sexta-feira, 13 de maio de 2016

OS DOIS ANDARILHOS - CONTOS DE GRIMM

       Os vales e as montanhas nunca se encontraram, mas apenas os homens, especialmente os bons com os maus. Assim sucedeu que, certa vez, um sapateiro e um alfaiate que haviam saído a correr mundo, se encontraram . O alfaiate era baixinho, simpático, sempre alegre e bem disposto. Ao ver o sapateiro, que se aproximava, vindo de direção oposta e percebendo-lhe o ofício pela sacola que carregava, gritou-lhe estes versinhos zombeteiros:
       Sapateiro, não amola!
        Bota fora a presunção!
        Bata sola, bate sola,
        Faz a tua obrigação!

    Mas o sapateiro não gostava de brincadeiras e, franzindo a cara como se tivesse tomado vinagre, fez o gesto de quem ia esgoelar o outro. O alfaiatezinho, no entanto, começou a rir e, alcançando-lhe sua garrafa de vinho, disse:
    - Não leves a mal. Bebe um pouco que te passará esse mau humor.
    O sapateiro tomou um bom gole e seu rosto começou a desanuviar-se. Devolvendo a garrafa ao alfaiate, disse-lhe:
     - Prestei boa homenagem ao vinho. Fala-se muito dos que bebem, mas não dos que tem sede. que achas da ideia de seguirmos juntos?
     - Estou de acordo, - respondeu-lhe o alfaiate,- desde que queiras ir a uma cidade grande, onde não falte trabalho.
     - Era essa, exatamente, a minha vontade, - retrucou o sapateiro. - Num lugarejo qualquer não se ganha nada e, no campo, as pessoas preferem andar descalças.
     Assim, prosseguiram juntos seu caminho, sempre em frente, um pé adiante do outro, que o mundo é coisa grande para quem sabe andar.
     Tempo, eles tinham de sobra, mas pouca coisa para mastigar. Sempre que chegavam a uma cidade, cada um ia para o seu lado a cumprimentar os mestres de seus respectivos ofícios. O alfaiatezinho, com seu gênio alegre, seu ar saudável, suas bochechas coradas, era bem acolhido em toda parte e todos lhe davam alguma coisa, e até às vezes tinha a sorte de ganhar uma beijoca da filha do mestre, atrás da porta. Quando se encontrava, de novo, com  o sapateiro, sua mochila sempre estava mais cheia que a do outro, O sapateiro, com seu ar rabugento, fazia uma cara feia e comentava:
    - Quanto mais velhaco, mais sorte!
     Mas o alfaiate se punha a rir e a cantar e repartia com seu companheiro tudo o que lhe haviam dado. Se acontecia tilintarem alguma moedas em seu bolso, ele as gastava na taverna e, de tão contente, batia com o punho na mesa, estremecendo os copos. Fazia como diz  o povo: " Fácil de ganhar, fácil de gastar."
     Já tinham viajado juntos por algum tempo, quando chegaram, um dia, a uma floresta muito grande por onde passava o caminho da capital do reino. Tinham de escolher duas estradas: uma que se percorria em sete dias e ao outra em apenas dois. Mas eles não sabiam qual era a mais curta, Os dois andarilhos sentaram-se à sombra de um cavalho para discutir o caso e resolver para quantos dias deveriam levar pão. Disse o sapateiro:
        É melhor gemer de peso que de necessidade. Eu vou levar pão para sete dias.
      O que?! - exclamou o alfaiate. - Carregar, que nem burro, pão no lombo para sete dias, sem poder ao menos virar a cabeça, para dar uma olhada no caminho? Tenho fé em Deus e não me preocupo. O dinheiro que tenho no bolso vale o mesmo, tanto no verão como no inverno, mas o pão, com este calor, ficará seco e ainda por cima vai embolar. Por que fazer a manga mais comprida que o braço? Por que não iríamos dar no caminho certo? Pão para dois dias, e nada mais!
