sexta-feira, 30 de junho de 2017

Amigos uma pausa para um breve recado, com muito carinho! Tita



Boa noite à todos os leitores e amigos , lembrando que estou aqui para aprender e dividir, aprender a ler mais, falar e expressar melhor as palavras e dividir gentilezas.  
Aos amigos que passam a noite acordados desejo uma ótima madrugada, no bom silêncio da vida, se criam muitas bos ideias , é tão gostoso. Se pudesse ficaria acordada, lendo , transcrevendo minhas lindas histórias. 
  Amanhã vou transcrever a última história  do volume 4 dos Contos de Andersen meu filho já adiantou. - Mãe tu vais chorar né, quando terminar. Com certeza que vou me emocionar , pois me apego muito a tudo que gosto de fazer.
 Amo tudo isso! Beijos

O GALHO DA SORTE - CONTOS DE ANDERSEN

 Quero agora contar uma história da Sorte. Todos nós conhecemos a Sorte. Há quem a encontre todos os dias; mas há também aquele que somente a veem de anos em anos, e num único dia. E há até quem a tenha visto apenas uma única vez em toda a vida.
   Não há, entretanto, ninguém que não a tenha jamais encontrado; isso não!

   - Não julgo necessário contar - pois que todo o mundo sabe - que Deus manda as criancinhas para o colo das mães. Tanto no castelo dos ricos e na casa abastada, como nos campos desprotegidos, varridos pelos ventos frios. Mas nem todos sabem- e contudo, e indubitável! - nem todos sabem que Deus, quando manda as criancinhas, as dota com um brinde da Sorte. É certo que esse brinde não fica exposto e visível aos olhos curiosos de todo o mundo não!Fica instalado em algum lugar, no lugar onde menos esperaríamos encontrá-lo, e contudo, é sempre achado no momento oportuno, o que vem a ser muito agradável. Pode estar escondido em uma maça, por exemplo, como sucedeu com um sábio chamado Newton. A maça caiu, e ele encontrou nela a Sorte. Se  não sabes essa história, pede a alguém que te conte a história da maça*. Quanto a mim, vou contar outra - a história de uma pera.
   Era uma vez um homem pobre, que nascera na indigência, criara-se na miséria, e casara sem dela se aparta. Era torneiro de profissão, e torneava de preferencia cabos e argolas para guarda-chuva; mas isso mal dava para o sustento de cada dia. E ele costumava dizer:
   - Eu jamais tive sorte...Nunca a encontrei na vida eu podia dizer o nome do país e até do lugar onde morava aquele homem. Mas isso é coisa que não importa à história.
   A casa era toda rodeado de sorveiras( é uma árvore da família das Rosaceae), vermelhas e acres; eram o maior adorno do pomar, mas havia também ali uma pereira, que não dava pera alguma. E contudo, naquela árvore é que estava escondida a Sorte, oculta nas pera invisíveis.
  Uma noite sobreveio terrível tempestade. O jornal até contou que a diligência, tão pesada, fora erguida pelo vendaval e lançada para dentro da valeta, como um farrapo. Imagine-se pois com que facilidade não seriam partidos os galhos de uma pereira!
   Pois um galho partido foi ter à oficina, e, por mera brincadeira, o torneiro tirou-lhe um toro e torneou dele uma grande pera; depois torneou outra igual; depois outra menor, e afinal afeiçoou outras pequeninas.
   Deu as peras às crianças, para que lhes servissem de brinquedo, e acabou dizendo:
   - Ora, afinal aquela árvore tinha de produzir peras mesmo...
   Em uma terra de nevoeiros, o guarda-chuva faz parte das coisas indispensáveis, certamente. A família inteira possuía um só, para o uso comum. Quando o vento soprava com muita violência, o guarda-chuva chegava a se virar do avesso, e as vezes se partia em dois; mas logo o homem o consertava. O pior era o botão que servia para mantê-lo fechado, depois de enrolado: despregava-se com frequência, e a argola que o mantinha também se quebrava facilmente
   Ora, um dia desprendeu-se o botão. O torneiro procurava-o pelo chão quando deu com uma das perinhas menores, das que dera oas filhos para brinquedo.
   - Não acho o botão, mas isto serve.
  Furou então a pera, enfiou-lhe um cordãozinho, e a pera pequenina prendeu perfeitamente a argola partida- e foi aquele, na verdade, o melhor fecho que já tivera o guarda-chuva.
  No ano seguinte, quando o torneiro remeteu cabos de guarda-chuva para a capital, onde eram vendidos os seus trabalhos, enviou também algumas daquelas peras pequeninas, torneada na madeira, e enfiadas em meia argola; e pediu que as experimentassem, a ver se agradara,. Assim foram elas ter à America. Lá viram logo que a perinha fechava muito melhor do que qualquer outro botão, e daí resultou que pedissem ao fornecedor que dali em diante todas as remessas de guarda-chuva trouxessem uma perinha no fecho.
  É claro que aumentou muito o trabalho. Peras, peras aos milhares! peras de madeira em todos os guarda-chuvas!
   O torneiro tinha muito que fazer. Torneava sem cessar. Toda a pereira se desfez em perinhas. E entravam os xelins, entravam os ducados.
  - Pois a minha Sorte estava escondida na pereira- dizia o homem.
  Possuía agora uma grande oficina, tinha oficiais e aprendizes. Andava sempre muito contente, e costumava dizer:
   - A Sorte pode bem estar escondida em um galho!

  E eu, que contei a história, digo o mesmo.

   Lá diz o rifão: "Põe na boca um galinho branco e ficarás invisível." Mas há de ser o galinho apropriado, o que Deus nos destinou, como brinde da Sorte.
   Eu o achei; e, como aquele homem, posso extrair ouro, ouro fulgurante, o ouro mais puro que existe, aquele que resplandece nos olhos das crianças, e lhes canta na boca, e que também brilha nos olhos dos pais, quando lêem as histórias, e eu estou na sala, entre eles, mas invisível - porque trago na boca o galinho branco.
   E quando percebo que a história que contei lhes traz alegria...então também eu digo:
   - A Sorte pode esconder-se em um galho! Fim






