quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A Criança no Túmulo - Contos de Andersen

A casa estava coberta de luto, e nos corações reinava o pesar. O filho menor, um menino de quatro anos, a alegria e a esperança dos pais , acabava de expirar.
    È certo que ainda ficavam ao casal duas filhas, das quais a mais velha já ia ser confirmada; e que eram ambas meninas excelentes e bem-educadas. Mas o filho que se perde é sempre o mais querido, e além disso aquele era o menor - e um varão! Era uma provocação cruel.
     As irmãs estavam tristes; e o desgosto dos pais ainda mais as comovia. O pai sofria grande abalo, mas a mãe, essa, achava-se completamente prostrada pela imensa dor.
    Dia e noite tratara a criança doente; cuidara dela, andara com ela nos braços; sentira que aquele filhinho representava uma parte tão grande de si própria! Não podia compreender aquilo - que ele morrera, que ia ser posto num caixão, e repousar no túmulo....Entendia que  Deus não podia tirar-lhe aquele filho, e, quando verificou que assim era na verdade, quando não lhe restou mas nenhuma dúvida, disse, na sua dor cruciante:
     - Oh! É que Deus não sabe disso! É que ele tem aqui na terra servidores desalmados, que fazem as coisas à sua vontade, e não ouvem as preces de uma mãe!
     Na sua grande dor ela se afastou de Deus. Vieram-lhe pensamentos sombrios, os pensamentos da morte, da morte eterna; ideias de que o homem é terra na terra, e que com ele tudo se acaba. E com semelhantes pensamentos, não achava apoio algum , não encontrava nada a que se amparar, e caiu no abismo do desespero.
     Nos momentos  mais tristes, já não podia chorar. Não pensava nas meninas, nas filhas que lhe restavam . As lágrimas do marido caíam-lhe na fronte, mas a desditosa mãe nem olhava para ele. Todos os seus pensamentos estavam com o filho morto; todo o seu ser, toda a sua existência não tinha outro objetivo senão evocar as recordações da criança, ressuscitar cada um dos seus inocente ditos infantis.
      Chegou a hora do enterro. A mãe passara as noites anteriores sem sono; mas naquela madrugada adormeceu por alguns instantes, dominada pelo cansaço. E foi nesse intervalo que levaram o caixão para uma sala mais distante; preparam-no lá longe, para que ela não ouvisse as martelada.
     Quando acordou, quis ver o menino, mas o marido disse-lhe com voz sufocada pelas lágrima:
    - Já fechamos o caixão: era preciso....
     E a mãe, chorando alto, gritou:
     - Se Deus se mostra duro comigo, por que haviam os homens de ser diferentes?
      Sepultaram a criança. A mãe inconsolável ficou sentada ao lado das filhas; olhava para a porta , mas sem a ver. E seus pensamentos, dali em diante, já não tinham ligação alguma com o lar. Entregava-se à dor, que arrojava de um lado para outro, como as ondas do mar jogam com barco sem leme nem piloto. Passou assim  o dia do enterro, e que se seguiram foram do mesmo  modo cheios de mágoa sombria e pesada.
     As filhas e o marido aflito observavam-na, com os olhos úmidos e cheios de tristeza; ela não ouvia as palavras de consolação - se é que alguma consolação lhe podiam oferecer aqueles que também se sentiam tão profundamente abalados.
    Ela já não sabia o que era sono; e contudo seria ele, naquela situação, o seu  melhor amigo; mais que qualquer outra coisa poderia revigorar-lhe o corpo e apaziguar-lhe a alma. Persuadiram-na , ainda assim, a recolher-se, e ela ficava deitada, tranquila, como se dormisse.
      Certa noite o marido observou-lhe a respiração e ficou persuadido de que ela finalmente encontrara repouso e alívio no sono. De mãos juntas rezou e pegou no sono, um sono profundo e benfazejo. Não viu pois quando a mulher se levantou, vestiu-se e saiu de casa de mansinho; queira ir ao lugar para onde iam, noite e dia, os seus pensamentos - o túmulo que encerrava o seu filho. Atravessou o jardim, depois os campos, tomando o trilho que levava ao cemitério, sem ninguém, a visse. Também ela não teria visto ninguém, porque só tinha olhos para o seu único objetivo.
     A noite era esplêndida, cheia de estrelas;  o ar estava ainda suave, pois mal começara o outono.
     Ela entrou no cemitério e parou em frente do pequenino túmulo, que parecia um grande ramalhete de flores perfumadas. Sentou-se e curvou a cabeça sobre a sepultura, como se pudesse, através da espessa camada de terra, ver o filhinho , cujo sorriso lhe aparecia tão nitidamente diante dos olhos e cuja expressão carinhosa , até no leito da dor, era inesquecível. E que olhar expressivo era o da criança, quando ela se inclinara, pegando-lhe na mão tão magrinha, que ele próprio já não podia erguer! E assim como sentava antes junto do leito, ficava agora ali  ao pé do seu túmulo.
     - Desejas descer até onde está teu filho? - perguntou uma voz perto dela.
    Era uma voz que ressoava clara, profunda, e que lhe chegou até o coração. Ela ergueu os olhos e viu a seu lado uma mulher envolta em um manto preto, com o rosto embuçado num capuz. Por baixo deste conseguiu a mãe ver um rosto grave mas que inspirava confiança. Os olhos brilhavam, no esplendor da juventude.
    - Descer até onde está meu filho? - repetiu ela com voz suplicante e desesperada.
    - Atreves-te a seguir-me? - Sou a morte.
    A mãe fez um gesto afirmativo.
     Dir-se-ia que de repente as estrelas, lá nas alturas, tinham adquirido o brilho da lua cheia. Viu a mãe o esplendor das flores variegadas do túmulo, cuja camada de terra ia cedendo brandamente, suavemente, como um pano enfunado pelo vento. E ela ia descendo devagar, enquanto o vulto a cobria com o seu manto negro. Fez-se noite  e a noite da morte. A mãe ia caindo , caindo, penetrando em uma profundidade que a pá do coveiro não alcança. E o cemitério ia formando uma abóbada acima da sua cabeça.
     Caiu a aba do manto e ela se  viu em uma sala enorme, vasta e acolhedora. Reinava ali um crepúsculo, mas apareceu-lhe imediatamente o filhinho, que se aconchegou a ela, sorrindo; e havia naquele sorriso tamanha beleza, como jamais lhe vira no rosto. Ela soltou uma exclamação que não foi ouvida, porque soava ao redor dela, ora muito perto, ora muito longe , e de novo perto, uma música magnifica, que ia subindo em um suave crescendo; nunca lhe tinham chegado aos ouvidos sons assim beatíficos! Vinham de trás da espessa cortina negra como a noite, que separava a sala do grande país da Eternidade.
    -Mamãe querida, minha mamãe!
    Ela ouvia a voz do filho, a voz conhecida e adorada...
E um beijo se seguia a outro beijo, e ela sentia uma felicidade infinita. E a criança apontou para a cortina escura:
   - Não há na terra tanta beleza, mãe! Estás vendo? Vês a todos eles, mãe? Ah! Isto é que é felicidade!
     Mas a mãe nada via no ponto que a criança lhe mostrava - nada , a não ser a noite sombria. É que via com olhos terrenos, não como a criança que Deus já chamara para si. Também só ouvia a melodia da musica, os sons; não entendia a letra, não ouvia as palavras em que deveria crer.
     - Agora posso voar, mãe! Voar com todas as outras crianças alegre, voar para Deus. Eu gostaria tanto de ir... mas se choras assim talvez eu me perca! E eu gostaria tanto de ir! Tu me deixarás voar, não é , mãe? Daqui a pouco te reunirás lá comigo, mãe!
    - Fica, oh! fica aqui! Só um instantinho...Quero somente te olhar mais uma vez.
    E beijava e acariciava a criança.
    Mas ouviu que a chamavam lá de cima; chamavam-na pelo nome, com voz queixosa. Que seria aquilo?
    - Estás ouvindo , mãe? É o pai quem te chama.
     E instantes depois ela ouviu gemidos; parecia choro de crianças. e o menino disse de novo:
    - São as minhas irmãs...Tu não te esqueceste delas, não , mãe?
     E a mãe lembrou-se dos que deixara lá em cima. Sentiu em grande pavor. Olhou para a sala, onde passavam sempre vultos e mais vultos, voando. Pareceu-lhe que  conhecia alguns  dos  que andavam pela sala da Morte, em busca da cortina negra, por detrás da qual desapareciam. Iriam também passar por ali o marido e as filhas? Não isso não: seus chamados e seus suspiros vinham de cima. de repente disse o menino:
    - Mãe,! Mãe! Agora repicando os sinos do Céu...Está nascendo o sol!
     E derramou-se sobre a criança uma luz arrebatadora. A mãe sentia que ia subindo... De repente sentiu frio. Levantou  a cabeça e viu que estava deitada no cemitério, sobre a sepultura do filho.
    Mas naquele sonho Deus iluminara o seu entendimento. A mãe dobrou os joelhos e rezou:
    - Ó Senhor, meu Deus, perdoa-me ter desejado deter uma alma eterna na sua viagem! Perdoa-me ter esquecido dos meus deveres para com os vivos, que me deste nesta Terra!
     E depois dessas palavras seu coração ficou aliviado. Surgiu o sol. Um passarino cantava acima da sua cabeça, e os sinos da igreja repicavam, anunciando o oficio de manhã. Tudo o que a cercava se tornou sagrado para o seu coração. Agora conhecia o seu Deus,  conhecia os seus deveres, e, cheia de saudade , correu para casa. Curvou-se sobre o marido, que ainda dormia. seu beijo ardente e cheio de fervor acordou-o. Dos lábios do casal brotaram palavras vindas do íntimo do coração. Ela era agora forte e meiga, como  a mais meiga das esposas. Vinha dela uma fonte de consolação:
    - Deus faz tudo sempre pelo melhor!
FIM