       E, assim, cada qual comprou sua quantidade de pão e embrenharam-se na floresta, contando com a sorte.
      No interior da mata havia um silêncio grande como numa igreja. Não corria uma brisa; não se ouvia o rumor de um arroio nem o gorjeio de um pássaro ao menos um raio de sol. O sapateiro não pronunciava uma só palavra, pois a grande carga de pão lhe pesava tanto nos ombros que os suor corria como água pelo seu rosto carrancudo e feio. O alfaiate, porém, caminhava alegremente, pulando e tocando numa folha enrolada, como se fosse uma flauta ou, então, cantava, enquanto ia pensando: "Deus Nosso Senhor deve estar contente por me ver tão alegre."
       Durante dois dias as coisas continuaram assim. Mas quando, ao fim do terceiro, o alfaiate viu que não chegavam ao fim da floresta e que ele já tinha comido toda a sua parte, sentiu um baque no coração. Mesmo assim, não perdeu a coragem: tinha confiança em Deus e na sua boa sorte. Naquela noite deitou-se, faminto, ao pé de uma árvore e, na manhã seguinte, despertou com mais  fome ainda. Assim passou também o quarto dia e, quando o sapateiro se sentava no tronco de alguma árvore  para fazer sua refeição, a única coisa que restava ao alfaiate era ficar olhando, olhando...Se lhe pedia um pedacinho de pão, o outro ria e lhe retrucava:
      - Sempre foste tão alegre! Pois fica sabendo agora o que é a tristeza...Os passarinhos que cantam de madrugada são comidos , à noite, pelo gavião.
       - Hoje te darei um pedacinho de pão, mas, em troca, vou tirar-te o olho direito.
       O infeliz alfaiate, desejoso de viver mais um pouco não teve outro remédio senão concordar. Chorou, pela ultima vez, com os dois olhos e depois ofereceu-se ao sapateiro, que tinha um coração de pedra e que lhe tirou, com uma faca bem afiada, o direito.
      O alfaiate, então, lembrou-se do que a mãe sempre lhe dizia quando o encontrava a empanturrar-se de doces na despensa: " Come, come, mas depois aguente as consequências!" Assim, pode ter devorado o pão que lhe saíra caro, ele conseguiu pôr-se novamente de pé. E esquecendo sua desgraça, procurou consolar-se com a ideia de que com um olho só ainda enxergava o bastante. Mas no sexto dia, voltou a atormentá-lo a fome que o fazia desfalecer. À noite, caiu junto a uma árvore e, na manhã do sétimo dia, não conseguiu mais erguer-se e sentiu que a morte se aproximava. Disse-lhe, então, o sapateiro:
      - Vou ser camarada contigo e te darei outro pão. Mas não o terás de graça. Em troca, vou tirar-te o outro olho.
      Diante disso, o alfaiate reconheceu sua conduta leviana e, pedindo perdão a Deus, disse ao seu companheiro:
     - Seja o que bem quiseres! Tenho de sofrer as consequências da minha imprevidência. Não te esqueças, porém que Deus Nosso Senhor julga quando menos se espera. Chegará a hora em que terás de prestar contas do que fazes, exatamente a mim, que, durante os dias bons, reparti contigo tudo o que possuía. Para exercer minha profissão é necessário que um ponto siga o outro; uma vez que eu tiver perdido a vista, não poderei mais costurar e não me restará outro recurso senão esmolar o meu pão. Só te peço que, quando cego, não me abandones neste lugar, onde morreria de fome.
      O sapateiro, que já não tinha lugar para Deus no seu coração, pegou  faca e lhe tirou o outro olho. Feito isso, deu-lhe um pão para comer, alcançou-lhe um bastão e deixou que o alfaiate o seguisse.