A MENINA JUDIA - CONTOS DE ANDERSENN


Na escola das crianças pobre, entre os outros alunos, achava-se sentada uma menina judia.
   Era uma criança boa e viva, e a mais atilada de toda a classe. Mas tinha de ser excluída de uma aula: não podia tomar parte na lição de religião, porque a escola era cristã.
   Durante aquela aula podia ela abrir o seu compêndio de geografia, ou resolver o problema do dia seguinte. Mas terminado este, e sabida também a lição de geografia, deixava o livro aberto e punha-se a escutar. Ouvia, silenciosa, as palavras do professor cristão; e ele não tardou em notar que ela prestava mais atenção do que as outras crianças.
  - lê o teu livro, Sara - disse um dia o professor com voz branda, mas firme.
   Contudo os olhos da menina, aqueles olhos pretos, tão brilhantes, continuavam fixos nele. e quando um dia lhe fez uma pergunta, viu que Sara sabia responder, e gravara profundamente no coração tudo quanto ele dissera.
   Seu pai era um homem pobre e honesto; ao matricular a menina, impusera a condição de que ficaria excluída do ensino religião cristã. Contudo, para evitar que surgisse alguma perturbação ou alguma dificuldade entre as outras crianças, não a afastavam da classe durante essas lições, permitindo-lhe que ficasse na sala. Agora porém, aquilo não podia continuar assim.
   O professor foi falar com o pai e explicou-lhe que devia retirar a menina daquela escola, senão corria ela o risco de se tornar cristã. E declarou:
   - Já não posso contar como espectadores indiferentes aqueles olhos radiantes da menina; ela demostra grande fervor, e uma alma sedenta das palavras do Evangelho.
   Derramando lágrima, o pai respondeu:
  - Eu mesmo seu muito pouco acerca dos preceitos dos meus antepassados. Mas a mãe de Sara era uma filha de Israel, jurei-lhe que nossa filha nunca se batizaria. Tenho de cumprir o meu juramente, que para mim vale uma união com Deus!
   E a menina judia saiu da escola dos cristão
     Correra anos.
   Em uma cidade pequenina da província, servia numa casa humilde uma pobre moça israelita. Tinha cabelo preto como o ébano e olhos escuros como a noite; mas eram tão cheios de brilho e de luz como costumam ser os olhos da filhas do Oriente. Era Sara. Conservava no rosto aquela mesma expressão da criança que sentava na carteira da classe a escutar, pensativa, as palavras do professor cristão.
   Todos os domingos o som do órgão da igreja e do canto da congregação atravessava a rua e inundava a casa onde a moça judia, em tudo diligente e fiel, se entregava aos seus trabalhos. Uma voz interior dizia-lhe: " Guardarás o sábado." Era a voz da Lei. Mas o seu sábado era para os cristãos um dia útil, e aprecia-lhe que aquilo não bastava. E do íntimo da alma subia uma pergunta:
   - Deus também contará os dias e as horas?
    E depois que essa ideia lhe ocorrera, consolava-se ao pensar que a hora da oração era menos perturbada no domingo dos cristão. E então, quando  entravam pela cozinha onde trabalhava os sons do órgão e dos hinos, até aquele lugar se tornava sagrado para ela. E punha-se a ler naqueles instantes o Velho Testamento, tesouro e esteio de seu povo - mas lia somente o Antigo. O que lhe haviam dito o pai e o professor, quando ela deixou a escola, o juramento que o pai fizera à mãe agonizante - que a filha jamais receberia o batismo cristão, que ela nunca renegaria a fé dos antepassados - tudo isso permanecia gravado no íntimo da alma. O Novo testamento devia ser para ela um livro selado; e contudo sabia tanta coisa daquele livro! O Evangelho ecoava-lhe na alma, justamente com as lembranças da infância.
   Uma noite estava sentada a um canto da sala; o patrão lia em voz alta, e ela podia escutar tranquilamente, pois ele não lia o Evangelho, mas um velho livro de histórias. Tinha pois o direito de ouvir a leitura.
   Contava o livro, a história de um cavalheiro húngaro que fora feito prisioneiro por um paxá turco. O paxá mandou jungir o prisioneiro ao arado, juntamente com os bois, e ordenou que o açoitassem e torturassem, em meio de zombarias, até que caísse de inanição. A esposa leal do cavalheiro vendeu sua joias, penhorou o castelo e as terra; os amigos do cavalheiro reuniram grande somas - pois o resgate exigido era uma quantia quase astronômica. Conseguiram, porém, reuni-la e o cavalheiro foi resgatado da escravidão e da ignomínia. Enfermo e combalido chegou à pátria; mas logo atroou os ares um chamado geral, para o luta contra o inimigo da cristandade. O cavalheiro ouviu o chamado, e nada pode retê-lo. Não descansou um só dia. Ordenou que o montassem no seu cavalo de batalha. Voltou-lhe a cor às faces; parecia que recuperara as forças perdidas, quando partiu para o combate, para a vitória.
    E aquele mesmo paxá que mandara atrelá-lo à charrua caiu-lhe nas mãos, prisioneiro, e foi encarcerado nas masmorras do castelo. Mas menos de uma hora depois, lá ia o cavalheiro falar-lhe:
   - Sabes o que te espera?
  - Sim, a tua vingança.
   - É verdade, mas é a vingança de um cristão. A doutrina do Cristo manda-nos perdoar io inimigo, pois Deus é amor. Vai-te em paz! Parte para a tua terra! Devolvo-te aos teus. Mas daqui em diante procede com humanidade e brandura com os que padecem!
   Ouvindo aquelas palavra, o prisioneiro rompeu em pranto e exclamações:
   - Como poderia eu imaginar que havia no mundo tamanha brandura? Estava certo de que me esperavam tormentos ignominiosos, por isso tomei o veneno que trouxe escondido. Dentro de poucas horas sucumbirei ao seu efeito. Tenho de morrer, não há salvação. Mas antes de morrer desejo que me comuniques a doutrina de que dimana tamanha abundância de amor e de clemência, porque deve ser grande e divina! Deixa-me morrer nessa doutrina, como um cristão!
    E foi feita a sua vontade.

Essa era a lenda que o patrão leu no velho livro de histórias. Todos a escutavam com grande interesse. Mas a que lá estava sentada, em silêncio no seu canto, essa sentia-se inflamada. Grossas lágrimas inundavam-lhe os negros e brilhante olhos. E ali ficou, piedosa e simples, como outrora na carteira da classe, sentido e magnitude do Evangelho, enquanto as lágrimas lhe iam correndo pelas faces.
  Contudo, as últimas palavras da mãe agonizante tornaram a lhe soar dentro do coração:
   "Não permitas que minha filha se torne cristã!"
    E com elas soava também o mandamento:
  "Honrarás pai e mãe!"
    - Não, eu não sou admitida na comunidade dos cristãos - disse ela consigo. - Chamam-me"judia suja". Os meninos do vizinho assim disseram no domingo, quando fiquei parada diante da porta aberta da igreja, vendo os círios chamejarem e ouvindo o canto da congregação. Desde os tempos da escola experimento o poder do Cristianismo, um poder que se assemelha a um raio de sol; por mais que eu cerre os olhos, ele me ilumina o coração! Contudo, não te magoarei no teu túmulo, minha mãe. Não faltarei ao juramento que meu pai fez: não lerei a Bíblia cristã. tenho o Deus dos meu antepassados e ficarei com Ele..
              ***
   Mais uma vez correram anos.
   Morreu o patrão. A viúva fico sem recurso. Queriam despedir a criada, mas Sara não abandonou a casa. Foi um esteio, na miséria; mantinha tudo em ordem, trabalhava até altas horas da noite, ganhando com o seu esforço o pão de cada dia. Não apareceu nenhum parente para ajudar a família, e a viúva ia ficando cada vez mais fraca, e passou na cama meses inteiros. Sara trabalhava e também ia sentar-se ao pé do leito da enferma, dela cuidando, e velando por tudo. Era boa e piedosa - era um anjo de benção, naquela pobre casa.
   Um dia a doente disse-lhe:
    - Ali está a Bíblia, sobre a mesa, Sara. Lê-me um pouco...A noite me parece tão longa, tão longa...e meu coração tem sede da palavra de Deus.
   E Sara, curvando a cabeça, pegou no livro. Uniu as mãos em torno da Bíblia dos cristão, abriu-a e leu para a doente. A cada passo sentia os olhos rasos de lágrima; mas eles luziam e                 cintilavam, enquanto no seu coração ia fazendo-se a luz.
   - Mãe! - disse ela baixinho. - Tua filha não deve receber o batismo dos cristãos; não deve ser recebida na comunhão dele. Assim o determinaste, eu hei de honrar a tua vontade. Quanto à vida neste mundo, estou de acordo contigo. Mas para além desta terra, mais além, existe uma união mais sublime, em Deus, que nos conduz e guia para além da morte. Assim o compreendo. Não sei mensmo como foi que aprendi a compreender, mas foi por intermédio de Cristo.
   Estremeceu ao pronunciar  o nome sagrado, e desceu sobre ela um batismo, como se fossem labaredas de fogo, que se  apoderava de todo o corpo. Ela torcia-se em convulsões; os membros perdiam a força. Caiu desmaiada, mas fraca do que a enferma que estava cuidando.
   - Pobre da Sara! - diziam todos. - Está exausta pelo trabalho e pelas vigílias.
    Levaram-na para o hospital dos pobres. Lá morreu, e foi levada, para o túmulo - não no cemitério dos cristãos, onde não havia lugar para a moça judia. Foi enterrada fora do muro.
   Mas o sol de Deus, que brilha sobre os jazidos dos cristãos, lança sua luz também sobre o túmulo da judia, lá fora, junto do muro. E quando ressoam os salmos no cemitério cristão, vão eles ecoar também por sobre o túmulo solitário.
   Também àquela morta destina-se o chamado da ressurreição, em nome de Cristo, Nosso Senhor, que disse aos seus discípulos:
   " João certamente batizou com água: mas vós sereis batizados com o Espírito Santo." FIM

