o empregado prosseguiu: - "A graça é que ele se parece muito com o senhor e eu cheguei até confundir os dois. Só ontem é que deu pela coisa, porque o senhor esteve também aqui na mesma hora que ele. Isso ainda mais despertou a minha curiosidade, embora essas questões de parecência sejam sempre muito duvidosas. Não sei se é porque nos figuramos diferentes do que os outros nos vêem, mas o fato é que dificilmente aceitamos os sósias que nos dão. Contudo, lembrei-me de que nos últimos tempos. já vários amigos haviam aludido a um rapaz que diziam ser a minha cara e com quem se tinham dado vários quiproquós a meu respeito. Mais uma razão para que eu quisesse conhecer o leitor que li estava , o homem que lia as mesmas coisas que eu.
   Felizmente, o meu desejo pode ser satisfeito logo depois, quando o vi levantar-se, deixando o livro e papéis sobre a mesa. Iria, talvez, fumar no corredor, ou então fazer qualquer consulta ao fichário. Aproveitei o ensejo para dar também algumas tragadas e tive tanta sorte que cheguei a tempo de lhe estender o meu fósforo, pois que o vi apalpar os bolsos, tendo um cigarro ainda por acender entre os lábios.
   Confesso que senti um verdadeiro abalo ao defrontar-me com meu sósia. E parecia-se mesmo comigo? Bem examinado - não, conforme o detido exame que disfarçadamente lhe pude fazer depois, enquanto estivermos ali no avarandado, apenas por alguns minutos, mas bem próximos um do outro. Não, não era o meu retrato. Talvez fosse um pouco mais alto do que eu. Pelo menos, era um pouco mais robusto, o que lhe dava certa elegância de porte. Seus cabelos não seriam tão louros quanto os meus. Teria o rosto mais longo, o nariz mais forte, as sobrancelhas  mais vincadas. Mas só pelo fato de eu andar rebuscando todas essas minúnicas, há de ser ver que a semelhança era muita. Sobretudo no conjunto, acrescido pelo mesmo bigodinho bem aparado sobre o lábio e os óculos de aros grossos e escuros, que ambos usávamos. E talvez que ainda menor fosse a diferença, se ele não estivesse todo de brim claro e eu com um terno de casimira  escura. Aliás, só dei verdadeiramente por isso, quando, já em casa, olhando-me num espelho, cheguei a ter certa surpresa por não estar também de claro. Penso não ser preciso dizer mais para comprovar o quanto me confundi com ele. E no entanto, não creio lhe ter causado a menor impressão. Dir-se-ia até nem ter posto reparo na minha presença. Assim, tão depressa teve o cigarro aceso, limitou-se a dizer-me um "obrigado" entre dentes ( que pena não ter falado um pouco mais alto  para que eu pudesse também comparar as nossa vozes), e foi encostar-se à balaustrada, de tal modo que eu só o via agora de perfil. Mas quem sabe lá? Eu também não contive o meu espanto? Qual! Ele não deve ter dado pela nossa parecença, do contrário a sua curiosidade havia de traí-lo de uma maneira ou de outra. E não foi isso o que aconteceu comigo, que não lhe despreguei mais os olhos de cima,a té que ele, tendo acabado de fumar tornou à sala de leitura.
   Eu é que já não pude mais ler. todas as minhas ideias convergiam para a pessoa do meu sósia. Precisava conhecê-lo, interrogá-lo. E se a nossa semelhança não se detivesse apenas no físico? Aquela referencia pelos mesmos estudos...Dar-se-ia que também tivesse a minha psique, pensasse como eu, sentisse como eu? Se era assim, explicar-se-ia a minha incapacidade intelectual dos últimos dias. Em plana febre de produção, em pleno ímpeto do trabalho, fora como se me tivessem estancado de súbito as fontes da energia criadora. As leituras, mal conduzidas ou feitas com desatenção, não me traziam mais as valiosas contribuições para a documentação histórica. O romance , apenas iniciado, mas que dia a dia  ganhava em substância e avultava aos meus olhos, perdia-se agora em conjeturas nevoentas e lances fugidios. Tudo desarticulado. Tudo tornado a um estado caótico, que fazia o meu desespero. Tinha até a impressão de que o meu cérebro já não podia mais pensar, não conseguia coordenar ideias. Ora, se conseguia, não as retinha por tempo duradouro. E tudo aquilo coincidindo com o aparecimento daquela criatura enigmática, que tanto se parecia comigo e compulsava os mesmos livros que eu.     