Achavam-se lado a lado, em uma caixa de brinquedos, um pião e uma bola,
- Por que não havemos de nos casar? - perguntou o pião - pois que teremos de viver sempre juntos...
Mas a bola, que estava toda recoberta de um belo marroquim, e não era menos orgulhosa que uma moça de alta estirpe, nem se deu o trabalho de responder.
No dia seguinte o menino, dono dos brinquedos, lembrou-se de pintar o pião de vermelho e amarelo, e ainda o adornou com uma ponta de latão, bem novinha. Quando o pião girava, era só um brilhar de cores magnífico.
- Olha para mim - dizia ele à bola. - Que dizes agora? Não vamos casar? Somos feitos um para o outro: tu saltas, eu danço. Quem poderia ser mais feliz do que nós?
- Que ideia! Parece-te isso? Não sabes então que meus pais eram soberbas pantufas de marroquim, e que meu corpo é de cortiça espanhola? - Pois sim, pois sim - replicou o pião - mas eu também, olha que sou todo de cedro! O autor de meus dias não é mais nem menos que o burgomestre da cidade em pessoa. Nas hora de lazer ele se diverte em tornear toda a espécie de coisas bonitas, e eu sou a sua obra-prima.
É mesmo verdade o que dizes? - perguntou a bola, já mais adocicada.
- Nunca mais menino algum me dê corda, se estou mentindo!
- Tens muita habilidade para te fazeres valer. Mas escuta lá, isso é impossível. Estou já mais ou menos prometida a um lindo pássaro. Cada vez que voo pelos ares ele espicha a cabeça para fora do ninho e me faz uma declaração de amor. Cá dentro, prometi a mim mesma casar com ele, já há muito tempo, e somos meio noivos. Não posso, portanto, aceitar os teus galanteios; mas dou muito apreço aos teus sentimentos, e prometo-te que jamais te esquecerei.
- Já é alguma coisa, sem dúvida - suspirou o pião, pesaroso - mas isso não basta para me consolar.
Foram as última palavras que trocaram. No dia seguinte o menino pegou na bola e atirou-a ao ar. Ela voava como um passarinho. O pião perdeu-a de vista, por um momento.
Voltou de novo, para ser outra vez impelida. Cada vez que ela tocava a terra, dava um salto surpreendente, ou porque quisesse pular até o ninho do pássaro, ou porque a isso a compelia a cortiça espanhola.
Da nona vez que saltou ficou pelo caminho: ninguém a viu mais. O menino procurou-a, procurou-a por todos os lados. Não pode descobrir o menor rasto dela: tinha desaparecido.
- Bem sei onde está ela - disse o pião, suspirando.
- A esta hora já estão casados!
E quanto mais pensava nisso, mais sofria. Nunca sentira tanto amor pela bola, como agora, que não podia mais vê-la. E o seu maior desgosto era saber que ela casara com outro.
Entretanto, continuava o pião a dançar e a fazer ronrom. Mas pensava sempre na bola, que na sua imaginação parecia cada vez mais encantadora. Afinal aquilo veio a acabar no que se chama uma paixão antiga.
O pião já não era mais moço. Um belo dia douraram-no todo, para algum novo menino. Jamais ele se vira tão brilhante. Era lindo, vê-lo girar, e circular, e reluzir como um sol. E que lindo ronrom, quando dançava! Ah! Se a bola tivesse podido vê-lo agora...
De repente topa com uma pedra e salta longe. E adeus, pião! Sumira-se, eclipsara-se! Procuraram-no por toda a parte, até no porão, onde afinal podia ter caído por alguma gateira. E nada. Não foi encontrado.
Onde tinha ido parar o pião? Na cesta do lixo, entre a poeira, as cascas de batatas e de cebolas, os talos de couve, e outros resíduos não muito limpos.
- Estou bem aviado! - disse consigo. - E que vai ser agora dos meus belos dourados? Ah! Mas que é isto? Quem é esta gentalha que me cerca?
Olhou em roda e avistou um talo de couve muito feio e uma coisinha redonda que parecia uma batata velha: era uma bola, que passara anos e anos na goteira do telhado e estava ainda toda encharcada da água da chuva.
- Louvado seja Deus! - disse ela, quando viu o pião dourado. - Ora afinal encontro gente da minha categoria, com quem poderei conversar. Aqui onde me vês, sou feita de cortiça da Espanha, e toda coberta de marroquim, e quem me coseu foi uma bela moça. Sim, de fato, ainda que o não apareça. Estava a ponto de casar com um lindo pássaro, quando fui lançada em uma goteira do telhado, e lá fiquei cinco anos. Aí! Como a chuva me deixou inchada! Que feia fiquei! O que te posso afirmar é que aquilo era um suplício cruel, para uma donzela de boa família, como eu!
O pião nada disse. Pensava no seu antigo amor, e adivinhava que era quele o objetivo que tanto o inflamara nos anos de sua mocidade.
Chegou a criada. Foi despejar a cesta do lixo.
- Olá! - exclamou ela, vendo o pião dourado.
Pegou nele e levou-o às crianças. E o pião recobrou a antiga glória.
Quanto à bola, foi atirada à rua.
O pião nunca mais falou na sua velha paixão. Quando viu a bola inchada da água da chuva toda enrugada e hororosa, fingiu que não a reconhecia.
FIM
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
sexta-feira, 24 de março de 2017
terça-feira, 24 de janeiro de 2017
A COBRA-D'ÁGUA - CONTOS DE ANDERSEN

Era uma vez um peixinho de mar, de muito boa família. Já não me lembro do seu nome, mas os sábios podem informar-te, se o desejas. Sei que o peixinho tinha mil e oitocentos irmãos, todos da mesma idade. Não conheciam pai nem mãe. Já desde o primeiro dia se viram assim, entregues a si próprios, e lá iam vagando à toa pelo mar; e a verdade é que sentiam nisso grande prazer. Dispunham de muita água para beber - o oceano inteiro. E não era preciso que se preocupassem com o alimento, que aparecia sempre na ocasião oportuna. Todos eles pretendiam viver alegremente, cada um à sua maneira; cada um teria também a sua história, mas isso também não os preocupava.
O sol, deitando seus raios pela água a dentro, enchia-a de uma luz maravilhosa, iluminando um mundo de criaturas estranhas: umas de tamanho desmedido, que abriam uma boca imensa, capaz de engolir os mil e oitocentos irmãos. Mas, como nenhum deles tinha sido ainda devorado, não se importavam com os enormes animais.
Nadavam em cardume, bem unidos, como os arenques e as cavalas. Mas, quando iam nadando, muito à vontade, sem pensar em nada, veio descendo sobre eles, com medonho rumor, uma coisa comprida e pesada, que parecia não ter fim, e se estendia, cada vez mais longe.
E o peixinho que apanhasse, ficava logo esmagado, ou pelo menos levava uma pancada tal, que jamais poderia refazer-se do golpe. Todos os peixes - grandes e pequenos- da superfície até o fundo do mar, recuaram, sobressaltados. É a coisa pesada e poderosa descia, descia cada vez mais, e ia ficando cada vez mais comprida, e já cobria uma extensão de milhas e milhas, por dentro do mar.
Peixes e caracóis, tudo quanto nada, tudo quanto se arrasta lá no fundo, ou se deixa levar pela correnteza, todos viram aquela coisa pavorosa, aquela enguia marinham imensa e desconhecida, que assim de repente descera da superfície da água.
E afinal - que coisa era aquela?
Ah! Nós o sabemos! Era o grande cabo telegráfico, de muitas e muitas léguas de extensão, que os homens iam mergulhando no mar, entre a Europa e a América.
Todo o mundo ficou horrorizado, e houve verdadeiro alvoroço entre os legítimos habitantes do oceano, onde quer que o cabo caísse. Os peixes-voadores passavam muito acima da superfície da água, voando o mais alto que podiam. O peixe-galo, que pode saltar longe, deu um salto que alcançou a distância de um tiro de fuzil. Outros foram refugiar-se no fundo do mar, e desceram com tamanha velocidade, que chegaram muito antes de ter sido avistado por lá o cabo do telégrafo. Foram assim assustar o bacalhau e o linguado, que nadavam tranquilamente lá por baixo, devorando seus parentes.
Alguns holotúrias levaram tamanho susto, que vomitaram o estômago; mas continuaram vivas mesmo assim pois essa façanha lhes é familiar. Muitas lagostas, muitos caranguejos, dos grandes, saltaram fora das suas sólidas couraças, deixando longe as patas.
No meio de todo esse espanto, de toda essa confusão, os mil e oitocentos irmãos se viram separados uns dos outros, e não tornaram jamais a se encontrar, ou, se se encontraram, não se reconheceram.
Olharam em roda, e para cima, e para baixo; e pareceu-lhes que lá
estava, no fundo, aquela coisa horripilante, que lhes causara tanto pavor como aos outros seres do mar. A coisa jazia estendida no fundo do oceano, e estendia-se e perder de vista.Era muito magra, mas os peixinhos não sabiam até onde ela poderia engordar, nem lhe conheciam a força. Ali estava deitada e imóvel; mas ele achavam que aquilo bem podia ser por manha.
- Pois que fique deitada onde lhe apetecer! Que nos importa? - disse o mais prudente de todos.
Mas o menorzinho não se deu por satisfeito, e queria saber o que era aquilo. Como tinha vindo lá de cima, talvez lá pela superfície, a gente pudesse obter melhores informações. E assim foram subindo.
Era um dia sereno. Na superfície encontraram um delfim, que é um sujeito estouvado, um vagabundo do mar, que vive dar cambalhotas na planície do oceano. O delfim tinha olhos, logo era de crer que tivesse visto a coisa, e que soubesse dos pormenores. Interrogaram-no; mas ele só pensava em si: nada vira, e não soube que responder. E, como um ar enfatuado, mostrou seu pouco caso pelo assunto.
Dirigiram-se à foca, que ia mergulhar naquele instante. Mostrou-se mais cortês; e, embora costumasse comer peixinhos miúdos, naquele momento estava farta. Sempre sabia um pouco mais que o peixe saltão.
- Passei muitas noites deitada em uma pedra úmida, a olhar para terra firme, milhas a dentro. Vivem na terra criaturas de bonita figura, que, lá entre si, dão o nome de homens. Essas criaturas nos perseguem, mas, por via de regra, conseguimos escapar-lhes. Foi o que fiz, e também a enguia marinha de que vocês falam. Ela estava em poder deles, dos homem, e vivia na terra, talvez desde tempos imemoriais. Eles a trouxeram em um carro, pois queriam transportá-la por água, para uma terra distante, que fica do outro lado do mar. Vi quanto trabalho lhes deu a coisa! Mas conseguiram dominá-la. É que certamente ela já se cansara de estar em terra. Arranjaram-na então em forma de coroa, ou círculo, e ela rolava e dava estalos, enquanto a dobravam; mas afinal escapou, e chegou até aqui. Seguravam-na com toda a força- e olhem que havia muitas mãos a agarrá-la! Mas ainda assim fugiu, e chegou ao fundo. E creio que lá ficará, pelo menos por enquanto.
- Ela é tão magra...- disseram os peixinhos.
- É porque passou fome - retrucou a foca. - Mas logo há de recuperar as forças, e tornará a engordar como dantes. Julgo que á a grande cobra-d'água, que os homens tanto temem, e da qual, tanto se fala. Eu nunca tinha visto, e nem acreditei nunca na sua existência. Mas agora suponho que é ela mesma.
Dito isso a foca mergulhou.
- Quanta coisa ela sabe! Quanto falou! - diziam, admirados, os peixinhos. Nós nunca tínhamos aprendido tanta coisa...Hoje ficamos sábios. Tomara que seja verdade tudo quanto ela disse, e não patranhas, para enganar a gente!
-E por que não havemos de ir examinar a coisa de perto? - perguntou o menor. - De caminho poderemos ouvir a opinião de outras pessoas.
Mas os outros disseram logo:
- Eu cá não moverei uma barbatana para saber algo a respeito da coisa!
E foram andando para longe. Mas o pequerrucho, nadando para o fundo, disse:
- Pois eu quero saber!
Mas estava longe do lugar onde repousava a coisa. O peixinho ia mergulhando e olhando para todos os lados. Ignorava até então quão vasto era o mundo em que vivia. Passavam os arrenques, em grandes cardumes, cintilando como uma enorme bandeja de prata. As cavalas também andavam juntas, e apresentava, especto ainda mais esplêndido. De todos os lados nadavam peixes de todas as formas. Havia medusas, que pareciam enormes flores translúcidas, derivando na correnteza. No fundo do mar cresciam plantas enormes, arbustos de muitos metros de altura, e árvores semelhantes a palmeiras, com as folhas salpicadas de conchas de moluscos, que despediam brilho fulgurante.
Afinal o peixinho avistou, lá no fundo, uma longa fita preta, e nadou naquela direção. Mas a listra não era peixe, e tampouco o cabo. Era a amurada de um grande navio naufragado, cujo convés rebentara pela pressão da água. O peixinho entrou no porão, que, ao afundar, estava cheio de gente; mas essas pessoas tinham sido arrastadas pelas ondas, e só ficara ali uma mulher, com uma criancinha nos braços. A água erguia-lhe o corpo, como se estivesse a embalá-la. O peixinho assustou-se ao vê-las, porque não sabia que não acordariam jamais. As plantas marinhas, que desciam da amurada, cobriam os dois cadáveres, no meio daquela calma, daquela solidão. O peixinho tratou de se afastar dali o mais depressa que pode, em busca de algum sítio onde houvesse mais luz na água, onde visse peixes. Não muito longe dali lhe saiu ao encontro uma baleia nova a quem ele logo foi dizendo:
- Não me devore! Sou tão pequenino que a senhora nem sentirá meu gosto, se me engolir...E para mim é tão agradável continuar viver!
- Que andas fazendo por estas profundidades, a que a tua espécie não costuma descer?
Contou-lhe então o peixinho a história daquela esquisita enguia, ou que quer que fosse, que descera do alto, espantando até as mais valentes criaturas marinhas.
- Quá! Quá! Quá! - riu a baleia, engolindo água do mar.
E engoliu-a com tanta força, que, ao subir para respirar, teve de esguichar um repuxo formidável. E continuou depois:
- Quá! Quá! Quá! Ora essa! Então foi isso que me fez cócegas nas costas, quando me virei! Julguei que fosse um mastro de navio, bom para eu me coçar nele...Que engraçado!" Vou examinar aquilo: assim como assim, não tenho nada que fazer.
Deitou a nadar para diante, e o peixinho seguiu-a - não muito de perto, porém, porque onde a baleia passava, ia deixando uma espécie de correnteza na água.
Encontraram um tubarão e um velho peixe-espada; também ouviram falar da estranha enguia marinha. Tão magra e tão comprida. Não a tinham visto ainda, mas desejavam conhecê-la.
Nisto apareceu um lobo-marinho.
- Eu os acompanho, pois seguimos a mesma direção. Se a grande cobra-d'água não for mais grossa do que um cabo de âncora, eu a cortarei com uma só dentada - disse ele, abrindo a boca e mostrando as seis fileiras de dentes. - Os dentes que furam âncoras bem podem executar essa proeza.
- Lá está ela! - disse a baleia grande. - Já a enxergo. Vejam como se levanta, e se retorce e se dobra toda!
Ela desejava mostrar que tinha melhor vista que os outros, é o que é. Mas aquilo não era coisa que procuravam, não: era apenas uma enguia marinha, de tamanho descomunal, que se aproximava.
- Esse sujeito...Já o vi nalguma parte - foi dizendo o peixe-espada. - Nunca foi grande coisa, nem mete medo a peixe grande.
Entraram em palestra com a enguia, e perguntaram-lhe se queria acompanhá-los naquela viagem de descoberta.
- Se essa enguia for mais comprida do que eu - retrucou ela - ah! então ela vai ver em que se mete! Hei de lhe fazer todo o mal que puder!
- Nós também - disseram os outros. - Somos tantos, que bem podemos enxotá-la daqui.
E foram andando para diante.
Mas no mesmo instante viram que o caminho estava interceptado por um monstro estranho, maior que qualquer deles.
Parecia uma ilha flutuante, que não podia manter-se na superfície.
Era uma baleia muito, muito velha; tinha a cabeça inteiramente enfeitada de plantas marinhas. Cobriam-lhe as costas, miríades de ostras e conchas, e infinidade de animais marinhos, de sorte que a pele estava toda salpicada de branco.
- Vem conosco, velhota! - disseram os outros- Chegou agora um novo peixe, que não queremos aqui.
- Ora, prefiro ficar deitada. Deixe-me em paz! Deixem-me ficar onde estou...Ah! Ando doente, muito doente! Só sinto algum alívio quando subo à superfície e consigo ficar com o lombo acima da água. Então vem as grandes aves marinhas e me catam. Elas são muito bondosas, as aves marinhas, e isso me faz muito bem- contanto que não me deem bicadas muito fundas no toucinho...Vejam: tenho nas costas o esqueleto inteiro de uma ave! Tinha as garras cravadas na minha pele, e não pode desprende-las quando afundei. Agora já está toda roída dos peixinhos. Olhem só para esse esqueleto, e olhem também para mim! Estou muito, muito doente!
- Ora, isso é pura imaginação - disse a baleia nova.
- Eu cá por mim nunca estou doente. Peixe não adoece!
- Peço-lhe que me desculpe, minha senhora - disse a velha - mas a enguia sofre uma doença de pele. Dizem que o cará tem varíola, e nós todos, temos vermes intestinais...
- Tolices! - resmungou o tubarão, que não queria ouvir mais nada.
Os outros também já estavam fartos de conversa, e ele próprio achava que havia muito que fazer, para estarem a palestrar assim.
Chegaram finalmente ao lugar onde jazia o cabo telegráfico, que se estendida Europa à America, deitado sobre montes de areia, e sobre lodaçais, penedos, selvas de plantas aquáticos, e bosques inteiros de corais. Lá embaixo mudam as corrente e rodopiam os redemoinhos. Vão chegando os peixes, em cardumes maiores do que os bandos inumeráveis de aves que os homens veem passar na época em que se reúnem as aves de arribação. Reina lá no fundo do mar, uma agitação constante, e ouve-se um eterno chapinhar, e murmúrios, e zunidos, que nunca acabam. E é o resto desses zunidos que se conserva nas grandes conchas vazias: é o zunido do fundo do mar que ouvimos dentro delas, quando as encostamos à orelha.
- Lá está o bicho! - gritaram os peixes grandes.
E o peixinho repetiu:
- Lá está o bicho!
E todos cravaram o olhar no cabo, de que não podiam avistar nem o começo nem o fim, por mais que alongassem a vista.
Esponjas, polvos e gorgônias ondulavam no fundo, passavam por cima do cabo, ocultando-o e descobrindo-o alternativamente, enquanto ouriços-do-mar, caracóis e verme se agitavam e remexiam em volta dele. Passeavam-lhe por cima aranhas gigantescas, seguidas de um exército inteiro de ocupação, formado de animais rasteiros. Holotúrias, animais de uma cor verde-escura, daqueles que comem com o corpo inteiro, estirados sobre o cabo, pareciam tomar o cheiro daquele novo animal, que viera instalar-se no fundo do mar. Linguados e bacalhaus reviravam-se na água, para escutar. A estrela-do-mar que vive enterrada no lodo, e mantém fora da lama apenas dois tentáculos compridos, onde estão alojados os olhos, ficou ali, feito um basbaque, para ver em que iria dar todo aquele alvoroço.
Sim! O cabo telegráfico jazia ali imóvel; mas tinha vida, e pensamentos : os pensamentos humanos, que por ele transitavam.
Olhando para ele, disse a baleia:
- Hummm! Eu é que não me fio nesse sujeito! É muito capaz de me dar um soco no ventre, que é justamente o meu ponto mais fraco...
- E se nós o apalpássemos? - Alvitrou o polvo. - Meus braços são tão compridos, meus dedos tão flexíveis...Já o apalpei de leve; agora vou segurá-lo com mais força.
E estendeu os tentáculos mais compridos e mais flexíveis, em direção ao cabo, cingindo-o em toda a grossura. Depois anunciou:
A coisa não tem escamas. Também não tem pele. Acho que não é dos animais que tem filhos vivos.
A enguia marinha estendeu-se junto ao cabo, esticando-se o mais que podia. E disse por sua vez:
- Acho que aquele sujeito é mais comprido do que eu. Mas o que importa não é mesmo o comprimento: o que a gente precisa ter é pele, estômago e flexibilidade!
A baleia, a jovem e vigorosa baleia, desceu mais do que da primeira vez, e perguntou:
- Afinal, és animal ou planta? Ou serás apenas uma daquelas coisas que aqueles lá em cima fabricam, e que não vai adiante?
Mas o cabo telegráfico não lhe deu resposta. Afinal ele não estava aparelhado para ouvir. Passavam-lhe pelo corpo pensamentos humanos, que voavam em um segundo, correndo milhas e milhas, centenas de milhas, indo de um país a outro.
- Queres responder, ou preferes se esmagado? - perguntou o feroz tubarão.
Então todos os peixes fizeram a mesma pergunta:
- Queres responder, ou preferes ser esmagado?
E continuou mudo, sem responder nada. Tinha mais que fazer: sua missão era telegrafar, e ali deitado ia exercendo seu ofício.
Lá em cima, o sol se punha, como diziam os homens. Parecia de fogo, de tão vermelho: e todas as nuvens do céu, resplandeciam também como se fossem de fogo, cada qual mais deslumbrante.
Agora vamos ter a luz vermelha - explicou o polvo.
- Poderemos assim ver melhor a coisa, se não conseguirmos antes.
- Vamos! Atacar! - brandou o lobo-marinho, mostrando todos os dentes.
- Vamos! Atacar - repetiram o peixe-espada, a baleia e a enguia marinha.
Avançaram, de chofre, o lobo-marinho à frente. Mas no instante preciso em que ele ia enterrar o dentes no cabo, o peixe-espada, num excesso de entusiamo, ferrou-lhe a espada na anca. Ora,isso foi uma grande desgraça, na verdade, porque o lobo-marinho perdeu a força com a dor e não pode morder.
E foi uma grande confusão no fundo do mar: peixes grandes e peixes miúdos, holotúrias e caracóis, todos se empurravam entre si, trocando socos, esmagando-se reciprocamente e se entredevorando.
E a tudo isso o cabo jazia deitado, tranquilo, e ia executando sua tarefa, sem barulho, como é mister que cada um trabalhe.
Em cima, era noite escura, mas milhões, bilhões de animaizinhos minúsculos andavam pelas águas, deitando luz fosforescente. Até caranguejinho, que mal alcançariam o tamanho de uma cabeça de alfinete, espalhavam luz! Parece milagre, mas é a realidade.
- Mas afinal - que coisa é aquela? E o que não é?
Sim! Esse é que era o problema!
Naquele momento apareceu um manatim. O manatim é o que os homens chamam de peixe-boi; era antes a mulher do manatim, e de fato se chama peixe-mulher. Tinha cauda, e dois braços curtos, com os quais chapinhava na água. Trazia a cabeça cheia de algas e parasitas, e mostrava-se muito orgulhosa desses enfeites.
- Querem uma informação, não é? Pois no fim de contas ninguém a poderia mesmo dar, a não ser eu! Em compensação, exijo que eu e os meus, possamos pastar sem perigo nas campinas do fundo do mar. Pois bem, sou peixe como vocês, mas tato me exercitei que cheguei a se uma espécie de animal rasteiro ou réptil. Sou a criatura mais sábia do mar e sei coisas a respeito de tudo quanto se move aqui embaixo, e de tudo quanto vive lá em cima. Esse objeto que tem feito vocês andaram às tontas, a quebrar a cabeça, veio lá de cima, e, como tudo quanto cai aqui dentro d'água vindo lá de cima, está morto e morto permanece: é impotente. Deixem-no pois aí deitado, seja lá o que for: não passa de uma invenção humana.
- Pois eu, cá por mim- interveio o peixinho - acho que há coisas escondidas atrás daquele objeto.
- Cala a boca, cavala! - brandou o grande peixe-boi.
E os outros gritaram também um insulto ainda maior.
-Lambari!
Pôs-se então o peixe-mulher a explicar-lhes que todo aquele enorme bicho, que tamanho escândalo estava causando no fundo do mar, e que nem sabia seque dizer "Muh!", era apenas uma invenção, mais uma astúcia lá de terra firme. E estendeu-se a falar-lhes da manha dos homens.
- Não querem outra coisa senão apanhar-nos! Não vivem, não respiram, senão para esse fim. Estendem linhas e atiram iscas e anzóis para nos atrair. Aquele estupor que ali está é uma espécie de grande linha de pescar. Eles pensam que nós vamos morder a isca, porque são uns tolos. Mas nós não o somos, não! E é melhor que ninguém toque naquela coisa. Acabará por se decompor, transformando-se em lama. Tudo o que vem de cima é podre, não presta; não tem utilidade alguma.
- Não presta, não tem utilidade! - repetiram todas as criaturas do mar.
Concordaram assim com o peixe-boi, tinham ao menos uma opinião.
Mas o peixinho continuava lá a ter as suas ideias:
- Quem sabe lá se essa enorme serpente não é o peixe mais maravilhoso do mar! Tenho cá o meu palpite, e confio nele!
- O mais maravilhoso!
Assim também dizemos nós, os homens - e o que mais é, falamos conscientemente, e com absoluta certeza.
É a grande cobra-d!água, anunciada há muito tempo, e cânticos e em lendas.
Gerada a plasmada, ela brotou do espírito do homens, e foi depositava no fundo do mar, para levar mensagens dos países de Leste para os do Oeste, com a mesma rapidez do raio de luz, que desce do sol à terra. E ela cresce, cresce sempre, cresce em extensão e em potência, cresce de ano para ano, estendendo-se através de todos os mares, que cercam a terra; e sob as águas que fervem em torvelinho tempestuoso, e sob as outras águas, as águas claras como o cristal, que o olhar do marinheiro atravessa, como se navegasse pelo ar transparente - aquelas águas onde enxerga cardumes de peixes, e um fogo de artifício, multicolorido.
Os peixes e outros animais, que se arrastam, dão cabeçadas na serpente; mas eles não podem compreender esse mostro que veio lá de cima: não podem entender a serpente da Humanidade, que fala e espalha todos o idiomas da terra, e contudo está sempre silenciosa; a serpente que transmite as ideias boas e as ideias más, o mais estranho dos habitantes do mar - a grande cobra-d'água.
FIM
UMA PRINCESA DE VERDADE - CONTOS DE ANDERSEN

Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa, mas havia de ser uma princesa de verdade, uma princesa de sangue real mesmo. Andou viajando pelo mundo inteiro, à procura da princesa dos seus sonhos, mas todas as que encontrava tinham algum defeito. Não é que faltassem princesas, não: havia-as de sobra até. Mas a dificuldade estava em saber se realmente eram de sangue real. E o príncipe tornou à pátria, muito triste e desiludido, porque desejava tanto casar com uma princesa de verdade!
Uma noite desencadeou-se uma tempestade medonha; chovia desabaladamente, e tudo eram trovoadas e relâmpagos. Um espetáculo tenebrosos! De repente bateram à porta da cidade, e o rei em pessoa foi abrir.
Era uma princesa, a moça que achou do lado de fora da porta. Mas - Santo Deus! - em que estado vinha, com aquele tempo horrível! Toda encharcada, escorrendo-lhe água dos cabelos e para fora dos sapatos...Mas a moça disse que era uma princesa real.
- É o que vamos ver! - pensou lá consigo a rainha. Nada disse, contudo, a ninguém, sobre as suas dúvidas. Foi ao quarto de dormir, tirou todas a roupas da cama, e pôs no lastro um grão de ervilha. Colocou em cima, vinte colchões; e, em cima desse, mais vinte acolchoados de penas. Era aquela a cama da princesa.

De manhã perguntou à moça como tinha passado a noite.
- Oh! Muito mal! - respondeu a princesa. - Não pude conciliar o sono a noite inteira: havia não sei que coisa tão dura na cama, que não me deixou dormir, e tenho o corpo cheio de manchas escuras.
Viram então que era uma princesa de verdade; sentira o grão de ervilha, mesmo debaixo de vinte colchões e vinte acolchoados de penas. Só mesmo uma princesa de verdade podia ter a pele tão sensível!
Então o príncipe casou com ela, pois sabia agora que tinha achado uma verdadeira princesa.
E o grão de ervilha foi enviado ao Museu, onde ainda deve estar, se ninguém o tirou de lá.
E isto é uma história verdadeira...
FIM
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
A FURA-NEVE - CONTOS DE ANDERSEN

Era inverno. O ar estava muito frio e o vento, cortante; mas atrás da porta e do ferrolho havia calor e conforto. Atrás da porta e do ferrolho jazia a flor com o seu bolbo, coberta pela terra e pela neve.
Um dia caiu uma chuva. Rompendo a camada de neve, algumas gotas penetraram na terra; tocaram no bolbo e falaram-lhe do mundo iluminado lá de cima. Depois veio o raio de sol, fino e pontiagudo; penetrou também através da neve, chegando até o bolbo, que sentiu uma espécie de prurido.
- Entra! exclamou a flor.
- Não posso - disse o raio de sol. - Não tenho força suficiente para abrir. Mas quando vier o verão, então já estarei bem forte.
- Quando vem o verão? - perguntou a flor.
E cada vez que um novo raio de sol rompia a neve ela repetia a pergunta?
- Quando vem o verão?
Mas estavam ainda muito longe os dias estivais. Ainda a neve se estendia sobre a terra, e todas as manhãs a água aparecia coberta de uma camada de gelo.
- Como está tardando! Como está tardando! - dizia a flor. - Sinto uma excitação, um prurido! Preciso de me esticar, de me espreguiçar. Preciso abrir este ferrolho, e sair, para dizer "Bom dia" ao verão.
E a flor esticava-se, esforçando-se lá dentro para romper a fina camada exterior, que a chuva amolecera, a terra aquecera, e o raio de sol afagara. E ia rompendo por baixo da neve, com um gomo branco-esverdeado na haste verde, já provida de folhinhas espessas e estreitas, que pareciam abrigá-la.
- Se bem-vinda! - cantava cada raio de sol.
E a flor foi-se içando para a neve, para o mundo da luz. Os raios do sol a acariciaram e beijaram, ela desabrochou inteiramente, branca como a neve, toda enfeitada de listrinhas verdes. Cheia de alegria, mas também de humildade, baixou a cabeça.
- Lindíssima flor! - cantaram os raios do sol. - Como és fresca e delicada! Tu és a primeira! Tu és a única! Tu és o nosso amor! Repicas, anunciando o verão, o belo verão, à cidade e ao campo. A neve vai derreter-se; os ventos frios serão enxotados e nós dominaremos por toda a parte. Tudo vai ficar verde! E tu terás companhia- lilases, e rosas, e cítisos. Mas tu és a primeira, e tão delicada, e tão fininha!
Era imensa a alegria. Parecia que o ar cantava e retinia; parecia que os raios de luz penetravam as folhas e a haste da flor. E ela se erguia, tão frágil e tão delicada, contudo, tão vigorosa na sua beleza juvenil! Erguia-se no seu vestido branco com as fitas verdes, e dava ideia do verão. Mas o verão ainda longe. Ainda havia nuvens de vez em quando a encobrir o sol; ainda sopravam ventos impetuosos.
E os ventos e o mau tempo diziam:
- Chegaste muito cedo. Nós ainda predominamos aqui, e vais sentir o nosso poder; terás de sujeitar-te a ele. Era melhor que tivesses ficado em casa, em vez de sair assim, a te ostentares, antes do tempo.
E que frio cortante! Os dias que vinham não traziam nenhum raio de sol. Era um tempo capaz de congelar uma florzinha! Mas aquela possuía mais força do que ela mesma imaginava. Era robusta a sua alegria, e também a sua fé no verão que havia de chegar, que lhe fora anunciado pelos seus profundos anseios, e confirmado pelo brando calor do sol. Assim ia-se conservando de pé, nos seus trajes brancos, em meio da neve branca; e baixava a cabeça quando os flocos de neve caíam, pesados e densos, e sopravam os ventos glaciais.
- Tu te quebrarás - disseram eles. - Vais murchar, vais murchar! Por que saíste? Por que te deixaste iludir?
O raio de sol enganou-te! Agora estás vendo, louca do verão.
- Louca do verão! - repetia ela, numa fria manhã.
- Louca do verão! - clamaram, rindo, algumas criança que entraram no jardim. - Aqui está uma! Que linda! Tão linda...e é a primeira...é a única!
Essas palavras alegravam a flor; faziam-lhe bem. Eram palavras que se assemelhavam aos tépidos raios do sol. Na sua alegria, a flor nem sequer sentiu quando a quebravam. Achou-se abrigada em uma mãozinha de criança; foi beijada por uma boca de criança; foi levada para uma sala quente. Lá, olharam-na olhos suaves; foi posta na água tão refrescante, tão animadora...
A filha da casa, uma bonita mocinha, já fizera a Primeira Comunhão, e tinha um amiguinho que também já a fizera e estudava agora para depois se empregar.
- Ele deve ser o meu "louco do verão" - disse ela, tomando a flor delicada e colocando-a sobre um pedaço de papel perfumado, em que estavam escritos alguns versos.
Aqueles verso falavam da flor, começavam com " louco de verão", e terminavam com "louco de verão". E diziam mais: " Sê tu, meu louco de inverno, meu amigo!"
Sim, porque ela o enlouquecera com e esperança do verão.
E tudo isso estava escrito nos versos, que foram dobrados em forma de carta, com a flor imprensada dentro. Agora ela ficara em trevas; trevas, como as que conhecera quando estava dentro do bolbo. E a flor foi viajar; foi posta na mala do correio, foi apertada e empurrada - o que não era nada agradável. Mas isso tudo também teve seu fim.
Acabara a viagem. A carta foi aberta e lida pelo moço. E como ele ficou alegre! Beijou a flor e guardou-a, com os versos, em uma arca em que já estava várias cartas bonitas, mas nenhuma outra tinha flor. Era esta a primeira, a única, como a haviam chamado os raios de sol. E dava prazer meditar nisso.
E ela teve bastante tempo para meditar. Meditou enquanto ia passando o verão, e enquanto se ia embora o longo inverno; e depois era de novo verão, quando ela retornou à luz.
Mas desta vez o moço não estava, oh! não estava absolutamente alegre! Pegou nas castas com arrebatamento e atirou longe os versos, de modo que a flor caiu ao chão. É verdade que ela estava imprensada e murcha, mas seria por isso que ele a a tirou ao chão? Em todo o caso, sentia-se melhor ali do que se tivesse sido lançada ao fogo, onde cartas e versos se transformaram em chamas. Mas que sucedera? Ora, o que sucede tantas vezes: a flor enganara o moço - e isso era uma brincadeira: durante o verão, escolhera outro namorado.
No dia seguinte, o sol da manhã veio luzir sobre a pequenina fura-neve esmagada, que parecia agora pintada no chão. A criada veio varrer o quarto; levantou-a e colocou-a em um dos livros que estava sobre a mesa, supondo que dali tivesse caído, durante a arrumação. A flor achava-se de novo entre versos; versos impressos, desta vez, que são mais distintos do que os versos escritos: pelo menos custaram mais dinheiro.