      Quando o sol ia desaparecer, os dois saíram da floresta. No campo em frente, e erguia-se uma forca. O sapateiro guiou o alfaiate até ali e depois o abandonou, seguindo ele seu caminho. O infeliz adormeceu de cansaço, de dor e fome. Ao despontar do dia, acordou sem saber onde  se encontrava. Da forca pendiam os corpos de dois pobres pecadores e sobre a cabeça de cada um deles estava pousado um corvo. De repente, um dos enforcados começou a falar. Disse, dirigindo-se ao outro:
       - Irmão, estás acordado?
       - Sim - respondeu o companheiro.
       - Pois então vou te dizer uma coisa, - prosseguiu o primeiro, - o orvalho que esta noite caiu em cima de nós, eu sei que tem um poder mágico: devolve a vista a quem se lavar com ele. Ah! se os cegos soubessem disso...
      Ao ouvir aquelas palavra, o alfaiate pegou o lenço, molhou-o no orvalho que havia sobre o capim e lavou com ele as cavidades dos olhos. No mesmo instante, aconteceu o que acabara de dizer o enforcado e um par de olhos sãos nasceu-lhe no lugar onde só havia os buracos. Pouco depois, o alfaiate viu o sol nascer atrás das montanha e, à sua frente, na planície, a cidade, com seus magníficos portões e centenas de torres encimadas por cruzes de ouro que brilhavam à distância. Pode distinguir cada folha  nas árvores. Pode ver os pássaros que passavam voando. E até os pequenos insetos que dançavam no ar. Tirou do bolso uma agulha e viu - ó milagre! - que podia enfiá-la melhor do que antes. Caiu de joelhos, agradecendo a Deus a graça obtida e rezou sua oração da manhã, sem esquecer de encomendar a Nosso Senhor as almas dos dois pobres pecadores ali enforcados e que o vento fazia bater um contra o outro. Em seguida, pôs aos ombros a mochila e, esquecendo as penas passadas, retomou o caminho, cantando e assobiando.
        Eis senão, quando, avistou um lindo potro tordilho, que saltava alegremente pelo campo. Agarrando-o pela crina, quis montar nele para entrar a cavalo na cidade. Mas o animal rogou-lhe que não privasse de sua liberdade:
      - Sou demasiado jovem, - disse, - e, mesmo um alfaiatezinho leve como tu, me quebraria a espinha. Deixa-me correr livremente pelos campos até que esteja mais forte. Talvez chegue o dia em que eu  possa pagar-te.
       - Pois sai correndo, - disse -lhe o alfaiate. - Bem vejo que és, também, um maluquinho.
        Deu-lhe um golpe de leve no lombo, com a vara, e o animalzinho saiu a galopar, alegre, pelo campo, saltando cercas e valas.
      O alfaiate não havia comido nada desde a véspera.
      - É verdade que o sol me enche os olhos, - dizia,- mas agora preciso de alguma coisa que me encha a boca. O que eu primeiro encontre para comer, não deixarei escapar!
     Nisto, viu uma cegonha que andava, muito sim-senhora, pelo campo.
     - Alto, alto! - gritou o alfaiate, pegando-a pela perna. - Não sei se és uma boa comida, mas minha fome não me permite escolha. Tenho de torcer-te o pescoço e transformar-te num assado.
       - Não faças isso! - respondeu a cegonha. - Sou uma santa ave que não faz mal a ninguém e que traz grande benefício à humanidade. Se me poupas a vida, talvez um dia eu possa pagar-te.
        - Pois, então, vai andando, perna-fina! - disse o alfaiate. E a cegonha, alcançando voo, afastou-se tranquilamente.
      - Que farei agora? - perguntou o alfaiate a si mesmo. - Minha fome cresce como um balão e tenho o estômago cada vez mais vazio. O primeiro que cruzar o meu caminho estará perdido.
      Nisto, olhou para um lago e viu dois patinhos nadando.
      - Vocês vem muito a propósito! - disse ele. E, agarrando um dos bichinhos, dispôs-se a torcer-lhe o pescoço. Naquele momento, uma pata velha, que estava metida entre os juncos, pôs-se a grasnar e, aproximando-se, a nado, lhe implorou que tivesse pena dos seus filhinhos.