O TITEREIRO - CONTOS DE ANDERSEN

Havia entre os passageiros um homem de idade; mas seu rosto tinha uma expressão tão jovial que, se  não era fingida, ele devia ser a criatura mais feliz do mundo. E era-o, conforme dizia , e ouvi de sua própria boca.
    Era dinamarquês, diretor de um teatro ambulante. carregava consigo todo o elenco, dentro de um grande caixote, pois se tratava de um teatro de fantoches.
    Seu inato bom humor fora purificado, disse ele,por um candidato à Politécnica; e essa experiência é que o tornara completamente feliz. a principio não compreendi isso, mas ele me contou a história inteira, e é a que aqui vou narrar, conforme ele a expôs.
    " Era na cidadezinha de Slagelse. Eu dava um espetáculo na sala dos Correios e tinha um público brilhante, composto todo de crianças, com exceção de duas matronas. mas de repente entra na sala um vulto vestido de preto : senta-se , ri nos trechos apropriados, bate palmas quando convém - era enfim um espectador fora do comum! Eu estava cheio de curiosidade; informaram-me que era um candidato do Instituto Politécnico de Copenhague, mandando àquele lugar para instruir a população provinciana.
    " Às oito em ponto terminava o espetáculo, pois as crianças tem de se recolher cedo, e é preciso pensar também na comodidade do público. Às nove horas o candidato começou sua preleção e suas experiências; e desde esse dia fui seu ouvinte. Era para mim coisa estranha ver e ouvir todas aquelas novidades, a maioria das quais ficava além do meu alcance. contudo , dessa observação brotou-me uma ideia; se os homens podem alcançar tal sabedoria, sem dúvida hão de ter o poder de se conservar por mais tempo, isto é, o poder de não acabar no momento em que são postos na cova.
    " O que ele fazia era uma série de pequenos milagres; no entanto, tudo era tão natural como a própria água!
    " No tempo de Moises e dos Profetas, aquele candidato da Politécnica teria sido declarado um dos sete sábios do país; na Idade Média, seria queimado. Durante a  noite inteira não pude conciliar o sono, e quando, na noite seguinte, dei outro espetáculo, ao qual o candidato também assistiu, meu bom humor transbordava. Já ouvi falar de um ator que nos papéis de galã só pensava em uma única espectadora: representava para ela somente, esquecia das outras pessoas que enchiam a plateia. Pois a minha "espectadora" era o candidato da Politécnica, o único para quem eu representava.
      " Terminada a sessão todos os títeres foram chamados à cena, e o candidato da Politécnica convidou-me para tomar um copo de vinho no seu quarto. Falou-me então de minhas comédias, e eu falei-lhe da sua ciência; acho que ambos encontramos nisso o mesmo prazer. Mas havia muitos passos, na matéria que ele expunha, que nem sempre era capaz de explicar: por exemplo, o caso de um pedaço de ferro que, ao cair por uma espiral, se torna magnético. Como se opera a transformação? É que o espirito se apodera dele. Sim : mas de onde vem o espírito?
    " Pois a mesma coisa sucede com os seres humanos neste mundo, segundo creio: Deus deixa-os cair através da espiral do tempo e o espírito apodera-se deles; é assim que surge um Napoleão, um Lutero ou outra figura semelhante.
    "- O mundo inteiro é uma cadeia de milagres- disse o candidato.  -Mas nós já nos habituamos a vê-los, de tal modo que os consideramos como coisas cotidianas.
    "E o homem falava e explicava . E era como se ele me abrisse a cabeça! Confessei francamente que se não fosse já um velhote, iria sem demora cursar o Instituto Politécnico, para aprender a examinar direitinho as costuras do mundo, apesar de me considerar, mesmo sem esses conhecimentos, uma das  criaturas mais felizes do mundo.
     " - Uma das criaturas mais felizes! - disse ele, como se saboreasse aquelas palavras . - O senhor é feliz?
     "- Sou sim; sou feliz, e sou sempre bem-vindo em todas as cidade onde chego com a minha companhia. È certo, contudo, que há uma coisa que eu bem desejaria possuir, e que às vezes me pesa sobre o bom humor, como um pesadelo: eu gostaria de ser diretor de um elenco vivo, de uma verdadeira companhia de criaturas humanas.
     " - O senhor desejaria então que seus fantoches ganhassem vida, que se tornassem atores de verdade, e queira ser seu diretor? E acha que seria, se o conseguisse, completamente feliz?
     "Ele tinha lá suas dúvidas, e discutimos o caso, sob todos os aspectos, sem chegar a um acordo. Mas tocamos nossos copos e bebemos o excelente vinho. Deve ter havido, no entanto, algum sortilégio, porque a não ser assim eu teria ficado embriagado, o que não aconteceu. Conservei sempre as ideias claras. A luz do sol inundava a sala e os olhos do candidato também irradiavam luz, a luz do sol. Elas me traziam à lembrança os deuses antigos, com sua eterna juventude, no tempo em que andavam pela terra, visitando-nos, a nós , mortais. E foi o que lhe disse; ele sorriu então, e eu juraria que era mesmo um deus disfarçado, ou pelo menos pertencia à família deles.
    " E era mesmo: meu supremo desejo ia realizar-se. Os fantoches ganhariam vida, e eu seria diretor de uma companhia de criaturas humana. Erguemos um brinde em hora desse fato,esvaziando nossos copos.
    " Ele meteu todos os meus bonecos em uma caixa e amarrou-a à minhas costas. Depois  me fez escorregar por uma espiral. Ainda ouço o ruído da queda. Achei-me deitado no soalho - disso tenho toda a certeza. A companhia inteira saltou da caixa : o espírito apossara-se de todos nós. Os fantoches tornaram-se excelentes artistas, como eles próprios diziam, e era eu o diretor. Tudo estava preparado para o primeiro espetáculo. A companhia inteira queria falar comigo, e o público também, me disputava. A dançarina afirmou que a casa viria abaixo, se eu não me equilibrasse em um pé só: era ela a figura mais importante  do elenco, e exigia que como tal a tratassem.À que fazia o papel da rainha impunha que se lhe desse este tratamento mesmo fora do palco, para não perder a prática. Outro artista, cuja única função era entregar uma carta , dava-se ares tão importantes como o primeiro galã, e afirmava que no conjunto artístico tinham ambos igual valor. O herói pediu um papel que consistisse só em deixas: sairia da cena com elas e seria aplaudido pelo público. A prima-dona queria exibir-se somente com luzes vermelhas, que combinavam com o seu tipo : não toleraria luzes azuis.
   " Ah! Perdi o fôlego e também a cabeça. Sentia-me a criatura mais miserável do mundo. Era um novo gênero humano aquele que me rodeava. Só tinha um desejo: vê-los todos de novo na caixa, e jamais ter-me tornado diretor! Disse-lhes com toda a franqueza que no fundo não passava de títeres; e , ao ouvir essas palavras, mataram-me.
      "Achei-me deitado na cama, no meu quarto.
      " Como fui ter ali e como me separei do candidato da Politécnica, é coisa que só  ele podia explicar: eu não sei de nada . O luar batia no soalho, onde se encontrava o caixote dos fantoches virado; todos os títeres estavam na maior confusão, grandes e pequenos - o elenco inteiro. Ah! Mas eu não perdi tempo: saltei da cama e logo todos eles entraram na caixa, uns de cabeça, outros de pé. Fechei o caixote, batendo a tampa com estrondo, e sentei-me em cima , dizendo:
     " - Agora vocês vão ficar aí dentro, e Deus me defenda de desejar outra vez que se tornem de carne e sangue!
     "Sentia-me aliviado: tinha recuperado o bom humor; voltara a ser mais feliz dos mortais. o candidato da Politécnica me purificara literalmente. E, radiante de contentamento, adormeci ali mesmo, sentado no caixote. Na manhã seguinte - a dizer a verdade, era meio-dia; mas eu tivera um sono maravilhoso, e dormira até tarde - de manhã, achei-me ainda sentado ali, feliz , sabendo agora que meu desejo era afinal insensato.
    " Perguntei pelo candidato da Politécnica: ele já havia partido, como os deuses gregos ou romanos.
     "Mas desde então tenho sido o mais feliz dos homens. Sou um diretor feliz. Meu elenco não resmunga, e meu público menos ainda: é , ao contrário, alegre, sinceramente alegre. Posso compilar minhas peças como bem entender, tirando o que há de melhor em todas as comédias, e conforme o meu gosto- ninguém se incomoda por isso. Peças hoje desprezadas pelos grandes teatros, mas que há trinta anos o público aclamava com loucura, peças que fizeram os espectadores derramar lágrimas, são as que agora represento, oferecendo-as à criançada; e os pequerruchos choram, como choraram o papai e a mamãe.
     " Mas eu as condenso, isso sim! As criança não gostam da conversa fiada dos namorados.
     " Não! O que elas querem é - triste, mas rápido!"


     