Passaram-se anos. O livro lá estavam na prateleira. Um dia alguém o retirou dali. Abriu-o e leu-o. Era um bom livro: " Versos e Canções" do velho poeta dinamarquês Ambrosius Stub, que vale a pena ler. O homem que lia virou a página.
- Uma flor! Uma fura-neve, uma louca do verão...uma louca da poesia! Foi sem dúvida de propósito que a puseram neste livro. Pobre Ambrosius Stub! Também foste um louco do verão, um louco da poesia...Vieste antes da tua época, por isso andaste, fustigado pelos ventos cortantes, peregrinado como hóspede de ricos morgados - uma flor em um copo d'água, uma flor metida em uma carta rimada! Louco do verão e louco do inverno, brincadeira e loucura - e ainda assim o primeiro, o único, o poeta vigoroso e juvenil da Dinamarca daquele tempo...Sim, fica neste livro, como um sinal, pequenina flor branca. Bem acertado andou quem aqui pôs!
E a fura-neve foi outra vez posta no livro. E sentiu-se ali muito honrada e muito feliz: sabia agora que era um sinal em um magnífico cancioneiro, e que aquele que fora o primeiro a descrevê-la e a cantá-la, tinha sido também uma florzinha branca, um louco do verão também considerado como louco em uma época hibernal.
A flor entendia essas coisas lá a seu modo, como todos nós interpretamos, à nossa maneira, qualquer assunto.
E aí a história da fura-neve.
FIM
sexta-feira, 20 de janeiro de 2017
A ROSA MAIS LINDA DO MUNDO - Contos de Andersen

Era uma vez uma rainha que possuía no seu jardim, em qualquer estação do ano, as flores mais esplêndidas de todos os recantos da terra. Ela preferia, contudo, a rosa a qualquer outra flor; por isso cultivava todas as espécies, desde a roseira brava das matas, cujas folhas cheiram a maça, até a lindíssima rosa de Provença. Cresciam rosas nas muralhas do castelo; rosas serpeavam enlaçando as colunas e os umbrais das janelas, entravam pelos corredores, estendiam-se pelo forro das salas, diferençando-se umas das outras pelo aroma, pela forma e cor das pétalas.
E, contudo, agora moravam naquele palácio a dor e a amargura: a rainha adoecera, e os médicos declararam que ela ia morrer.
Mas, ainda assim, dissera o mais sábio deles:
- Há uma probabilidade de salvação: ide em busca da mais bela rosa do mundo, aquela que é a própria expressão do amor mais sublime e mais puro. A rainha escapará à morte, se pousar nessa rosa os olhos antes que estejam apagados.
E vinham de todos os lados pessoas que traziam rosas; gente moça e gente velha traziam rosas, as rosas mais lindas que desabrochavam pelos jardins - mas nenhuma delas era a rosa que se buscava por toda a parte. Era preciso encontrar a flor do jardim do amor; mas qual delas, entre tantas que ali floresciam, qual seria a expressão do amor mais sublime, do amor mais puro?
Os poetas celebravam a rosa mais linda do mundo, e cada qual enaltecia a sua. Levou-se a mensagem às mais remotas regiões do país; fez-se um apelo para que todos os corações harmonizassem suas pulsações com o ritmo do amor; cada classe social, cada idade, recebeu um apelo especial.
- Até agora - declarou o sábio - ninguém disse o nome da flor; ninguém indicou o sítio do sarcófago de Romeu e Julieta, nem as do túmulo de Santa Walpurgis - se bem que seu aroma recende sempre em todas as canções. Nem são tampouco as flores que brotam das lanças sangrentas de Arnoldo Winkelried, regadas com o sangue sagrado do herói morto pela pátria - ainda que não haja morte mais doce, nem rosa mais vermelha do que o sangue que brotou daquele peito. Não é ainda aquela flor milagrosa, que o homem cultivou durante dias, durante anos, em longas noites não dormidas, na vigília do seu humilde gabinete de estudo, e à qual sacrificou o verdor de seus anos - a rosa maravilhosa da ciência.
- Pois eu seu onde vive ela - disse uma mãe feliz, que, com o filhinho nos braços, se aproximou do leito da rainha. - Eu seu onde se acha a rosa mais bela do mundo! A rosa que é a expressão do amor mais sublime, do amor mais puro, brota nas faces do meu filhinho querido, quando, revigorado pelo sono, abre os olhos e me sorri com todo o carinho.
- Sim, é bela essa rosa - disse o sábio. - Mas há outra mais bela.
- Sim! Há uma muito mais bela - disse outra mulher. - Vi-a eu, e não pode haver rosa mais sagrada!

Mas era pálida, como as pétalas da rosa branca. Vi-a nas faces da rainha, que, pondo de parte a coroa, carregava nos braços o filhinho doente, naquela longa e dolorosa noite. Ela chorava, beijava-o, e rezava por ele, como reza uma mãe nas horas de terror.
- Sim! Sagrada e maravilhosa é, pelo seu poder, a rosa pálida da amargura; mas ainda não é essa a que procuramos.
- Não! A rosa mais esplêndida - disse o velho e piedoso bispo - via-a eu diante do altar do Senhor. Viu-a luzir, como o semblante de um anjo. As donzelas aproximava-se da mesa do Senhor, para renovar as promessas do batismo. Nas suas faces frescas floresciam e desmaiavam rosas. Havia entre elas uma menina que erguia os olhos para o céu com a maior pureza, com todo o carinho de sua alma: era aquela a expressão do amor mais sublime, mais imaculado!
- Bendita seja ela! - disse o sábio. - Mas nenhum de vós chegou a mencionar a rosa mais bela do mundo.
Nesse instante entrou no quarto uma criança, o filhinho da rainha. tinha os olhos rasos de lágrimas, e trazia nas mãos um grande livro aberto: era encadernado em veludo, e tinha grandes fechos de prata.
- Olham mamãe, escuta o que li aqui!
E, sentando-se junto do leito, leu a criança o que estava escrito no livro sobre Aquele que se entregou a si mesmo para morrer na cruz, a fim de salvar os homens - e todas as gerações futuras.
- Não há amor tão imenso quanto esse!
Passou sobre as faces da rainha um reflexo de rosas. Brilhavam-lhe agora os olhos, ao ver como das folhas daquele livro surgia a rosa mais linda, a imagem daquela rosa que brotou do sangue de Cristo no tronco da cruz.
- Vejo-a! - disse a rainha. - Nunca há de morrer quem avista essa rosa - a rosa mais bela do universo!
FIM
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
NO ÚLTIMO DIA - CONTOS DE ANDERSEN

O dia mais sagrado entre todos os dias é aquele em que teremos de morrer: o dia solene dia da transformação. Já pensando seriamente nessa hora tremenda, inelutável e derradeira, que terás de passar nesta terra?
Era uma vez um homem, um fanático, como se costuma dizer, um desses que lutam pelo Verbo, que para ele era a Lei; um servidor zeloso de um Deus zeloso...E agora se achava a Morte ao pé da sua cama, a Morte, de rosto carrancudo.
- Chegou a tua hora. Tens de seguir-me- disse a Morte, tocando-lhe os pés com o dedo glacial.
Os pés do homem gelaram. A Morte tocou-lhe então a testa, depois o coração, que se despedaçou àquele contato. A alma seguiu o anjo da Morte.
Entretanto, naqueles poucos segundo que se escoaram, durante o transe, passou, como passam as altas e negras ondas de um mar, pelo agonizante, tudo quanto a vida lhe trouxera, tudo quanto a vida nele despertara. E assim, com um único olhar, devassa as profundezas insondáveis e abrange com o raio de um só pensamento o caminho incomensurável: desvenda, com um só olhar, num conjunto imenso, os enxames inumeráveis de astros, de globos e mundos, na vastidão do espaço.
Em semelhante momento, sente-se o pecador tomado de aflição: não lhe resta mais nada a que se apegar, e ele tem a sensação de que vai afundando num infinito vazio. Não assim o homem justo; esse reclina serenamente a a cabeça, como uma criança resignada: " Seja feita a Vossa vontade!"
O homem que ali estava morrendo, porém, não tinha alma de criança: sentia-se homem. Não se horrorizava, naquele momento, como o pecador; sabia que tinha a fé verdadeira. Observara os preceitos da religião em todo o seu rigor. Não ignorava que milhões de pessoas tinham de transpor a via larga que conduz à condenação: seria capaz de aniquilar-lhes os corpos a ferro e fogo, com são e serão sempre aniquiladas as suas almas.O seu caminho, porém, dirigia-se para o céu, onde a graça lhe abriria a porta - a prometida graça.
E a alma acompanhou o anjo da Morte: mas antes, dirigiu ainda um último olhar para o leito onde jazia a imagem de barro, vestida com a mortalha branca, uma imagem estranha do seu próprio Eu....
Iam caminhando, e voando. Atravessavam uma vasta sala, mas essa sala era ao mesmo tempo um bosque; ali a natureza cerceada, amarrada, estacada e arranjada em fileiras - era, enfim, tratada artificialmente, como os antigos jardina francesas: era uma mascarada!
- Eis a vida humana! - disse o anjo da Morte.
Todos andavam mais ou menos disfarçados. Nem todos os que trajavam veludos e se cobriam de ouro eram na verdade os mais nobres e mais poderosos; e nem todos os esfarrapados eram de fato os mais pobres e humildes. Que mascarada, esquisita, aquela! E - o que parecia mais estranho - cada pessoa trazia, escondida sob a s vestes, alguma coisa que procurava furtar aos olhares das outras. Contudo, sacudiam-se uns aos outros, violentamente, para que objeto escondido aparecesse; via-se então apontar a cabeça de um animal a careta de um macaco, um bode grotesco, uma serpente viscosa, um peixe meio morto.
Era o animal que nos aflige a todos: o animal que se arraigou no homem. E todos aqueles animais iam pulando, dando saltos, na ânsia de avançar. Cada pessoa procurava cingir bem ao corpo a roupa, mas vinha outra que a afastava, gritando:
- Vejam, vejam! Olhem! Aqui está ele! Aqui esta ela!
E cada qual queria desnudar a miséria do outro.
- Que animal trazia eu? - perguntou a alma peregrina.
O anjo da Morte apontou para um vulto soberbo que estava em frente deles. Tinha a cercar-lhe a cabeça uma auréola brilhante e multicor; mas junto do coração do homem estavam ocultos os pés do animal: os pés de um pavão. A auréola era apenas a cauda cintilante da ave.
Continuaram a andar e ouviram vozes desagradáveis que se elevaram dos galhos das árvore; eram vozes humanas:
- Ó andarilho da Morte! Não te lembras de mim?
Eram os maus pensamentos, os maus desejos do tempo em que vivia, que lhe dirigiam aquela pergunta:
- Não te lembras de mim?
Por um momento a alma sentiu-se tomada de pavor: reconhecera as vozes, os maus pensamentos e desejos que assim se erguiam, como testemunhas em um tribunal. E exclamou:
- Na nossa carne, na nossa natureza perversa, nada existe de bom. Mas os maus pensamentos que havia em mim não chegaram a se concretizar em atos. O mundo não viu o mau fruto.
E tratou de se apressar, para escapar aquela vozeria importuna. Mas as grandes aves negras esvoaçavam em roda dela, gritando, como se quisessem dar a notícia ao mundo inteiro. A alma dava saltos, como um veado perseguido, mas a cada passo tropeçava em seixos pontiagudos, que lhe dilaceravam os pés, magoando-os dolorosamente.
- De onde vem estas pedras que cobrem a terra, como folhas secas?
- São palavras imprudentes que deixaste escapar. Elas feriram profundamente o coração do teu próximo - mais profundamente do que essas pedras te esfolam os pés?
- Eu não tinha essa intenção - disse a alma.
- Não julgues, para que não sejas julgado! - brandou uma voz nos ares.
- Todos nós pecamos - exclamou a alma, tornando a erguer-se. - Observei a Lei, obedeci ao Evangelho, fiz o que pude, não sou como ou outros...
Estavam então diante da porta do Céu, e o anjo que guardava a entrada perguntou:
- Quem és? Dize-me qual é a tua fé, e comprova-a pelos teu atos!
- Cumpri rigorosamente todos os preceitos. Humilhei-me à vista do mundo. Odiei e persegui o mal e os maus.
-És, então, um dos sequazes (pessoas que seguem outras pessoas ou alguns princípios.)de Maomé?
- Eu? Não! Jamais!
" - Todos os que tomarem a espada morrerão à espada", diz o Filho. Tu não tens a sua crença. Serás, talvez, um filho de Israel, que dirá, como Moisés: " Olho por olho dente por dente!" Um filho de Israel, cujo Deus zeloso é o deus somente do teu povo?
- Sou cristão!
- Não o reconheço nem na tua fé, nem nos teus atos. A doutrina de Cristo é feita de reconciliação, amor e graça.
- Graça! - ecoou a voz pelo espaço infinito.
Abriu-se a porta do Céu, e alma adejou para ir ao encontro daquela magnificência.

Mas a luz que dela irradiava era tão penetrante, tão deslumbrante, que a alma recuou, como se tivesse diante de si um gládio, desembainhado. Soavam melodias tão suaves e tão comoventes, como nenhuma voz humana poderia desferir. A alma, tremendo, foi-se abaixando cada vez mais. Mas a claridade celestial penetrou-a, e ela sentiu e percebeu o que jamais sentira com tamanha força: o peso do seu orgulho, da sua dureza e dos seus pecados - fez-se a luz no íntimo do seu ser.
- O que realizei de bom no mundo foi porque não pude proceder de outro modo: mas o mal que fiz...esse vinha de mim mesmo!
E a alma, ofuscada pela luz celeste, tão pura, caiu desmaiada: toda enovelada em si própria, abatida, estava ainda imatura para a benção do Céu. E, lembrando-se do Deus severo e justo, não se atrevia a murmurar:
- Graça!
E foi então que veio a graça - a graça que não esperava!
O céu de Deus enchia o espaço infinito; o amor de Deus pulsava em todo ele, abundante e inesgotável. E as vozes cantaram:
- Ó alma humana! Torna-te compassiva, santa, magnífica e eterna!
E todos nós - todos nós recuaremos tremendo, no último dia de na nossa vida terrena, como aquela alma; recuaremos tremendo, diante do esplendor e da magnificência do Reino Celestial; cairemos profundamente; havemos de nos prosternar em humildade. E todavia seremos erguidos pelo Seu amor, sustentados pela Sua graça. Esvoaçando por novas veredas, purificados, melhores e mais nobres, cada vez mais próximos da magnitude daquela luz, por ela fortalecidos, seremos capazes de subir até a eterna claridade!
FIM
quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
O HOMEM DE NEVE - CONTOS DE ANDERSEN


Faz um frio tão agradável que todo o meu corpo está dando estalinhos! - dizia o homem de neve. - E este vento até anima agente. Mas olhem só aquele homem de brasa, como arregala os olhos. Pois sim! Vou segurar bem os meus caquinhos de telha!
Era o sol, que ia declinando e não tardava a se esconder.
E é que o homem de neve tinha no lugar dos olhos dois caquinhos de telha; a boca era um velho ancinho, de sorte que podia mesmo dizer que tinha dentes.
Nascera no meio das brincadeiras dos meninos, que celebraram a sua aparição com repiques de guizos e estalidos de chicotes.
Entrou o sol e apareceu a lua cheia - grande, redonda, brilhante e linda no céu azul.
- Lá vem ele agora do outro lado! - disse o homem de neve, pensando que era o sol que tornava a aparecer. - Acho que lhe dei uma lição, porque já não me encara do mesmo jeito. Pois que fique pendurado lá em cima, e me dê luz para que eu possa enxergar! Que bom se eu soubesse andar! Um passeio seria coisa deliciosa...Se eu pudesse, iria escorregar no gelo, lá embaixo, como aqueles meninos. Mas nem sequer sei caminhar!
- Vau! Vau! Vau! - latiu o velho cão, lá no pátio. Estava rouco, e já não podia dizer Au! Au! Au1 - como os outros cães. Apanhara aquela rouquidão no tempo em que vivia dentro de casa, e passava o dia deitado ao pé da chaminés. Mas assim mesmo continuou:
- Daqui a pouco, o sol te ensinará a correr...Vi como ensinou o teu parente, no inverno passado, e a todos os que vieram antes dele, anos atrás. Vau! Vau Vau! Todos eles lá se foram!
- Não te entendo bem, amigo. Queres dizer que aquele lá de cima vai ensinar-me a correr? Pois olha, quem correu foi ele, quando o encarei energicamente! E agora vem voltando devagarinho, do outro lado.
- Como é ignorante! Não é admirar, pois que mal acabas de nascer...Aquela que vês lá em cima agora é a lua; e o que viste caminhar há pouco e já foi embora é o sol. Amanhã há de voltar, e fica certo de que te ensinará a correr para a sargeta! Não tarda a mudar o tempo. Sei disso, pela dor que sinto na perna traseira, a esquerda...É ...o tempo vai mudar!
- Não entendo o que ele diz - pensou o homem de neve - mas pressinto que me fala de coisas desagradáveis. Aquele que me olhava tanto, e que foi embora é o sol, como lhe chama ele - também não é meu amigo: tenho esse pressentimento!
- Vau! Vau! - ladrou o cão.
E deu três voltas, e deitou-se a dormir no seu canil.
Mudou, de fato, o tempo. Pela manhã, espesso nevoeiro encobria toda a região. Soprou depois um vento glacial, e o frio aumentou; parecia tolher os movimentos das pessoas. Mas quando saiu o sol - oh! que esplendor! - Árvores e arbustos, cobertos de flocos de neve, formavam um bosque de coral branco; todos os galhos e raminhos estava coalhados de flores de alvura deslumbrante. Os galhinhos e talos, que no verão ficam completamente encobertos pela folhagem densa, apareciam agora: era um tecido rendilhado, como teia de aranha alvíssima, toda polvilhada de reflexos de luz. O videiro agitava os galhos pendentes ao sopro do vento: tinha vida, como no verão. Era um quadro magnífico!