      - Não pensas - falou - no que sentiria tua mãe se alguém viesse para te comer?
      - Tranquiliza-te, respondeu-lhe o bondoso alfaiate. - Fica com teus filhos. - E pôs na água o patinho que havia apanhado.
        Ao voltar-se, notou à sua frente uma velha árvore, meio oca, e muitas abelhas silvestres que entravam e saiam do tronco.
      - Finalmente recebo o prêmio pela minha boa ação, - disse, - este mel me confortará.
    Mas a rainha das abelhas apresentou-se, ameaçado-o:
     - Se tocas em meu povo e nos destróis o ninho, nossos ferrões se cravarão em teu corpo como dez mil agulhas de fogo. Em troca, se nos deixares em paz e seguires o teu caminho, nós te prestaremos um serviço quando menos esperares.
     O alfaiatezinho viu que  também por aquele lado não iria saciar sua fome.
      - Três pratos vazios. - disse consigo - e o quarto, sem coisa nenhuma; isto é que se chama fazer dieta!
     Arrastou-se até a cidade, sem nada no estômago. Mas, como chegasse justamente ao meio-dia e tivesse algumas moedas, pode afinal matar a fome. Depois, pensou: " Bem, agora é preciso trabalhar!"
      Percorrer a cidade em busca de um mestre- alfaiate e não tardou a encontrar um bom emprego. Como era muito hábil em seu ofício, em pouco tempo estava famoso. Todas as pessoas de importância queriam seus trajes confeccionados pelo alfaziatezinho, que era agora o rei da moda.
    - Não posso melhorar mais a minha arte, - dizia ele, - e, no entanto, cada dia as coisas vão melhorando.
      Tanto assim, que o rei o nomeou alfaiate da Corte.
     Mas vejam como são as coisas neste mundo: no mesmo dia  era nomeado sapateiro da Corte o seu velho companheiro de viagem. Este, ao ver   alfaiate e notando que havia recuperado os olhos, ficou muito preocupado. ! "Tenho de preparar-lhe uma cilada antes que ele se vingue de mim" - pensou. Mas aquele que faz uma armadilha para outrem, acaba caindo nela.
      Certa ocasião, ao anoitecer, depois de terminar o trabalho, o sapateiro apresentou-se ao rei e lhe disse:
       - Majestade, o alfaiate é um sujeito atrevido, Ele anda a gabar-se de que seria capaz de encontrar a coroa de ouro que se perdeu há tanto tempo.
      - Isso muito me agradaria, - respondeu o rei.
     Na manhã seguinte, chamou o alfaiate à sua presença e lhe disse que das duas uma: ou fizesse aparecer a coroa ou então deixasse a cidade para sempre. " Bem, - pensou o alfaiatezinho, - só um tolo dá mais do que tem. Se o rei exige de mim o que ninguém pode fazer, é melhor que eu nem espere o dia de amanhã e saia da cidade hoje mesmo." Arrumou sua mochila. E, quando ia atravessando as portas da cidade, sentiu uma grande tristeza por ter de renunciar à sua boa sorte, a abandonando os lugares onde passara tão belos dias. Chegou ao lago onde tinha os patos. Ali estava a pata velha, limpando as penas com o bico. Ela o reconheceu logo e lhe perguntou por que andava tão acabrunhado.
       - Não te espantarás quando souberes  o motivo, - respondeu o alfaiate e contou-lhe o seu azar.
        - Se é só isso, - disse a pata, - poderemos ajudar-te. A coroa caiu na água e está no fundo do lago. Logo a traremos à tona. Estende o teu lenço no chão, junto à margem.