Seria que também pensasse por mim, que me estivesse roubando as ideias? Mais forte do que eu ele era. Mais vigoroso. Mais desenvolto. Se fossemos gêmeos, eu seria o seu irmão franzino, o mais enfezado, talvez o doente. (Na verdade a minha saúde nunca fora das melhores). Nada mais natural, portanto, que ele tivesse também a supremacia da inteligência.
  E de onde surgira aquele tipo? Voltava-me eu a perguntar. Do Rio é que não era. Se vivesse aqui, é evidente que eu deveria conhecê-lo. Em abono disso, datavam de pouco os tais equívocos a que já me referi, quando amigos meus o tomavam por mim. E vieram-me pensamentos loucos. Se ele cometesse um crime sem flagrante, mas do qual surgissem testemunhas ou indícios da sua responsabilidade, poderia cair sobre mim a inculpação que lhe coubesse.
     Esse receio mais se enraizou no meu espírito dias depois, apoiado num episódio de que falarei daqui a apouco. Quero antes dizer da ansiedade em que vivi até que o pude avistar pela segunda vez. Isso só ocorreu  quase uma semana depois do nosso primeiro encontro, embora nos dias subsequentes eu não fizesse outra coisa senão subir e descer as escadas da biblioteca. Está bem visto que já não me levavam até lá as pesquisas bibliográficas, ainda que uma vez ou outra, a pretexto de permanecer na sala de leitura, me visse obrigado a pedir qualquer livro. A minha maior curiosidade era por conhecer o nome do meu sósia. Assim que o conseguisse, teria uma pista segura para partir em outras indagações. E lembrei-me dos boletins em que os consultantes da biblioteca são obrigados a exarar o nome e residência. Desde que ele estivesse presente, não me seria difícil conseguir de qualquer contínuo que me obtivesse esses dados, pela identificação do número lançado sobre sua papeleta como o da carteira em que estivesse sentado. Mas era preciso que ele aparecesse e, durante seis dias, o aguardei em vão. A menos que ele não tivesse mudado de horário. Entre onze e quatro, preso à repartição, não me era possível frequentar a biblioteca. Ou seria que também com ele como comigo, se tivesse dado uma regeciemento da sede de leituras?
   Foi nesse entretempo que quase tive a certeza de que o seu nome também era Paulo. e de que modo! Através de uma cena que já não me deixava dúvidas sobre os riscos a que me expunha, tendo um sósia com aquele. Ele foi à casa de uma rapariga que eu frequentava uma vez ou outra, e ela o confundiu comigo. Disso tive a prova quando, sem lá havia uns oito dias, lá voltei uma noite, ela estranhou a minha assiduidade, uma vez que ainda na véspera fora visitá-la. Nada adiantou que eu protestasse. Nem protestei até o fim. Era tal a segurança com que lhe ouvi: - "Ora, seu Paulo, então você não esteve aqui ontem?" E concluiu com uma observação que não me deixou de magoar profundamente: "Por sinal que eu nunca te vi tão bem disposto, tão alegre. Você devia ter bebido um pedaço". ( Eu não bebo nada, por causa do meu fígado).
   E logo na bebedeira!
   Cravou-se-me de novo a espinha no cérebro. E se ele tivesse morto aquela mulher, que morava numa pensão e cujas companheiras certamente teriam visto quando ambos foram para o quarto?Eu lá sabia quem era ele, que sentimentos se escondiam por detrás daquela máscara que tanto se parecia com a minha? Pois se irmãos, sangue do mesmo sangue, educados da mesma maneira, saem às vezes tão diferentes...E voltei a matutar sobre a possibilidade de algum parentesco entre nós. Os primos que tinha, conhecia todos. Aliás, não se pareciam comigo. Meu pai, que viajara tanto, teria deixado algum filho natural? Não creio. Todos lhe reconheciam uma grande austeridade, difícil de comportar situações assim.