   

quinta-feira, 29 de junho de 2017

O SAPO - CONTOS DE ANDERSEN

   A Família Sapo morava no poço. O poço era profundo, por isso a corda tinha de ser muito comprida, e quando a roldana içava o balde cheio até o bocal, ia girando lenta e penosamente. Era clara a água; mas ainda assim o sol nunca podia refletir-se nela, nem mesmo quando estava a pino. Mas até onde chegava a sua luz, viçavam as avencas pelas juntas das pedras que forrava o interior do poço.
   No fundo morava a família de sapos. A dizer aquela gente aparecera lá inesperadamente: gerara-a a mãe-sapo, que ainda vivia. As rãs verdes que residiam ali há muito mais tempo, nadando na água do poço, reconheciam que os sapos eram seus parentes, e chamavam-nos"os hóspedes do poço". Mas o caso é que eles tencionavam ficar por ali, pois era agradável viver em um lugar seco, como chamavam às pedras úmidas.
    A mãe-sapo tinha feito uma viagem, um dia em que entrara no balde quando o puxavam para cima; mas achara a luz muito forte para os seus olhos, que começaram a arder, e tornou a cair no poço, espanando água. Foi uma queda horrível, que a deixou três dias deitada, com dor nas costas.
   Não poderia, na verdade, contar muita coisa da vida lá em cima; mas sabia agora, e toda a sua família ficou sabendo também, que aquele poço não era o mundo inteiro. Talvez soubesse mais alguma coisa, mas a mãe-sapo não gostava que a interrogassem; e como não respondia às perguntas que lhe faziam, acabaram todos por não lhe perguntar mais nada.
   - Como ela é gorda, barriguda e feia! - diziam as rãs.
   E perguntaram-lhe:
   - Teus filhos são assim como tu?
  - Talvez, mas um deles há de ter uma joia na cabeça - se é que não a tenho eu mesma!
   As rãs verdes ouviam-na de olhos arregalados, e, não tendo gostado da resposta, mergulharam na água, fazendo caretas. Mas os sapinhos esticavam as pernas traseiras, cheios de orgulho: cada um supunha que tinha consigo a joia preciosa, e ficavam todos imóveis, sem mover a cabeça. Afinal perguntaram que coisa era aquela, de que tanto se orgulhavam; e em que consistia uma pedra preciosa.
  É uma gema que enche de prazer a quem a carrega, e que irrita os outros. E não me perguntem mais; não poderei responder-lhes.. E não me perguntem mais; não poderei responder-lhes.
   - É claro que a gema não me tocou - disse o menor dos filhotes, que era a criatura mais feia que se possa imaginar. - Como havia eu de possuir uma coisa tão maravilhosa? Mas ela só serve para aborrecer os outros, não me pode dar alegria. Não! O que me deixaria contante era se pudesse subir até a beira do poço, nem que fosse uma única vez, para dar uma olhadela. Lá, por fora, há de ser tudo muito bonito...
   - É melhor que fiques aqui mesmo - disse a velha. - Conheces todos os habitantes, e sabes onde pisas. E olha lá: cuidado com o balde! Mesmo que consigas entrar nele a salvo, podes cair, e nem todos os que sofrem uma queda poderão gabar-se como eu, que saí com os membros e os olhos intatos.
   - Coaxe! Coaxe! - disse o fedelho.
   E aquilo queria dizer: "pois é mesmo!"
    Mas tinha sempre uma ardente desejo de subir ao bocal e dar uma espiadela; queria ver as coisas verdes que havia lá fora. E no dia seguinte, bem cedo, quando içavam o balde já cheio, aproveitou um instante em que este parou pertinho da pedra em que estava sentado e pulou para dentro. Subiu assim, e quando chegou lá fora, foi atirado longe.
   - Apre! - disse o criado que puxara o balde, ao ver o sapo. - Nunca vi coisa tão feia!
   E com o tamanco deu tamanho pontapé no sapinho, que quase o deixou estropiado. Mas conseguiu escapar, e meteu-se numa moita de urtigas que havia junto ao poço. Enxergou diante de si um mar de hastes erguidas, olhou para cima e viu o sol, que brilhava sobre as folhas transparentes. Sentia naquele momento o mesmo que sente um homem, quando entra num grande bosque onde o sol penetra por entre a ramaria.
   - Acho isto muito mais bonito que o poço...Aqui sim, seria bom viver toda a vida! Ficou deitado ali mais de uma hora. Por fim disse consigo:
   - Mas que haverá lá fora? Já que cheguei até aqui, devo ir mais adiante.
         Arrastando-se o mais depressa que pode, foi andando até a estrada real, onde o sol refulgia, e o pó redemoinhava no ar, quando ele ia rastejando.
   - Afinal, vejo-me em lugar seco
   E foi andando para a valeta, onde vicejavam o miosótis e a grinalda-de- noiva; mas além viu ele uma moita  de pilriteiros. Havia também sabugueiros e trepadeiras de flores alvas - enfim, ali havia flores de todos os matizes. Avistou uma borboleta que esvoaçava, e pensou  que era uma flor que se soltara da haste, para ver melhor o mundo.
   - Se ao menos eu pudesse andar assim pelo ar! Coaxe! Que maravilha!
   E ficou morando oito dias e oito noites naquela valeta, onde não escasseavam os alimentos. Mas no nono dia, disse consigo:
   - Vamos! Avante! Ainda posso achar mais coisas belas por aí além!
   Mas que poderia achar de mais lindo e mais grandiosos? Talvez algum sapinho, alguma rã verde...
   Na última noite chegaram-lhe aos ouvidos certos sons, e desconfiou que, por ali perto, poderia encontrar algum parente próximo.
   - Que maravilha é a vida! Que bom foi ter saído daquele poço, e ficar deitado entre as urtigas...e andar rastejando pela estrada poeirenta! Mas vamos! Quero ver se encontro alguma rã ou algum sapinho, que é de companhia que agente precisa: só a contemplação da natureza não basta, não!
   E recomeçou a andejar. Chegou assim a um campo onde havia um grande açude cercado de juncos, e foi entrando na água.
   - Bem-vindo sejas por estas águas! - disseram as rãs. - Vais achar a região muito úmida, certamente. És uma dama ou um cavalheiro? Com tamanha feiura, torna-se difícil adivinhar quem sejas! Mas pouco importa: Se bem-vindo, do mesmo jeito!
   À noite, foi convidado para o concerto - um concerto em família, em que, como de costume, era grande o entusiasmo e pequenas as vozes. Não havia senão água para beber, mas essa era oferecida em vastas proporções.
   Acaba a festa, o sapo declarou:
   - Vou continuar a viagem. Desejo ir adiante!
    É que ansiava sempre por alguma coisa melhor. Via cintilarem as estrelas, tão altas e tão claras. Via a lua nova, tao brilhante. Via erguer-se o sol, e subir, mais alto, mais alto, cada vez alto...
   - Quem sabe se ainda estou no poço? Mas agora é um poço muito mais vasto. Preciso subir, subir mais ainda!
   E quando a lua se enchem, e ficou bem redonda, pensava ainda  a pobre criaturinha:
   - Será o balde que está descendo? E terei de entrar dentro dele para subir mais alto? Ou o balde é aquele sol tão grande? Naquele, todos nós podemos caber, e não quero perder a ocasião. Que grande e brilhante ele é! E que fulgor! Que luz direta sobre a minha cabeça! Nema gema poderia ser mais rutilante! Mas eu não a obtive...Ora, não vou chorar por isso! O que vou fazer é subir ainda mais, sim mas também tenho medo: é um passo difícil...Mas hei de ir para a frente! Para a frente!
    E lá se foi, rastejando; chegou por fim à estrada real, onde ficavam as moradas dos homens, cercadas de hortas e jardins. E parou para descansar.
   - Quanta criatura diferente há sobre a terra, que eu nem conhecia! E que vasto, que belo é o mundo! E que alegre! Mas tenho de ver tudo o que há nele: não posso ficar parado no mesmo lugar.
   E de um salto entrou numa horta.