        E, junto com os seus doze patinhos, mergulhou para reaparecer dali a cinco minutos com a coroa no lombo, rodeada dos doze pequerruchos que, nadando a seu redor, ajudavam-na  a carregar a coroa com os bicos. Nadaram até a margem e depositaram a coroa sobre o lenço. Não podem imaginar como ela era inda! Quando os raios de sol a atingiam, cintilava como cem mil brilhantes. O alfaiate atou o lenço pelas quatro pontas e levou a coroa ao rei. Este, contentíssimo, condecorou ele mesmo ao alfaiate, com um belo colar de ouro.
        Quando o sapateiro viu que seu plano havia falhado, pensou noutro e, dirigindo-se ao rei, disse:
       - Majestade, o alfaiate continua muito atrevido. Ele anda a gabar-se de que pode reproduzir em cera todo o palácio real, com todos os pertences, por dentro e por fora.
       O rei mandou chamar o alfaiate e ordenou-lhe que reproduzisse em cera o palácio, com tudo o que dele fizesse parte, exatamente , tanto no interior como no exterior. Mas avisou-o de que, se não fosse capaz disso e se faltasse um só prego na parede, seria lançado a um calabouço para o resto da vida. Pensou o alfaiate: " As coisas estão piorando cada vez mais; isso ninguém aguenta." E, pondo a mochila aos ombros, saiu pela estrada. Quando chegou à árvore oca, sentou-se embaixo para descansar, triste e aborrecido. As abelhas saíram voando e a rainha lhe perguntou se estava sentindo alguma dor, pois nem levantava a cabeça.-------------------------------------
         - Oh, não! - respondeu o alfaiate, - a minha dor é outra.
         E contou o que o rei havia exigido dele. puseram-se as abelhas a zumbir entre si e depois a rainha lhe disse:
        - Volta para casa e amanhã, a esta mesma hora, vem aqui, trazendo um pano bem grande, que tudo saíra bem.
           Enquanto ele regressava à cidade, as abelhas voaram até o palácio real e, entrando pelas janelas, meteram-se por todos os cantos, observando tudo em seus menores detalhes. Feito isso, de volta à colmeia, fizeram uma reprodução, em cera, do palácio, e isto com uma rapidez que vocês nem podem imaginar. À noite o trabalho estava concluído. E quando, na manhã seguinte, o alfaiate se apresentou, conforme o combinado, viu ali o magnífico palácio, sem que faltasse um prego na parede nem uma telha no telhado. Além disso, era delicado como um bolo de noiva, branco como a neve e desprendia o cheiro suave de mel. o alfaiate o arrumou, cuidadosamente, dentro do pano que trouxera  e o levou ao rei. Este não soube como expressar sua admiração. mandou que o colocassem no salão mais espaçosos do palácio. E presentou o alfaiate com uma casa muito grande e muito bonita.
           O sapateiro, porém, não desistiu e pela terceira vez foi ao rei, dizendo:
          - Majestade, o alfaiate bem sabe que no pátio do palácio não há meios de fazer brotar água. Mas ele anda a gabar-se de que é capaz de fazê-la jorrar no centro do pátio, em um esguicho da altura de um homem, e límpida como um cristal.
          O rei ordenou que se apresentasse o alfaiate e lhe disse:
        - Se amanhã não jorrar um esguicho de água no pátio, conforme prometeste, mandarei que o carrasco te corte a cabeça ali mesmo.
         O pobre alfaiatezinho não se demorou em  pensar muito tempo no assunto. Apressou-se a sair da cidade e, como desta vez não se tratava de expulsão nem de prisão, mas de sua própria vida, as lágrimas lhe rolavam pelas faces. Enquanto caminhava, cheio de tristeza, aproximou-se dele, saltando, o antigo potro a quem um dia ele concedera a liberdade e que, já crescido, era agora um belo e forte animal.
        - Chegou a hora, - disse ele, - em que poderei pagar tua boa ação. Já sei o  se  que passa  e logo te ajudarei. Monta em mim, pois agora posso carregar dois como tu.