   Mas, então, o seu nome era também Paulo. Sim, porque do contrário ele teria dado pela confusão, uma vez que a rapariga, supondo tratar comigo, devia tê-lo chamado assim. Ou seria que ele se aproveitasse da nossa parecença e se fizesse passar por mim? Nesse caso ele já me conhecia, E até aí nossos gostos combinavam. Atraíamos a mesma mulher.
   Quando soube desse episódio tratei de botar abaixo o bigodinho. Pelo menos ficávamos com os rostos bem diferentes e seriam impossíveis as tais confusões que tanto me apavoravam. Ah, se eu também pudesse tirar os óculos! Infelizmente,não era por luxo que os usava. Nada consegui, porém, com a minha suposta transformação. Quando o vi pela segunda vez, ele estava igualmente de cara raspada e acho que, assim, ainda ficou mais parecido comigo. Cruzei-o na escada da biblioteca. ele descendo e eu subindo, às  cinco da tarde, e quase caí para trás. Desta vez, olhou bem para mim e julguei vislumbrar-lhe nos lábios um certo riso escarninho. O meu primeiro impulso foi segui-lo, mas confesso que não tive coragem. Além do ridículo, mais, do inverossímel que havia naquela situação, capaz até de despertar a curiosidade alheia, senti uma espécie de parada súbita de todas as minhas energias, como alguém que vi ter um desfalecimento. O meu crânio dir-se-ia oco. Faltavam-me as pernas.Tanto assim que, à entrada do edifício, enquanto o via atravessar apressadamente a avenida, cheguei a procurar apoio numa parede e aí fiquei por alguns instantes, aguardando as forças me voltassem.
  Desse dia em diante, dificilmente consegui calma para olhar-me num espelho. passei até a evitá-los. e cada vez me achava mais parecido com a  figura que eu vira e quando tinha diante de mim a própria imagem, ia a ponto de me perguntar: - "Serei eu mesmo?" Nada mais que  nos distinguisse, depois que o observara de chapéu( um feltro cinza como o meu) e com um terno claro que talvez proviesse da mesma peça em que fora cortado o que eu vestia. Nem mais aquelas pequenas diferenças fisionômicas, estabelecidas a custo quando do nosso primeiro encontro.Agora, até me parecera lobrigar nele a pequena cicatriz que tanho no lábio superior, lembrança de uma queda em pequeno e que se escondia sob o bigode. há ou não há razões para já ter dúvidas quando me vejo face a face com um espelho?
   Foi por isso que passei a me mostrar menos na rua. Temia os amigos e conhecidos, no receio de que tivessem dado novas confusões entre mim e o meu sósia. Até  então, nada tinha ido além de simples enganos, sem nenhuma importância, mas quem me garantia que, a seguir,  eu já não pudesse ter sido acusado de faltas graves e até delituosas? Assim, agora a minha vida era o mais possível de casa para a repartição e da repartição para casa.
   Apenas não dominava a tentação de me aproximar da biblioteca e, por vezes, subir à sala de leitura. Não preciso dizer que um único fito me levava ali: observar outra vez o meu sósia, ver se lhe conseguia o nome todo. Nunca mais pensei no meu  romance, ou, quando  pensava, era com dor e revolta, por constatar a minha absoluta impossibilidade de continuá-lo. E ainda seria capaz de me entregar a qualquer trabalho intelectual? Era o de que começava a duvidar, depois que o outro se atravessara no meu caminho e parecia dotado de força bastante para exaurir toda a minha vitalidade, toda a minha energia criadora.
   E ficaria nisso? A sua ação maléfica não iria também até a minha saúde física? Se nunca fora muito forte e sofrera sempre de uma coisa ou de outra, depois que o conhecera o meu alquebramento era completo. Todos me achavam mais magro. A minha palidez era de impressionar. E isso em menos de dez dias  É verdade que quase não comia e, à noite, só podia ter por sono uns cochilos rápidos, entremeados de sobressaltos e pesadelos. Mudara tanto, que até deixei de ir à repartição, eu que era dos funcionários mais assíduos. isto porque queria frequentar a biblioteca nas horas que coincidiam com o meu expediente. Não fora às cinco horas que eu me cruzara com ele na escada, já de volta das suas pesquisas? Pois lá iria também das onze às cinco e, se possível, sem arredar pé da sala de leitura.