   - Como é verde! Que coisa linda!
   - Bem sei - disse a lagarta, encarapitada em uma folha de repolho - a minha folha cobre a metade do mundo, mas nem preciso mesmo da outra metade...
   - Cró! Cró! Cró!
   - E as galinhas entraram na horta, aos pulinhos. A que vinha à frente tinha muito boa vista, e deu logo com a lagarta deitada na folha crespa. Deu-lhe uma bicada, e ela caiu ao chão, onde ficou estorcendo-se. A galinha olhou-a, primeiro com um olho, depois com o outro, porque não sabia em que iria dar tanta contorção; depois disse:
   - Parece que ela está com más tenções!
   Levantou então a cabeça, para engolir a lagarta; o sapinho levou tamanho susto, que se arrastou para o lado da ave, que exclamou, admirada:
 - Ora essa! Pois não é que a lagarta tem seus guarda-costas? Olhem aquilo que vem ali! Mas eu é que não vou comer aquela coisinha verde, não! Isso só serviria para arranhar a garganta!
   As outras galinhas foram da mesma opinião , e assim deram volta imediatamente.
   - Afinal, consegui livrar-me! - disse a lagarta. - Não há nada como a gente ter presença de espírito! Mas ainda falta o mais difícil: voltar à minha folha de repolho...Onde fica ela! 
     Foi então que o sapinho se aproximou para dizer à lagarta que lamentava muito o susto porque passara, mas que estava contente por ter espantado as galinhas, que fugiram da sua feiura.
    - Ora essa! Mas que estás pesando? Eu é que me livrei do bico da galinha! É verdade que és mesmo muito desagradável à vista, lá isso é! E não terei acaso a liberdade de ficar em paz na minha propriedade? Já estou sentindo cheiro de repolho...Ah! Agora estou na minha folha! Não há nada como a gente ter a sua propriedade! Mas vou subir mais alto ainda, só para me ver livre de ti. É isso - mais alto, mais alto!
    - Pois é mesmo: mais alto, mais alto!- disse o sapinho. - Ela tem também as suas ambições: as mesmas que eu sinto, É que hoje está de mau humor...há de ser do susto. Todos querem subir - mais alto, mais alto!
   E ao dizer isso, ergueu os olhos. lá estava o pai cegonha, parado junto do ninho, no teto da granja; ele gloterava, e a mãe-cegonha gloterava...E o sapinho pensava:
   - Mas que alto o lugar onde mora aquela gente! Se eu pudesse chegar lá...
   Na granja moravam dois estudantes; um era poeta, o outro naturalista. Um cantava alegremente todas as coisas criadas por Deus, vendo-as tal como se refletem no seu coração; e exprimia seus sentimentos em versos claros, sonoros, cheios de vida. O outro não se dava por satisfeito enquanto não tocava com as mãos nas coisas - e até as dissecava.
   Considerava a criação de Deus como uma imenso problema cheio de cálculos:subtraía, multiplicava; queria aprofundá-lo todo inteiro, e discorria sobre o assunto ponderadamente. E, como era homem talentoso, e sentia prazer no estudo, falava com acerto. E afinal, eram ambos homem bons, e de humor alegre.
    - Olha que belo exemplo de sapo! - exclamou o naturalista. - Vou levá-lo, para o conservar em álcool.----
    - Mas já tens dois iguais - objetou o poeta.- Deixa que este goze a sua vida em paz!
   - Mas é tão espantosamente feio!
   - Sim, isso é...E se soubesse que iria encontrar a gema na sua cabeça, até eu seria capaz de dissecá-lo!
  - Qual gema, qual nada!- replicou o outro. - Nem parece que estudaste História Natural!
    - Mas pensa bem! Não achas linda a crença popular, que diz que o sapo mais horrendo tem, as vezes, na cabeça a pedra mais rara?---E não acontece o mesmo com os homens? Que joia preciosa não tinha Esopo? E Sócrates?
    O sapo não pode ouvir mais nada, nem entendeu sequer a metade do que disseram os dois amigos. Eles prosseguiram seu passeio e o animalzinho escapou à morte e ao vidro de álcool.
    - Aqueles também falaram na gema...Ainda bem que não possuo, senão teria passado agora um mau bocado.
   Naquele mesmo momento, lá em cima do telhado, alava o pai-cegonha; fazia uma preleção para a família, que não via com bons olhos o que se passava na horta.
   - Os homens são criaturas mais presunçosas do mundo! Ouçam, ouçam, como eles tem a língua solta...e ao cabo nem sequer sabem gloterar ( diz-se dos sons emitidos pelas cegonhas, ao bater seus bicos.)  direito! Alardeiam por toda a parte e eloquência da sua língua...Ora, uma língua de trapo, que já ninguém entende no fim de uma viagem qualquer: ao termo dela, o que chega não compreende os que encontra, nem estes o entendem! O nosso idioma si, é falado e entendido em todo o mundo, desde a Dinamarca até o Egito. Além disso, o homem não pode voar. Eles andam agora mais rapidamente, com uma invenção a que chamam via férrea; mas muitos quebram nela o pescoço. tenho arrepios no bico, só de pensar nessas coisas,,,O mundo poderia passar muito bem sem o homem. não precisamos dele para nada! Bastam-nos as rãs e as minhocas!
   - Mas que discurso magnífico! - pensou o sapinho. - E aquele bicho deve ser pessoa muito importante! Também, nunca vi ninguém morara em um lugar tão alto! 
   E, quando viu a cegonha voar, batendo as asas, exclamou, encantado:
   - E como nada bem!
   Lá dentro do ninho falava agora a mãe-cegonha. Falava no Egito, nas águas verdes do Nilo e na lama esplêndida daquele país estrangeiro. E tudo aquilo era novo para os apo, e tão fascinante...E dizia consigo:
  - Preciso viajar...Tenho de ir ao Egito! Que bom seria se a velha cegonha me levasse! Ou quem sabe se um dos filhotes me conduzirá como puder, quando ele casar.Sim, é isso: ieri ao Egito. Oh! Sinto-me tão feliz...E todo este anseio, todo este desejo imenso, vale muito mais do que uma joia na cabeça.
   E todavia ele tinha aquela pedra preciosa, aquele anseio constante, aquele impulso incoercível, que o arrojava para o alto, sempre para o alto! Era uma luz que el possuía, que lhe resplandecia na cabeça- o fulgor da alegria!
   Foi nesse momento que veio a cegonha. Avistara o sapo na grama; desceu e segurou a criaturinha, não com muita delicadeza, é verdade! O enorme bico de pai cegonha apertava-o, o vento silvava, e não era nada agradável, andaste nos ares, lá em cima, apara onde eles iam- para o Egito, pensava o sapinho. E a este pensamento, seus olhos cintilaram, e pareceu até que deles brotava uma chispa...
   - Coaxe!...aaaxe...
   E o sapinho estava morto.
   Si, morto estava o corpo do  apo. Mas a centelha dos seus olhos? Que fora feito dela?
   Levou-a o raio de sol. para onde, porém?
   Ah! Não o perguntes ao naturalista. pergunta antes ao poeta, que te narrará tudo, como se fosse um conto de fadas. E a lagarta, e a família das cegonhas fazem parte do conto. Imagina: a lagarta aparecerá transformada em uma borboleta lindíssima. A família das cegonhas voa por sobre montes e mares, vai até a longínqua África - e para voltar ao seus país: volta para o mesmo ninho, no mesmo telhado.
   Não parecem fantásticos todas estas coisas maravilhosas? E contudo, são verdadeiras! Podes perguntá-lo até ao naturalista, se quiseres. E ele terá de confessar que é assim mesmo; e tu também o sabes, pois que viste  com teus próprios olhos.
   - Mas...e a gema da cabeça do sapo?
   Procura-a no sol; vê se podes vislumbrá-la ali.
   É intenso demais o esplendor. Ainda não temos os olhos que hão de ver dentro de todas as glórias que Deus criou. mas algum dia havemos de possuí-los!
   E será a m,ais bela de todas as histórias de fadas - porque nós mesmos a teremos vivido.
FIM