Quando rompeu o sol, tudo resplandeceu e faiscou; dir-se-ia que alguém andara semeando pó de diamante pela imensa alfombra de neve.
- Que maravilha! - disse uma jovem que entrou no jardim, companhada de um mancebo.
Pararam junto do homem de neve, contemplando, cheios de admiração, as árvores acesas de mil reflexos. E a moça, radiante de alegria, continuou:
- Nem no verão vi paisagem tão linda!
- Mas também só no inverno se pode ter um rapagão como este - disse o moço, apontando para o homem de neve. - E está muito bem-feito!
Ela riu, cumprimentou o "rapagão", e afastou-se com o mancebo; e a neve rangia sob os seus passos, como se caminhassem sobre polvilho.
- Quem são aqueles? - perguntou o homem de neve ao cão. - Estás aqui há mais tempo; não os conheces?
- Ora se conheço! Ela me acariciou o pelo mais de uma vez, e ele me atirou um osso com restos de carne. Nunca hei de morder a nenhum deles!
- Mas quem são, afinal? - insistiu o homem de neve.
- São noivos. Em breve viverão no mesmo canil, e roerão o mesmo osso. Vau! Vau!
- Então são criaturas como eu e tu?
- São da família do meu senhor. Quem nasceu ontem não pode mesmo saber grande coisa! Bem se vê isso contigo...Eu tenho anos e anos de idade, e de experiência. Conheço toda a gente da casa, e até já conheci dias melhores - no tempo em que não me acorrentavam aqui no frio. Vau! Vau! Vau!
- Mas se este frio é magnífico! - disse o homem de neve - Vamos, conta, conta! Mas para com essa corrente que me faz tremer todo o corpo.
- Vau! Vau! Vau! - começou o cão. - Dizem que dantes eu era um cachorrinho muito bonito. Dormia então em uma cadeira forrada de veludo, e andava no colo da dona da casa. Beijavam-me o focinho, e enxugavam-me as patas com um lenço bordado. Chamavam-se Fiel - lindo e querido Fiel. Mas fui crescendo, e fiquei muito grande para andar no colo; deram-me à aia, e passei a viver no porão. Daí onde estás se vê a janela. Dá uma espiadela, e verás a morada onde um dia fui amo!Porque amo é o que eu era, na morada da aia. Os quartos não são tão grandes como lá no sobrado, mas ainda assim se vive ali com comodidade, e é mais agradável: não havia em roda de mim crianças a me sacudirem e darem puxões. E a comida era tão boa, ou melhor ainda. Tinha minha almofada - só minha - e havia na sala uma estufa, a melhor coisa do mundo, num tempo destes. Deitava-me debaixo dela a todo comprimento. Ah! Ainda sonho com aquela estufa! Vau! Vau! Vau!
- E é bonita, a tal estufa: Serás parecida comigo?
- Nem de longe! É exatamente o contrário. Ela é bem pretinha, e tem um pescoço comprido, comprido, que vai acabar na parede. Come tanta lenha, que até lhe saí fogo pela boca, em faíscas. A gente se chega, para ao lado dela, ou embaixo, e tem uma sensação muito agradável. Quem sabe se poderás vê-la daí?
O homem de neve olhou a viu uma coisa brilhante, parecida com aquilo que o cão acabava de descrever.
- E por que a abandonaste? - perguntou ele. - Como pudeste deixar um lugar tão bom?
Tinha uma vaga suspeita de que a estufa era uma criatura feminina.
- Ora, foi à força - explicou o cão. - Enxotaram-me da casa, e amarram-me aqui, nesta corrente. Não vê que eu mordi a perna do fidalguinho, filho do amo, porque me tirou com um pontapé, o osso que estava roendo. "Osso por osso!" pensei eu. Eles lá, porém consideraram isso de outra maneira, e desde esse dia fiquei acorrentado. Perdi até a voz. Não vês como estou rouco? Vau! Vau! Vau! Nem posso mais falar como outros cães...Vau! Vau! Vau! E foi assim que acabou o caso.
Mas o homem de neve já nem ouvia o que o outro contava. Olhava pensativo, para o porão, para a habitação da aia; lá estava a estufa, tesa sobre os quatro pés de ferro. E era da altura dele
- Que batidas esquisitas sinto no peito! - disse ele. - Não poderei jamais entrar ali? Não chegarei ao pé da estufa? É um desejo taõ inocente...E tenho certeza de que se realizam todos os desejos inocentes. Quero descansar meu coração naquela estufa! E hei de entrar para vê-la, nem que tenha de quebrar a vidraça!
- Nunca entrarás lá - disse o cão. - E, se chegares perto da estufa, então sim, que és homem morto! Vau! Vau!
- Mas seja estou mais morto que vivo...Acho que estou desabando!
O homem de neve passou o dia inteiro olhando pela janela; ao escurecer, a casa pareceu-lhe ainda mais atraente. A estufa brilhava com uma luz suave - não como a da lua, nem como a do sol - um luz como só a estufa pode irradiar, quando lhe dão alimento. Quando se abria a porta da sala, e la deitava chamas pela boca, como fazem todas as estufas. E aquele chama vermelha ia refletir-se no rosto pálido e no peito do homem de neve, banhando-o de uma cor rosada.
- Não posso esperar mais! - exclamou ele. - Que linda está ela, pondo assim a língua!
Comprida foi a noite, mas o homem de neve a não a achou longa: passou-a em um sonho, perdido em pensamentos agradáveis, e tão frios, que davam estalidos.
No dia seguinte os vidros das janelas amanheceram empanados pelo gelo, que cristalizara nas flores mais fantásticas que um homem de neve poderia imaginar; mas essas flores mesmas impediram que se visse a estufa.
Iam passando as horas, e não se derretia o gelo das vidraças. Viu-se o homem de neve privado de contemplar a estufa, que tinha de ser, segundo imaginava, uma graciosa dama. Era na verdade aquele tempo de frio glacial o que mais poderia agradar a um homem de neve, e contudo não se alegrava no meio do frio. Como havia de viver feliz, se morria de saudade da estufa, que não podia mais avistar?
- É doença muito perigosa para um homem de neve - declarou o cão. - Também padeci dela, mas escapei. Vau! Vau! Vau! ...O tempo vai mudar.
E mudou mesmo: começou o degelo, E à medida que a temperatura subia, ia-se derretendo o homem de neve. Nada dizia - nem uma queixa lhe saía do corpo, era esse o sintoma mais seguro.
Uma manhã desmoronou-se; e no lugar que tinha ocupado, só via agora uma espécie de cabo de vassoura: a vara que os meninos tinham cravado no chão para sustentar a neve, que lhe iam amontoando em roda, até dar-lhe a forma final.
- Ah! Agora compreendo por que o atormentava aquele desejo tão profundo!" - disse o cão. - Ataram à vara, uma daquelas pazinhas que a gente usa para avivar o fogo da estufa. O coração do homem de neve era um atiçador! Não admira. Pois que suspirasse pela estufa daquele jeito! Agora...agora está tudo acabado! Vau! Vau! Vau!
Não demorou a chegar também o fim do inverno.
- Vau! Vau! Vau! - latia o cachorro, com o seu vozeirão rouco.
Mas enquanto ele ladrava, as meninas da casa cantavam:
" Salgueiro, tira essas luvas,
Tira essas luvas de lã!
Solta o teu canto, calhandra!
Sai da casinha, avelã!
" Vem chegando a primavera,
Canta o cuco alegremente.
E eu canto ao sol que desponta:
- Vem o sol, alegra a gente!"
E ninguém mais se lembrava do homem de neve.
FIM
domingo, 8 de janeiro de 2017
HOLGER. O DINAMARQUES - CONTOS DE ANDERSEN

"Existe na Dinamarca um velho castelo chamado Kronborg; ficava perto do Estreito de Oeresund, onde se viam diariamente passar grandes navios ingleses, russos e prussianos. E nunca deixavam de saudar o velho castelo com seus canhões: " Buuum! E o castelo respondia: !Buuum!
" E a como se dissessem: " Bom dia! e " Obrigado!"Mas durante o inverno não passava nenhum barco a vela, porque o Sund está nesse tempo coberto de gelo, e transforma-se em uma larga estrada que vai da Dinamarca à Suécia; as bandeiras dinamarquesa e sueca flutuam bem alto, e dinamarqueses e suecos por ali vão e vem, a pé e de carro; encontram-se e trocam cumprimentos: ! "Bom dia! " e "Obrigado!" Não com tiros de canhão, mas com uma aperto de mão, caloroso e amável. E compram pão de trigo e biscoitos uns dos outros - porque a gente sempre pensa que o pão estrangeiro é melhor.
"Mas a glória da paisagem ainda é o velho Kronborg; e lá embaixo, naquelas cavernas escuras e temerosas, das quais homem algum pode aproximar-se, está sentado Holger, o Dinamarques. Vestido de ferro e aço, descansa a cabeça nos braços vigorosos; a longa barba cai sobre a mesa de mármore, na qual parece ter-se enraizado. Ali ele dorme e sonha, e nos seus sonhos vê que tudo continua bem na Dinamarca. Na véspera de Natal desce ali um anjo de Deus, e diz-lhe que sonhou com a verdade, e que pode continuar a sonhar, porque a Dinamarca não corre perigo. Mas se alguma coisa a ameaçar, então Holger, o Dinamarquês, se levantará em toda a sua força; e quando ele desprende a barba, a mesa de mármore se parte em duas! Então ele sairá à frente, e combaterá de tal modo que a sua fama há de reboar por todos os países do mundo!"
Tudo isto ouviu uma noite um meninozinho, da boca do seu avô; e o menino tinha certeza de que tudo o que o avô dizia era verdade. Acontece que o velho era entalhador, desses que tem por ofício esculpir figuras de madeira para enfeitar a proa dos navios, e enquanto falava com a criança, ia cortando uma grande figura, que pretendia representar Holger, o Dinamarquês. Lá estava ele com sua longa barba, altivo de combate, e tendo a outra apoiada na cota d'armas dinamarquesa.
E o velho avô contou tantas anedotas a respeito de vários homens e mulheres célebres na História da Dinamarca, que afinal o menino começou a imaginar que ele devia saber tanto como o próprio Holger, o Dinamarquês - porque não sonhava senão com aquelas coisas. E já na cama, o menino pensava nas histórias que tinha ouvido, e apertando o queixo contra a colcha, imaginava que também ele tinha uma longa barba, e que ela se tinha enraizado na cama.
Mas o velho avô ainda estava sentado ao trabalho esculpindo a cota d'armas dinamarquesa; quando a viu terminada, olhou para a figura inteira e pôs-se a pensar em tudo quanto tinha ouvido, e lido, e contado naquela noite ao rapazinho. Inclinando a cabeça, limpou os óculos e tornou a colocá-los sobre o nariz, dizendo:
- Sim, Holger, O Dinamarquês, não virá, certamente, no meu tempo; mas aquele menino que lá está na cama, esse talvez o veja, e se ponha ao seu lado na hora da necessidade.
E o velho avô tornou a agitar a cabeça; e quanto mais olhava para o seu Holger, mais se persuadia de que era uma boa figura, a que tinha feito. Chegava quase a imaginar que tinha cor, e que a armadura brilhava como aço e ferro verdadeiros; os corações nas armas dinamarquesas iam ficando cada vez mais vermelhos, e mais vermelhos, e os leões, com suas coroas de ouro, saltavam para a frente com fúria - assim lhe parecia - enquanto olhava para eles. E o homem dizia:
- É esta certamente a mais bela cota d'armas do mundo! Os leões significam força, e os corações simbolizam amor e humildade.
Olhou para o leão de cima e lembrou-se do Rei Canuto, que submeteu a orgulhosa Inglaterra ao trono da Dinamarca. Olhou para o segundo leão e lembrou-se de Valdemar, que reuniu os Estados dinamarqueses em um só, e venceu os Vendos. Olhou para o terceiro leão e pensou em Margarida. Olhou para os corações vermelhos, que lhe pareceram ainda mais resplandecentes do que nunca; tinham-se transforado em chamas movediças, e seus pensamentos foram seguindo essas chamas, uma por uma.
A primeira levou-o a uma masmorra estreita e escura, onde jazia uma prisioneira - uma formosa mulher. Era Eleonora Ulfeld, a filha de Cristiano IV; a chama descansou-lhe no peito, e brotou em uma rosa sobre o coração da mais nobre e melhor de todas as dinamarquesas.
- Sim - disse o velho avô - isto é um coração no estandarte da Dinamarca!
E seus pensamentos seguiram a segunda chama, que o levou ao mar, onde troavam os canhões, e os navios estavam envoltos em nuvens de fumaça; e a chama descansou, como a insígnia de uma ordem de cavalaria, sobre o peito de Hvitfeldt, justamente no momento em que, para salvar a frota, ele fazia explodir o navio, perecendo com ele.
E a terceira chamam levou-o as miseráveis cabanas da Groenlândia, onde estava o Pe. Hans Egede, que tinha amor nas palavras e as ações; e a chama brilhou como uma estrela sobre o seu peito, mostrando o terceiro coração do pavilhão dinamarquês.
E os pensamentos do avô precederam a quarta chama, porque ele bem sabia onde ia dar aquela tocha suspensa. No aposento solitário da camponesa estava Frederico VI, escrevendo seu nome com giz nos barrotes; a chama tremulou ao redor do seu peito, tremulou no
seu coração - foi naquela cabana de camponês que o seu coração se tornou um coração para as armas da Dinamarca. E o velho avô enxugou os olhos, porque tinha conhecido e servido o Rei Frederico, de cabeleira branca e olhos azuis cheios de bondade; e cruzou as mãos e ficou olhando para a frente, em silêncio. Nesse momento entrou a nora do velho, para lhe lembrar que era tarde, que ele devia descansar, e que a mesa da ceia estava posta.
- Mas que linda figura o senhor esculpiu! Holger, o Dinamarquês, e a nossa velha cota d'armas completa! Parece-me que já vi este rosto!
- Não, não o viste - replicou o velho - mas eu o vi, e procurei esculpi-lo na madeira, exatamente conforme o tenho de memória. Foi no dia dois de abril, quando a frota inglesa estava fora da costa, e nós provamos que éramos verdadeiros dinamarqueses da velha raça! Eu era do esquadrão de Stteen Bille; estava no convés do Dinamarca. A meu lado estava um homem - pois parecia, na verdade, que as balas de canhão o temiam e evitavam!

E ele cantava os antigos e lindos cantos da batalha e atirava e combatia com tamanha alegria, que não parecia um ser mortal. Ainda me lembro do seu rosto até hoje; mas de onde veio ou para onde foi, não o sei; em verdade, ninguém o sabia. Tenho pensado muitas vezes que devia ser o próprio Holger, o Dinamarquês, que veio nadando de Kromborg para nos ajudar na hora do perigo. É talvez somente ilusão minha...seja como for, aqui está a sua imagem.
E a figura projetou sua sombra enorme na parede, e foi até o teto; e a sombra parecia mover-se, como se o verdadeiro Holger estivesse vivo, ali no quarto...A mulher de seu filho beijou-o, e levou-o para a grande poltrona ao pé da mesa; e ela e o marido - que era filho do velho e pai do menorzinho que estava na cama - sentaram-se para cear. E o velho falou todo o tempo dos leões dinamarqueses, e dos corações dinamarqueses e da força e cavalheirismo que eles simbolizavam. E explicou como havia outra espécie de força, inteiramente diferente da que repousa na espada; e apontava para a estante onde estavam alguns livros velhos; muito lidos e usados, entre os quais as comédias de Holberg - aquelas comédias que a gente lê e relê, e ainda torna a ler, porque são escritas com tal encanto que os caracteres nelas descritos nos parecem pessoas com quem temos vivido a vida toda.
- Vocês vêem, pois, que também ele sabia esculpir - observou o velho. - Podia esculpir o humor e os caprichos das pessoas.
E, acenando com a cabeça para o espelho, sobre o qual se achava o almanaque com a " Torre Redonda" na capa o velho continuou:
- Tycho Brahe também...também era um dos que usaram a espada - não para cortar carne e ossos humanos, mas para abrir uma larga estrada entre todas as estrelas do céu! E então aquele cujo pai era de meu ofício, o filho do velho entalhador, aquele que tinha ombros largos e cabeleira branca, aquele que eu mesmo vi, aquele cuja fama se espalhou por todos os cantos da terra! Esse, tão certo como estar eu aqui, podia esculpi na pedra...eu posso apenas esculpir na madeira. Ah! Sim! Holger, o Dinamarquês, nos auxiliou por muitos meios, para que o mundo inteiro possa ouvir falar na força da Dinamarca! E agora...vamos beber à saúde de Bertel Thorwaldesen?
Mas o rapazinho que estava na cama tinha distintamente diante dos olhos o antigo Castelo de Kronborg, pairando isolado acima do Estreito de Oeresund, e via o verdadeiro Holger, o Dinamarques, nas cavernas subterrâneas, com a barba firmemente enraizada na mesa da mármore, e sonhando com tudo o que acontece no mundo acima dele. E Holger, entre outras coisas, sonhou com o quartinho estreito e modestamente mobiliado, onde estava o entalhador; ouviu o que ali se disse, e, em sonhos, acenou com a cabeça, dizendo:
- Sm, meu bom povo dinamarquês! Lembra-te sempre de mim! Estou contigo em espírito! Não deixarei de vir quando chegar a tua hora de necessidade!
E o sol rutilava nas torres do Kronborg,e o vento levava as notas das trompas dos caçadores pelos países vizinhos, e os navios passavam e saudavam o castelo -" Buuum! Buuum! - e o Kronborg respondia -- " Buuum! Buuum!"
Mas por mais alto que os canhões digam coisa muito diferente, para que ele acorde; mas ele acordará quando for necessário, porque em Holger, o Dinamarquês, residem o valor e a força!
FIM
domingo, 18 de dezembro de 2016
A DAMA DAS GELEIRAS - CONTOS DE ANDRESEN