  Embora o meu estado de espírito não permitisse nenhum esforço cerebral, coonestar a minha presença ali, era preciso que em interessasse por qualquer obra. Assim, passei a requisitar diariamente os dois volumes de Richard Spruce:" Nores of a botanist on the Aamazon and Andes." Como grande parte do meu romance devia girar em torno da célebre tribo das Amazonas, de Orellana, alguém me recomendara muito a leitura dessa obra, onde iria encontrar dados muito interessantes a respeito. Na verdade, pelo  índice, e, depois quando estive a folhear as páginas, pude verificar que manancial não teria descoberto ali para discutir a origem das famosas mulheres guerreiras. Mas era tarde. O meu romance estava bem morto nas poucas laudas escritas e numa amontoado de notas.
   Com o Spruce entre as mãos, mas os olhos cravados na porta de entrada, por três dias fiz ponto na sala de leitura, das onze às cinco. Já ia almoçando, como se fosse  para a repartição, e apenas de vez em quando abandonava a cadeira para fumar um cigarro no corredor. E todo esse sacrifício, essas intermináveis horas de ansiedade em pura perda. Nada do meu sósia aparecer. Contudo, não desistia. Que a repartição fosse aos diabos. Aquilo era uma questão de vida ou morta. E voltei no quarto dia. e voltei no quinto. Sempre pontualmente, como se entrasse na inspetoria. Às onze e pouco já estava agarrado ao Spruce. Como sabia de cor a sua catalogação, era quase maquinalmente que enchia o boletim.
   Foi só no sexto dia que ele apareceu. Saberei contar as cenas que ocorreram daí por diante? Pelo menos, até um certo ponto. estou certo de que isto não vai coincidir com o que se diz por aí. Mas que importa? Recordo-me bem de tudo. Tenho as imagens bem nítidas.
   Eu já estava na sala mais ou menos uma hora quando vi o meu sósia entrar, ir até a mesa dos funcionários que presidia à sala, a fim de lhe entregar a papeleta de pedido, e depois encaminhar-se para a cadeira em que se sentara da outra vez. Assisti a tudo isso num verdadeiro estado de fascinação e só tinha olhos para acompanhar-lhe os menores gestos. Por sorte, o meu lugar era muito bom e, sem ser visto por ele( a menos que não se voltasse para trás) ficava em situação de poder observá-lo quanto quisesse. Preciso dizer que, cada vez mais, era maior a nossa parecença? Chegava a sentir-me mal e, a todo momento assaltava-me o medo de que  alguém, dando pela coisa , começasse a fazer escândalo pela presença, ali, de dois indivíduos perfeitamente iguais. Daí a mina falta de ânimo para tomar a iniciativa que era o único motivo das minhas ida à biblioteca.
    Como pedir a alguém que me fosse verificar, pela papeleta, o nome do consultante que me interessava? isso poderia justamente, despertar a atenção sobre nós dois. A começar pelo próprio servente, que não era o mesmo do turno da tarde, aquele que já dera pela nossa semelhança. Estava eu fazendo essas reflexões, quando vi que o meu sósia tinha gestos de impaciência e discutia com o empregado, quando este, distribuindo livros passara pela sua mesa e lhe dissera qualquer coisa. Sem dúvida, como tantas vezes acontecera comigo, já fora pedido em consulta o livro solicitado por ele. Tive um estremeção de júbilo. Desta vez estava vingado. Mas  dir-se-ía que eu era alvo da atenção ambos. seria o Spruce a obra  que ele queria? Agarrei o volume com mais força e abaixei a cabeça sobre as suas páginas, simulando estar profundamente mergulhado na leitura.