          


terça-feira, 20 de junho de 2017

JOÃO BOBO -CONTOS DE ANDERSENN

   Era uma vez um velho fidalgo que morava em um velho castelo com seus dois filhos. Eram estes muito inteligentes tinha cada um deles o dobro da inteligência de que um homem precisa. Resolveram ambos propor casamento à filha do rei, e arriscaram-se a essa aventura porque a princesa declarara que aceitaria por marido o homem que melhor soubesse falar.
 Tinham apenas uma semana para se preparar, mas era tempo suficiente para dois moços tão bem dotados como aqueles. Um sabia de cor o dicionário latino e os jornais da cidade de três anos inteiros, quer fosse de diante para trás ou de trás para diante. O outro conhecia todos os estatutos das corporações, e tudo quanto um vereador deve saber, e achava-se, pois, em condições de discutir os negócios de Estado. sabia também bordar arreios, e era destro em trabalhos desse gênero.
   "Sou eu quem vai casar com a filha do rei!" - era a convicção de um e de outro.
   O pai deu a cada um deles um soberbo cavalo. Ao que podia repetir o dicionário e os jornais, deu o cavalo negro como carvão, e o que era entendido em corporações ganhou o branco como leite.
   Ambos os moços untaram os cantos da boca com óleo, para que  os lábios ficassem mais flexíveis. E quando chegou a hora da partida, todos os servos se reuniram no pátio, para vê-los montar. Justamente nesse momento chegou o outro irmão - porque eles era três; mas de fato ninguém contava com este para nada, pois o João Bobo não possuía a inteligência dos irmãos.
   - Onde vão vocês, tão bem vestidos? - perguntou ele.
   - A Corte, para conversar com a filha do rei, e obtê-la em casamento. Então não ouvisse o que foi apregoada por todo reino?
   E contaram-lhe toda a história.
   - Mas então eu também quero ir! - disse o João Bobo.
   Os irmãos riram dele e foram andando.
   - Pai, dá-me um cavalo! Eu também quero casar. Se ela casar comigo, ela casa comigo; e se ela não casa comigo, eu caso com ela do mesmo jeito.
   - Que estupidez! - disse o pai. - Não te dou cavalo algum, porque tu só dizes tolices.
   - Visto que não posso arranjar um cavalo, montarei no meu bode. É meu, e pode muito bem me levar!
   E escarranchou-se no bode, enterrou-lhe os talões nas ancas e saiu a galope pela estrada real. E como corriam!
  - Aqui vou eu! gritava o João Bobo, fazendo retinir no ar o seu alarido.
  Os irmãos viajavam em silêncio; não falavam, porque tinham de ir armazenando todas as boas ideias que lhes surgiam no espírito, para apresentá-las mais tarde. E tinham de meditar profundamente o discurso que iriam proferir.
   - Olá! - gritou o João Bobo. - Aqui vou eu! Vejam o que achei na estrada!
  E mostrou-lhes um corvo morto.
   - Mas que pretendes fazer com isso, João Bobo? 
   - Vou dá-lo à filha do rei.
  - Sim - disseram os irmãos, rindo - é o que deves fazer!
   E continuaram a jornada, caçoando do irmão bobo.
    Dali a pouco, tornou ele a gritar-lhes:
  - Olá! Aqui vou eu! Vejam o que achei! Não se acha disto na estrada todos os dias!
   Voltaram-se os irmãos para ver o que seria, e disseram?
   - João Bobo, isto não é mais que um velho tamanco quebrado. Vais oferecê-lo também, sem dúvida, à princesa, não?
   -  Claro que sim - respondeu João.
   E os irmãos lá se foram, rindo dele.
   - Olá! Olá! Aqui vou eu! - gritou de novo o João Bobo. - Agora é um achado importante!
   - Que encontraste desta vez? - indagaram os irmãos.
    - Não acham vocês que a princesa vai ficar encantada?
   - Mas João, isto é areia da valeta!
    - Pois é: é isso mesmo. E á areia da mais fina qualidade! Mal se pode pegar nela!
    E encheu os bolsos de areia. Os irmãos trataram de andar mais depressa, e chegaram às portas da cidade uma boa hora antes dele. No portão do palácio, os pretendentes recebiam um cartão, conforme a ordem de chegada, e eram dispostos em filas de seis. Eram estas filas tão cerradas, que não podiam eles mover os braços - o que era uma boa medida, porque a não ser assim, teriam rasgado as roupas uns dos outros, só porque lhes ficavam em frente. Todos os habitantes da cidade estavam também ali, rodeando o castelo, espiando pelas janelas: queriam ver a filha do rei receber os pretendentes. E viam que cada um que entrava na sala, perdiam a capacidade de falar.
     - Não presta - dizia a princesa. - Fora com ele.
   Chegou a vez do irmão que podia repetir de cor o dicionário; mas tinha esquecido inteiramente tudo quanto sabia, enquanto esperava na fileira. O soalho rangia, o teto era de espelho, de modo que ele se via de cabeça para baixo; e a cada janela estavam sentados três escreventes e um vereador, que escreviam tudo o que se dizia; assim é que aquelas folhas podiam se enviadas para os jornais imediatamente. Era horrível! E as estufas tinham sido aquecidas a tal ponto, que estavam com o tampo em brasa.
   - Faz aqui um calor terrível! - disse o pretendente.
    - É porque meu pai está hoje assando frangos - disse a princesa.
    E ali ficou ele parado, feito louco; não achava uma só palavra para dizer, exatamente quando queria ser mais espirituoso do que nunca...
  - Não presta - disse a filha do rei. - Fora com ele!
   E ele teve de ir embora.
   Entrou o segundo irmão, e disse logo:
   - É temível o calor aqui!
    - Sim, nós estamos assando frango hoje- disse a filha do rei.
  - Estão...o quê?- perguntou ele.
   E todos os repórteres escreveram fielmente: " Estão...o quê?"
   - Não presta - disse a filha do rei. - Fora com ele! 
   Chegou então a vez do João Bobo. Entrou cavalgando o seu bode até o salão. E foi dizendo:
   - Que calor abrasador!
    - É que eu estou assando frangos- disse a filha do rei.
    É uma excelente ideia! - acudiu logo o João Bobo.
   - Então acho que eu também posso assar um corvo, não?
  - Sim, mas tens em que assá-lo? Porque aqui não há espeto nem panela.
   - Tenho, sim - respondeu o João Bobo. - Aqui está uma panela.
   E tirou do saco o tamanco quebrado e meteu nele o corvo.
   - Mas é um banquete! - exclamou a filha do rei.- E onde acharemos gordura para temperá-lo?
   - Tenho-a no bolso - disse o João Bobo. - Há até demais.
   E deitou alguma areia sobre o assado.
   - Gosto disso - comentou a princesa - tens resposta para tudo, e sabes dizer o que queres. Serás meu marido. Mas fica sabendo que todas as palavras que temos pronunciado aqui estarão amanhã no jornal, porque em cada janela estão sentados três escrivães e um vereador - e este é o pior de todos, porque não entende nada.
   Dizia aquilo para assustá-lo. E todos os escreventes riram tanto, que derramaram tinta no soalho.
  São pessoas de qualidade - disse o João Bobo- então devo dar ao vereador o que tenho de melhor.
 E, virando os bolso com o avesso para fora, atirou a areia que continham no rosto do vereador.
   - Mas que coisa bem-feita! - exclamou a princesa.
- Eu não seria capaz de fazê-lo, mas hei de aprender.
   E foi assim que o João Bobo veio a ser rei, obteve uma esposa e uma coroa, e sentou-se em um trono.
   Tirei esta história do jornal do vereador. Mas acho que não devemos dar-lhes muito crédito.
FIM