terça-feira, 24 de novembro de 2015

O COMPANHEIRO DE VIAGEM - CONTOS DE ANDERSEN

Estava muito triste o pobre João; seu pai encontrava-se muito, muito doente, e ia morrer. Achavam-se ambos sozinhos no quartinho estreito. A vela que ardia sobre a mesa chegara já no fim, pois era muito tarde da noite.
    - Tens sido um bom filho, João -disse o pai - e o Senhor te protegerá neste mundo.
     Olhou ainda uma vez para o filho - um olhar ansioso e cheio de ternura - e expirou.
      João chorou amargamente; agora não lhe restava mais ninguém no mundo - nem pai, nem mãe, nem irmão, nem irmã. Coitado! Ajoelhou-se ao pé da cama e beijou a mão do pai morto. E chorou, chorou, até que seus olhos se fecharam, e pegou no sono, com a cabeça apoiada no encosto duro da cama.
      Teve então um estranho sonho: sonhou que via o Sol e a Lua inclinando-se diante dele. Viu também no sonho o pai, vivo, e forte, rindo como nos dias felizes de outrora. Uma linda moça, que trazia uma coroa de ouro sobre os longos cabelos, estendia a mão a João, enquanto o pai lhe dizia:
   - Vê que linda noiva a tua, João! É a moça mais linda do mundo!
     Nisto acordou, e todas aquelas belas visões se desvaneceram: o pai jazia na cama, morto e gelado, e não havia mais ninguém ao pé dele. coitado do João!
     No dia seguinte foi o enterro. João acompanhou o esquife do pai, que tanto o amara, e que já não veria mais. Ouviu caírem as pazadas de terra sobre o caixão, e ficou olhando, até que a terra encobriu o último cantinho do ataúde. estava triste, tão triste, que lhe parecia sentir o coração despedaçar-se dentro do peito. Depois, os que tinham acompanhado o morto cantaram um hino tão comovente, que o rapaz sentiu outra vez as lágrima lhe subiram aos olhos. Chorou, e isso lhe fez bem: abrandou-lhe a dor. Sentiu-se mais consolado. O sol, que brilhava por entre as folhas verdes das árvores, parecia dizer-lhes:
    - Não te desespere, João! Ergue os olhos, e  vê como o céu está azul e lindo. E lá que está teu pai, rogando ao Senhor que vele sempre por ti!
    - Também eu quero andar sempre reto na vida- disse João. - Assim me reunirei a meu pai, lá no céu. Que alegria, ver-nos de novo! Quanta coisa terei então para lhe contar! E ele me guiará e me ensinará, explicando-me os esplendores do céu, como me ensinava tudo aqui na terra. Como seremos felizes!
     E joão via tudo aquilo, com tamanha certeza e tão grande fé, que sorria já por entre as lágrima. Os passarinhos chilreavam nos castanheiros - "tu-iii! tu-iii! " Estavam muito alegres, mesmo na hora do enterro, porque sabiam que o morto fora para o céu, e que agora tinha asas maiores e mais belas do que as deles. Sabiam que ele era feliz agora, porque tinha sido um homem bom aqui na terra- e alegravam-se muito com isso.
    Viu-os João a voar; saíram das árvores verdes e seguiram pelo vasto mundo. e ele sentiu também um grande desejo de acompanhá-los. Antes, porém, de partir, quis fazer uma grande cruz de madeira, para assinalar a sepultura do pai. Quando foi cravá-lo no túmulo, achou-o todo coberto de areia e de flores. Mãos de estranhos, que tinham amado seu pai, porque era um homem bom, tinham ornado sua sepultura.
    De manhã bem cedo João empacotou o que lhe pertencia, meteu no cinto toda a sua herança, que consistia apenas em cento e poucos cruzeiros, e com essa bagagem saiu a correr mundo. Primeiro, porém, foi ao cemitério; ajoelhou-se ao  pé da sepultura do pai e rezou o Pai Nosso. Depois afastou-se, dizendo:
     - Adeus, pai querido! Serei sempre um homem honesto para que possas sempre rogar a Deus que me proteja!
     Os campos que atravessou estavam cheios de florzinhas que desabrochavam ao sol, embalando-se ao sopro da brisa; pareciam dizer-lhe:
   - Bem- vindo sejas às nossas verdes campinas, bem-vindo! Não achas lindo este prado?
    João voltou-se para ver ainda uma vez a igreja antiga, onde fora batizado,  e aonde ia todos os domingos rezar, em companhia do pai. Avistou então lá no alto, na janelinha do campanário, o anãozinho da igreja, com seu gorrinho vermelho e pontudo; fazia pala com a mão, para defender os olhos da luz,  e olhava para ele. João disse-lhe adeus cá de baixo, e anãozinho pôs a mão sobre o coração, agitou o gorro vermelho, e depois atirou-lhe beijos com os dedos unidos em pinha- era a sua maneira de dizer que lhe desejava boa viagem e felicidade.
    Pensando sempre nas coisa esplêndidas que ia ver no grande e belo mundo que ficava além do horizonte, ia andando para a frente, sem parar, e achou-se em lugares onde nunca estivera antes. Não conhecia as cidades que ia atravessando,nem as pessoas que encontrava no caminho. Estava já em país estrangeiro.
    Dormiu na primeira noite em um monte de feno. em pleno campo, porque não tinha outra cama. Achou-a, contudo, muito comoda, e pensou que nem o rei a teria melhor. Que quarto poderia ser mais belo do que aquele- o campo extenso, o arroio, o monte de feno, e tudo coroado pelo céu azul? Era na verdade um quarto maravilhoso. Tapete era o campo verde, todo estrelado de florzinhas vermelhas e brancas . os sabugueiros e as cercas de roseira silvestre eram as guirlandas de flores, e para lhe servir de toucador ali estava o riacho , cheio de água fresca e cristalina. os caniços inclinavam-se com querendo dizer: "Boa noite!" e "Bom dia !" E a lua era mesmo uma imensa lamparina, pendurada lá em cima , no céu azul; e não havia perigo de pegar fogo ao cortinado!
    João podia pois dormir a sono solto, e foi o que ele fez: dormiu como uma pedra, e só acordou quando o sol apareceu e os passarinhos todos começaram a cantar em volta dele:
     - Bom dia ! Bom dia! Não acordas hoje, dorminhoco?
      Já os sinos repicam, porque era domingo. Dirigiam-se os camponeses à igreja, e João acompanhou-os. E quando ouvia a palavra de Deus, parecia-lhe que se achava na mesma velha igreja onde fora batizado e onde rezava ao lado de seu pai.
     No cemitério, ao pé da igreja, havia muitos túmulos; alguns estavam cobertos de ervas daninhas. Lembrou-se o moço da sepultura do pai, que havia de ficar também assim mesmo, agora que ele não estava lá para tratar dela. Ajoelhou-se e começou a arrancar as ervas silvestres, endireitou as cruzes de madeira caídas, e pôs no lugar os ramos de flores que o vento espalhara. E ia pensando consigo:
    - Talvez alguém faça o mesmo no túmulo de meu pai, já que eu não posso cuidar dele.
     No portão do cemitério encontrou um velho mendigo, apoiado a uma muleta. deu-lhe o dinheiro miúdo que levava e continuou seu caminho - ia correr mundo- contente e tranquilo. Ao anoitecer o tempo transtornou-se; estava iminente uma tempestade terrível. João apurou o passo para ver se encontrava abrigo nalguma parte, mas depressa escureceu de todo. Avistou afinal uma capelinha solitária, no alto de um outeiro. Encaminhou-se para lá e verificou, contente, que a porta estava entreaberta; entrou para esperar ali até que a tempestade amainasse.
     - Vou acomodar-me num cantinho - disse consigo.
    - Estou tão cansado que o repouso me fará bem.
      Sentou-se, pôs as mãos e disse as orações da noite. E pegou no sono, quase sem mentir, e enquanto a tormenta rugia lá fora, ele sonhava.
     Acordou pelo meio da noite. Passara a tormenta, e agora o luar entrava pela janela. Viu então que no centro da igreja havia um ataúde com um morto dentro, esperando o enterro. João não era nada medroso. Tinha a consciência tranquila, e sabia bem que os mortos não fazem mal a ninguém; os vivos, sim - e justamente lá estavam dois homens vivos, parados junto do morto, que fora deposto ali até a hora do enterro. Tinham um plano indigno, que era impedi-lo de descansar tranquilamente no seu caixão. Queriam tirar o corpo para fora da igreja - aquele corpo indefeso do homem morto.
      - Mas por que querem fazer isso? - perguntou João. - É uma ação má e um pecado! Pelo amor de Deus, deixem o homem descansar!
     - Tolices! - exclamaram os dois malandros. - Ele nos logrou. Devia-nos e não pode pagar. E agora, que tornou a nos lograr, morrendo, não vamos receber dele nem um centavo. por isso nos vingaremos dele. Há de ficar do lado de fora da igreja, como um cão!
     - Não possuo mais que cem cruzeiros - disse o bondoso rapaz. - É toda a minha fortuna. Mas dou-lhes tudo de boa vontade se me prometem deixar em paz o pobre homem. Ora! Posso ficar sem dinheiro:  Tenho saúde, braços fortes, e Deus há de ajudar!
     - Sim, sim! - responderam logo os malfeitores. - Se estás disposto a pagar a sua dívida, não lhe poremos a mão: podes contar isso!
     E pegaram no dinheiro e foram embora, rindo às gargalhadas da simplicidade do rapaz. Enquanto isso, este acomodava de novo o cadáver no caixão: cruzou-lhe as mãos e saiu, metendo-se por dentro do mato, contente consigo mesmo.
    Por onde filtrava um raio de luar, via pequeninos elfos, que se divertiam com suas danças, sem se importar com ele, pois sabiam que era bom e honesto. Só os maus nunca podem ver os elfos. Havia alguns do tamanho de um dedo, e tinham os longos cabelos louros presos com grampos de ouro. Embalavam-se , dois a dois, nas gotas de orvalho que cintilavam nas folhas de grama. De vez em quando as gotas rolavam e eles caíam entes as hastes do capim. E os bonequinhos minúsculos riam e divertiam-se muito com isso, porque era na verdade engraçado mesmo. Cantavam e João entendia suas lindas cantigas: eram as mesmas que ele cantava quando era pequenino.
    Enormes aranhas, coroadas de ouro, estavam muito atarefadas: fiavam longas pontes e palácios entre as moitas, e quando se formavam finas gotinhas de orvalho sobre aquelas teias, elas brilhavam como espelhos ao luar. Tudo isso continuou assim até romper do sol; quando este surgiu, os elfos esconderam-se no seio das flores. O vento despedaçou as pontes e os palácios, que esvoaçaram pelos ares como teias de aranha.
     João saía do mato quando ouviu uma voz forte de homem que o chamava:
    - Olá, meu rapaz! Aonde vais nesse passo?
      - Vou indo pelo vasto mundo - disse João. - Não tenho família. Sou pobre, mas sei que o Senhor olhará por mim.
    - Pois eu também ando correndo mundo - disse o desconhecido. - Bem poderíamos ir juntos!
      E lá se foram. Dentro de pouco tempo estavam amigos, pois ambos eram boas criaturas. Mas não tardou que João descobrisse que lhe faltava muito para igualar o outro em conhecimentos. O companheiro tinha visto muito mundo e sabia discorrer sobre todas as coisas.
    Já o sol estava alto quando se sentaram à sombra de uma árvore para almoçar. Nesse momento avistaram uma velinha que vinha manquejando. Era tão velha e encurvada, que parecia dobrada pelo meio, e caminhava apoiada a uma muleta. Trazia às costas um feixe de lenha que juntara no mato. No seu avental dobrado, João notou que levava dentro daquela espécie de bolsa grandes feixes de fetos e varas de salgueiro. Ao chegar perto deles, a velhinha escorregou e caiu no chão; pôs-se então a gritar, porque a coitada tinha quebrado uma perna.
    João disse logo que ambos levariam para casa a pobre velha, mas o estrangeiro abriu o saco de viagem e tirou dele um pequenino pote de unguento, declarando que aquela pomada podia curá-la completamente no mesmo instante, de sorte que ela poderia ir para casa caminhando tão bem como se nada lhe tivesse acontecido. Em troca, pedia-lhe os três feixes de varas que ela levava no avental.
     -É muito caro! É um preço muito alto! - disse a velha , sacudindo a cabeça, a considerar:
   Não queria desfazer-se daquelas varas, é claro : mas também não era nada agradável ficar ali com a perna partida; assim é que consentiu em pagar o preço pedido. Nem bem ele acabava de esfregá-la com o unguento, já a velinha se levantava e saía caminhando, e muito melhor do que antes - milagre do unguento, que infelizmente não se encontra à vontade na farmácia!
    Para que queres essas varas?- perguntou João ao companheiro.
    - São três lindos feixes de folhagem! Despertaram-me atenção, e gostei deles, porque sou um sujeito meio esquisito.
    Quando já iam longe, João observou:
   - Como o céu está ficando escuro! Vê que enormes nuvens negras!
    - Não, não são nuvens - disse o outro; são montanhas, cujos picos ficam acima das nuvens.Lá a gente respira um ar fresco e puríssimo. E é uma vista magnífica! Amanhã estaremos, com certeza , muito acima disto aqui, bem lá no alto!
    Mas as montanhas não ficavam tão próximas como pareciam. Andaram ainda um dia inteiro para alcançá-las. Estavam cobertas de matas sombrias, que se erguiam para o céu, e de rochedos que à distancia pareciam verdadeiras cidades. A escalada exigia grande dispêndio de energias, por isso João e seu companheiro resolveram ficar em uma pousada, para refazerem as forças antes da ascensão.
    A grande sala da estalagem estava cheia, porque lá se achava naquele dia um pelotiqueiro, com seu teatrinho de bonecos. Acabava de instalá-lo, e toda aquela gente estava sentada, esperando o espetáculo. Na fila da frente, e no melhor lugar, sentaram-se um açougueiro, gordo e velho, com seu enorme buldogue ao pé de si. E que medonho focinho tinha o cão! Lá estava ele, com os olhos saltados, e tão arregalados como os de todos os mais.
     Começou o espetáculo. Era uma peça linda, em que apareciam um rei e uma rainha, sentados em um trono de veludo. Tinham coroas de ouro, e trajes deslumbrantes, com longa cauda -coisa que eles podiam usar, certamente! Bonecos lindíssimos, de olhos de vidro e  grandes bigodes, abriam e fechavam as portas, para manter a ventilação da sala. Era uma  peça muito linda; e não era triste, nem um pouquinho triste. Mas justamente quando a rainha se levantou para atravessar a cena - só Deus pode saber o que impeliu o enorme buldogue a fazer semelhante coisa!- Como o rotundo açougueiro não o mantinha seguro, o cão deu um salto e foi parar no meio do palco; segurou a rainha pelo frágil peito e só largou em pedaços! Foi uma cena  trágica!
    O pobre do dono do teatrinho ficou desesperado e profundamente abatido, pois a rainha era mais linda das bonequinhas, e o horrendo buldogue lhe arrancara a cabeça.
     Mas depois que tinham saído os espectadores, o estrangeiro que viera com João declarou que podia consertá-la. Tirou do saco um pote de unguento e untou com ele a boneca- era o mesmo unguento que tinha  curado a pobre velha da perna quebrada. No mesmo instante a boneca ficou como nova - não: ficou muito melhor. Podia agora mover-se por si , não precisando dos cordéis. Era exatamente como uma pessoa viva-só  lhe faltava falar. O pelotiqueiro ficou encantando ao ver que não tinham mais que se preocupar com os cordões daquela boneca, Nenhuma das outra era assim.
     Noite alta, quando todos da hospedaria já estava, deitados, ouviram-se suspiros tão altos e tão tristes que todos pularam da cama para verificar o que seria aquilo. O pelotiqueiro foi direto ao teatrinho, porque pareciam vir dali os suspiros. E viu  todas as boneca de pau amontoadas uma por cima das outras, e de mistura com elas o próprio rei - e era dali que saíam aqueles profundos suspiros. Tinham nos olhos de vidro um olhar tão suplicante...queriam todos ser também untados, como a rainha, com aquele unguento, para que pudessem ter movimento. A rainha ajoelhou-se, erguendo a sua bela coroa de ouro, como se quisesse dizer:
   - Tira-me até isto, se quiseres, mas esfrega também, o rei e seus cortesões!
     O pobre pelotiqueiro ficou com tanta pena que não pode reter as lágrima. Prometeu ao viajante todo o dinheiro que apurasse na primeira representação, se ele ao menos untasse quatro ou cindo bonecas, entre as melhores. Mas o estrangeiro disse que não aceitaria pagamento algum em dinheiro; queria apenas a grande espada que pendia da cinta do homem. Recebida a paga, tratou logo de esfregar meia dúzia de bonecas, que começaram imediatamente a dançar; e tão bem dançavam que todas as moças, as moças vivas, que assistiam à operação, começaram também a dançar. O cocheiro dançava com a cozinheira e o criado com a camareira. Os hóspedes também se associaram ao baile, e o mesmo fizeram a pá e as tenazes... mas estas caíram logo ao ensaiar os primeiros passos. Foi um serão bem alegre, na verdade!
     De manhã cedo puseram-se os dois viajantes a caminho: começaram a subir a encosta íngreme da montanha altíssima, coberta de pinheiros. Subiram tão alto que lá de cima as torres da igreja pareciam apenas cerejinhas vermelhas entre a verdura. Avistaram ao redor, e a milhas e milhas de distância, lugares que nunca tinham visto. E, quanto a João, não vira jamais tamanha glória como a que lhe oferecia aquele mundo desconhecido. O sol brilhava no azul do firmamento; nas encostas ressoavam  as trompas dos caçadores. E tudo era tão cheio de beleza e de doçura, que ele sentiu os olhos inundados de lágrimas exclamando em altas vozes:
    - Deus Todo-Poderoso! Queria beijar o chão que pisaram teus pés
    O seu companheiro também olhava, de mãos postas, para os bosques e as cidades que se estendiam diante dele, aos quentes raios de sol. Nesse instante ouviram ambos um som admirável, que vinha de cima. Ergueram os olhos e viram um grande cisne branco  que voava acima deles; cantava, cantava, como nunca tinham ouvido nenhum pássaro cantar. Mas o canto foi ficando aos poucos , mais fraco , e por fim a ave abaixou a cabeça e veio descendo lentamente, até cair aos pés dos dois homens - morto, o lindo cisne!
     - Que magníficas asas! - disse o companheiro de João. - Assim tão grandes e tão alvas, valem muito dinheiro! Vou levá-las. Vê como foi bom ter trazido esta espada!
     E de um só golpe cortou ambas as asas da ave morta.
    Andaram ainda léguas e léguas pelas montanhas, até que avistaram uma grande cidade; mais de cem  torres brilhavam como prata à luz do sol. No centro dela erguia-se um magnífico palácio de mármore, com teto de ouro. Era a morada do rei.
   Os dois viajantes não entraram imediatamente na cidade. Ficaram em uma hospedaria dos arredores para mudar de roupa, pois queriam apresentar-se corretamente vestidos pelas ruas. contou-lhes o albergueiro que o rei era um bom homem, que a ninguém fazia mal; mas a filha - Deus nos acuda! - que  princesa malvada!
     Era muito linda . Ninguém podia ser mais bela, nem mais interessante do que ela - mas de que servia isso? Era uma feiticeira perversa, que já causara a morte de muitos príncipes encantadores.
    A princesa tinha declarado que quem quisesse podia apresentar-se como seu pretendente. Fosse lá quem fosse, príncipe ou mendigo, para ela era indiferente : só exigia que o candidato respondesse a três perguntas suas. Se acertasse as respostas, casaria com ela e reinaria sobre  toda aquela terra quando morresse o rei seu pai. Mas se não atinasse com a resposta certa, mandava enforcá-lo, ou decapitá-lo. Era assim tão perversa a bela princesa!