   Não tardou que o contínuo surgisse ao lado: -" O senhor me desculpe. Mas tem aí um moço que precisa muito fazer uma consulta nesse livro que o senhor está lendo. Ele disse que não demora nada. O livro volta agorinha mesmo. Não vê que eu sabia que ele estava aqui, porque sou eu que venho servindo o senhor todos estas dias". "Pois não". Foi isso o que respondi? Nem sei. Estava tão perturbado. Passei-lhe os dois volumes evitando olhar na direção  do meu sósia, que com certeza havia de estar voltado para a minha mesa,a companhando a cena com interesse. O empregado observou-,e: - "Não. Ele só quer o segundo volume. Assim, o senhor pode ficar com este". Só a furto, tão grande era a minha perturbação, pude seguir os gestos do meu sósia, quando o volume lhe foi entregue. Vi que ele o abriu apressadamente, como quem já o manuseara muito e vai direito a uma determinada página. Depois, passou a tomar notas, escrevendo a lápis num grande caderno. tal como eu os usava. Acho que tudo isso não consumiu mais que dez minutos. Quando o contínuo tornou à minha mesa, para restituir-me o volume, transmitia-me os seus agradecimentos.
     Mas já não tinha tempo a perder. Percebi que meu sósia preparava para sair e qualquer coisa me impelia a acompanhar-lhe os passos. Agora, podia até aborda-lo. Não fora ele que provocou aquela aproximação entre nós? Enchi-me de coragem. Iria falar-lhe. Por que é que se interessava pelo Spruce? Seria também  por causa das Amazonas?
    Alcancei-o no patamar da escada:
   - Faz favor...(Eu devia ter uma ar de perfeita humilhação e só Deus sabe o esforço que tive de despender para dirigir-me a Ele). - Faz favor... Era eu que estava lendo o volume do Spruce.
  Olhou-me com grande sobranceria:
   - Ah, sim. Não vê que eu tinha urgência de fazer  uma consulta.
   Mas ele não dava pela nossa parecença? Não via que éramos o retrato um do outro? Notei que se não me apressasse, ele se iria embora.
    Desculpe a minha curiosidade, mas com tenho observado que as nossas leituras coincidem...Já várias vezes pedi livros que o senhor estava consultando. Hoje foi ao contrário. O senhor é que se interessava pelo Spruce que eu estava lendo.
    - Sim, e o que tem isso?
   - E que eu estava escrevendo um romance e fiquei com receio....
    Ele atalhou-me rápido;
 - Mas , meu amigo, as ideias andam no ar e os assuntos, até que sejam aproveitados, não são propriedade de ninguém. o senhor está com medo que os nossos livros saiam iguais? De fato, estou escrevendo um romance apoiado numa grande documentação histórica e que terá como núcleo a tribo das Amazonas. É esse também os seu? Mas isso não tem importância. Pelo contrário, será até curioso. O senhor não vai dizer que seu entrecho seja o meu, que as minhas personagens sejam as suas.
   E em poucas palavras fês-me o resumo da sua fabulação, dando-me o nome dos figurantes que nela entrariam, o desenrolar dos episódios, as paisagens que descrevera,
   Eu devia estar lívido. era o meu romance que lhe saltava da boca, sem tirar nem pôr. Com um sorriso diabólico, o meu sósia arrematou:
   - Mas mesmo que assim fosse, a vitória será daquele que o publicar primeiro: Paulo de Alencastro que sou eu ou...Como é seu nome?
   Foi aí, quando ouvi o meu nome, que lhe pulei ao pescoço e rolamos juntos a escada.
   Agora estou aqui, na Casa de Saúde. Os ferimentos não foram graves, mas tenho ainda por algum tempo, devido à fratura da perna. Parece que um automóvel me pegou de raspão e atirou-me a distância. Dizem que eu me joguei escada abaixo, como um louco, gritando, e vim parar no meio da avenida, onde um automóvel me atropelou. E o outro? Ninguém acredita que eu me tivesse atracado com alguém e rolássemos juntos a escada. Mas como é que se explica a poça de sangue, que ficou no lugar do acidente, e deu que os jornais falaram? Dos meus ferimentos é que não foi. A não ser a fratura interna, eu só tive contusões e escoriações. E o sapato igualzinho ao meu, que entregaram, no local, aio enfermeiro da Assistência? Eu não perdi nenhum. Continuava com os dois pés calçados, podem dizer o que quiserem. Falam numa alucinação. para mim, o outro está gravemente ferido, e está qui. Ainda ontem, quando eu ia para a sala de curativos, num carrinho, ao passar pelo corredor, ouvi alguém que gritava com a minha voz.