sábado, 17 de junho de 2017

PEITTER, PEITTER, PEER - CONTOS DE ANDERSEN

  Quanta coisa sabem hoje em dia as crianças! É uma coisa de admirar! A gente nem sabe se ainda ignoram alguma coisa. Para elas, a história da cegonha, que as tirou do poço ou do açude, levando-as ainda pequerruchinhas, para casa dos pais, é apenas um conto da Carochinha; e tão velho que já não acreditam nele. E, contudo, é pura verdade.
   Mas como é que os nenezinhos vão ter ao açude ou ao poço? Eis aí o que muita gente ignora; contudo, sempre há quem conheça o segredo. Contemplando o céu, em uma noite estrelada, hás de ter visto muitas vezes as estrelas que caem, riscando o firmamento, e  sumindo-se no espaço. Por mais sábio que seja um sábio, não poderá explicar esse ato, pois que ignora a causa dele. Só pode explicá-lo quem estiver devidamente informado; a estrela cadente é como uma pequenina vela da árvore de Natal, que cai do céu e se apaga; é uma faísca da alma de Deus que desce à Terra, mas quando entra na atmosfera mais espessa e pesada, perde o brilho; é agora invisível aos nossos olhos porque é mais tênue que o ar. É um filho do céu, mandado por ele, um anjinho - mas anjo sem asas, porque vai tornar-se homem. Atravessa os ares em silêncio, e a aragem leva-o para o seio de uma flor: uma violeta da lua, uma rosa, ou um cravo. Lá, no cálice da flor, fica medrando (crescendo, acrescentando, alongando, )...; é tão aéreo, tão leve, que uma mosca poderia voar com ele às costas - quanto mais uma abelha, dessas que vem em enxames em busca do doce néctar das flores. Encontrando o filho do ar a estorvar-lhe o caminho, elas não o enxotam, porque tem bom coração: deitam''-no ao sol, em uma folha de nenúfar. dali vai o nene rastejando para a água, onde fica dormindo, e crescendo, até que a cegonha o aviste. leva-o então para uma família humana, que deseje ter uma doce criaturinha assim no seu lar. Agora o que é certo é que a meiguice e doçura do nene dependem da espécie de alimentação que teve: pode ter bebido da fonte pura, ou pode ter-lhe entrado pela garganta alguma lentinha-dágua, ou lodo - substâncias essa que produzem no nenê uma mentalidade terrena. ora, a cegonha apanha a primeira criança que lhe cai sob os olhos. uma s vão para casas boas, e encontram pais excelentes; outras vão ter com gente tão má, ou tão miserável que melhor fora terem ficado no açude!
   As crianças não se lembram do que sonharam no lago, abrigadas pelas folhas de nenúfar, enquanto os sapos cantavam:
   - Coaxe...coaxe...Quiri-que, quiri-que!
   Na linguagem humana isso significa:
   - Ah! Que doce sono, que sonhos suaves, crianças!
   Também não se recordam nunca da flor em que estiveram dormindo, nem do seu arma; e contudo, conservam alguma coisa a s levará a dizer, já crescidas:
   - Esta é a minha flor predileta!
   Será aquela a flor que as abrigou, quando ainda eram filhos do ar.
   A cegonha é ave muito, muito velha, e anda sempre vigiando so nenês que trouxe para a terra, para ver com os e vão adaptando a este mundo. É certo que ela nada pode fazer por essa criança: não lhe é dado intervir mais no seu destino, pois que tem de se preocupar com a sua família -as suas ninhadas. Mas nunca se esquecem delas.
   Conheço uma cegonha muito velha, e muito honrada, cheia de sabedoria, que foi buscar muitas criancinhas. ela sabe a história de todas elas, e em todas aparecem vestígios de lodo e de lentinhas-d água, lá do açude. peji-lhe um dia que me contasse a história de uma delas, e recebi em respostas a promessa da história- não de uma, mas de três crianças, as da casa de mestre. Peitersen, aquele que mora na esquina.
   Era uma família muito simpática. Mestre Peitersen era  um dos trinta ae dois homens da cidade, o que representa uma distinção. Vivia ele pelos trintas e dois, absorvia-se neles.
  Pois à casa desse homem foi a cegonha levar o pequeno Peiter - foi o nome que deram ao meninozinho.
   No ano seguinte voltou a cegonha com outro nene, ao qual deram o nome que de Peter; e quando, por fim, feio o terceiro, recebeu o nome de Peer. Porque Peiter, Peter e Peer, são nomes que provêm de Peitersen.
   Eram , pois, três irmãos, três estrelas cadentes; cada uma fora embalada em uma flor, e fora deitada em uma folha de nenúfar, lá no açude, de onde a levara a cegonha, para a deixar na casa da família Peitersen, na esquina, como sabes.
   Cresceram em corpo e em espírito: sinal de que aspiravam a ser alguma coisa mais do que um entre trinta e dois.
  Peiter dizia que queria se saltador. Assistira á representação da ópera-cômica "Fra Diavolo" e escolhera o ofício de salteador, que pareceu o mais encantador do mundo.
   Peter declarou que havia de se varredor de rua: gostava muito do tinido das tampas e dos baldes de lixo. E Peerm que era uma criança encantadora, gordinha e roliça, mas que roía as unhas - seu defeito único - Peer, queria ser pregador.
   Sempre que alguém perguntava aos meninos o que queriam ser na vida, eram essas as respostas que davam.
   Foram para a escola. Um chegou a ser o primeiro da classe; outro, o último. O terceiro foi no meio.
   Ora, isso não os impedia de serem, todos eles, igualmente bonzinhos e inteligentes; e eram mesmo assim, conforme diziam os pais, sempre compreensivos.
   Frequentavam bailes infantis, e fumavam cigarros, às escondidas. E iam crescendo em conhecimentos e capacidade.
   Peiter, desde pequeno, era rixento, como deve ser mesmo um salteador. Mas, como dizia a mãe, era porque sofria de vermes. As crianças travessa sempre tem vermes, isto é, lôdo no estômago. E, de tão teimoso, chegou um dia a danificar o vestido novo de seda da mãe.
   - Não empurres assim a mesa, meu bonequinho de açúcar...Podes virar a leiteira, e derramar o leite no meu vestido novo.
   E o " bonequinho de açúcar" pegou com mão firme a leiteira, e virou todo o leite no colo materno. Ao que a mãe não pode deixar de observar:
   - Mas, meu bonequinho, que feio, isso que fizeste!
   Não se poderá negar ao menino firmeza de vontade, o que é sempre sinal de caráter - coisa que traz sempre muita esperança ao coração das mães.
   Não teria sido muito difícil ao menino virar salteador; mas não o foi, no sentido literal da palavra. Apenas chegou a ter a aparência de salteador: andava de chapéu amarrotado, sem colarinho nem gravata, cabelo comprido, flutuando ao vento. Queria ser artista, mas somente na roupa se revelava essa tendencia: ele em si tinha a aparência de uma malva-rosa; Todas as pessoas que ele desenhava se pareciam também com a malva- rosa, de tão  compridas. Era essa a sua flor predileta, e afirmava a cegonha que seu berço, fora mesmo uma malva-rosa.
   Quando Peter, fora achado dentro de um botão-de-ouro; por isso tinha a pele um tanto amarelada sempre lhe ressumava gordura aos cantos da boca; diria que brotaria manteiga de suas bochechas, se lhes desses um talho. Parecia ter nascido para negociante de manteiga, e serviria muito bem de tabuleta para o negócio, se o tentasse. Mas, no fundo do coração, era sempre um varredor de rua. Na família Peitersen era ele que representava o senso musical, que, no dizer dos vizinhos, possuía por todos os outros. Numa só semana, chegou a compor dezessete polcas, e as instrumentou em  forma de ópera, para timbales e clarins. Isso sim! Era lindo!
   Peer era vermelho e branco, baixinho, vulgar: viera em uma margaridinha. Nunca revidava, quando apanhava pancada dos outros rapazes. Dizia que, por se ele o mais razoável, cedia sempre, como é de direito. A princípio colecionava lápis, mais tarde passou a reunir selos. Organizou depois uma pequena coleção de curiosidades naturais: um esqueleto de lambari, três filhotes de rato, cegos, conservados em álcool, uma toupeira empalhada. Tinha senso científico, e olhos para observar a natureza coisa que lhe dava tanta alegria como aos pais. Preferia o mato à escola, a natureza à disciplina. Os irmãos já eram noivos, e ele ainda se ocupava em reunir ovos para completar uma coleção.
  Dentro em pouco sabia mais acerca dos animais do que dos homens, e declarava mesmo que estes deviam imitar aqueles, com maior empenho justamente naquilo que colocamos no mais alto pedestal:  o amor. Observou ele que o rouxinol fica junto da esposa enquanto ela choca os ovos cantando para ela anoite inteira: " Clue, clue! Zi, zi, lo lo li! " Peer jamais seria capaz de fazer semelhante coisa...Nunca se entregaria tão completamente a um sentimento! E quando a mãe-cegonha estava no ninho, agasalhando os filhotes, o pai ficava a noite inteira na cumeeira do telhado, parado, sobre uma perna só. Peer não poderia suportar essa posição nem sequer uma hora! E quando um dia se Pôs a observar o ninho da aranha, e viu o que nele se passava, abandonou por completo toda a ideia de casamento. Viu que o macho anda tecendo a teia, para nela pegar as moscas incautas, jovens e velhas, robustas e macilentas: ele só vive para tratar da família. Mas D. Aranha, essa vive unicamente para o marido. De tanto amor que lhe tem, devora-o: come-lhe o coração, a cabeça, o estômago. Só ficam as longas perna, por trás da teia, no mesmo lugar onde ele estivera sentado ao lado da família, cuja alimentação o preocupava muito. E isso é verdade podes verificá-lo, lendo a História Natural. Ora, Peer observou tudo isso, meditou...Ser amado pela esposa ao ponto de se ver devorado por ela...Não! Nenhum homem se conformaria com isso! E afinal - seria justo que o fizesse?
   Decidiu pois Peer não casar jamais , não dar nunca, nem receber jamais beijo algum, que pudesse ser considerado como o primeiro passo para o matrimônio. Mesmo assim recebeu um: aquele beijo que todos nós havemos de receber. O beijo vigorosos e devorador da Morte.
   Sim, quando já vivemos o tempo suficiente, a Morte recebe uma ordem:
  - Leva-o com um beijo!
   E assim que desaparece um ser humano. Um raio de luz divina fulgura com tamanho poder, que nada mais vemos; tudo são trevas diante de nossos olhos. A alma,  que veio como uma estrela cadente, torna a sumir-e como estrela cadente- não para descansar em uma flor, ou sonhar sob a folha de nenúfar. Tem coisas mais importantes a executar. Voa para o país imenso da Eternidade - país que ninguém sabe dizer onde fica, nem com que se parece. Ainda ninguém chegou a deitar um olhar para dentro dele - nem mesmo a cegonha, que sabe tanta coisa, e tem viajado tão longe. Por isso ela nada mais sabia a respeito de Peer, embora soubesse mais alguma coisa sobre Peiter e Peiter.
   Acho, porém que já chega de falar neles. Agradeci, pois, à cegonha, quando ela chegou a este ponto. E ela exigiu que lhe desse, por esta historieta tão vulgar, três sapos e um filhote de cobra - porque só aceita pagamento em víveres. FIM