I. RUDY
Vem comigo à Suíça, caro leitor. Olha as florestas sombrias que te cercam, erguendo-se nos cimos escarpados. Sobe aos campos de neve, de fulgor deslumbrante, e torna a descera para as planícies verdejantes, onde tantos ribeiros e torrentes correm, atroando os ares, com tamanha rapidez, como se receassem não chegar a tempo de se sumir no mar.
O sol dardeja nas profundezas dos vales, Funde as massas de neve, que congelam durante a noite, e formam blocos de gelo, aludes, geleiras que se vão sobrepondo.
Duas dessas geleiras enchem as vastas fendas dos rochedos, perto da cidadezinha de Grindelwald. São dispostas de uma maneira curiosa, e no verão, uma multidão de excursionistas de todos os países vão lá ter. Chegam ao vale; sobem horas e horas, e quando se acham no vértice, vêem a planície como se estivessem em um balão solto nos ares.
Nos cumes as nuvens se amontoam muitas vezes e estendem uma imensa cortina de vapores, enquanto o vale aparece iluminado pelos raios do sol, que fazem resplandecer a verdura, como se cobrisse um véu transparente. Embaixo, as águas bramem e rolam com fragor. Nas alturas, elas murmuram com suave marulho, deslizam pelos rochedos e vão ondeando, como fitas de prata.
Aos dois lados da estrada que sobe para as geleiras veem-se chalés, cada um com a sua plantação de batatas: servem para alimentar as crianças que enxameiam naquelas casinholas, e ainda não bastam para tantas boquinhas.
As crianças precipitam-se para os viajantes, cercam-nos e oferecem-lhes delicados chalezinhos de madeira esculpidos por seu pais. E, quer queime o sol, quer chova em torrentes, a criançada em bandos que se revesam, está sempre a postos na estrada, apresentando aos viajantes sua minúscula mercadoria.
Há uns vinte anos viam os excursionistas um menino que corria, como as outras criança, mas mantendo-se um pouco à parte. também vinha para vender. Tinha um ar de seriedade encantador, e segurava sua caixa de madeira com tanta firmeza, como se não quisesse separar-se dela. Os outros importunavam as pessoas; ele nada dizia. Mas a gravidade do rapazinho agradava tanto, que o chamavam, de preferência aos mais insistente e, sem que ele mesmo soubesse por que, vendia muito mais que os seus camaradas.
Era o avô quem esculpia os belos quebra-nozes, os grotescos bonecos, os ursos, as colheres e garfos, as caixas ornadas de delicada folhagem e de cabrinhas ligeiras. O velho morava lá mais acima, na montanha. Tinha em casa um armário cheio daqueles brinquedos delicados, que fascinavam as crianças. Mas seu neto, o pequeno Rudy, não lhes dava grande atenção. O que ele mirava com prazer e cobiça, o que desejaria ardentemente possuir, era a espingarda, que estava pendurada em uma trave. Já o avô lhe prometera fazer presente dela, mas isso seria quando já fosse crescido, e bastante forte para manejá-la.
Mesmo assim tão pequeno, tinha de guardar as cabras. Se para ser um bom pastor de cabras é bastante saber escalar com elas os rochedos, era Rudy um bom cabreiro; subia até mais alto que elas. Gostava de ir arrebatar os ninhos de pássaros nos últimos galhos das árvores. Era mais que corajoso, era temerário. Ninguém o via jamais sorrir, senão quando se achava ao pé de uma cascata barulhenta, ou quando ouvia o ruído de um alude que vinha rolando.
Nunca brincava com as outras crianças. Não se achava na companhia delas a não ser quando o avô o mandava vender os seus trabalhos de madeira esculpida. E Rudy não gostava daquele serviço. Preferia mil vezes subir sozinho as montanhas escarpadas, ou ficar sentado junto do avô, a escutar as histórias dos tempos longínquos, e as tradições dos país de Meirigen, onde o velho nascera, país invadido outrora por um povo vindo do Extremo Norte e da raça dos suecos.
Aprendia assim Rudy muitas coisas. Foi formando, ao ouvir atentamente as narrações do velho escultor, um pequeno acervo de saber, que as crianças da sua idade não possuíam. Mas a sua experiência também foi aumentando, graças a Ajola, o grande cão que pertencera a seu pai, e a um gato, que ele muito estimava. Foi este que o ensinou a subir.
- Vem comigo ao telhado! - disse-lhe um dia o gatarrão.
E Rudy entendeu-o perfeitamente. Quando a gente é criança, mal sabe falar ainda, compreende às mil maravilhas a linguagem das galinhas e dos marrecos, dos cães e dos gatos, Ele nos falam tão distintamente como o papai e a mamãe. A gente chega a ouvir até relinchar a bengala do vovô, que serve de cavalo, e que cria de repente cabeça, pernas e rabo. Mas é essa uma faculdade que se perde com o crescimento. Há crianças, contundo, que a conservam mais tempo que outras; costuma-se afirmar que elas são patetas. Mas...dizem tanta coisa errada neste mundo!
- Quando a gente é criança, mal sabe falar ainda, compreende às mil maravilhas a linguagem das galinhas e dos marrecos, dos cães e dos gatos, Ele nos falam tão distintamente como o papai e a mamãe. A gente chega a ouvir até relinchar a bengala do vovô, que serve de cavalo, e que cria de repente cabeça, pernas e rabo. Mas é essa uma faculdade que se perde com o crescimento. Há crianças, contundo, que a conservam mais tempo que outras; costuma-se afirmar que elas são patetas. Mas...dizem tanta coisa errada neste mundo!
- Vem comigo ao telhado! - convidara o gato. - Isso de dizer que há perigo, é pura imaginação. Quem não tem medo não cai. Vamos ! Põe uma pata assim...a outra assim. Fica firme nas patas dianteiras. Abre bem os olhos e mantém todo o corpo flexível. Quando aparecer um abismo, salta por cima e não tenhas medo nenhum. Vê como eu faço!
E Rudy apanhou perfeitamente todo esse discurso, e seguiu o gato pelo telhado e pelo trono das árvores. Subiu depois à ponta dos rochedos, onde nem os gatos vão. As sarças( planta) é que lhe ensinavam a se agarrar mesmo aos rebordos mais estreitos dos rochedos, onde elas estavam suspensas.
Muitas vezes Rudy subia à montanha antes de o sol sair, e lá respirava um ar fresco e reconfortante. É esse um néctar preparado por Deus, com a seguinte receita: Mistura o perfume de todas as ervas frescas da montanha com o tomilho, a hortelã, as rosas e as outras flores do vale. Não tomes senão o aroma sutil; deixa que as nuvens absorvam as vapores pesados. Entrega tudo isso ao vento, para que o espalhe pelos pinheirais, e terás então um ar de uma frescura deliciosa, de uma roma perfeito.
E era esse ar que Rudy ia saborear de manhã lá nas alturas ; os raios do sol acariciavam-lhes as faces; a vertigem, o demônio terrível, o espreitava ; mas fora-lhe proibido, de ordem superior, aproximar-se do menino. As andorinhas dos sete ninhos que estavam sob o beiral do telhado do avô iam ter com ele, lá em cima , onde levava as cabras a pastar, e cantavam seu estribilho misterioso: V i og i, og i og vi!( Onomatopeia que exprime o grito da andorinha; mas é claro, é preciso que lhe dê o acento próprio. Estas palavras significam: " tu e eu, e eu e tu!" )E levavam-lhe cumprimentos de toda a casa, até das galinhas, os únicos animais que Rudy não procurava nunca.
Assim tão pequeno, já tinha viajado seu pouco. Nascera no Cantão de Valais, e de lá o levaram ainda pequenino, para o Oberland, através dos Alpes. Mas tarde fora a pé até os Staubbach, para contemplar a magnífica cascata que, diante do Jungfrai - aquele monte todo branco de neve e de gelo - ergue uma gaze de prata, que flutua no ar em uma extensão de mais de trezentos metros de compriment
Também estivera perto das grandes geleiras de Grindelwald. Mas isso é uma história triste. Sua mãe morrera lá, e desde então o menino perdera toda a alegria.
O avô contava:
- Quando Rudy tinha apenas dois anos, era uma criança alegre. As cartas que a mãe me escrevia vinham sempre impregnadas da alegria do menino: mas desde que esteve na caverna de gelo, ficou mais grave que um velho.
O avô não gostava muito de falar naquele assunto, mas o caso era bem conhecido nos arredores.
Lembravam-se todos de que o pai de Rudy fora condutor de diligências. Seu grande cão Ajola seguia-o sempre quando conduzia o carro, na estrada do Simplon até o Lago de Genebra.
Tinha ele um irmão no Vale do Ródano, no Valais. Era um caçador de camurças e servia de guia aos excursionistas.
Tinha Rudy dois anos quando perdeu o pai. Resolveu a mãe voltar para o Oberland bernês, sua terra natal; iria viver perto de seu pai, que morava a uma légua de Grindelwald, e que ganhava a vida, esculpindo objetos de madeira.
Partiu pois em junho, levando o filho nos braços, em companhia de dois caçadores de camurças. Tinham subido a encosta do Monte Gemmi, e já avistavam ao longe os chalés do seu vale; faltava ainda atravessar uma grande geleira. O caminho era penoso. A neve recente ocultava uma fenda que, ainda que não tivesse dezenas de metros de profundidade, como tantas outras, era entretanto bastante profunda para ocultar um homem. A moça escorregou, submergiu na neve e desapareceu, com o menino, no fundo da abertura.
A princípio não se ouviu nem um gemido. Mas logo após a criança começou a chorar. Os caçadores levaram mais de uma hora para ir buscar paus e cordas no chalé mais próximo. Com muito trabalho desenterraram enfim corpos da mãe e do filho, que pareciam mortos. Mas conseguiram somente o menino. Levaram-no então ao avô, que o criou como pode. Bem via ele que o netinho não era alegre nem brincalhão, como o descrevera a mãe. A criança quase não ria.
Era efeito do estranho mundo do gelo onde fora precipitado. É aquele mundo composto de imensos blocos de cristal branco ou verde, de todas as formas, amontoados uns sobre os outros; e, segundo a crença dos montanheses suíços, ali estão encerradas as almas dos danados, até o dia do juízo final.
No interior da geleira há cavernas imensas, fendas que penetram até o centro dos alpes. É um palácio maravilhoso. Lá mora a Dama das Geleiras, rainha daquele domínio sombrio. Ela sente prazer em destruir, em esmagar. Seu poder estende-se sobre os rios que ali nascem. Lança-se ela, mais rápida que a cabra montês, ao cume das neves eternas, onde o homem temerário não pode chegar sem primeiro talhar degraus no gelo. Outras vezes desce, pousada em um galho de pinheiro, as torrentes mais impetuosas; salta depois de um rochedo a outro; flutua-lhe ao redor do corpo a longa cabeleira branca e veste um manto verde azulado, da cor dos lagos da Helvécia.
Quando retiraram Rudy da fenda de gelo, ela gritou:
- Parem! Deixem-no! É meu!
- Roubaram-me uma criança encantadora; eu já tinha beijado; ia dar-lhe o beijo mortal. Agora ei-lo de novo entre os homens. mas ele leva as cabras à montanha. E sobe mais alto, cada vez mais alto. Afasta-se de todo o mundo, menos de mim! Pertence-me: hei de apanhá-lo!
E pediu à Vertigem que fosse procurar a criança.
Ergueu-se a Vertigem nos ares, para mergulhar no fundo dos lagos; dali saiu uma de sua irmãs, depois mais duas, depois mais três, enfim, uma multidão delas - por que formam legiões. Mantêm-se umas sobre as escadas outras nas torres, nos campanários, nos picos das montanhas. Nadam no ar, como se fossem peixes, atraindo as vítimas, que precipitam no abismo. Tanto a Vertigem como a Dama das Geleiras espreitam o homem; apoderam-se dele quando se aproxima, como o polvo se aferra a tudo quanto pode atingir.
Escolheu a Dama das Geleiras, entre todas as irmãs da Vertigem, a mais forte, a mais hábil, e ordenou-lhe que fosse buscar Rudy.
- Esse? Eu não consigo apanhar - declarou a Vertigem. Já lhe tenho preparado minhas ciladas mais astuciosas! Mas o gato - aquele miserável! - o gato ensinou-lhe todos os seus ardis. Além disse, aquele filhos dos homens parece protegido por um poder que me repele. Pode ele estar suspenso de um galho acima do abismo: faço-lhe cócegas nas plantas dos pés , sopro-lhe no rosto meu bafo, que entontece - mas ele fica firme, e ri de mim.
- Mas havemos de apanhá-lo - disse a Dama das Geleiras. - Se não fores tu, serei eu. Sim! Eu, eu!
E, como se fosse o eco dos sinos da capela, ouviu-se uma voz:
- Não, não!
Era coro dos espíritos da natureza, tão suaves, tão amáveis, tão bons!
E de novo se ouviu:
- Não, não!
Eram as filhas do raio do sol. Todas as tardes elas se acomodam em círculo no cume dos montes e estendem as asas, que vão ficando cada vez mais vermelhas, à medida que o sol descamba no ocaso. E cercam então os Alpes de uma auréola de chamas. Quando a noite cai, elas entram na neve dos picos e das rochas, e ali dormem até que o sol reapareça. Gostam muitos das flores, das borboletas e dos homens; mas seu predileto é o pequeno Rudy.
- Não, nenhuma de vós há de apanhá-lo! - cantavam elas.
- Já tenho apanhado outros maiores e mais fortes! - replicou a Dama das Geleiras.
Então as Filhas do Sol entoaram um cântico cujos versos diziam que o vento, com seus turbilhões, tinha arrancado o manto do viajante, arrebatando-o nos ares; mas só havia levado o invólucro, não o homem:
- Vós o apanhastes, filhas da força bruta; mas retê-lo, não o conseguistes! É mais forte até do que nós. Está acima das potências da natureza. Há nele algo do espírito divino. Ultrapassa o próprio sol, o nosso pai: ele conhece as palavras mágicas que constrangem os ventos e as águas a obedecer-lhe e a servi-lo.
Era isso o que os suaves espíritos cantavam em coro. E todas as manhãs os raios do sol entravam, brilhando, pela única janelinha da casa do avô, e iam até a cama da criança adormecida; e as filhas do sol o acariciavam, aquecendo-o com seus afagos, para apagar todos os vestígios do beijo glacial que lhe dera a Rainha das Geleiras.
II. A VIAGEM PARA A NOVA PÁTRIA
E agora tinha Rudy oito anos. O irmão de seu pai, que morava além dos montes, no Vale do Ródano, desejou ver o sobrinho, para lhe ensinar a abrir caminho no mundo. Reconhecendo que isso seria vantajoso para o menino, o avô consentiu.
Rudy ia pois partir. E não era só o avô que lá estava para lhe dizer adeus. Havia mais gente! Primeiro, Ajola, o velho cão, que lhe disse:
- Teu pai era condutor, e eu o cão da diligência. Nós subimos e descemos as montanhas milhares de vezes. Também conheço homens e cães do lado de lá dos montes. Quase não costumo falar; mas como, por muito tempo, não nos veremos, vou conversar um pouco mais do que costume. Pergunto-te, pois, por que tinha eu tantas vezes de galopa ao lado do carro, não tendo mais nada para roer senão meus aborrecimentos? É coisa que nunca pude compreender; nem tu, creio eu. Pois acabei por fazer a descoberta: é que as coisas neste mundo não estão razoavelmente dispostas, nem para os cães nem para os homens. Nem todos são criados para ser ninados nos joelhos, e beber leite. Eu não fui habituado a isso. Mas vi muitas vezes na diligência cãezinhos ordinários que ocupavam o lugar de um viajante. Sua dona os alimentava com leite e biscoitos. E, de tão amimados, nem queriam comer aquilo! Davam uma lambidela, e depois a dama comia os biscoitos. Enquanto isso eu corria na lama, ao lado da diligência, e sentia uma fome canina. Nada tinha para trincar, senão minhas reflexões. Aquilo era uma coisa absurda! E não é só isso. Por mais que eu bocejasse, por mais que ladresse, para mostrar quão fatigado estava, jamais me davam lugar na diligência, jamais me punham ao colo. Digo-te essas coisas para que aprendas a conhecer o mundo em que vais entrar.
- Estás agora muito forte para brincar comigo, e apesar disso não quero usar minhas garras contra um velho amigo, como tu. Vais subir pelos montes acima. Lembra-te das lições que te dei. Quando estiveres no ar, não penses que vais cair, e então te aguentarás bem.
E o gato disparou, para que ninguém visse, no brilho de seus olhos, toda a comoção que causava a partida do seu companheiro de brinquedos.
As duas galinhas entraram correndo na sala. Uma já não tinha cauda; um excursionista, como fumaças de caçador, tomando-a por uma ave de rapina, atirara nela, abatendo-lhe o rabo.
- Rudy vai embora - cacarejou ela. - Vai para o outro lado dos Alpes!
- Eu, cá por mim - retrucou a outra - não gosto de me despedir.
E foram embora, aos pulinhos.
Mas as cabras, que Rudy tinha pastoreado durante tantos anos, despediram-se dele com ternos adeuses: era mééé, e mais mééééééé...nos tons mais queixosos do mundo.
Moravam na aldeia dois guias expeditos, que iam justamente naqueles dias atravessar o Gemmi, dirigindo-se para a outra vertente. Rudy lá se foi com eles, a pé. Era rude caminhada aquela, para um rapazinho tão pequeno, mas ele era forte, e a coragem o defendia do cansaço.
Acompanharam-no as andorinhas um bom pedaço, sempre cantando:
- Vi og, og i og vi!
O caminho cortava a torrente rápida do Lustschine, que brota dos rochedos negros da geleira de Grindelwald; atravessaram-na sobre troncos de árvores, que vacilavam sob seus passos, e chegaram até a geleira. Rudy estava contente. luziam-lhe os olhos de prazer quando afundava com toda a força no gelo seus sapatos ferrados.
Com o auxílio das mãos, içou-se aos blocos de gelo que lhe barravam a passagem ; chegou assim a um lago que era preciso contornar com todo o cuidado para não cair nalguma fenda. À beira de uma delas havia uma pedra muito grande, suspensa sobre o abismo.
Ao passar ali, Rudy tocou na pedra; ela rolou pelas profundas escavações, com um fragor medonho;e o eco retiniu ao longe.
Lembrou-se então o menino do que lhe haviam contado: que tinha caído com sua mãe em uma daquela fendas tenebrosas, onde reina um frio mortal. Mas era tão intrépido que essa lembrança se dissipou logo do seu espírito. Seguia a passos lestos os dois homens que, de vez me quando, lhe ofereciam a mão para ajudá-lo a subir aquele carreiro rude; mas ele lá ia indo muito bem, sozinho; e caminhava tão firme sobre o gelo como uma camurça.
Alcançaram alguns rochedos nus, onde não brotava erva nem musgo; depois desceram um pequeno trecho, até chegar a um bosquete de pinheiros enfezados, e atingiram enfim as neves eternas. Jamais a criança tinha subido a tamanha altura. Via diante de si um vasto mar de neve, de ondas imóveis. De vez em quando o vento fazia girar naquela superfície imensa, turbilhões de flocos, como ergue, na beira do oceano, a espuma branca das vagas. E ao redor deles erguiam-se o Jungfrau, o Moench, o Eiger - picos nevados a que nem as nuvens alcançam.
Geleiras sucediam-se a geleiras. eram os palácios de verão da soberana, que não tem outro desejo senão apanhar e sepultar os homens. Contudo, onde batia o sol, havia certo calor. A neve, resplandecente, ao seus raios, ofuscava a vista, fazendo brilhar milhares de diamantes, de reflexos brancos e azuis. Estava toda coberta de inumeráveis insetos mortos: borboletas, abelhas, que se tinham arriscado a subir naquelas alturas, ou que o vento para lá arrastara.
Acima do pico de Wetterhorn apareceu uma nuvem; parecia uma amontoado de lã fina e negra. Crescia com grande rapidez, e desceu pesadamente. Era a precursora do terrível foech, o furacão, que tudo arrasa na passagem. Rudy nem o notou: estava perdido na contemplação daquele espetáculo grandioso, que se gravou para sempre no seu espírito. Mas seus companheiros tinham visto o perigo e apressaram-se em alcançar uma velha construção de pedra, ali erguida para abrigar os viajantes perdidos. Lá acharam carvão e galhos de pinheiro. Os guias acenderam o fogo e prepararam uma beberagem forte e temperada com especiarias, excelente remédio contra a fadiga, e da qual Rudy recebeu a sua parte.
Sentaram-se os dois homens junto do fogo e, enquanto fumavam, puseram-se a falar dos seres misteriosos que povoam as regiões alpestres: as serpentes enormes que habitam o fundo dos lagos; os bandos de fantasmas que arrebatam pelos ares o viajante adormecido; o pastor selvagem que leva suas ovelhas pretas a pastar até os píncaros mais altos. É certo que ninguém pôs jamais os olhos sobre essas ovelhas negras, mas quantos já tem ouvido os seus cincerros e seus funestos balidos!
Ouvia Rudy essas narrações apavorantes com grande prazer, e sem receio algum. ignorava o que é medo. Nem estremeceu sequer quando ouviu um mugido espantoso, que atribuiu ao rebanho negro de que os acabavam de falar. Ia-se aproximando o tétrico ruído. Calaram-se os homens. Haviam recomendado a Rudy que não adormecesse, porque devia estar pronto para o que desse e viesse.
Era o foehn, a tempestade avassaladora, que do alto das montanhas se precipita nos vales, partindo as árvores mais fortes com tanta facilidade como se fossem varinha delgadas; e transportando os chalés de uma margem a outra do rio, como quem desloca uma peça no tabuleiro de xadrez.
Durou aquele bramido uma hora; depois foi diminuindo aos poucos. Disseram então os montanheses ao menino que estava acabada a tormenta, e que agora podia dormir - o que ele tratou de fazer de boa vontade, pois se achava fatigado.