    O velho rei vivia ralado de desgosto; mas nada podia fazer contra aquela malvadez, porque tinha prometido à filha que não havia de intervir no seu casamento: deixava-lhe a liberdade de escolher quem quisesse e de fazer dos pretendentes também o que bem lhe parecesse. E quantos príncipes se haviam apresentado para obter a mão da princesa, falhando na tentava; e todos  haviam morrido na forca, ou perdido a cabeça, porque cada um era avisado antes de enfrentá-la, ainda o tempo de evitar o perigo. Tão aflito vivia o rei, que todos os anos passava um dia inteiro, com os seus soldados, de joelhos, orando para que a princesa se modificasse; mas o caso é que ela não mudava. E , em sinal de luto, as velhas que bebiam aguardente a tingiam de negro antes de engoli-la - tamanho era o seu sentimento- porque nada mais lhes restava senão se lamentar.
    - Esta princesa abominável devia levar uma boa sova! - disse João. - É  o que ela merece. E se eu fosse o velho rei, havia de surrá-la até escorrer sangue!
     Nesse momento ouviram uma gritaria na frente da pousada:
      - Viva! Viva!
     A princesa passava com seu séquito. E tanta era sua beleza que o povo esquecia, ao vê-la , toda a maldade do seu coração, e saudava-a:
     - Viva! Viva!
     Acompanhavam-na doze belas moças, vestidas de seda branca, e levando tulipas de ouro; montavam cavalos negros como carvão. O cavalo da princesa era branco como  a neve, todo ajaezado de diamantes e rubis. Seu traje de montar era de ouro puro e o chicotinho brilhava como um raio de sol. Cingia-lhe a cabeça uma coroa resplandecente como as estrelas do céu, e o seu manto era todo recamado de milhares de asas de borboletas, muito brilhantes. Mas a própria princesa era ainda mais bela do que tudo isso.
    Ao vê-la, João ficou muito vermelho - seu rosto tornou-se cor de sangue - e nem achou voz para dizer uma palavras. É que a princesa era o retrato vivo da linda jovem coroada de ouro que vira em sonhos, na noite em que lhe morrera o pai. Achou-a tão linda que a amou desde aquele momento.
     - Não!- dizia consigo.  - Ela não pode ser uma feiticeira malvada, que manda enforcar ou degolar os que  não lhe adivinham os pensamentos! E, visto que qualquer um pode pretendê-la, ainda que seja um pobre mendigo, irei ao castelo. Não posso deixar de ir!
      Quantos o ouviram disseram-lhe que desistisse daquela ideia, se não quisesse acabar como os outros. Seu companheiro também procurou dissuadi-lo; mas ele achava que tudo acabaria bem. Escovou a roupa e os sapato, lavou o rosto e as mãos, penteou o belo cabelo louro, lá se foi sozinho; atravessou toda a cidade, rumo ao palácio.
     - Entra! - disse  o rei, quando ele bateu à porta.
     O moço abriu a porta e entrou, e o próprio rei veio ao seu encontro. estava de roupão e chinelas bordadas; mas tinha a coroa na cabeça, trazendo em uma das mãos  o cetro e na outra o globo. Pediu licença a João, enquanto colocava o globo debaixo do braço para poder cumprimentá-lo.
    Mas quando se inteirou de que era um novo pretendente à mão da filha, rompeu em pranto. Soluçava com tanta força que caíram ao chão o cetro e o globo, e teve de recorrer ao roupão para enxugar os olhos. Coitado do velho rei!
    - Não te metas nessa empresa! - disse ele. -Vais ter a mesma sorte dos outros. Vem quero mostrar-te que é feito deles.
    Levou-o ao jardim de recreio da princesa. O que o rapaz viu era espantoso! De cada árvore pendiam três ou quatro filhos de rei, que tinham querido desposar a princesa, e que não puderam decifrar seus enigmas. A cada sopro da brisa os esqueletos se entrechocavam, produzindo um ruído macabro , que espantava os passarinhos; estes  já nem ousavam entrar naquele jardim. Todas as flores estavam escoradas com ossos humano, e nos vasos de plantas viam-se caveiras mostrando os dentes. Que belo jardim, na verdade, para uma princesa!
    - Estás vendo? - perguntou o rei. - Pois é o que te espera. Ouve-me: renuncia a teu projeto, que me aflige profundamente, porque tudo isto me atormenta a vida!
     João beijou a mão do bom rei, dizendo-lhe que estava certo de que tudo iria bem. É que estava enfeitiçado pela beleza da jovem. Justamente naquele momento chegava ela, com todas as suas damas, entravam no pátio do palácio; eles foram cumprimentá-la. Era muito linda, e, quando estendeu a mão ao moço, sentiu-se ele ainda mais enamorado do que nunca.
     Entraram no salão do palácio, onde pequenos pajens serviram biscoitos de gengibre e geleia. Mas o rei estava tão triste que nem pode comer nada. Além disso, os biscoitos de gengibre eram muito duros para os seus dentes.
    Ficou combinado que João voltaria ao palácio na manhã seguinte, quando estariam ali juízes e todo o conselho para julgar as suas respostas. Se saísse bem da prova, teria de voltar lá ainda duas vezes - o que não tinha acontecido com nenhum candidato.
    João, porém, não receava aquela prova. Longe disso! Estava muito alegre a só pensava na formosura da princesa. estava persuadido de que Deus o judaria, não sabia por que meios, mas tinha certeza de se sair bem; e entendia que era melhor não ficar a matutar no caso. E de volta à hospedaria, onde o esperava o companheiro, fez todo o caminho a dançar de alegria. Não se cansava de repetir como era bela a princesa e com quanta amabilidade o tratara. Nem sabia como havia de esperar o dia seguinte e a hora de ir ao palácio para tentar a sorte pela segunda vez. Mas o amigo sacudia a cabeça, muito triste.
    - Estimo-te tanto - dizia ele - e poderíamos viver em boa camaradagem ainda por tanto tempo! Mas  agora estou arriscando a perde-te para sempre, meu caro João! Meu pobre João! Só tenho vontade de chorar! Mas reagirei! Não quero empanar a felicidade desta noite, talvez a última que nos resta para estarmos juntos. Vamos dar expansão à alegria por hoje, que não faltará tempo para lágrimas amanhã!
   Espalharam-se pela cidade a notícia de que a princesa tinha um novo pretendente, e reinava por toda a parte uma tristeza profunda. Os teatros cerraram as portas; as mulheres que vendiam doces amarraram uma tira de crepe nos seus porquinhos de açúcar; o rei e os sacerdotes ajoelharam-se nas igrejas, em ferventes preces; e as lamentações que se erguiam de toda a parte eram ouvidas a grande distância. Porque todos estavam convencidos de que João não poderia ter mais sorte que os outros.
     Já tarde da noite o seu companheiro preparou uma grande caneca de ponche e disse-lhe:
    - Vamos! devemos estar alegres: bebamos à saúde da princesa!
    Mas quando João acabou de beber o segundo copo daquele ponche, sentiu-se de repente tomado de sono tão forte, que não pode manter os olhos abertos : dormiu ali mesmo. O companheiro ergueu-o da cadeira com o maior cuidado e levou-o para a cama.
     Assim que escureceu por completo pegou nas asas que tinha cortado do cisne morto e amarrou-as aos ombros: meteu no bolso o maior dos feixes de varas que lhe dera a velha que tinha quebrado a perna na queda. abriu a janela e saiu voando pelos ares; voou por cima das casas e foi ter ao palácio; e ali sentou-se em uma saliência de pedra, debaixo da janela do quarto da princesa.
    A cidade inteira estava mergulhada em completo silêncio. Quando os relógios deram as onze e três quartos, abriu-se a janela da princesa e ela saiu voando; vestia roupagens brancas  e tinha asas negras. Atravessou a cidade e dirigiu-se para uma alta montanha. O companheiro de João tornara-se invisível, de sorte que a princesa não podia descobri-lo; saiu voando também e durante o vôo ia batendo nela com o feixe de varas, e tão rijo, que cada varada lhe fazia sangrar a carne. E como voavam! O vento enfunava o manto branco da princesa, como se fosse uma vela de barco, e o luar se espalhava nele. Que noite, aquela!
      - Ai!  Quanta geada! Quanta geada! - gritava a princesa a cada golpe de vara.
    Mas era o que ela merecia mesmo.
    Chegou afinal à encosta do cerro e bateu. Abriu-se o flanco da montanha com um ribombo de trovão e ela entrou. Ele também entrou, mas ninguém o viu, porque se tornara invisível.
    Atravessaram uma passagem muito larga e extensa, iluminada de maneira estranha. Milhares de aranhas fosforescentes corriam pelas paredes, produzindo uma luz viva. Entraram em um grande salão, todo de ouro e prata. Flores enormes, como grandes girassóis, azuis e vermelhas, cobriam as paredes, mas ninguém podia colhê-las, porque as hastes eram cobras medonhas e venenosas, e as próprias flores não passavam de chamas vivas, que dardejavam de suas garras. O teto era vivente: formado de vaga-lumes e morcegos, que agitavam constantemente as asas. Era um lugar medonho! No centro erguia-se um trono, sustentado por quatro esqueletos de cavalos, ajaezados de teias de aranha chamejantes. O trono era de vidro de cor leitosa,  e as almofadas que forravam consistiam em ratinhos pretos, que mordiam as caudas uns dos outro. Encimava-o um dossel de teia de aranha rosada, toda semeada de lindas moscas verdes, que cintilavam como esmeraldas.
     Ocupava o trono um feiticeiro velho, horrendo, de coroa na cabeça e cetro na mão. Beijou a testa da princesa e sentou-a a seu lado, no trono riquíssimo, enquanto a música começava a soar. Enormes gafanhotos negros tocavam gaita de boca, e uma velha coruja batia no estômago, fazendo-o rufar como um tambor. Mas que concerto fantástico! Miríades de duendezinhos anões, com fogos-fátuos pregados nos capuzes, saltavam ao redor do salão.
    Deram entrada no salão os cortesões e as damas, todos com ares de grandes personagens; mas quem observasse com atenção veria logo que tudo aquilo não passava de fingimento: eram cabeças de repolho, espetadas em cabos de vassoura, que o velho feiticeiro tinha enfeitiçado e revestido de roupas bordadas. Isso não tinha, porém, importância alguma, pois que serviam apenas para dar aparência de gente de verdade.
    Quando as danças foram interrompidas, a princesa contou ao feiticeiro que aparecera um novo pretendente e perguntou-lhe que adivinhas lhe a havia de propor.
     - Deves pensar - disse o feiticeiro - em alguma coisa simples, que o desconcerte. Pensa em um de teus sapatos, por exemplo. Ele nunca se lembrará de semelhante coisa. E então - zás! cabeça fora! E quando vieres amanhã à noite, não te esqueças de me trazer seus olhos, que quero comê-los.
     Fez a princesa uma grande reverência, prometendo cumprir o que lhe pedira. o feiticeiro abriu o cerro e ela saiu voando de volta a casa. Mas o amigo de João saíra junto e de novo a vergastava com varadas tão rijas, que ela gemia alto, queixando-se dos granizos que caíam - e apressava o vôo a fim de chegar mais depressa ao seu quarto, onde entrou pela janela. Ele então voltou para a estalagem, onde João continuava adormecido. Desprendeu as asas dos ombros e deitou-se, muito cansado - e com toda razão!
    João acordou cedo no dia seguinte. Disse-lhe então o companheiro que sonhara com a princesa - um sonho estranho, em que entrava um sapato da moça. E pediu-lhe que perguntasse se ela não tinha pensado em um dos seus sapatos. É claro que sabia bem de tudo,´pois ouvira a conversa dela com o feiticeiro; mas preferiu não revelar esse segredo ao amigo.
     - Pois sim - disse este - tanto faz uma pergunta como outra. Pode bem ser que teu sonho veja verdadeiro, porque tenho sempre confiado na proteção de Deus. Entretanto, vou despedir-me de ti, porque, se não acertar, já sabes, não nos tornaremos a ver.
     Abraçaram-se e João seguiu para a cidade. E foi direito ao palácio do rei. o salão estava completamente cheio. Os juízes, sentados em suas poltronas reclinavam a cabeça em almofadas de penas, porque tinham de pensar muito. o velho rei, de pé, enxugava as lágrima com seu alvo lenço.
   Entrou a princesa. Estava ainda mais linda do que na véspera, e foi cumprimentando a todos com um sorriso. Mas a seu pretendente ela estendeu a mão, dizendo-lhe:
    - Bom dia ! Como passou?
    João tinha de adivinhar o que ela trazia naquele instante no pensamento. E a princesa ficou a olhar para ele, de maneira muito amável, esperando , até que lhe ouviu a palavra " sapato". Ah! Então seu rosto ficou branco como cal, e ela estremeceu da cabeça aos pés. Mas de nada lhe valia tremer: João tinha adivinhado!
    Justos céus! Como o rei ficou contente! De tão satisfeito, até virou cambalhotas; e todos aplaudiram, tanto a sua proeza como a de João, que acertara a primeira resposta.
    Também o seu amigo alegrou-se muito, quando soube que tudo correra tão bem. E João, de mãos postas, deu graças a Deus, certo de que seria igualmente auxiliado nas duas provas restantes. Porque no dia seguinte teria de responder mais uma vez.
   Á noite tudo se passou como na véspera. Assim que João pegou no sono, seu companheiro voou no encalço da princesa, batendo-lhe ainda com mais vigor, pois desta vez tomara dois feixes de varas. sempre invisível, via e ouvia tudo. Desta vez a princesa devia pensar na sua luva, e ele comunicou isso ao amigo, como se tivesse sonhado.
     Naturalmente João não encontrou a menor dificuldade em acertar a resposta, e o regozijo no palácio não tinha limites. A corte inteira virou cambalhotas, como vira o rei fazer na véspera. mas a princesa ficou imóvel no seu sofá, muda de surpresa.
     Tudo dependia agora da resposta que João desse à terceira adivinhação. se acertasse, casaria com a bela princesa e herdaria o reino inteiro, quando o velho rei morresse. Mas se não adivinhasse , perderia a vida e o feiticeiro comeria seus lindos olhos azuis!
     À noite, João rezou e foi para a cama cedo, não tardou a pegar no sono - um sono muito tranquilo. Seu amigo amarrou as asas às costas, cingiu a espada, e, pegando nos três feixes de varas, voou para o palácio.
    A noite estava escura como carvão; a ventania soprava com tamanha fúria que destelhava as casas. No jardim, onde os esqueletos estavam pendurados , as árvores curvavam-se como juncos. Sucediam-se os relâmpagos sem cessar, e o trovão ribombava, fazendo a terra ressoar a noite inteira. Abriu-se a  janela com estrépito e a princesa saiu voando. Estava mortalmente pálida, mas ria da tormenta; para ela podia ser até mais violenta. Seu longo manto branco voava ao vento, como uma vela de navio; e a tudo isso o seu corpo era vergastado com os três feixes de varas. Já o corpo da princesa gotejava sangue, e ela mal podia manter-se no ar. Afinal chegou à montanha - e mesmo não poderia ir mais longe    - A ventania está furiosa e cai saraiva constantemente - disse ela ao feiticeiro. - Eu nunca tinha saído com um tempo tão espantoso!
    - É que há gente de muita sorte- explicou o feiticeiro.
     Contou-lhe ela que João tinha tornado a adivinhar; e que se acertasse ainda no dia seguinte, ganharia a aposta, e ela não tornaria às montanhas. Nem poderia jamais dedicar-se às suas artes de feitiçaria; e essa ideia a afligia muito.
    - Ele não acertará desta vez - disse o feiticeiro.-
 Hei de achar alguma coisa em que jamais possa pensar - A não ser que seja um mágico mais poderoso do que eu. Mas por agora, vamos dançar!
     Pegou nas mãos da princesa e dançou com ela , girando por entre os gnomos  pequeninos e fogos-fátuos que estavam no salão. As aranhas vermelhas fiavam alegremente, correndo pelas paredes abaixo e acima; as flores chamejantes pareciam lançar faíscas; a coruja tocava tambor; os gritos cricrilavam; e os gafanhotos negros tocavam gaita de boca. Era um baile divertidíssimo!
    A certa altura, a princesa achou que devia voltar antes que dessem falta dela no palácio. Ofereceu-se o  feiticeiro para acompanhá-la; gozaria assim mais algum tempo da sua companhia.
     Saíram voando no meio da tempestade. o feiticeiro teve de confessar que nunca tinha sentido uma chuva de granizos como aquela. e quando se despediu da princesa, junto do palácio, disse-lhe ao ouvido:
    - Pensa na minha cabeça!
     Mas ouviu-o o companheiro invisível; e justamente no momento em que a princesa entrava pela janela  e  o feiticeiro dava volta , apanhou-o pela longa barba negra, e de um golpe de espada decepou-lhe a medonha cabeça; e fez tudo com tamanha presteza que o feiticeiro nem chegou a ver o que acontecera. atirou o corpo do feiticeiro ao mar para que os peixes  o devorassem, e, depois de lavar a cabeça, envolveu-a no seu lenço de seda, levando-a para a hospedaria. Chegando lá, deitou-se e adormeceu.
     No dia seguinte entregou aquela trouxa a João, recomendando-lhe que não a desatasse senão quando a princesa lhe perguntasse no  que tinha pensado.
    O salão estava tão cheio de gente que as pessoas se comprimiam umas contra as outras, como rabanetes amarrados em molho. Os juízes lá estavam, sentados nas suas poltronas, com as almofadas macias para a cabeça. o velho rei vestira uma roupa nova, e tinha mandado polir a cora e o cetro, que resplandeciam. Mas a princesa, mortalmente pálida, vestira-se de preto, como se fosse assistir a um  funeral.
    - Em que pensei? - perguntou ela a João.
     Imediatamente ele desatou o lenço; e não foi o menos espantado, é claro, ao ver que rolava de dentro da trouxa a medonha cabeça do feiticeiro. Todos estremeceram àquela vista horrenda, mas a princesa ficou como uma estátua de pedra, sem poder dizer uma palavra.
     Por fim levantou-se e estendeu a mão a seu noivo. E, sem olhar para ninguém, soltou um suspiro, dizendo:
    - Agora és meu senhor. Hoje mesmo nos casaremos.
     -  Muito me alegro com isso! - exclamou o rei. - Agora sim, tudo vai bem!
    E todo povo deu vivas; a banda militar saiu a tocar  pelas ruas e os sinos repicavam ; as confeitarias tiraram os crepes dos porquinhos de açúcar - porque agora a cidade inteira estava em festa. Três bois, recheados de patos e frangos, foram assados inteiros na praça do mercado e postos à disposição do povo. das fontes e chafariz manava vinho - e do melhor! E quem comprava um bolinho recebia de inhapa seis grandes bolos -- e bolos com passas!
     À noite , toda a cidade pôs luminária; os soldados deram salvas e os meninos queimaram bichas da China. No palácio houve um grande banquete, com abundância de manjares e vinhos, e só ouvia o tinir dos copos. As gentis damas de honor dançaram com os cavalheiros da nobreza. À grande distância se ouviam as suas canções:
       "Aqui estão as moças mais bonitas,
         Rodopiando da música aos compassos;
        Pedindo que o tambor soe e ressoe
        A cadência seguindo dos seus passos.
   