         O alfaiate criou alma nova e saltou para o lombo do animal, que entrou a galope na cidade, dirigindo-se, diretamente, ao pátio do palácio. Ali deu três voltas completas com a velocidade do raio e, por fim, deixou-se cair no chão. no mesmo instante ouviu-se um tremendo estalo. Do centro do pátio, saltou um pedaço de terra. Elevou-se um jato de água até a altura de um homem a cavalo. E a água era límpida como um cristal e os raios dos sol dançavam em suas gotas. Quando o rei viu esse maravilhoso espetáculo, levantou-se cheio de da admiração e foi ele mesmo abraçar o alfaiatezinho, na presença de toda a Corte.
        A felicidade, porém, durou pouco. O rei tinha várias filhas, cada qual mais linda, mas nenhum filho homem. E, pela quarta vez, o sapateiro maldoso foi ao rei e falou:
      - Majestade, o alfaiate continua cada vez mais atrevido. Ele anda agora a gabar-se de que será capaz de fazer com que tragam, pelos ares, um filho para a rainha.
      Novamente o rei mandou chamar o alfaiate e lhe disse:
      - Se, dentro de nove dias, fizeres com que me tragam um herdeiro menino, eu te darei minha filha mais velha em casamento.
      "Realmente, a recompensa é grande" - pensou o alfaiatezinho, - " e vale a pena fazer um esforço. mas, quando a esmola é demais, o pobre desconfia."
       Foi para casa; instalou-se de pernas cruzadas sobre a sua mesa de trabalho e pôs-se a refletir no assunto. "Não é possível!" - acabou exclamando, - " eu me vou embora para sempre; aqui não poderei viver em paz".
         Arrumou a mochila e apressou-se a sair da cidade. Quando chegou ao campo, avistou sua velha amiga, a cegonha, que passeava, filosofando, de um lado para outro, e que de vez em quando parava para examinar uma rã, que ela acabava engolindo mesmo. A cegonha aproximou-se e saudou-o.
        - Vejo - começou a falar - que tens a mochila às costa. por que pretendes sair da cidade?
      O alfaiate contou o que o rei lhe havia exigido e que lhe era impossível satisfazê-lo.
       - Não vás criar cabelo branco por tão pouco,- disse a cegonha. - Eu te ajudarei. - Há muito tempo que trago bebes para a cidade e não me custa tirar do poço um pequeno príncipe. Vai para casa descansado. Daqui a nove dias apresenta-te no palácio, que lá estarei também.
        O alfaiatezinho voltou para casa e no dia combinado foi ao palácio. Não demorou muito, apresentou-se a cegonha e bateu à janela. O alfaiate abriu e a senhora cegonha entrou, com todo o cuidado caminhando solenemente sobre o mármore liso. Trazia no bico um menininho, lindo com um anjo, que estendia as mãos para a rainha. Depositou o nenê no seu colo e ela pôs-se a beijá-la, doida de alegria. Antes de afastar-se. a cegonha tirou seu saco de viagem e o alcançou à rainha. Dentro havia balas e doces diversos que foram distribuídos entre as princesinhas. Só a mais velha nada recebeu. Já era muito grande para ganhar doces. Deram-lhe, em vez disso, o alegre alfaiate para esposo. " Sinto-me como se houvesse tirado a sorte grande. Minha mãe sempre dizia que, quem confia em Deus e tem sorte, nada lhe faltará."
      O sapateiro foi obrigado a fazer os sapatos que o nosso alfaiatezinho usaria no baile de casamento. Depois, ordenaram-lhe que abandonasse a cidade. O caminho para o mato passava pela forca. Abafado pelo calor e com a alma cheia de ódio, deitou-se ali. Quando ia fechar as pálpebras para dormir um pouco, os dois corvos que estavam pousados na cabeça dos enforcados atiraram-se, grasnando, sobre ele e lhe arrancaram seus dois olhos. Louco de dor, levantou-se e entrou correndo na floresta, onde decerto morreu ao desamparo, pois nunca mais se viu ou ouviu coisa alguma a seu respeito. FIM
   

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