quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

-Anibal M. Machado - A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE - -Anibal M. Machado

 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:



Queridos aos poucos vou transcrevendo. Um abraço, obrigada pela paciência! Muita gratidão por este trabalho.

Preamar -Maré cheia, maré alta.





 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:
    -Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com minha filha!
   Saiu satisfeita. Alguns malandros empunhando cavaquinhos foram-se afasando, meio desajeitados. Um deles dava opinião:
   - Dor eu não topo, franqueza...Sou contra o sofrimento.
    Tentaram pedir silêncio novamente. Um rapariga comentava enxugando as lágrimas:
   - Só se você visse, Bentinha, quanto mais a faca enterrava mais mulher sorria....Morrer assim nunca se viu...
   O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. Opreto jelhado bebia mudamente o último sorriso dela, e inclinava a cabeça de um lado par outro como se estivesse contemplando uma criança.Umascola de Samba repontava no Mangue. Anda se ouviam aclamaãos turma da Mangueira. Quando o canto se foi aproximado, a mulata parecia que ia levantar-se.
   E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe susurava baixinho aos ouvidos. o negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:
   
   "Quem quebrou meu violão de estimação?
    foi ela..."



Queridos aos poucos vou transcrevendo. Um abraço, obrigada pela paciência! Muita gratidão por este trabalho.


Preamar -Maré cheia, maré alta.


 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:
    -Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com minha filha!
   Saiu satisfeita. Alguns malandros empunhando cavaquinhos foram-se afastando, meio desajeitados. Um deles dava opinião:
   - Dor eu não topo, franqueza...Sou contra o sofrimento.
    Tentaram pedir silêncio novamente. Um rapariga comentava enxugando as lágrimas:
   - Só se você visse, Bentinha, quanto mais a faca enterrava mais mulher sorria....Morrer assim nunca se viu...
   O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. O preto ajoelhado bebia mudamente o último sorriso dela, e inclinava a cabeça de um lado par outro como se estivesse contemplando uma criança.Uma escola de Samba repontava no Mangue. Anda se ouviam aclamações à turma da Mangueira. Quando o canto se foi aproximado, a mulata parecia que ia levantar-se.
   E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe sussurava baixinho aos ouvidos. O negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:
   
   "Quem quebrou meu violão de estimação?
    foi ela..."

   Ainda apareceram algumas mães retardatárias rondando de longe a morta.
    A morta não tinha mãe nem parentes; só tinha o próprio assassino apra chorá-la E ele quem lhe acaricia os cabelos, lhe faz uma confidência demorada, a chama pelo nome:
   - Está na hora, Rosinha...Levanta, meu bem...è o " Lira do Amor!! que vem chegando...Rosinha, você não me atende! Agora não é hora de dormir...Depressa, que nós estamos perdendo...O que é que foi? Você caiu?! Como foi?... Eu, não! Rosinha ...
   Ele dobra os joelhos para beijá-la. Os que não queriam se comover foram se retirando. O assassino já não sabe bem onde está. Vai sendo levado agora para um destino que lhe é indiferente. É ainda a voz da mesma canção que lhe fala alguma coisa ao desespero:

    Quem fez de meu coração seu barracão?
    Foi ela..."

   Que ninguém o incomode agora. Larguem os seus braços. Rosinha está dormindo...Não acordem Rosinha. Não é preciso segurá-lo, que ele não está bêbado...O céu baixou, se abriu...Esse temporal assim é bom porque Rosinha não sai. Tenham paciência...Largar Rosinha ali, ele não larga, não...Não! E esses tambores? Ui! que ventania...É a guerra...Ele vai se espalhar...Por que estão malhando em sua cabeça?...Na bigorna do Engenho-de-Dentro é assim...Não se massacra um operário dessa maneira...Estão atrapalhando o seu caminho para Rosinha...Se apitam assim, acordam ela...Ela já não está mais presente...Deslizando no éter...Deixem ele passar...Os outros fiquem no chão...Fiquem por aí...Ele vai tirar Rosinha da cama...Ela está dormindo, Rosinha...Fugir com ela, para o fundo do país...Deitá-la no planalto central! ...Abraçá-la no alto da colina...
                                    (REVISTA DO BRASIL)





Preamar -Maré cheia, maré alta.