        Gira, donzela ! Gira, e não te canses!
        Gira e regira, e faze espalhafato!
         E canta, e rodopia, e salta e dança,
        Até gastar a sola do sapato!"

   Mas a princesa era ainda uma feiticeira, e não tinha amor nenhum a seu noivo.
    O amigo do João, preocupado com esse fato, deu-lhe três penas das asas do cisne e um frasquinho com algumas gotas de certo líquido; recomendou-lhe que pusesse ao pé da cama da princesa uma grande tina com água, na qual lançaria as três penas e aquelas gotas . No momento em que a princesa fosse recolher-se, ele devia dar-lhe um um leve empurrão, de modo que ela caísse dentro da tina. Mergulharia então três vezes a princesa naquela água, e assim a libertaria para sempre das artes da feitiçaria. Ela havia de amá-lo ternamente desde então.
      João seguiu ao pé da letra os conselhos do companheiro, apesar dos gritos que a princesa deu ao se mergulhada  na água. E foi na forma de um grande cisne negro, de olhos de chama, que ela lutou por se desvencilhar das suas mãos. No segundo mergulho ela saiu da água transformada em um cisne branco, com uma coleira negra; e terceira vez que ele forçou a ave a submergir, já saiu da água a bela princesa na sua forma primitiva. Estava mais bela do que nunca, e foi com os olhos rasos dágua que ela agradeceu ao marido de a ter livrado assim do encantamento do feiticeiro.
      Pela manhã o velho rei apresentou-se com toda a corte para congratular o casal. O último a chegar foi o amigo de João; trazia a bengala e o saco de viagem.
      João abraçou-o muitas vezes, dizendo-lhe que não devia abandoná-los. E, pois que lhe devia toda a sua felicidade, pediu-lhe que ficasse morando com eles. Mas o amigo sacudiu a cabeça, dizendo com muita delicadeza:
     - Não, minha hora chegou. Nada mais fiz do que pagar-te uma dívida. não lembras daquele morto  que uns malfeitores queriam maltratar? Deste então tudo quanto tinhas para que o deixassem descansar em paz no seu caixão. Pois eu sou aquele homem.
    E sumiu-se no instante.
   Duraram um mês inteiro as festas do noivado. João  e a princesa amava-se muito. O velho rei ainda viveu bastante para ver seus netos: estes trepavam-lhe nos joelhos e brincavam com o cetro real . E quando o rei morreu, João veio a reinar sobre o reino inteiro.
FIM
 
   

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

UMA FAMÍLIA FELIZ - CONTOS DE ANDERSEN

A maior folha que cresce nos nossos campos é a bardana. Quase que pode  servir de avental, no verão, e de guarda-chuva, no inverno, porque é do tamanho gigantesco. Além disso, jamais um pé de bardana vive sozinho: onde aparece um, nascem logo outros, muitos outros, e a moita não tarda em se tornar um mantinho cerrado, que serve para alimentar os caracóis.
   Sim, aqueles grandes caracóis brancos, que as pessoas distintas do tempo antigo mandavam guisar, e comiam, soltando gritinhos de satisfação, e dizendo, porque disso estavam convencidas:
   - Como é gostoso!
    Pois aqueles caracóis nutriam-se de bardana; e é fora de dúvida que essa planta foi criada somente em sua intenção.
    Ora, havia uma  velha casa, onde ninguém mais comia caracóis, porque fora exterminada a espécie; mas as bardanas; não tinham morrido; ao contrário, vicejam mais vigorosas que nunca, e invadiam tudo, até os canteiros e caminhos. Não era mais possível livrar delas o jardim: era uma verdadeira floresta. Havia ainda, é certo, uma velha macieira, ou uma ameixeira decrépita, mas a ninguém ocorreria a ideia de que aquele maciço de bardanas tivesse sido jamais um jardim.
    Pois naquele mato cerrado vivam os dois derradeiros caracóis da raça. Nem eles próprios sabiam mais que idade tinham; mas recordavam-se de quão numerosos eram os caracóis outrora, e todos de origem estrangeira; e sabiam bem que a floresta de bardanas tinha nascido para eles. Nunca tinham saído do jardim; mas sabiam que para além dele havia alguma coisa no universo, que se chamava uma residência. Lá eram os caracóis cozidos. - e isso os deixava negros - e depois postos em um prato de prata. Que acontecia então? Não o sabiam. Também não entediam muito bem o que significava " ser cozido" , e " posto em um prato de prata"; mas julgavam que seria alguma distinção honorífica.
    Nem o cascudo, nem o sapo , nem a minhoca souberam dizer nada a respeito, pois nenhum deles tinha sido jamais cozido e posto em um prato de prata.
     E os velhos caracóis brancos compreenderam então que eram eles o que havia de mais distinto no mundo, pois que as bardanas não existiam senão para alimentá-los, e a casa , para que lá  fossem cozidos e postos em um prato de prata.
    Viviam os dois últimos representantes da raça muito retirados e muito felizes; e como não tinham filhos, adotaram um caracolzinho da raça comum.
    Mas o caracolzinho não crescia, porque era de raça inferior. Contudo os velhos , sobretudo a mãe - a mãe caracol -  achava que ele crescia a olhos vistos; e quando o pai do caracol não se mostrava convencido, obrigava-o a tatear a concha e a confessar que ela estava com a razão.
     Um dia caiu uma chuva torrencial, e o pai caracol disse:
     - Escuta, escuta! Como a chuva tamborila nas folhas de bardana: Rum, durum-dum-dum-Rum, durumdum-dum!
      - É mesmo -disse a mãe caracol.- As gotas escorrem, enormes, pelas hastes das bardanas. Vais ver que tudo ficará molhado. Felizmente temos nossas boas casas e o pequerrucho também tem a sua! Somos na verdade mais bem promovidos que todas  as outras criaturas. Isto prova que somos os senhores do universo. temos casa própria, desde que nascemos, e a floresta foi plantada para nós. Só o que eu queria saber é até onde vai ela e o que existe lá para diante...
      - Para além da floresta não há nada - afirmou o pai caracol. - Em parte alguma pode haver lugar melhor do que a nossa casa: eu, por mim, nada mais desejo.
     - Pois eu cá - retrucou a mãe caracol - queria ir à residência, para ser cozida e posta em um prato de prata. Foi assim com todos os meus antepassados. E fica sabendo que é uma coisa muito aristocrática!
    Talvez a casa tenha caído, ou quem sabe até se a floresta ficou tão cerrada que as pessoas não puderam mais sair de dentro ? Ora, nos não temos pressa! Tu é que andas sempre à disparada, e o menino já cai pensando do mesmo modo. Pois ele não subiu, em três dias apenas, até a ponta daquela haste? Eu sinto até vertigens só de olhar para aquilo!
     - Não ralhes com o menino: ele sobe com tanta prudência! Esta criança ainda nos dará muita alegria. Mas...já pensaste nisto: onde encontraremos uma esposa para ele? Achas que ainda haverá nesta mata outros caracóis da nossa espécie?
     - Caracóis pretos, isso é o que não falta; caracóis pretos, sem concha. Mas são pessoas de origem muito vulgar, apesar de terem muita presunção! Seria bom falar nisso às formigas, que andam sempre correndo para todos os lados, como se tivessem muitos negócios... Talvez elas conheçam uma esposa que sirva para o nosso pequenote.
     - Sim, conheço uma, e encantadora -disse a formiga; mas receio que ela não aceite, porque é uma rainha.
     - Mas isso não obsta - disseram os velhos. - Ela tem casa?
    - Tem até um castelo: o castelo maravilhoso das formigas, que tem setecentos corredores.
    - Ora muito obrigada, D. Formiga! Meu filho não vai morara em um formigueiro! E se a senhora não tem nada melhor a nos propor, vamos falar com as moscas, que voam pelos arredores, quer chova quer faça sol, e conhecem a floresta por dentro e por fora.
    - Sim, sim; conhecemos uma moça que serve para esposa dele - zuniram as moscas. - A cem passos daqui vive, em uma groselheira,um a jovem donzela caracol, das de concha. Mora lá sozinha , vive muito retirada e está em idade de casar. Fica a cem passos daqui, somente a  cem passos de homem.
     - Pois sim; então a ela compete vir procurá-lo - disseram logos os velhos; - ele tem uma floresta inteira, e ela não possui mais que uma groselheira!
    Foram as moscas procurar a jovem caracol. Levou a noiva oito dias na viagem; mas isso era justamente a prova mais certa de que era de boa raça.
     Realizou-se logo o casamento. Vaga-lumes iluminavam o salão conforme podiam. E não houve nais nada na festa, porque os caracóis velhos já não podiam suportar muito barulho.
    A mãe fez um discurso magnífico em lugar do pai, que não pode falar, de tão comovido. Fizeram doação de toda a floresta de bardanas ao noivo, e repetiram-lhe o que sempre tinham dito: que era ela o que havia de melhor no mundo. E que se eles se conservassem bons e honestos, e tivessem numerosa prole, seus descentes haviam de entrar um dia na casa de residência; lá seriam cozidos até ficarem pretos e postos então em um prato de prata. Terminado o discurso, tornaram os velhos a entrar nas suas conchas, de onde nunca mais saíram: ficaram dormindo. O jovem casal reinou na floresta e teve numerosa descendência, que não chegou jamais a ser cozida, nem posta em um prato de prata - de onde o casal concluiu que a casa devia ter desmoronado e que toda a raça humana tinha desaparecido. E como não havia ninguém para contradizê-los, acreditaram que essa era a verdade.
     E se a chuva tamborilava nas enorme folhas de bardana, era para eles. E se o sol iluminava o cerrado, colorindo as folhas, era ainda só para eles.
     E os caracóis viviam felizes; e toda a família era feliz, imensamente feliz...
FIM
    