Puseram-se de novo a caminho no dia seguinte, bem cedo. Atravessaram de novo outros montes, outras geleiras, outros campos de neve. Chegaram ao Cantão de Valais do outro lado dos Alpes. Tornaram a enxergar a verdura dos matos e encontraram de novo criaturas humanas. Mas...que homens eram aqueles? Espécies de monstros, pequenos, de rosto gorduroso, de pele amarelada. horrível papeira cobria-lhes o pescoço. Eram pobres cretinos, que arrastavam uma vida miserável e errante, encarando os viandantes com um olhar estúpido. Eram as mulheres, sobretudo, espantosas de ver.
Seria todos assim, os habitantes da nova pátria de RudY?
II. O TIO
Graças a Deus, não encontrou o menino em casa do tio senão pessoas como as da sua terra! Morava na casa apenas um cretino, um pobre idiota, daquelas criaturas miseráveis e abandonadas, que no Cantão de Valais são recolhidas durante dois ou três meses por uma família, depois vão passar uma temporada igual com outras pessoas bondosas, e assim vão vivendo. Chamava-se Saperli, o pobre rapaz.
Era ainda o tio um caçador vigoroso. Entendia também do ofício de tanoeiro. Sua mulher, uma criaturinha baixinha e cheia de viveza, com um corpo de passarinho, como se diz vulgarmente, tinha o olhar penetrante da águia e um pescoço comprido, cheio de penugem.
Tudo ali era novo par a Rudy: os trajes, os costumes, a própria língua. mas seu ouvido infantil não tardará a apanhar as diferenças da linguagem, que se lhe tornará tão familiar como a sua, dentro de pouco tempo.
Tinha um ar de opulência a morada do tio, em comparação com a do avô. As peças eram mais espaçosas. As paredes, ornadas de chifres de veados, de carabinas reluzentes. Acima da porta ficava a imagem da Madonna, diante da qual ardia uma lâmpada, cercada de rosas dos Alpes.
O tio não era somente o mais destro caçador de camurças do país: era também o melhor guia de toda a região.
Não tardou que Rudy se tornasse o filho querido da casa Era tão estimado, pelos menos, como o velho cão da caça, surdo e cego, que já não prestava serviço algum- mas prestara tantos, que era considerado membro da família, e merecia de todos, cuidados e desvelos especiais. Rudy acariciava-o, alisava-lhe o pelo; mas o velho cão não estava muito disposto a travar novos conhecimentos.
Bem depressa tinha Rudy criado raízes, na casa e no coração de todos.
- Não estamos aqui tão mal como em Valais - dizia o tio. - Sempre temos camurças; sua raça não desaparece como a das cabras. Sim, hoje as coisas são muito melhores do que antes. Debalde dizem que eram tempos gloriosos: nossa época é melhor. Dantes, nossos vales estava por assim dizer separados do mundo inteiro; mas foram abatidas por uma grande golpe as muralhas que nos isolavam, e entrou uma corrente de ar fresco, que veio reanimar tudo entre nós.
E quando estava disposto a conversar, falava o tio do seu tempo de criança, daquele tempo em que tudo no Valais cheirava a quarto fechado; a metade da população era formada de pobres patetas e outros enfermos.
- Mas de repente sobrevieram os soldados franceses - continuava ele. - Eram aqueles os médicos de que carecíamos: mataram os homens e a doença. Na verdade, sabiam combate destemidamente! Eram rapagões decididos, aqueles!
E, olhando para a mulher, que era francesa, dizia rindo:
- Também, as mulheres não lhes ficam atrás!
Depois prosseguia a narração:
- Quando acabaram de combater contra os homens, atacaram os rochedos. Eles é que construíram a estrada do Simplon, através dos montes mais abruptos, de modo que hoje basta dizer a uma criança de três anos: " Vai à Itália. É este o caminho," E a criança chegará sem nenhuma dificuldade à Itália, desde que não se afaste da estrada.
Depois entoava uma canção francesa, e terminava-a com um viva ao imperador Napoleão.
Foi assim que Rudy ouviu pela primeira vez falar da França, e de Lião, a grande cidade da margem do Ródano. O tio estivera lá.
- Parece-me que dentro de poucos anos poderás se um ágil caçador: tens na verdade excelentes disposições para isso.
Ensinou-lhe o manejo de uma carabina; e a visar e a atirar. Levou-o a caçar com ela nas montanhas e fê-lo beber o sangue quente da camurça, que torna a gente inacessível à vertigem. Ensinou-lhe a reconhecer o tempo em que se precipitam os aludes, ao meio-dia ou à noite, segundo a direção dos raios do sol. Adestrou-o em imitar as camurças, em saltar à maneira delas, caindo firme sobre as pernas, sem fazer mais um só movimento. ensinou-lhe ainda como sair de uma fenda de rochedo, quando há um acidente: é preciso agarrar-se com os cotovelos, movimentar os músculos do jarrete, empregar até a nuca par as e segurar às menores asperezas.
E Rudy assimilava tudo aquilo depressa. Aprendeu também os estratagemas usados para enganar as camurças, que são muito astuciosas e estabelecem um sistema de vigilância, mediante postos avançados e sentinelas. Viu o caçador colocar o casaco e o chapéu sobre um bastão, esconder-se e sair justamente no lado que a pobre camurça, concentrando toda a atenção na roupa, se descuidara de vigiar.
Um dia em que Rudy acompanhava o tio, recorreu ele aquele estratagema. O caminho era estreito, ou antes, nem se pode dizer que havia um caminho: era apenas um delgado carreiro que beirava o precipício. A neve estava meio derretida. As pedras iam resvalando sob seus pés e rolavam no abismo. O caçador estirou-se de todo o comprimento, e ia avançando de rastos, o que não impedia que, de vez em quando, uma pedra escorregasse sob o seu peso e caísse, dando mil saltos de rocha em rocha, antes de chegar ao fundo negro do precipício.
Rudy, sobre o último rochedo sólido, ficava a uns cem passos do tio. De repente um abutre poderoso vem direto ao caçador, escorregando como um verme: a ave queria, com um golpe de asa, fazer o homem cair, para depois devora-lhe o cadáver. O tio não via o abutre: não tinha olhos senão para a camurça, uma fêmea com o filhote, que avistava do outro lado da fenda.
Viu Rudy a ave de rapina e adivinhou-lhe a intenção. Levantou a arma e ia atirar. Naquele momento a camurça sobressaltou-se; o tio fez fogo e o animal caiu ferido; o filhote fugiu aos saltos e lá se foi, pulando pelos rochedos e saltando os precipícios, com tanta segurança como se já tivesse alguns anos de vida.
Espantado pela detonação, o abutre voou, e o caçador só veio a saber do perigo que acabava de correr, pelo menino.
Foi buscar a camurça e voltaram então para casa. O tio, muito alegre, começou a cantar uma canção do tempo de sua mocidade. De repente ouviram um ruído singular não muito longe. Ergueram os olhos: lá em cima, no pico escarpado, a massa de neve se erguia, agitava-se, como uma tela estendida que ondulava ao vento. A superfície do gelo estava como lajes de mármore que se partem. Depois tudo aquilo se descolou como um trovão surdo. Era uma alude(avalanche) terrível; não vinha sobre os caçadores, mas muito próximo deles.
- Segure-se bem! - gritou o tio o mais alto que pode.
Rudy agarrou-se ao tronco de uma árvore; o caçador subiu à ramaria e segurou-se nos galhos.
O alude passou a muitos metros; mas a ventania, o furacão que ele desencadeou lançou longe as árvores das cercanias, dispersando-as como gravetos. Rudy achou-se estendido no chão. A árvore a que se agarrara parecia ter sido serrada na base. A copa fora arremessada longe; e lá, entre os galhos, jazia o tio, com a cabeça despedaçada. Tinha a mão ainda quente, mas estava irreconhecível. Rudy ali ficou, imóvel, pálido e trêmulo, diante do doloroso espetáculo: sentiu medo pela primeira vez na vida.
Era já tarde da noite quando chegou a casa, levando a triste notícia. A tia não disse uma palavra, não derramou uma lágrima. Foi somente quando trouxeram o corpo que sua dor explodiu.
O pobre idiota encolheu-se a um canto. No dia seguinte ninguém o viu. À noite foi procurar Rudy e disse-lhe:
- Escreve uma carta para mim. Saperli não sabe escrever, mas ele irá direitinho por a carta no correio.
- Uma carta para ti? Mas a quem queres escrever?
- A Nosso Senhor Jesus Cristo.
- O que? Que é que está dizendo? - perguntou o menino.
E o pobre maluco, deitando a Rudy um olhar tocante, juntou as mãos e murmurou, com acento piedoso e grave:
- Jesus Cristo, Saperli quer escrever para vos pedir que seja Saperli quem esteja agora ali estendido, morto e não o senhor da casa.
Rdy segurou-lhe a mão e explicou, ão sem dificuldade, que a carta não chegaria ao céu e não poderia restituir a vida ao defunto.
Depois do funeral, disse-lhe a tia:
- Agora és tu o arrimo da casa.
E de fato assim foi.
IV. BABETTE
- Qual é o melhor atirador do Cantão de Valais?
Sabiam-no bem as camurças, e diziam umas à outras:
- Cuidado, quando avistares Rudy! Foge dele!
- Qual é o caçador mais belo da região?
- É Rudy! - diziam as moças.
Mas essas não acrescentavam: "Foge dele!"
Tampouco o diriam a mães mais respeitáveis; porque ele era muito delicado com todas elas; porque as cumprimentava com muita gentileza; e porque era alegre, ativo e prestadio. Faces tostadas do sol, dentes de alvura deslumbrante, olhos negros e luzidios - era um soberbo mocetão de vinte anos.
Não sentia a mordedura da água gelada quando nadava nas torrente ou nos lagos dos Alpes, virando-se e revirando-se como um peixe. Ninguém fazia escalada de um monte com mais agilidade. Era capaz de subir como os caracóis, pelos rochedos talhados a pique: seus músculos tinham a solidez e a maleabilidade do aço. E como saltava! Em verdade, fazia honra a seus mestres- o gato e a camurça!
Passava Rudy por ser o melhor guia de toda a região. Poderia, assim ganhar uma fortuna. para o ofício de tanoeiro, que lhe ensinara o tio, não tinha gosto algum. Só sentia prazer na caça à camurça, o que também dava resultado. Era, pois, um bom partido.
As moças com quem dançava no baile, sonhavam com ele à noite. E durante o dia não era só uma que tinha nele o pensamento.
Annette, a filha do professor, confiou à sua amiga mais íntima:
- Ele me fez uma declaração, quando dançávamos.
Contudo, não devia ter confiado isso a ninguém, nem mesmo àquela amiga íntima. Segredos dessa natureza não se guardam facilmente; são como grãos de areia em saco furado: escapam por todos os lados. E dentro de pouco tempo, embora fosse Rudy um rapaz tão sério, tão reto, o que se dizia dele é que fazia declarações a todas as moças com quem dançava - de tal modo se multiplicara uma amabilidade que dissera a Annette, que por sinal não era a preferida do seu coração.
No vale, perto de Bex, no meio de um grande bosque de nogueiras e à beira da água rápida, morava um abastado moleiro. Era sua morada uma grande e bela construção de três andares, com torrinhas cobertas de zinco, que luziam ao sol e ao luar; a maior era coroada com um catavento; uma maça atravessada por uma flecha, em memória de Guilherme Tell.
Apresentava o moinho excelente aspecto, e não lhe faltava mesmo certo ar de opulência. Os artistas gostavam de desenhá-lo. Mas a filha do moleiro, ah! essa - ninguém poderia exprimir em um desenho tanta graça e beleza. Era essa a opinião de Rudy. E contudo, ele tinha a imagem da moça burilada e gravada no coração. Um olhar da gentil Babette tinha-lhe abrasado a alma subitamente. Como uma tocha ateia um incêndio. Mas a linda filha do moleiro não sabia de nada! Não tinham jamais trocado uma única palavra, aquele dois.
O pai era rico e a moça parecia estar situada pela fortuna em uma posição muito alta para que os moços se aproximassem, dela. Rudy, porém, dizia consigo:
- Ora, afinal pessoa alguém está tão erguida nos ares que a gente não possa atingi-la; é só saber subir. E, quanto a isso, por mais escarpada que seja a elevação, basta a pessoa se convencer de que não vai cair, que não cairá mesmo.
É que ele se recordava das lições do gato do avô.
Um dia teve necessidade de ir até Bex, onde tinha um negócio a tratar. Era uma viagem: não estava ainda terminada a estrada de ferro. Seguiu pelo vale extenso onde serpeia o Ródano, torrente perigosa naquela região, e sempre pronta a sair do leito para devastar os campos e as moradas dos homens. Para além de Sion faz o vale um cotovelo e vai-se estreitando cada vez mais dali em diante: perto de St. Moritz já não há espaço no vale senão para o rio e a estrada. Um pouco mais longe ergue-se uma velha torre; é como uma sentinela, a guardar a fronteira de Valais, que acaba ali. Atravessada uma ponte, estamos no Cantão de vaud. A primeira cidade que aparece é Bex. Alarga-se de novo o vale, agora fértil e soberbo: é como um extenso pomar de nogueiras e castanheiros; semeados aqui e ali, grupos de ciprestes e de româzeiras. O clima é quente e delicioso. A gente chega a julgar que está na Itália. Chegou o moço a Bex e concluiu seus negócios. Depois andou passeando pelos arredores do moinho; bem desejaria interrogar um dos rapazes que ali trabalhavam; porém não avistou nenhum. Não viu sinal alguma de Babette, que parecia oculta de propósito.
Anoiteceu: o ar recendia com o perfume da hortelã e das tílias em flor.
Sobre as montanhas verdejantes estendia o luar como um véu de gaze vaporosa; parecia impregnado do aroma da primavera. Reinava o silêncio por toda a parte. Era como se a natureza, despertando, retivesse a respiração para melhor posar diante de um pintor divino, que lhe fosse gravar a imagem no fundo azul do céu. Aqui e ali, pelos campos, erguiam-se os grandes postes do telégrafo, cujos fios atravessavam o vale tranquilo. Encostado a um desses postes via-se um vulto imóvel. Era Rudy: tão silencioso como toda a natureza.
Assim como o anúncio dos grandes acontecimentos, a notícia da queda dos impérios, atravessavam o fio telegráfico sem nele produzir nenhum movimento, nenhum som, assim também enérgicos pensamentos passavam pelo cérebro de Rudy, sem que coisa alguma no seu exterior o deixasse suspeitar. E contudo, ele sonhava com a única coisa que poderia fazer a felicidade da sua vida inteira, e que ia tornar-se a preocupação de todos os seus instantes.
Tinha os olhos fixos sempre no mesmo ponto - uma luz que cintilava através da folhagem. Essa luz era a do quarto de Babette, na casa do moleiro. Quem lhe visse a imobilidade e a atenção, julgaria que espreitava uma camurça; naquele momento, porém, era ele antes a caça que o caçador: assemelhava-se a uma camurça que fica durante muitos minutos sobre a ponta de um rochedo, sem se mover, como se fosse nele esculpida, e de repente, ao ruído de uma pedra que rola, salta e se some. E foi precisamente o que fez Rudy. Acabava de lhe brotar no cérebro uma ideia. Sacudiu-se bruscamente, dizendo lá consigo:
- Nunca devemos recuar. Nunca devemos desesperar. Vai! Entra corajosamente no moinho. " Boa noite, moleiro! Boa noite. Srta. Babette!" Isso não é coisa muito difícil de dizer não. A gente não cai, quando tem certeza de que não vai cair. É preciso, pois, que Babette me veja, se queria Babette.
Foi costeando o rio, cujas águas amareladas rolavam com fragor; seguiu pelo caminho ladeado de salsos, que mergulhavam os ramos na água, e chegou à casa do moleiro.
Mas...era como na velha canção: " Todo o mundo tinha saído: só estava em casa o gato."
O gato estava, com efeito, na escada, diante da porta: arqueou o dorso e disse:
- Miau!
Mas Rudy já não compreendia a linguagem dos animais. Bateu; ninguém ouviu, ninguém veio abrir a porta. O gato recomeçou seus miados: Miau! Miau!... Antigamente Rudy teria entendido imediatamente que o animal queria dizer:
- Não há ninguém em casa.
Mas agora lhe foi preciso ir até o moinho para saber o que havia: soube então que o moleiro viajara para Interlaken, que ficava longe, e que levara Babette. Tinham ido ver as festas dos atiradores, que começariam no dia seguinte, e deviam durar oito dias. Lá estavam reunidos todos os atiradores dos cantões alemães.
Coitado! Não tivera sorte: escolhera mal a hora de ir a Bex. Só lhe restava dar volta.
E foi o que fez, com muita sabedoria. Andou toda a noite, e chegou enfim a casa. Mas, não se compreende, talvez: não estava nada contrariado. No dia seguinte, pela manhã, levantou-se de bom humor.
- Assim - dizia consigo - Babette está em Interlaken, que fica muito longe daqui: são muitos dias de jornada. Sim, se a gente segue a estrada real; mas cortando a montanha. A viagem é bem curta, até. É justamente o caminho que assenta bem a um caçador de camurças. E eu já o percorri uma vez, quando era pequenino, e vim de casa de meu avô para aqui. É isso! Há festa de tiro em Interladen...Pois bem: eu serei o vencedor - e se-lo-ei também no coração de Babette, quando tivermos travado conhecimento.
Pegou no saco de viagem, meteu nela a roupa dos domingos, a carabina e a bolsa de caça, e subiu a montanha pelo caminho mais curto - que nem por isso deixava de ser bem comprido.