sábado, 3 de junho de 2017

A VELHA LOUSA SEPULCRAL - CONTOS DE ANDERSEN

   Uma noite estava reunida toda a família, em casa de um homem que tinha casa própria e quintal. Era em uma cidadezinha provinciana, e naquela estação do ano em que as noites se vão tornando mais longas. O tempo era ainda suave e quente.
   Sobre a mesa ardia a lâmpada. Longas cortinas enfunavam-se no vão das janelas, onde se viam vasos de flores. Lá fora, o luar era maravilhoso. Mas ninguém falava nessas coisas. O assunto era uma pedra velha, e muito grande, que estava no pátio, junto da porta da cozinha. As criadas alinhavam nela as panelas de cobre polido, para que secassem ao sol. As crianças gostavam de brincar em roda dela, apesar de ser, afinal de contas, uma velha lousa sepulcral( pedra que cobre a sepultura).
    - Pois é - dizia o dono da casa - acho que a pedra provém do velho cemitério do convento. Venderam o púlpito, as lousas e outras coisas mais. Meu pai comprou as lousas, que foram britadas para calçamento, mas aquela pedra ficou, e desde então está ali no pátio.
  - Mas vê-se bem que é uma lousa sepulcral - disse o filho mais velho, metendo-se na conversa. - Ainda se vê a ampulheta e um pedacinho do corpo de um anjo. Mas a inscrição que há mais abaixo está quase completamente apagada. Só se pode ler ainda o nome de Preben e um S maiúsculo logo adiante; e um pouco mais abaixo o nome da Maria. O mais está indecifrável; isso mesmo só se torna legível quado chove ou quando lavamos a pedra.
   - Santo Deus! Mas então é a lousa de Prebem Schwane e de sua mulher!
   A declaração vinha de um homem idoso - tão idoso que poderia ser avô de quantos ali estavam. E ele continuou:
   - Eles foram os dois últimos enterrados no antigo cemitério do convento. Era um casal velho e venerável, lembro-me deles, do meu tempo de criança. Todo mundo os conhecia, e todos gostavam deles. Eram os mais antigos habitantes da cidade. O povo dizia que possuíam um barril cheio de ouro; mas eles vestiam com simplicidade, fazendas grosseiras, sempre de alvura brilhante. Era um belo casal de velhos: Preben e Marta. Costumavam sentar-se lá em cima, no patamar de alta escada de pedra da sua casa, abrigada pela velha tília da vasta copa. Cumprimentavam as pessoas com um gesto amável, que logo as punha à vontade.  E eram muito bons para os pobres, socorrendo-os com roupas e alimentos, e praticavam a caridade com muito senso e verdadeiro espírito cristão. A velha morreu primeiro. lembro-me ainda do dia de sua morte, com todos os pormenores. Era eu então um gurizinho, e acompanhara meu pai à casa do velho Preben. Chegamos lá justamente no instante em que ela acabava de adormecer para sempre. O velho, profundamente comovido, chorava como uma criança. A defunta estava no quarto pegado à sala onde nos achávamos sentados. O velho conversava com meu pai e com alguns vizinhos que tinham ido visitá-los. Pôs-se a lamentar-se, pensando na vida solitária que ia ter dali em diante. Lembrou-se de quanto ela fora fiel, e bondosa; recordou os anos numerosos que tinham vivido juntos, andando pela vida; descreveu o seu primeiro encontro, quando se conheceram, e como o amor nascera nos seus corações. Como disse, era eu criança, e ficava quieto, a ouvir o que os outros diziam, mas as palavras do velho arrebataram-me ao vê-lo animar-se aos poucos, suas faces coraram, quando falou nos dias do noivado, na antiga beleza da esposa, nos inúmeros rodeios inocentes que ele fizera para vê-la. Depois contou das bodas, com os olhos brilhantes. Revivia aqueles tempos felizes...E ali, no quartinho ao lado, ela jazia morta, uma velha! E ele era um velho, falando do tempo da esperança...Sim! Assim são as coisas! ...Naquele dia eu era uma criança, hoje sou velho, velho como Preben Achwane... O tempo passa e tudo muda. Lembro-me perfeitamente do dia do enterro; o velho Preben seguia junto do caixão. Poucos anos antes, o casal mandara fazer a lousa sepulcral, com a inscrição e os nomes; só ficara em branco o lugar da data da morte. À noite, transportaram a pedra para o cemitério, e puseram-na sobre a sepultura. Um ano depois foi ela removida, e o velho Preben também desceu para junto da esposa...Não tinham deixado nem sombra das riquezas que o povo lhes atribuía. O que se encontrou tocou para uns parentes afastados, pessoas de cuja existência até então ninguém soubera. A velha casa de taipa, com seu banco no patamar da alta escada, à sombra da tília, foi demolida por ordem das autoridades: era antiga demais e já tão decrépita, que não devia ficar de pé. Mais tarde, quando a igreja do convento teve o mesmo destino, e o cemitério foi fechado, a lousa sepulcral, foi exposta à venda. E verifica-se agora que a lousa não foi britada, e empregada no calçamento, como muitas outras, mas acha-se ali no pátio, servindo de mesa auxiliar para as criadas, e de lugar de brinquedo para as crianças...Sobre o jazigo do velho Preben e de sua mulher passa agora a rua calçada. Ninguém mais se lembra deles...
   E o velho que contara tudo isso sacudiu melancolicamente a cabeça, concluindo:
   - Esquecido, tudo ficará esquecido...
   Depois falaram de outras coisas. Mas a menor das crianças, um menino de olhos sérios e grandes, subiu a uma cadeira por trás das cortinas, para olhar lá para o pátio. O luar derramava seu claro brilho sobre a velha pedra - aquela velha pedra, que até ali lhe parecera vazia e nua, mas que agora lhe aparecia como uma folha de um livro de crônicas. Tudo quanto ouvira do velho Preben e de de sua esposa, estava encerrado naquela pedra.
  O menino olhou para ela, olhou depois para a lua clara e límpida; olhou a pureza do ar, e pareceu-lhe que o rosto de Deus resplandecia  acima da Terra.
   - Esquecido...tudo ficará esquecido!
   Ressoaram essas palavras pela sala. Mas, no mesmo  instante, um anjo invisível beijou a fronte de menino, dizendo-lhe baixinho:
   - Guarda o grão de semente que te foi confiado, para que amadureça e frutifique. Cuida bem dele! É por teu intermédio, meu filho, que a inscrição apagada, a  lousa corroída pelo tempo será apresentada às gerações por vir. O velho casal tornará a caminhar de braço dado, risonho, pelas ruas antigas; descansará de novo, com as faces sadias e coradas, no alto banco, à sombra da tília, acenando para ricos e pobre, O grão de semente desta hora crescerá através dos anos, e chegará a ser poesia em flor. o bom e o belo não ficarão esquecidos: continuarão vivos na canção, vivos na lenda!