domingo, 15 de novembro de 2015

O CAMINHO ESPINHOSO DA GLÓRIA- CONTOS DE ANDRESEN

A  velha lenda do "Caminho espinhoso da glória"  fala-nos de " um atirador que chegou, por fim, obter honras e dignidades, mas somente o alcançou depois de  uma longa série de desgostos e combates perigosos". Ouvindo a lenda, quem não se lembrará do  seu próprio caminho ignorado, mas cheio de espinhos, e  dos inúmeros reveses que padeceu?
     Lenda e realidade limitam uma  com a outra: mas enquanto a  lenda encontra aqui mesmo na terra a sua solução harmoniosa, a realidade aponta as mais das vezes para além da vida terrena - para as eras por vir, para a eternidade.
     É a História Universal uma lanterna mágica que nos mostra em diapositivos, sobre o fundo sombrio do presente, de que maneira os benfeitores da humanidade , os mártires do gênio, peregrinam pelo caminho espinhoso da honra e da glória.
   Vindo de todas as épocas, de todos os países, chega até nós o fulgor dessas imagens: e, ainda que rutilem por um só instante, cada uma delas representa uma vida inteira, uma vida de lutas e vitórias.
    Vejamos, em um rápido volver de olhos, alguns dos mártires dessa multidão, que só se extinguirá quando o globo terrestre se desfizer em pó.
    Lá está o anfiteatro completamente  cheio. Aristófanes, nas Nuvens, despeja torrentes de ironia e de escárnio sobre o povo. No palco é metido a ridículo, física e moralmente, o homem mais notável da Atenas, aquele que foi o esteio e amparo do povo contra os trinta tiranos -Sócrates, que na confusão da batalha salvara Alcibíades  e Xenofonte, e cujo espírito se elevou acima dos deuses da antiguidade. Ele está presente. Levanta-se no banco dos espectadores, para que o público, que ri ,possa confrontar o original com a caricatura do palco, e verificar por si o grau de semelhança entre um e outra. E ali está o filósofo, em frente deles - e muito superior a todos eles.
    E é a verde cicuta, a cicuta viçosa e peçonhenta, quem deita a sua sombra sobre Atenas, e não a oliveira!
    Sete cidades disputaram a honra de ser o berço de Homero - depois de estar ele morto! Vejamos, porém, como decorreu a sua vida. Lá vai ele, a pé, de cidade em cidade, recitando seus versos, para ganhar a vida. E a preocupação do pão de cada dia lhe encanece cedo a cabeça. É o grande vate,     agora cego, tateia em busca do caminho. Agudos espinhos despedaçam o manto do rei da poesia. Seus cantos , porém, continuam vivendo , e é somente por eles que continuam também vivos os deuses os heróis da antiguidade.
     E  quadro surge após quadro, já do Oriente, já do Ocidente, distantes entre si no espaço e no tempo, mas representando todos ele um trecho do caminho espinhoso da glória, onde o cardo só rebenta em flores quando chega a hora de adornar o túmulo...
    À sombra das palmeiras avançam os camelos , ricamente carregados de anil e de outras preciosidades, que o soberano envia àquelas cujos cânticos despertam a alegria do povo e enchem de glória a pátria.  O homem que a inveja e a mentira tinham atirado ao exílio foi enfim encontrado. Aproxima-se a caravana da cidadezinha onde achara uma asilo. À porta da cidade um cortejo fúnebre detém a caravana: levam um pobre a enterrar. E o defunto pobre é exatamente aquele que iam buscar: Firdusi, que acaba de dar o último passo da sua peregrinação no caminho espinhoso da honra e da glória.
    Nos degraus de mármore do palácio da capital portuguêsa um africano de feições rudes, lábios grossos, cabelos pretos e lanosos, estende a mão , mendigando. É o dedicado escravo de Camões. Se não fosse ele, se não fossem as moedas de cobre que lhe atiram os transeuntes, o poeta de  Os   Lusíadas morreria de fome.
     Hoje, que suntuoso  monumento se ergue sobre o túmulo de Camões!
     Mais outro quadro.
    Por detrás de uma grade de ferro aparece um homem pálido como a morte, de barba longa e emaranhada. E grita:
     - Fiz uma descoberta! Fiz a maior descoberta dos últimos séculos! E eles me mantem aqui prisioneiro, há mais de vinte anos!
      - Quem é aquele homem?
     - Um louco - responde o guarda. - Imagina só quanta coisa a loucura pode inventar! Deu-lhe uma mania: que a gente pode movimentar-se, andar para a frente, por meio do vapor!
      Era Salomão de Caus, que descobrira a força do vapor; mas Richelieu não lhe compreendeu a intenção, que ele não explicara com muita clareza. Morreu no hospício.
     Lá está Colombo, outrora perseguido e escarnecido pelos moleques da rua, porque pretendia descobrir um mundo novo. E ele o descobriu! No dia do seu regresso triunfante chega até os seus ouvidos o clamor de júbilo que sobe do peito dos homens, e o repique dos sinos das igrejas. não tardará, porém, que os sinos da inveja sobrepujem aqueles. O descobridor de um Mundo, aquele que tirou do mar a terra dourada da América e a deu de presente ao seu rei, recebe em recompensa as correntes de ferro que hão de  agrilhoar. E ele faz  questão de levar essas correntes ao túmulo, porque elas dão testemunho deste mundo e da maneira como os homens avaliam o mérito dos seus contemporâneos.
    E um após outro, vão aparecendo os quadros. O caminho espinhoso da glória está cheio.
    Lá, na treva da noite, está o homem que mediu os montes da lua, que se arrojou ao espaço infinito, para os astros, para os planetas; aquele gênio poderoso, que entendeu o espírito da natureza e sentiu que a terra se movia sob os seus pés: Galileu. Agora , velho, cego e surdo, aguilhoado pelos espinhos do sofrimento, obrigado abjurar, mal pode levantar o pé - aquele pé que bateu no chão, desesperado, quando viu que ocultavam a verdade, e ele exclamou:
    - E contudo, ela se move!
     Lá está agora uma mulher, uma mulher com o  espírito de uma criança, cheio de entusiamo e de fé. É ela quem ergue o pendão à frente do exército em luta, alcançando a vitória e a salvação para a pátria. Alto, bem alto se levanta o clamor de júbilo, e mais alto ainda sobem as labaredas da fogueira: Joana dArc, a Bruxa, está sendo queimada. E outro século chegou a cuspir sobre o lírio imaculado. Voltaire, o espírito satírico do bom-senso, decanta a " Pucelle".
      No thing, isto é, na sede do tribunal do povo, em Viborg, a nobreza dinamarquesa queima as leis promulgadas pelo rei. Sobem muito alto as chamas, iluminam a época, iluminam o legislador : elas desenham uma auréola lá dentro da escura masmorra da torre onde foi  encarcerado. Encanecido, curvado ao peso dos anos , abrindo com o dedo um sulco na pedra da mesa do popular, amigo do burguês e do camponês - Cristiano II. A história do seu reinado é escrita por inimigos. E não devemos esquecer os vinte e cinco anos que passou na  prisão, ainda que não seja possível apagar a mancha indelével do sangue que ele fez correr.
     Lá vai um navio , que deixa a costa dinamarquesa. Encostado ao mastro , um homem lança um último olhar para a Ilha de Hveen. È Tycho Brahe. Ele elevou até as estrelas o nome da Dinamarca, e deram-lhe em recompensa humilhações e desgostos. E é por isso que se vai para um país estrangeiro, sempre repetindo:
    - Por toda a parte o céu se curva em abóboda acima de mim.  Que mais posso querer?
      E o dinamarquês ilustre lá se vai naquele navio; vai viver em país estranho, livre e cercado de honras.
    - Ah! Ser livre , embora apenas para padecer as dores insuportáveis do corpo!
     É um gemido que ecoa, atravessando as épocas, e chega aos nossos ouvidos. Que quadro! Griffenfeld, o Prometeu dinamarquês, amarrado ao penedo da Ilha de Munkholm.
     Estamos agora na América, à beira de um dos maiores rios: ali está reunida uma multidão imensa. Dizem que vai partir dali um navio, arrostando os elementos, os ventos, a intempérie: é Roberto Fulton quem se propõe assim resolver o problema.Começa a viagem, mas de repente o navio para: a multidão ri, apupa, assobia. E o próprio pai do inventor brada:
      - Que arrogância! Que loucura! Aí tem ele o que merecia!
       E enquanto isso a multidão grita:
        - Está louco! Está louco! É preciso prendê-lo!
      Mas eis que se parte um preguinho, que tinha por um momento estorvado o andamento da máquina. tornaram a girar as pás, de novo passam pela água, e o navio prossegue a viagem. E a força do vapor vem reduzir a minutos as horas que separavam os continentes.
     O gênero humano! Compreenderás tu a bem-aventurança desses instantes de conhecimento partilhado, o sentimento de um espírito compenetrado da sua missão, esse instante em que todo o desespero, todas as feridas rasgadas no caminho espinhoso da glória - até as que vem da própria culpa - se convertem em salvação, em vigor e em claridade? Esse momento em que a desarmonia se muda em harmonia, em que os homens encontram a manifestação da graça divina na criatura e percebem de que maneira esta tudo lhes manifesta?
      O caminho espinhoso da glória nos aparece, pois, como uma auréola que fulge ao redor da terra, Três vezes felizes os que foram escolhidos para trilhar esse caminho: aqueles que, sem merecimento próprio, mas pela força da graça, são postos entre o arquiteto da ponte, que é Deus , e a humanidade!
     O espírito da Historia adeja, com asas poderosas, por sobre as épocas; ele anima, consola e desperta ideias suaves, mostrando o caminho espinhoso da glória - esse caminho que não vai acabar, como na lenda, em esplendor e alegria terrena, mas para além deste mundo, nas eras da eternidade.
   FIM

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O LINHO - CONTOS DE ANDERSEN