A festa devia começar naquele dia, e duraria uma semana inteira. o moleiro ficaria lá todo esse tempo, segundo lhe disseram, hospedado em casa de uns parentes. Não chegaria, pois, atrasado.
Passou pelo Gemmi para ir a Grindelwald. Ia alegre e disposto; o ar vivo e fresco dos Alpes mantinha-o cheio de forças. Via olhando para trás, que o vale ia descendo cada vez mais, ao passo que o horizonte se distendia. Lá tinha enfim diante dos olhos toda a cadeia dos vértices dos Alpes, revestidos de brancura deslumbrante. Conhecia todos os picos. Dirigiu-se para o Schreckhorn, que ergue para o céu o dedo gigantesco, polvilhado de neve.
Passou pelos pontos culminantes da estrada e aproximou-se das pastagens do vale onde passara a infância. Era mais transparente o ar: seus pensamentos eram também mais leves. Montanhas e vales resplandeciam de verdura e de flores. Rudy sentia o coração cheio de todos os arrebatamentos da mocidade; as vozes interiores bradavam-lhe:
- Não se envelhece jamais! Goza alegremente a vida. Sê livre como a ave nos ares. Voa para onde te chama o coração!
- Vi og i og i og vi!
E tudo era animação e alegria.
Lá longe, estendia-se o campo - um imenso tapete de veludo verde. Aqui e ali, viam-se semeados chalézinhos escuros. Ouvia-se já o fragor das águas do Luetzinhos. E Rudy tornou a ver as geleiras, seus blocos de cristal cor de esmeralda, e suas fendas escancaradas. Os sinos da capela começaram a repicar, como se quisessem festejar a volta de Rudy, que sentia o coração bater: é que despertava a todas as doces recordações da sua infância. Por um instante desapareceu-lhe do espírito a lembrança de Babette. Pisava agora o mesmo caminho onde, ainda criança, andara oferecendo à venda os chalezinhos recortados pelo avô. Pobre do avô! Lá em cima, por entre os pinheiros, aparecia a sua casinha - mas eram estranhos os que agora moravam nela.
Apareceu um bando de crianças, que ofereciam à venda seus pequenos objetos. Um dos meninos apresentou-lhe uma rosa dos Alpes, que ele comprou logo, vendo naquilo um bom augúrio: já seu pensamento se voltava de novo para Babette.
Tornou a descer rapidamente, atravessou a ponte na confluência dos dois Luetschine. Deixara para trás a região dos pinheiros. Agora via por toda aparte árvores frutíferas; o caminho era ladeado de nogueiras de fresca sombra. Avistou enfim bandeiras que drapejavam ao vento: a cruz branca sobre fundo vermelho, as cores dos suíços, como dos dinamarqueses. Era Interlaken que via na sua frente.
Pareceu-lhe a cidade mais soberba do mundo. Adornara-se para a festa. Não era um amontoado de casas negras, pesadas, maciças e solenes. Compunha-se de chalés alegres, dispostos com cuidado. os mais belos formavam uma rua; eram recém-construídos - não existiam ainda da última vez que Rudy lá estivera.
Cada uma daquelas lindas casas era circundada por uma varanda de madeira esculpida, talhada e recortada com graça. Os mesmos enfeites ornavam as janelas e o beiral do teto, que avançava sobre o jardinzinho que separava o chalé da rua. Para trás, estendiam-se vastos prados, onde pastava rebanhos de vacas, cujas campainhas retiniam ao longe. Fechavam o vale, de todos os lados, altas montanhas; mas uma aberta, por onde se avistava no horizonte a Jungfrau, a Rainha dos Alpes, em todo o seu esplendor.
Mas que multidão de damas e cavalheiros de todos os países! E que belos trajes! E aquele conjunto de suíços e suíças dos diversos cantões, de costumes tão pitorescos como variados - que magnífica aparência apresentava!
As casas estavam decoradas de alto a baixo, com emblemas e sentenças alegres. Que animação reinava por toda a parte! Música por todos os lados - música dos cantos, dos realejos, das bandas ambulantes. E havia ainda exclamações de alegria, os brados das pessoas que chamavam uma pelas outras na multidão. No meio de todo esse ruído, ouvia-se o tiro regular dos carabineiros. E era aquela, para os ouvidos de Rudy, a mais agradável de todas as músicas. De tão encantado, esqueceu-se até de Babette - e era por causa dela somente que tinha ido ali!
Os atiradores acotovelavam-se perto dos alvos; traziam no chapéu uma coroa de folhas de cedro, no meio da qual brilhava o número de ordem de cada um. Rudy entrou logo no grupo. Era o mais hábil, o mais feliz: não falhava uma só vez o ponto negro. E todos perguntavam em roda dele:
- Mas quem é esse caçador estrangeiro, e tão jovem? Fala francês...sem dúvida é de Valais.
- Ele fala igualmente bem o nosso alemão - declaravam outros. - Dizem que quando era criança morou aqui perto, em Grindelwald.
Quanta vida havia naquele rapaz! Tinha os olhos brilhantes, seguro o golpe de vista, firme o braço. É que a felicidade dá coragem, e Rudy já possuía dela bem larga provisão. Logo se viu cercado de um grupo de admiradores. Elogiava-no, cantando-lhe os louvores em altas vozes. Em verdade, Babette quase desaparecera inteiramente do seu espírito.
De repente sentiu uma mão pesada que se apoiava no seu ombro, e uma voz rude de homem disse-lhe em francês:
- É de cantão de Valais, não é verdade?
Voltando-se, viu ele um homem gordo e risonho: era o moleiro de Bex. Escondia, com toda a sua gordura, a gentil Babette, que chegou afinal a sair daquela sombra e adiantou-se para o moço, em quem fixou os belos olhos, negros e vivos. Estava o moleiro encantado porque um caçador do seu cantão fora o melhor atirador, e obtivera os mais belos prêmios. E sentia-se triunfante por isso, como se uma parte daquela honra se refletisse nele.
Decididamente era Rudy um filho mimoso da fortuna. Aqueles por causa de quem fora a Interlaken - e que até quase chegara a esquecer - vinham por si mesmos ao seu encontro. Entabularam logo uma palestra muito cordial. Como a si próprio prometera, era Rudy o vencedor da festa. E vieram os apertos de mão; e também a linda Babette estendeu, de boa vontade, a mão delicada ao moço caçador; ao apertá-la entre as suas, olhou ele de tal modo para a moça, que ela ficou toda corada e cheia de confusão.
Contou o moleiro a grande viagem que tinham feito: falou das cidades que haviam visitado. Tinham andado de diligência, de trem, de vapor.
- Cá por mim - disse Rudy - tomei o caminho mais curto. Passei por cima dos montes. Não há nenhum tão alto que não se possa subir, quando se quer de verdade.
- Sim - disse o moleiro. - Mas a gente pode também quebrar o pescoço; e, na verdade, creio que isso te acontecerá qualquer dia, pois pareces, muito temerário.
- Ora...a gente não cai, quando não pensa em cair- respondeu Rudy.
Os parentes do moleiro, em cuja casa se hospedava, eram também do mesmo cantão dele; convidaram Rudy a entrar, e tomar lugar à sua mesa - convite que o moço aceitou com grande prazer. A fortuna favorecia-o, como faz sempre com aqueles que confiam em si próprios, e dizem:
- Deus nos dá muitas nozes, mas não as abre para nós.
E lá estava sentado, como se fosse da família; beberam à sua saúde, para celebrar-lhe as proezas, e Babette também fez tinir o seu copo contra o dele. Rudy sentia-se completamente feliz. À tardinha foram todos passear na avenida, sob as grandes nogueiras. À vista da multidão e do aperto, Rudy pode oferecer o braço a Babette; e ela o aceitou. Tão grande era a sua alegria, que ele não podia impedi-la de se manifestar, e, para se escusar, explicou que seu bom humor provinha de haver encontrado muitos de seus melhores camaradas. E parecia tão ingenuamente, tão completamente contente, que Babette entendeu que devia aperta-lhe a mão, dando-lhe parabéns.
Iam andando, como um par de antigos conhecidos. Era alegre e muito amável, aquela menina encantadora. Rudy sentia-se encantado ao ouvir-lhe as observações sobre o exagero e o ridículo dos trajes das grandes damas estrangeiras; e ela imitava o seu andar maneiroso. Mas por fim disse:
- Não devemos, contudo, rir delas; há muitas que são excelentes pessoas, amáveis e muito generosas.
E contou que sua madrinha era uma grande dama inglesa, muito importante, que estava em Bex por ocasião do seu nascimento, dezoito anos antes. Dela recebera aquele belo broche de ouro que no momento trazia. Escrever-lhe a madrinha duas vezes, e naquele ano devia vê-la em Interlaken, onde viria com suas filhas - suas filhas solteironas, dizia Babette. Elas não tinham senão trinta anos, as filhas da madrinha, mas Babette tinha dezoito...
E a linda boquinha não parava um instante, e tudo o que ela tagarelava era, para Rudy, da mais alta importância.
Chegou, afinal o momento em que tocava a vez de exprimir o que tinha a dizer: quantas vezes estivera em Bex! Como conhecia o moinho! Quantas veze a vira, sem que, naturalmente, reparasse nele...Como fora por último ainda à casa do moleiro, com a cabeça cheia de pensamentos que devia calar... Verificara que o moleiro e sua filha estavam de viagem; tinham ido para bem longe sim, contudo não tão longe que ele não pudesse alcançá-los, passando por cima dos Alpes.
E contou-lhe tudo isso, e muitas outras coisas. Descreveu a alegria que sentira ao ver-se sentado ao seu lado, pois que fora unicamente por ela que viera a Interladen- por ela somente, visto que não lhe interessava nada aquela festa.
Enquanto assim conversavam, o sol desapareceu por detrás das altas montanhas. A Jungfrau
- Em parte alguma se vê maravilha assim! - disse Babette, contemplando o quadro admirável.
- Em parte alguma! - respondeu Rudy, como os olhos fitos na moça.
Depois, acrescentou:
- Amanhã tenho de partir daqui...
- Vai visitar-nos em Bex - murmurou Babette. - Meu pai te receberá com prazer.
A DAMA DAS GELEIRAS
V. A VOLTA
Quantas coisas tinha Rudy de carregar, quando retomou, no dia seguinte, o caminho da montanha! Recebera de prêmio três taças de prata, uma baixela completa também de prata, e duas carabinas excelentes.
Contudo aquelas peças de valor nada eram a seus olhos, comparadas com as últimas palavras de Babette. Pensava nelas incessantemente. Dir-se-ia que davam asas para escalar as alturas escarpadas. Era áspero o tempo agora: reinava um frio cheio de umidade, e o céu estava cinzento. Corriam nuvens baixas, que estendiam uma espécie de mortalha sobre o cume dos montes, ocultando-lhes os picos nevados. Nenhum rumor alegre, nem canto de passarinhos, nem repique de sinos. Ouviam-se as pancadas regulares do machado dos lenhadores, e o fragor dos pinheiros rolando montanhas abaixo; e depois o estrondo do surdo e monótono do Luetschine, e os assobios lamentosos do vento.
Subitamente apareceu ao lado do caçador uma moça, que ele não vira de onde vinha; subia também a montanha. Tinha nos olhos um poder singular; dir-se-ia que a gente se via obrigada a fitá-los. Eram claros como o cristal, profundos, ou antes, pareciam sem fundo. Rudy que tinha a cabeça cheia da lembrança de Babette, e não pensava senão no amor, perguntou-lhe:
- Tens algum namorado?
- Não, não tenho - disse ela rindo, com ar de quem queria esconder a verdade.
Depois acrescentou:
- Não devemos ir por este lado; vamos pelo caminho da esquerda, que é mais curto.
- Pois sim! Para irmos parar no fundo da fenda? Não conheces bem o caminho, e queres guiar os outros?
---- Eu conheço perfeitamente a estrada que devemos tomar - replicou ela. - Mas sou senhora dos meus pensamentos, enquanto os teus ainda estão presos ao que passa lá no vale. Mas aqui é bom que a gente se lembre da Dama das Geleiras. Os homens acham que ela lhes é funesta.
- Pois eu não tenho medo dela - respondeu Rudy. - Já uma vez teve de me largar, quando era pequenino. E agora, que sou homem, hei de saber escapar-lhe.
Aumentara a obscuridade, começou a chover, e vieram depois rajadas de neve que de vez em quando cegavam o caçador.
- Dá-me a tua mão - disse a moça. - Eu te ajudarei a subir.
- Tu? Tu, me ajudares? - disse ele. - Graças a deus ainda não preciso do auxílio de uma mulher para escalar os rochedos!
E, afastando-se da companheira de caminho, apurou o passo. Assaltou-o então uma tempestade de neve, e o vento entrou a soprar com fúria. e ele começou a ouvir lá atrás as risadas da moça, que cantava árias estranhas. E Rudy pensou que era algum encantamento da Dama das Geleiras; achava-se então bem perto do lugar onde sua pobre mãe caíra com ele.
Afinal foi diminuindo a neve. Rudy olhou para trás e não viu vestígio algum de ninguém; contudo continuava a ouvir os risos e cantos que não pareciam de voa humana. Quando alcançou o vértice, e chegou ao caminho que desce para o Vale do Ródano, avistou do lado do Monte Branco duas belas estrelas que brilhavam no azul do céu. pensou então nos lindos olhos de Babette, e na sua felicidade, e essas ideias consoladoras repeliram para longe a fadiga e o frio que acabava de experimentar.
VI. A VISITA AO MOINHO
- Que coisa soberbas trazes! - exclamou a velha tia. - São objetos que só se veem nas casas dos ricos!
E seus olhos brilhavam, contemplando as peças de prata.
- A fortuna protege-te, Rudy - acrescentou ela. - Vem cá; quero dar-te um beijo, meu querido filho!
Rudy deixou-se beijar, sem mostrar grande alegria nisso.
- Como estás bonito, meu rapaz! - disse ainda a velha.
- Ora! Não me metas essas ideias na cabeça! - disse ele rindo.
Mas desta vez sim, via-se que estava contente.
-É o que digo - tornou a tia - a fortuna te sorri!
- Sim, nisso creio que tens razão - disse ele pensando em Babatte.
Estava impaciente por descer ao vale.
- Já devem estar de volta - disse consigo dali apouco. - Terão voltado, provavelmente, há dois dias, segundo o cálculo que fizeram. Não posso esperar mais: tenho de ir a Bex.
E foi; e encontrou já de regresso, o moleiro e a filha, que o receberam muito acolhedoramente. Traziam-lhe recados dos parentes de Interlaken.
Babatte, contra o seu costume, quase não falou; mas os olhos falavam e isso bastava a Rudy. De ordinário era o moleiro quem tomava a palavra. Estava habituado a que todos achassem graça nas suas pilhérias. Não era rico o moleiro? Mas desta vez preferiu escutar as histórias de caçadas de Rudy. Contou este os trabalhos, os perigos que esperam os caçadores de camurças nos picos dos Alpes, quando eles tem de deslizar sobre o parapeito de neve que endureceu contra a rocha, ou atravessar um precipício sobre um tronco de pinheiro vacilante, que a tempestade lançou entre dois rochedos.
Animava-se o moço, a essa narração. Tinha na fisionomia uma expressão de intrepidez; os olhos se iluminavam, quando falava da vida do caçador, das manhas das camurças, dos seus saltos perigosos, ou dos aludes terríveis, do furacão, do fochn, que arrasta tudo na passagem. Bem viu ele que com aquelas descrições ia cada vez ganhando mais terreno no espírito do moleiro, pois que o seu maior prazer era ouvir falar das águias e dos abutres.
- Não muito longe daqui, em Valais - continuou Rudy - há um ninho de água construído com habilidade, debaixo de um rochedo saliente. Agora há lá um filhote, mais é impossível que alguém, se apodere dele. Um inglês, ofereceu-me, há dias, um punhado de ouro, para que eu lhe levasse a aguieta viva; mas tudo tem limites: seria loucura tentá-lo.
E, enquanto o caçador falava, corria o vinho. Era meia-noite quando se despediu, apareceu-lhe, ainda assim que saíra muito cedo. E, enquanto pode avistar da casa através da folhagem, não deixou de olhar para trás.
Pouco depois o gato da sala saiu para o telhado, pela claraboia, e encontrou o gato da cozinha, que costeava a goteira. E disse-lhe:
- Sabes da novidade? Tratou-se o casamento em segredo. O pai de nada sabe. Rudy e Babtee estavam de patas dadas debaixo da mesa. Ele me pisou três vezes nas patas dianteiras. Mas eu não miei: isso chamaria a atenção.
- Pois se fosse comigo, eu não me constrangeria tanto - disse o outro.
- O que é permitido na cozinha - replicou o primeiro - não fica conveniente na sala. É preciso que cada um conheça o seu lugar. Mas eu bem queria saber o que dirá o moleiro, quando souber da história!
Era isso o que Rudy também desejava saber. Mas ficar muito tempo esperando, isso não! Nem por sombra! Também, poucos dias depois, rolava o pesado ônibus de Sion para Bex e lá ia sentado o belo Rudy, cheio de coragem, como sempre, e regozijando-se de antemão com o consentimento que o moleiro lhe ia conceder naquela mesma noite.
Mas quando anoiteceu, e o ônibus retomou o caminho de Sion, Rudy lá estava de novo, e o gato da sala corria desabaladamente em busca do companheiro, para lhe contar a novidade.
- Escuta! - gritou ele. - O moleiro sabe de tudo! A história teve um fim divertidíssimo! Rudy veio há pouco. E ele e Babette estiveram muito tempo cochichando no corredor, diante da porta do gabinete do pai. De vez em quando eu me esfregava nas pernas de um e de outro, mas eles pensavam em coisas muito diferentes e não se importavam comigo. E Rudy disse:
"- Vou falar já com teu pai. É assim que deve proceder um homem honesto.
" - Queres que eu vá contigo? - perguntou Babette. - Minha presença te dará coragem.