Continua

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O CARACOL E A ROSEIRA - CONTOS DE ANDERSEN


      Era um jardim todo cercado de aveleiras; e para além do jardim ficavam os campos e os prados, onde pastavam as vacas e as ovelhas. No centro do jardim ostentava-se uma roseira, em plena floração. Embaixo da roseira morava um caracol, que se tinha em grande conta.
   - Esperem, esperem que chegue a minha hora - dizia ele. - Hei de fazer muito mais do que produzir rosas, ou avelãs, ou dar leite, como as vacas!
   - Eu espero muito de ti - dizia a roseira. - E quando será isso?
   - Leva seu tempo, leva; mas tu estás sempre a trabalhar com tamanha pressa! Nem podes despertar curiosidade em ninguém: todos já sabem o que vais dar.
   No ano seguinte o caracol lá estava, quase no mesmo lugar, apanhando sol, ao pé da roseira, que já começava a florescer: os botões iam abrindo em flores, sempre frescas, sempre novas. E o caracol saiu a eio da concha, esticou as antenas, e tornou a recolhê-las.
   - Tudo está como no ano passado; nã houve progresso em coisa alguma. A roseira ainda tem rosas - ela não faz outra coisa...
   Passou o verão; o outono passou; e a roseira sempre dando botões e dando rosas, imperturbável, até que caiu a primeira neve. era agora frio e chuvoso o tempo; a roseira inclinou-se para o chão; o caracol meteu-se pela terra a dentro.
   Veio de novo a primavera; a roseira reviveu, floresceu de novo; o caracol saiu da terra.
   - Agora não és mais que uma roseira velha - disse ele. - Já é tempo do ires secando. já deste ao mundo tudo o que podias. Se isso valia alguma coisa ou se não valia nada, é questão que não tenho tempo de considerar, mas o que é fora de dúvida é que nada fizeste em teu próprio proveito; se assim fôra, terias produzido coisas muito melhores! Que dizes em tua defesa? Negarás isto? Não tardarás muito a ser apenas uma vara seca. Compreendes o que te digo?
   - Tu me assustas! - disse a roseira. - Nunca pensei nisso!

   - Não mesmo; parece que nunca te preocupaste muito em pensar. Mas nunca pensaste nestas coisas: por que florescias, e de que modo florescias - por que de uma maneira e não de outra?
   - Não; eu desabrochava com alegria, porque era isso o que sabia fazer: o sol e o ar me davam energias...eu bebia o orvalho cristalino, e a chuva torrencial; eu respirava, eu vivia! Do chão erguia-se uma força dentro do meu ser; de cima vinha sobre mim uma força! Sentia uma felicidade, sempre nova, sempre grande, e tinha sempre de florescer, dar botões e dar rosas. Era isto a minha vida. Eu não podia fazer outra coisa!
    - Sim, levaste uma vida muito suave!
   - É verdade, tens razão; recebi tudo de graça. Mas agora,nada mais me será concedido...Mas tu, foste muito mais bem dotado do que eu! Tens uma natureza meditativa, um espírito profundamente pensador, desses que hão de assombrar o mundo!
   - Não tenho essa intenção - disse o caracol. - Para mim o mundo nada vale. Que me importa o mundo? Tenho de me ocupar comigo mesmo! E isso me basta!
   - E não devemos então - todos nós, que vivemos no mundo - dar aos outros o que há de melhor em nós? não é o nosso dever contribuir com aquilo que está em nosso poder? Sim! É verdade, eu só tenho dado rosas. Mas e tu? Tu, que tanto recebeste - que deste ao mundo? Que vais dar-lhe ainda?
   - Que lhe dei? Que hei de dar?...Que me importa dar?E de que serve isso? Não. isso não me interessa. Eu cuspo para o mundo! Continua tu a dar rosas...Não podes fazer mais nada! A aveleira que dê avelãs...As vacas e as ovelhas que deem leite! Cada um tem seu público: tu tens o teu, elas lá tem cada uma o seu. Quanto a mim, tenho o meu público dentro de mim mesmo, e lá ficarei. O mundo para mim nada vale: eu cuspo para o mundo!
     E o caracol encolheu-se para dentro da sua casa e fechou-a.
   - Que pena! - exclamou a roseira. - mas eu, por mais que o desejasse, não poderia entrar para dentro de mim mesma...Tenho de brotar, brotar sempre em rosas. As pétalas caem e o vento leva-as para longe. Mas vi uma de minhas rosas dentro do livro de orações de mina dona. Vi uma de minhas rosas no peito de uma moça linda. E vi outra receber um beijo dos lábios de uma criança, transportada de alegria ao vê-la. E tudo isso e fez tanto bem...Foi para mim uma verdadeira benção - e é uma das mais belas recordações de minha vida!
   E a roseira continuou a florescer na sua inocência, e o caracol retirou-se para a sua casa viscosa - o mundo nada valia para ele!   E o anos foram correndo.
   O caracol era pó no pó; a roseira era terra na terra. A rosa reca, imprensada no livro de orações, também se desfez em pó - mas no jardim floresciam novas roseiras; no jardim cresciam outros caracóis. E eles se encolhiam dentro de casa, cuspindo desdenhosamente - o mundo nada valia para eles!
   Valeria a pena ler também a história deles?
   Não: ela não seria diferente.
FIM