O linho estava todo em flor, coberto de pequenas corolas azuis, delicadas como as asas da cigarra - e ainda mais transparentes. Recebia a luz do sol e as águas da chuva: era como a criancinha que depois do banho recebe um beijo da mamãe. Isso aumenta a beleza das crianças; e foi o que aconteceu com o linho.
     - Dizem que cresci muito- exclamava ele - que estou muito alto e que hei de dar um belo pedaço de pano. Sou, na verdade, muito feliz! Sou, certamente, o mais feliz de todos. que sorte tenho tido! E tudo me sairá bem . O sol me alegra tanto e a chuva me refresca - esta chuvinha boa e agradável ! Sou infinitamente feliz: não há ninguém mais feliz do que eu!
     - Pois sim, pois sim! - disse a taquara. - Não conheces o mundo , mas eu conheço, pois sou toda cheia de nós.
      E ela rangia, lamentando-se:
                             "Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
                               Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
                                Acabou-se a cantoria!"
      - Não, senhora! Não acabou -disse o linho.- Amanhã o sol há de brilhar, ou há de vir a chuva  me refrescar. Sinto que estou crescendo... sinto que estou em flor. Ah! Sou eu o mais feliz!
       Mas um dia vieram uns homens e seguraram o linho pelo pescoço, arrancado-o com raiz e tudo. Aquilo doeu muito! Depois deitaram-no à água, como se quisessem afogá-lo; e  depois o expuseram ao calor do fogo - parecia que iam agora assá-lo! Foi uma coisa horrível!
      - Ora, não se pode viver bem todos os dias -disse o linho.- Devemos passar trabalhos: é assim que se aprende.
     Mas o fato é que padeceu, tormentos horríveis; foi molhado, torrado, despedaçado, e  cardado... Nem ele mesmo sabia que nome havia de dar a todos os processos a que o submeteram. Afinal, meterem-no na roca: Rrrr! ...Rrrr!... Nem lhe era possível concentrar as ideias. E, no meio de todas aquelas torturas, ia sempre pensando:
     - Fui muito feliz outrora... A gente deve contentar-se com os bens que já gozou...contentar-se...contentar-se...ar!...Ai!
      E foi então que o meteram no tear; e ali ele se transformou em uma grande e bela peça de pano. E todo o linho, até a última haste, foi gasto naquela única peça.
      - Mas que coisa extraordinária! Quando é que eu ia imaginar isto! Vejam como a sorte me favorece! A taquara não estava mal-informada quanto aquele "lá-lá´ri´lá-ri-lá-lá" que cantava! Mas a cantiga não se acabou, não! Pelo contrário- agora é que vai começar. É, com efeito, extraordinário! É certo que me fizeram sofrer um bocado, lá isso é verdade; mas cheguei  ser alguém. Sou  eu mais feliz de todos. Como fiquei forte, distinto, branco , e tão comprido... Isto sim vale a pena! Não é só ser uma planta, ainda que esteja coberta de flores!Ninguém se importava comigo, e água, só recebia quando chovia. Agora  sim, tratam de mim, enchem-me de mimos. A criada vira-me todos os dias, e todas as noites me dão um banho de chuveiro, com o regador. A esposa do pastor até fez um discurso, dizendo que eu era a melhor peça de linho de toda a paróquia. Não! Eu não poderia se mais feliz do que sou!
    Levaram o pano de linho para dentro de casa, e lá caiu ele sob os golpes da tesoura. Ah! como o talharam e retalharam! Não era nada agradável, aquilo! Mas afinal foi convertido em doze peças de roupa - peças cujo nome não se costuma dizer, mas que todas as pessoas devem usar. Fizeram uma dúzia, dessas peças.
    - Vejam! Agora é que me tornei coisa útil. Era então este o meu destino! Que maravilha! Agora presto serviços, tenho utilidade no mundo, como todos devem ter. Isto é que causa prazer à gente! Somos agora doze peças, mas somos todas uma e a mesma coisa. Formamos exatamente uma dúzia. Que sorte extraordinária a nossa!
     Passaram-se anos. Um dia, enfim, o pano de linho estava gasto.
    - Tudo se acaba, afinal -dizia cada peça de roupa. - Eu gostaria de durar mais um pouco, mas a gente também não deve desejar o impossível.
     Foram então rasgadas em pedacinhos. E, quando se viram assim picadas, encharcadas de água e cozidas, pensaram que agora, sim, estava tudo acabado. Nem elas mesmas sabiam quanta coisa acontecia...e de repente estavam transformadas em belo papel branco.
    - Mas que surpresa, que maravilhosa surpresa! - disse o linho. - Sou mais fino agora do que dantes, e hão de escrever sobre a minha superfície! Poi isto não é uma sorte extraordinária?
     E realmente nele foram escritas as mais lindas histórias e poesias; e apenas um único pingo de tinta lhe caiu em cima, fazendo um borrão, isto em um momento de pouca sorte. E as pessoas ouviram o que fora escrito sobre o papel; eram coisas boas e inteligentes, que tornavam os ouvintes muito melhores e mais instruídos. Havia uma benção nas palavras escritas naquele papel.
    - Mas isto é muito mais do que eu podia imaginar, quando era uma simples florzinha azul, lá no campo! Como ia esperar que um dia pudesse espalhar alegria e conhecimentos entre os homens? Ainda não posso compreender, mas realmente assim é. Deus sabe que não fiz senão o que minhas limitadas forças me obrigaram a fazer, para assegurar a minha subsistência; e todavia ele me favorece desta maneira, fazendo que eu vá de uma alegria a outra, de uma honra a outra honra. E cada vez que penso comigo: " acabou-se a cantoria!"  torno de novo a uma vida melhor, mais elevada! Agora, com certeza, irei viajar pelo mundo, para que os homens me possam ler... Não pode ser de outra  maneira. Não há nada mais certo! E tenho pensamentos magníficos, e tão numerosos como fora, outrora as minhas flores azuis... Sou a criatura mais feliz do mundo!
     Contudo não o mandaram viajar: enviaram-no à tipografia. E lá aquilo que nele  estava escrito foi composto e impresso, para formar um livro, e até muitas centenas de livros; assim poderiam tirar alegria e proveito de sua leitura muito maior número de pessoas que não lhes seria possível fazer se um único papel corresse mundo, gastando-se no caminho.
     - É claro que isso é  muito mais razoável - pensava o papel escrito. - Nem me lembrava de semelhante coisa. Fico em casa, onde serei honrado como um velho avô, e é o que no fundo venho a ser de todos esses livros novos. Assim o resultado será muito maior. Eu não poderia circular daquele jeito. Mas foi em mim que fixou os olhos aquele que escreveu a obra. cada palavra entrou em mim, vinda diretamente da pena. Sou a mais feliz das criaturas!
    E o papel foi amarrado, feito um fardo, e assim o lançaram em um barril, na lavanderia.
    - Quem bem trabalha, melhor descansa! É muito útil a gente se concentrar e ter tempo para meditar sobre as coisas que traz no seu íntimo. Só agora sei realmente o que está escrito em mim. E conhecer-se a gente a si própria é a verdadeira sabedoria. Que farão de mim, agora? De qualquer forma darei um passo à frente: é sempre para a frente que a gente caminha. Isso já o sei por experiência própria.
     Mas um belo dia todo o papel for retirado do barril e posto sobre o fogão. Ia ser queimado. pois não podia ser vendido no armazém para embrulhar manteiga ou açúcar. E todas as crianças da casa se agruparam em roda, porque gostavam de ver arder papel, que dava labaredas tão altas e tão lindas. Além disso a gente via nas cinzas aquela multidão de faíscas vermelhas, que esvoaçavam para odos os lados. e iam extinguindo-se rapidamente. As crianças chamavam aquela brincadeira " ver as crianças saírem da escola";  e a última faísca era o mestre. Muitas vezes toda a gente pensava que ele já tinha saído, quando de repente lá vinha mais outra faísca:
    - Lá se foi o mestre-escola!
     Mas é que não estavam bem informados. Deviam saber quem era que ia saindo! Nós o sabemos, mas as crianças ignoravam-no.
     Todo o papel velho, o fardo inteiro, inflamou-se num instante.
     - Uuuu! - clamava ele, quando flamejava em labaredas altas. - Uuuu! ...
      Não se pode dizer que aquilo era lá muito agradável. Mas quando tudo estava em chamas, ergueram-se elas a tamanha altura como o linho nunca poderia erguer suas florzinhas azuis; e brilhavam como o pano branco jamais poderia brilhar. Todas as letras escritas nele ficaram vermelhas no mesmo instante; e todos os pensamentos, todas as palavras que estavam ali se transformaram em labaredas.
     - Agora subo diretamente até o sol! clamou a chama.
     E foi como se mil vozes cantassem uníssono. E  a s chamas saíram no topo da chaminé.
    E mais finos ainda que as chamas, invisíveis para o olho humano, adejavam seres pequeninos: tantos quantas tinham sido as flores do linho. Eram mais leves que a chama de que haviam nascido. E quando esta se extinguiu, e do papel nada mais restava senão a cinza escura, eles dançaram ainda uma vez por cima dela: onde quer que um deles a roçasse, brotava centelhas rubras.
    - As crianças saíram da escola e o mestre foi último!
    Grande era a alegria, e diante da cinza morta cantavam as crianças:
                            "Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
                               Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
                                Acabou-se a cantoria!"
    Mas todos aquele pequeninos seres invisíveis disseram:
    - A cantiga não se acaba nunca! E é isso o que há de mais lindo. Bem o sei eu, e por isso mesmo sou a criatura mais feliz do mundo!
      Todavia , eram palavras essas que as crianças não podiam ouvir, nem entender.
     Também, não era preciso: pois as crianças não devem saber tudo, não é ?
  FIM

   

terça-feira, 10 de novembro de 2015

CADA COISA NO SEU LUGAR - CONTOS DE ANDRESEN

Isto aconteceu há mais de um século.
   Na margem do grande lago, junto ao bosque, assentava uma velha mansão cercada de profundos fossos, todos cheios de juncos; junto à ponte um frondoso salgueiro curvava os galhos sobre os caniços.
   Ouviu-se de repente, subindo a vereda que ali ia dar, um som de trompas de caça; e a pastorinha que cuidava dos patos apressou-se a apartá-los da ponte, antes que os espezinhasse o bando de caçadores, que se aproximavam a galope. Contudo, vindo à rédea solta, chegaram antes que ela tivesse escapado; e a pastorinha teve de escalar precipitadamente um pilar da ponte, para não ser atropelada.
    Era quase uma menina, e de frágil compleição; o olhar, suave, traía-lhe a inteligência e a bondade. Mas o barão, esse não atentou em nada disso: ao passar, a toda disparada, empurrou-a com o cabo do chicote, atirando-a de costas no fosso. E gritou:
    - Cada coisa no seu lugar! O teu é no fosso!
     Soltou então uma gargalhada, como se tivesse dito coisa muito espirituosa. imitaram-no os companheiros, e às risadas estrepitosas de todo o bando, juntaram-se também os latidos dos perdigueiros.
     A sorte foi que a pastorinha, ao cair, tivesse podido agarrar-se a um galho do salgueiro, ficando assim suspensa sobre a água; e, quando o barão e sua comitiva desapareceram com a matilha, tratou ela de içar-se, conforme podia. mas o galho quebrou-se, e ela teria caído entre os juncais, se um pulso forte, vindo de cima da ponte, não a tivesse segurado. era um mascate que, tendo visto de alguma distancia o que acontecera, corria em seu auxílio.
   - Cada coisa no seu lugar! - disse ele, arremedando o nobre barão, quando depunha a menina em terra enxuta.
    Tentou então endireitar o galho quebrado, que não se separara totalmente do tronco; mas como não o conseguiu, convencido de que nem sempre se pode por cada coisa no seu lugar, fincou-o na terra fofa.
     - Cresce aí, se puderes - disse ele- e produz boas flautas para aquela gente lá de cima...
    É que, a seu ver, o barão e toda a sua malta mereciam boas varadas.
    Contudo, atravessou a ponte e foi direito à casa nobre. Não se dirigiu, porém. à sala do banquete - era muito humilde para isso, é claro. Entrou pelos fundo, onde se encontrava a criadagem. Todos eles, homens e mulheres, remexeram nas bagatelas que carregava, regateando. E enquanto isso, vinham lá de cima a grita e os bramidos dos hóspedes, pois que aquelas vozes dissonantes não mereciam o nome de canções. Pelas janelas abertas ouviam-se as risadas estridentes e os latidos dos cães; nos copos e canecas espumavam o vinho e a cerveja. os cães de estimação comiam com os donos, e não era raro ver um daqueles fidalgos segurar a longa orelha do seu favorito, limpar-lhe com ela o focinho e depois pespegar-lhe um beijo.
     Querendo divertir-se à custa do mascate, ordenaram-lhe que subisse com a sua mercadoria. O vinho velava-lhes a razão, e a luz do entendimento, já de si escassa, extinguira-se por completo naqueles cérebros. deitaram vinho em um pé de meia, e queriam que o mascate o bebesse a toda pressa. Achavam extraordinária graça na brincadeira, e riam a bom rir. Depois, já cansados, passaram a jogar- e campos, granjas e outros bens foram ganhos e perdidos no baralho.
     - Cada coisa no seu lugar! - disse o mascate, afastando-se daquela casa de perdição. - O meu é na estrada livre. Não me sentia bem ali.
      E a menina dos patos, vendo-o atravessar o pátio, enviou-lhe um adeus, sorridente.
     Passaram-se os dias, passaram-se as semanas, e o galho de salgueiro, plantado pelo mascate à beira do fosso conservava-se fresco, e ia brotando. Compreendeu a menina que o ramo criara raízes, e ficou muito contente, porque  aquela nova arvorezinha era a sua árvore, segundo dizia. E, à medida que crescia a planta, ia a casa solarenga desmoronando, entre as libações, e a jogatina- dois passatempos admiráveis, que levam depressa à ruína. E seis anos depois, o barão, de cajado e sacola, atravessava pela última vez a porta do castelo, adquirido havia pouco por um rico negociante.
     Ora, o rico negociante outro não era senão aquele mascate, a quem ele pretendera obrigar a tomar vinho em um pé de meia, para divertimento seu e dos amigos. E como a honestidade e o trabalho levam à prosperidade, era agora o mascate o dono e senhor da baronia. E desde então foi terminantemente proibido o jogo de cartas em todo o feudo.