                                   FIM      (HISTÓRIA PUXA HISTÓRIA)

( Obrigada pela paciência meu leitores querido)

entrecho
/ê/
substantivo masculino
  1. conjunto, série de eventos que compõem a ação de uma obra ficcional; enredo, urdidura, intriga.

ILAÇÕES
O mesmo que: conclusões, consequências, corolários, deduções, ...



parecência

Significado de parecência

Bras. Semelhança, o mesmo que parecença.

Definição de parecência

Classe - substantivo

Esta palavra tem 11 caracteres, 4 vogais e 7 consoantes.




Significado de Quiproquó

substantivo masculinoEngano, erro que consiste em tomar-se uma coisa por outra.

Definição de Quiproquó

Classe gramatical: substantivo masculino
Separação silábica: qui-pro-quó
Plural: quiproquós
Feminino: quiproquóa 

Exemplos com a palavra quiproquó

Um quiproquó teve então início.Folha de S.Paulo, 10/04/2011
A trama levinha --um quiproquó por causa de uma bolsa de grife - também estava melhor amarrada do que de outras vezes.Folha de S.Paulo, 09/03/2012
quiproquó

OUTRAS INFORMAÇÕES SOBRE A PALAVRA

Possui 9 letras
Possui as vogais: i o u
Possui as consoantes: p q r
A palavra escrita ao contrário: óuqorpiuq


Compulsava

1- Consultar; estudar; examinar; folhear; manusear.



Significado de Fito

substantivo masculinoAquilo que se almeja; alvo, objetivo: seu fito era ser famoso.O que é alvo de desejo; intenção, intento, intuito.Etimologia (origem da palavra fito). Forma regressiva de fitar.adjetivoQue permanece olhando fixamente para; fixo, cravado: olhos fitos no céu.[Zoologia] Cuja olha está fixa, parada, falando dos animais.Etimologia (origem da palavra fito). Do latim fictus.

Sinônimos de Fito

Fito é sinônimo de: alvofimintuitomirapropósitoobjetivointentofixo,imóvelintençãocravado

Definição de Fito


Classe gramatical: adjetivo e substantivo masculino
Flexão do verbo fitar na: 1ª pessoa do singular do presente do indicativo
Separação silábica: fi-to
Plural: fitos