     -É um péssimo divertimento - dizia ele .- Quando o demônio viu a Bíblia pela primeira vez, procurou uma arma para guerreá-la e inventou o baralho.
     Um dia casou o novo proprietário. E com quem ? Ora, com quem havia de ser? Com aquela pastorinha que cuidava dos patos, e que conservou sempre a mesma meiguice e bondade de coração. E era tão bela agora nos seus ativios elegantes como se tivesse nascido em um berço nobre . Como se processou tanta  mudança é uma história muito longa para contar agora, nestes tempos em que tudo corre com tanta precipitação; mas isso aconteceu- e é que importa ao caso.
      Corria a vida agora tranquila e feliz na velha mansão: a mãe cuidava do governo da casa, enquanto o pai atendia os negócios, de dia em dia mais prósperos, como se a benção do céu os protegesse. É que a prosperidade atrai a prosperidade.
    O castelo foi restaurado e todo pintado de novo; limparam-se os fossos, plantaram-se árvores frutíferas. Naquela casa tudo tinha aspecto acolhedor e amigo. O soalho brilhava como um espelho. Nas longas noites de inverno a dona da casa e suas aias trabalhavam, fiando na roca, instaladas na sala principal. Todos os domingos o conselheiro - porque o mascate, na idade madura, chegou a ser o representante da lei- lia a Bíblia em voz alta. Aos filhos, que foram nascendo, deu o casal a melhor educação, ainda que nem todos mostrassem a mesma inteligência, o que não é caso raro. Entretanto o salgueiro da estrada convertera-se em uma bela árvore: crescera sempre em liberdade, sem que nunca ninguém a podasse.
    - É a árvore genealógica - dizia o casal.
     Era preciso, pois, honrá-la e tratá-la com respeito. E isso mesmo advertiam aos filhos, até aos que não tinham lá muito boa cabeça.
    Transcorreu um século. Vemo-nos transportados à época. O lago transformou-se em um charco, e o velho solar quase desapareceu. Do fosso profundo só resta hoje um valo de água estagnada, ao pé de uns restos de muros em ruínas, sobre as quais se eleva, magnífico, um belo salgueiro; a árvore genealógica, sobrevivendo a tudo, e demonstrando a que ponto pode chegar a beleza de um salgueiro, quando ninguém o mutila. É certo que o tronco está fendido da raíz à copa - é a honrosa cicatriz a recordar os combates que sustentou contra  as tempestades; mas ainda se ergue altaneiro,  e em cada fenda, que o vento e as chuvas encherem de terra, crescem plantas e flores - condecorações da sua galhardia. Na copa, onde os ramos se entrelaçam, floresce todo um jardim de fetos e framboesas, que lhe dão um aspecto pitoresco; até uma pequena sorveira ali enraizou, elevando-se , esbelta e delicada, no meio da folhagem do salgueiro, que se mira na água pardacenta do valo, quando o vento impele o limo para um lado.
    No topo do cerro próximo, cercado de bosques, onde se descortina esplendida vista, ergue-se a nova casa solarenga. É vasta e magnifica:os vidros das janelas são tão transparente, que elas parecem sempre abertas. A ampla escadaria que conduz à entrada sobe à sombra de um verdadeiro caramanchão de flores e folhagens trepadeiras. A grama do prado é tão verde, que dá impressão de que alguém a lava todos os dias. E dentro, nos salões suntuosos, pendem das paredes quadros de grande valor. Sofás e poltronas , estofados de veludo e de seda, podem ser transportados facilmente de um lado para outro, sobre os rodízios. Mesas artisticamente esculpidas, cobertas de mármore polido, ostentem livros encadernados em marroquim, com os cantos dourados. Não há dúvida de que é uma residencia de gente de gosto : é a morada do barão e de sua família.
     Tudo ali se harmoniza: móveis e cores não destoam dos ornatos e alfaias. E o lema da família continua sendo; "Cada coisa no seu lugar! " E em obediência a esse princípio é que os quadros, que em outro tempo tinham sido a glória  e a honra da casa, foram relegados para o corredor dos quartos da criadagem. Estavam já alterados pela pátina e carcomidos, principalmente os retratos, um dos quais representava um homem de peruca e casaca escarlate, e outro, uma dama de cabeleira empoada, e segurava na mão uma rosa. Esses dois quadros tinham uma cercadura de ramos de salgueiro; e estavam ambos crivados de orifícios, porque os filhos do barão se serviam deles para alvo de seus tiros - a despeito de serem os retratos do conselheiro e de sua esposa, dos quais descendia toda a família.--------------------
     - Em rigor - dizia um dos barõezinhos - não pertencem à nossa estirpe  : ele era mascate, e ela, pastora. Não se pareciam nem de longe  com o papai e a  mamãe!
      E como os retratos estavam muito estragados, cheios de manchas, trastes velhos, enfim, foram estragados, foram os bisavós confinados nos aposentos da criadagem: " Cada coisa no seu lugar!"
     Era professor da família o filho do pastor. Passeava um dia com os discípulos, entre os quais se achava a irmã mais velha, e seguiam pelo caminho estreito que ia dar ao salgueiro. A mocinha ia colhendo flores silvestres. " Cada coisa no seu lugar!" E, de fasto, o ramalhete nas suas mãos formava um belo conjunto, e não a impedia de ir escutando o que se dizia; gostava muito de ouvir o professor falar sobre a natureza, ou sobre os personagens que desempenham nobilíssimos, e de uma alma que transbordava de amor por toda a obra do Criador.
    Detiveram-se à sombra do salgueiro, e , para satisfazer o menor dos irmãos, que queria uma flauta de salgueiro, o filho do pastor quebrou um ramo da árvore.
    - Oh! Que fez o senhor! - exclamou a jovem. - Enfim... Agora já não há remédio! Essa é  a nossa árvore lendária. Meus irmãos riem de mim, porque lhe tenho amor, mas isso pouco me importa. Ela possui a sua história, não sabe?
    Contou-lhe então o que já sabemos a respeito do salgueiro, do velho solar, do mascate e da menina que cuidava dos patos; contou que se viram pela primeira vez à sombra daquela árvore; que vieram a ser os fundadores da família; e que essa, com andar do tempo, tinha sido empossada também no antigo baronato. E explicou afinal:
    - Esses nossos antepassados não quiseram incorporar-se à nobreza, porque, aferrados ao sue lema - "Cada coisa no seu lugar!" não achavam acertado adquirir um título nobiliárquico à custa de dinheiro. Foi meu avô, que era filho daquele casal, o primeiro barão da família. Era justamente reputado homem erudito, e gozava do favor dos príncipes,  que o convidavam para as festas da Corte. Em casa, todos o membros da família lhe tributam muito respeito e carinho; contudo, não sei dizer por que sempre me vai o coração em busca do velho casal, filho do povo, e que me atrai... Que espírito de família, tão singelo e tão íntimo, devia presidir à vida do antigo solar patriarcal, onde a dona fiava na roca com as suas aias, enquanto o marido lia a Bíblia em voz alta!
    - Era certamente gente boa e sensata -disse o filho do pastor.
      E passaram a conversar sobre nobre nobres e burgueses; e dir-se-ia que o moço não procedia da burguesia, quando falava do significado na nobreza.
     - É grande felicidade pertencer a uma família distinta, possui uma espécie de acicate do sangue, que nos impele a praticar boas ações, e ter um nome de família que vale por um cartão, que nos abre as portas dos círculos mais elevados. A nobreza do sangue, unida à nobreza da alma, é a moeda de ouro que tem o cunho do valor próprio. E é um erro do nosso tempo afirmar, como fazem muitos escritores, que toda a nobreza é má e estúpida, e que quanto mais se desce na escala social, mais brilhantes são as virtudes. Não partilho dessa opinião. Encontra-se também nas classes elevadas muita bondade e rasgos de grande e comovente beleza. Ouvi de minha mãe alguns episódios e eu mesmo poderia apontar muitos caso semelhantes. Contou-me ela que estava um dia de visita em uma casa nobre, na cidade. Se bem me recordo, minha avó fora ama da senhora. Conversava ela na sala com o dono da casa, cavalheiro distintíssimo, quando viu ele que uma velhinha de muletas entrava no jardim. Ia receber a esmola de todos os domingos, mas andava com grande dificuldade, apoiada nas muletas. Ao avistá-la, exclamou o fidalgo:
    " - Coitada da velinha... como lhe custa caminhar!"
     E antes que minha mãe compreendesse o que se passava, já ele tinha saído da sala e descido a escada, a fim de poupar à pobre velha o penoso trabalho de subir, para receber o auxílio que lhe dava. É claro que o caso em si não passa de um pequeno exemplo, mas como o óbulo  da viúva pobre, de que fala a Escritura, vai ecoar no íntimo do coração, nas profundezas da natureza humana. Esses fatos é que os escritores deviam buscar e mostrar: porque são coisas que consolam, comovem e trazem reconciliação - principalmente nos dias de hoje. Mas quando um homem, só porque é de sangue azul, se empina em plena rua, como um cavalo árabe, para gritar  a nobreza de sua linhagem, e, ao  entrar em uma sala onde tenha estado uma pessoa humilde diz que ali andou gente da plebe, porque o ar cheira a povo - então é senão a máscara daquele tipo criado por Téspis, o pai da tragédia; e não passa de objeto de escárnio, que a sátira se encarrega de ridicularizar.
      Fora talvez um tanto  estirado e sermão do filho do pastor. Mas a flauta estava pronta.
      Na mansão senhorial celebrava-se uma grande festa, a que assistiam muitos convidados, dos arredores e da capital. Era grande o número de senhoras, trajadas com ou sem elegância, conforme o  gosto de cada uma. Os representantes do clero ficaram discretamente de lado, como se estivessem em  um velório; contudo, era bem uma festa, e festa alegre: apenas a alegria ainda não tinha começado.
    Consistia uma das atrações em um grande concerto, e por isso o menino tinha pedido ao professor que lhe fizesse uma flauta. Mas, por mais que tentasse, não pode tirar dela som algum, nem tampouco seu pai o conseguiu, de modo que o instrumento de nada servia.
      Não faltaram as músicas e canções, daquele gênero que deleita antes ao executante do que a quem o ouve. A não ser esse senão, tudo era encantador. Um dos presentes, um jovem fidalgo, virou-se para o professor e perguntou:
     - O senhor também é artista, não? Toca flauta e fabrica-a por suas mãos... Que coisa genial! Merece ser exibido.
     E, dizendo isto, ofereceu-lhe a flauta, aquela flauta feita da vara do salgueiro do fosso. E, em voz bem alta, proclamou que o professor ia regalá-los com um solo.
     Compreendendo - o que era evidente - que queriam divertir-se à sua custa, negou-se o moço a tocar, embora pudesse desempenhar-se admiravelmente dessa incumbência. Tanto, porém, instaram e porfiaram com ele, que acabou por pegar na flauta.
    Mas era uma flauta singular, aquela! Lançou primeiro um som estridente e confuso, como o silvo de uma locomotiva; depois soou ainda com mais força que a máquina, pois aquele silvo foi ecoar no jardim, no parque, nos bosques, e foi ouvindo a muitas milhas de distância. A nota ferida produziu um vendaval, que bramia incessantemente:
    - Cada coisa no seu ligar!
     E o dono da casa, o barão saiu voando, arrebatado pela ventania, e lá se foi, até parar na choça do porcariço; esse também voou, não para a sala de festas do castelo, onde não era o seu lugar, mas para a sala da criadagem, onde os fâmulos se pavoneavam, de meias de seda. Ficaram todos mudos de assombro, ao verem aquele intruso, que ousava assim sentar-se à sua mesa.
     Na sala do banquete a filha do barão voou para o lugar de honra, à cabeceira da mesa, onde merecia sentar-se;  e a seu lado veio parar o filho do pastor: assim juntos pareciam um casal de noivos. Um conde velho, membro de uma das famílias de mais alta linhagem do país, permaneceu no seu lugar, imóvel: a flauta distribuía justiça. O jovem inconsequente que provocara todo aquele estrondo, e que era um fidalgo, fez , de cabeça para baixo, um voo até o curral, onde outro o acompanharam.
    O som da flauta troou em toda a região, produzindo fenômenos estranhos. Os filhos de um rico banqueiro, que viajava em um carro puxado por duas parelhas, viram-se lançados fora da carruagem e não acharam lugar sequer na boleia. Dois granjeiros, ricos demais para a terra que possuíam, e que os tempos modernos tinham alcançado acima dos seus trigais, foram arrojados ao açude. Era uma flauta perigosa, aquela! Por sorte partiu-se ao dar a primeira nota. e ainda bem que assim foi ! O professor mete-a no bolso, dizendo:
    - Cada coisa no seu lugar!
     No dia seguinte ninguém mais falou no caso; e foi então que nasceu a expressão: " meter a flauta no bolso", que noutros países significa: " meter a viola no saco."
    Quanto ao mais , tudo voltou ao antigo estado, isto é, continuou como dantes. A única modificação foi a dos retratos do casal de velhos: o mascate e a pastora estavam na parede do salão de festas, no lugar onde os colocara a ventania.
      E como um perito de arte declarou que eram obra de mão de mestre, foram devidamente restaurados, e ali ficaram : " Cada coisa no seu lugar!"
     Longa é a eternidade - e o mundo dá muita volta!
   FIM