"- Não me falta coragem - replicou Rudy - mas vem comigo: diante de ti teu pai será amável, dê ou não dê o seu consentimento."
- Depois - continuou o gato da sala - Rudy me pisou com força na cauda. Cá entre nós, acho-o muito desajeitado, aquele camponês! Ponho-me a miar, mas nem ele nem Babette tinham ouvidos para me ouvir. Abrem a porta e entram, e eu na frente! Salto para uma poltrona, para não me expor a mais algum mau tratamento - pois não sabia como iria Rudy se sair daquela. Ah! Mas então foi o que o moleiro se enfureceu! E como batia o pé, e gritava:
" - Rua daqui! Vai-te para as tuas montanhas! Vai para as tuas camurças!"
- E nisso ele tem razão - continuou o narrador. - Que Rudy dê caça às cabras monteses, ainda bem. Mas à nossa Babette...não! Menos essa!
- Mas enfim, que disseram eles? - indagou o gato da cozinha.
- O que disseram? Ora, o que se costuma dizer quando se pede a mão de uma moça:" Eu a amo e ela também me ama; quando há leite para um, há para dois, "etc...etc. Mas o nosso amo replicou:
" - Minha filha está colocada muito acima de ti. Como ousas pensar em atingir o bloco de ouro em que ela está posta?
" - Não há nada tão alto que não possamos alcançar, quando o queremos deveras.
" - Mas ele é mesmo teimoso, esse rapaz! No entanto não pudeste chegar até a aguieta; e Babette está ainda mais alto que ela!
" - Pois eu hei de obter ambas! - afirmou o camponês.
" - Bem: eu te darei Babette, se tu me trouxeres a aguieta viva" - respondeu o nosso amo.
- E ria tanto, que lhe vieram lágrimas aos olhos. E continuou:
- Enquanto espero, Rudy, muito obrigado pela tua visita; mas se voltares amanhã, não encontrarás ninguém em casa. Boa viagem, Rudy!"
E o gato de dentro continuou:
- Babette também disse adeus ao seu Rudy - coitadinha! - com um ar tão triste, como um gatinho que chora pela mãe. Mas Rudy disse-lhe:
" - Palavra é palavra, e um homem não se desdiz jamais. Não chores, Babette; eu hei de trazer a aguieta!
" - Espero que quebre o pescoço - disse o moleiro - e que assim nos vejamos livres de ti!"
E o gato da sala, dizendo isso, comentava a seu modo:
- É o que eu chamo expulsar uma pessoa a pontapés! E Rudy se foi. Babette não se mexe da cadeira, e chora sem cessar. O moleiro cantarola uma péssima canção alemã, que aprendeu agora na viagem. Eu...eu vejo tudo sem me importar, afinal, com o que se passa: de que serviria?
- Serviria, ao menos, para teres em que pensar, enquanto estás preguiçando, estendido na poltrona - disse o outro.
VII. O NINHO DA ÁGUIA
Ouvia-se ressoar na montanha uma voz que cantava uma ária alegre; devia ser pessoa de bom humor, e cheia de coragem: era Rudy.
Foi procurar seu amigo Vesinand, a quem disse:
- Preciso que me ajudes - tu e Ragli - a atirar a aguieta empoleirada lá em cima, debaixo da ponta do rochedo.
- Não quererás ir primeiro arrancar os olhos à Lua? - perguntou o camarada. - Palavra! Que boas brincadeiras tens, de vez em quando!
- Alegre, sim, sou mesmo, principalmente dede que ando pensando em casar. Mas isto é sério: preciso do filhote da águia, e já te explico por quê.
E contou aos amigos tudo o que se passara.
- És um camarada temerário(cheio de audácia; arrojado; imprudente.)
demais - disseram eles. - O que pretendes é simplesmente impossível: vais quebrar o pescoço.
E a resposta de Rudy foi esta:
- A gente só cai, quando tem medo de cair.
Ao meio-dia puseram-se a caminho; levavam varas compridas, escada e cordas. Atravessaram os matos, andaram pelo meio das macegas, saltaram pelos rochedos, subiram, subiram, subiram , até a noitecer. Ouvia-se o estrondo da torrente que se despenhava no vale e o ruído da cascatas da montanha. Aproximaram-se do penhasco onde se achava o ninho: era um rochedo a pique.
A noite estava escura; o céu nublado. Os homens achavam-se metidos em uma anfractuosidade,(Cavidade profunda e irregular:) entre duas paredes de rocha. Dali mal se divisava uma réstia de luz, vinda de cima.
Finalmente, após mil dificuldades, eles chegaram à beira de um precipício, em cujo fundo mugia uma torrente. Os três companheiros iam silenciosos. Esperavam que raiasse o dia: nessa hora, a mãe da aguieta deixava o ninho para ir caçar. Era preciso matá-la antes de pensar em se apoderar do filhote. Rudy, com um joelho em terra, todo encolhido, estava ali imóvel, como se fizesse parte do penhasco onde se apoiava. Apontava a carabina para a cavidade do rochedo em que se achava o ninho, sem tirar os olhos daquele ponto.
Longo tempo esperaram os caçadores. enfim ouviram, vindo do alto, um grito agudo, uma espécie de silvo estridente. A escassa luz que vinha de cima foi obscurecida por alguma coisa que parecia nadar no ar. Era a águia negra que saía.
Retiniu um tiro. As enormes asas da rainha das aves bateram no ar um instante, depois ficaram distendidas, imóveis: o animal, ferido de morte, descia lentamente como se fosse sustentado por um pára-quedas, para o precipício. Afinal ouviram os estalido dos arbusto que ia quebrando na queda.
Puseram-se então ao trabalho, e com empenho, os três moços. ligaram as três escadas mais compridas, julgando que chegariam ao alto. Fixaram-nas assim amarradas à beira do rebordo, a poucos passos do precipício, no último ponto em que o pé ainda podia apoiar-se com segurança. Mas nem assim elas alcançavam o vértice. Do ponto que atingiam até o ninho o rochedo era liso como uma parede. Que fazer? Depois de muita reflexão e alguma discussão, resolveram os caçadores transportar para cima mais duas escadas e de lá deixá-las descer pelos ares, para reuni-las então às outras três. Levaram-nas pois para o cimo, com mil dificuldades, e ligaram uma à outra com cordas muitos forte. Enfim, lá se balouçam as escadas acima do precipício, e descem abaixo do rochedo que abrigava o ninho. Rudy desceu por elas lentamente, e em um instante estava no extremo inferior.
A manhã era glacial; do abismo sombrio subiam baforadas de nevoeiro espesso. Rudy parecia uma mosca, balouçando-se em uma haste de palha, agitada pelo vento, ou antes um passarinho que constrói o ninho na beirada de uma alta chaminé. Mas - mosca e passarinho podem voar, e Rudy só que podia fazer era quebrar o pescoço. O vento, que começava a se levantar, fazia oscilar as escadas. Do fundo do precipício, como se fosse de propósito para aturdir, vinha o sinistro fragor das águas que esguichavam dos palácios subterrâneos da Dama das Geleiras.
Sem se perturbar, Rudy imprimiu às duas escadas um movimento de vaivém. Imitava a aranha que, suspensa na ponta de um longo fio, se balança no ar antes de saltar sobre o inimigo. Na terceira oscilação apanhou a extremidade das três escadas plantada embaixo, e, com mão robusta e firme, ligou-as às outras duas. Ei-las pois ligada, as cinco escadas, erguidas direitas contra o rochedo: mas o pior é que elas não apreciam mais sólidas que o junco que se curva ao sabor do vento.
Restava agora a parte mais perigosa da empresa: era preciso subir por aqueles degraus, sentir-se vacilar acima de um abismo de centenas de metro de profundidade. Mas Rudy guardara na memória as lições do gato, o seu primeiro mestre. A Vertigem, que esvoaçava no ar, por detrás dele, por mais que se empenhasse, estendendo os braços como um polvo, para o apanhar, nada conseguiu. Rudy nem sequer se apercebeu da sua presença.
Já ele chega ao topo da escada, bem perto do ninho. Pode vê-lo, tocá-lo com a mão - nada mais.
Sem a menor hesitação, tateia os galhos de arbustos grossos que formam o ninho da águia. Encontra um, resistente e sólido; segura-o lança-se de um salto. Ei-lo agora com a metade do corpo metida na cava do rochedo.
Entra-lhe pelo nariz e pela garganta um odor infecto de animal morto. Lá estão, num monte, restos apodrecidos de cordeiros, de camurças, de aves de toda a espécie. E a Vertigem sopra-lhe no rosto aquele mau cheiro, para o perturbar. E lá, do fundo do abismo, a própria Dama das Geleiras em pessoa dardeja-lhe olhares ardentes. Parecia antiga cabeça da Medusa, que lhe dizia com feroz alegria:
- Apanhei-te!
Rudy não a via. Avistara, lá no fundo do ninho, a aguieta, já forte e temível, posto que ainda não soubesse voar. Com o olhar fixo na ave, ele se segurou com todas as forças ao ramo, e com a outra mão atirou sobre ela um nó corredio, que trouxera já preparado. A corda enrolou-se nas patas da aguieta; Rudy puxou-a, atirou-a para as costas e deixou-a escorregar, de sorte que a jovem ave de rapina ficasse separada dele por um bom pedaço da corda, que amarrou ao redor do corpo. Segurando-se depois ao galho com ambas as mãos, tratou de puxar a escada com os pés, apanhando-lhe o montante com um movimento brusco, seguro. Dissera-lhe o gato:
- Mantem-te firme, não penses que vais cair, e não caíras!
Lembrou-se da lição; não abandonou a presa e desceu sem temor.
Ecoou então um canto de vitória, entoado por uma voz forte. Rudy estava de volta sobre o rochedo sólido, com a bela aguieta aprisionada e bem viva.
VIII. AS NOTÍCIAS DO GATO DA SALA
- Aqui está o que o senhor queria! - disse Rudy, entrando em casa do moleiro e depositando no chão um grande cesto.
Tirou-lhe a tampa e no fundo do cesto brilharam dois olhos amarelos, cercados de negro: parecia lançar chamas! Era um olhar feroz, cheio de rancor. O animal tinha o bico aberto, pronto para a dar bicadas. A través da penugem do pescoço viam-se-lhe as veias entumescidas, cheias de sangue agitado pela raiva.
- O filhote da águia! - gritou o moleiro.
Comovida, Babette soltou um grito. Cravou os olhos em Rudy, depois na aguieta; voltou-se de novo para o moço, e ficou a encará-lo, sem poder mais desviar dele o olhar. Afinal o moleiro disse:
- És um rapaz que não sabe o que é medo!
- E o senhor é conhecido por homem de uma só palavra - replicou Rudy. - Cada um tem as suas caraterísticas.
- Mas como foi que não quebraste o pescoço, nem os braços e as pernas? - indagou o moleiro.
- Segurei-me com firmeza. E seguro Babette com a mesma firmeza.
- Pois sim; mas é preciso que antes disto te deixem tomá-la! - retrucou o moleiro.
Mas ria ao falar assim, e isso era bom agouro. E Babette bem o sabia.
- Vamos tirar a ave do cesto - continuou o moleiro
- Não é agradável de ver a sua fúria. Mas como conseguiste apanhá-la?
Teve Rudy de narrar toda a aventura; escutando-o o moleiro ia arregalando cada vez mais os olhos. Por fim disse:
- Com tamanha coragem e tanta sorte, poderias sustentar três mulheres!
- Obrigado pelo cumprimento, obrigado: tomo nota dele.
- Hum! Sei onde queres chegar, mas ainda não obtiveste Babette!
E o moleiro dava pancadinhas familiares no ombro do jovem caçador.
O gato da sala foi dizer ao da cozinha:
- Adivinha só o que aconteceu agora mesmo! Rudy trouxe o filhote da águia, e trocou-o por Babette. Beijaram-se na presença do pai: é o mesmo que fossem noivos. O velho não bateu mais com o pé...agora tem patas de veludo: encolheu as unhas. Tirou sua soneca à hora da sesta, deixando que os dois jovens ficassem a trocar galanteios. E eles tem tantas coisas a dizer um ao outro, que certamente não acabarão antes do Natal.
De fato chegou o Natal e Rudy e Babette sempre tinham assunto para conversar horas inteira.
O vento fazia girar as folhas mortas e os flocos de neve, em turbilhões. A Dama da Geleiras estava em seu soberbo palácio, sentada no trono, e vestida com os seus mais belos trajes. Da beira dos rochedos pendiam, suspensos, blocos de gelo enormes, do tamanho de elefantes. Sobre os pinheiros polvilhados de neve, desenhavam-se guirlandas de cristais fantásticos, que rutilavam, como imensas fieiras de diamantes.
A Dama das geleiras lançou-se, nas asas do vento, e foi estabelecer seu império nos vales mais abrigados. Todo o Bex se cobriu de neve. A passar na casa do moleiro, a Dama avistou Rudy, que segurava a mão de Babette. Deteve-se e prestou ouvido: ouviu dizer que o casamento seria no verão. E ouviu isto não uma, mas cem vezes, porque os noivos não falavam de outra coisa.
Reapareceu o sol: com ele voltou a rosa dos Alpes. Babette mostrava-se alegre, risonha, encantadora com a jovem primavera.
- Senhor! - dizia o gato da sala. - Como podem aqueles dois ficar assim constantemente sentado ao lado um do outro? Os eternos miados daqueles noivos acabarão por me aborrecer de verdade!
IX - A DAMA DAS GELEIRAS
Com a chegada da primavera, tinha brotado a folhagem densa das belas alamedas de castanheiros e de nogueiras, que se estendiam costeando o Ródano, desde a ponte de St. Moritz até as margens do Lago de Genebra. Ali o rio é uma torrente impetuosa: referve em canhões, como no sítio onde brota da imensa geleira, morada favorita da Dama das Geleiras.
Levada pelos ventos, transporta-se ela para um dos picos mais altos dos Alpes; senta-se lá, ao sol, em um leito de neve, e lança olhares penetrantes para os vales. Avista os homens, atarefados, movimentando-se como formigas, no sopé de um monte.
- As Filhas do Sol - diz ela com ar desdenhoso - vos chamam Inteligências! Pequeninos vermes, é o que sois! Um único alude é quanto basta para vos esmagar - a vós, vossas casas e vossas aldeias!
Ergueu a cabeça altaneira. Os olhos, que despedem a morte, abarcam com um olhar o vasto horizonte. Do vale vinha o estrondo dos rochedos que saltavam, abalados pela explosão da pólvora. Pesadas máquinas rolavam lentamente. Eram os trilhos de ferro que iam sendo assentados. Era um túnel que ia sendo escavado sob os Alpes.
- Lá estavam eles, fazendo as toupeiras - disse a Dama altiva. - Cavam trincheiras subterrâneas. E é com sobressaltos de espanto que ouvem o ruído de suas minas; e esse rumor mal se diferencia de um tiro. eu, quando mudo meus palácios de lugar, é com fragor do trovão! Do fundo do vale sobe uma fumaça branca que vai avançando, avançando; é o vapor de uma locomotiva. Dir-se-ia um penacho imenso, ornando a cabeça de uma longa serpente. E o comboio vai deslizando, mais rápido que uma flecha.
- Julgam-se os senhores da Terra - dizia a Dama das Geleiras. - Estão cheios de orgulho, porque são Inteligências. Mas o poder pertence às forças da natureza.
Ri, ao dizer essas palavras. Ri, e o eco de sua risada retine ao longe, e abala o ar. E as pessoas do vale dizem:
- É um alaude que rola!
As filhas do sol entoam uma canção que celebra o espírito do homem: " Este espírito doma o mar, desloca as montanhas, atulha os precipícios e torna-se senhor das forças da natureza."
E enquanto elas cantam, um trem de ferro percorre o espaço, lá ao longe.
Olha-o a Dama das Geleiras com um olhar zombeteiro:
- Olhem só as Inteligências! Estão à mercê da força do vapor que as arrasta. Na frente, vai o condutor de pé, altivo como um rei. Os outros estão amontoados nos carros. Alguns dormem tranquilamente, tão seguros estão de que o dragão de vapor não os leva à ruína!
E ri de novo. E as pessoas do vale dizem:
- É um alude que rola!
- A cruel Dama das Geleiras podem fazer o que quiser: não nos separará!
Assim falam Rudy e Babette, que estão entre os viajante do trem.
- Olhem só aquele par! - grita a Dama. - Eu tenho esmigalhado rebanhos de camurças, milhares de pinheiros, rochedos mais altos que campanários - como não hei de ter mão nas suas pretensas Inteligências? Aquele par, principalmente, que me desafia, hei de aniquilá-lo!
E a Dama ri pela terceira vez.
- Ainda mais aludes! Que haverá então lá em cima! - repetem os moradores do vale, olhando para os vértices que desabam.
x. A MADRINHA
Em Montreux, perto de Clarens, nas margens encantadas do Lago de Genebra, morava a madrinha de Babette, a grande dama inglesa, com suas filhas e um jovem parente. Ela viera há pouco da Inglaterra; mas já o moleiro fora visitá-la, e participar-lhe o casamento da afilhada. Falara de Rudy, da festa do tiro, da aguieta. Contara, enfim, toda a história do noivado, que interessara vivamente o auditório. Todos estavam loucos por Babette e Rudy, até pelo moleiro. E convidaram os três para irem passar um dia em Montreux.
Toda aquela costa do lago já foi decantada pelos poetas. Ali. à beira daquelas águas de um azul transparente, ia Byron sentar-se à sombra das nogueiras; ali escrevia ele seus magníficos versos, sobre o prisioneiro encerrado outrora no sombrio Castelo de Chillon. Mas além, sob as amplas sombras de Clarens, Jean-Jacques Rousseanu passeava, pensando em Heloísa. Um pouco para trás, a pouca distância do ponto onde o Ródano se precipita no lago, achava-se uma ilhota tão pequenina, que da costa se confunde com uma barca. Há cem anos não era mais que um rochedo. Uma bela dama dos arredores mandou levar terra para a ilhota e plantar três acácias, que hoje a cobrem toda a sua folhagem.
Babette achou o sítio encantador. Para ela não havia lugar mais belo em toda aquela magnífica paisagem.
- Como há de ser agradável aquele pequenino paraíso! - dizia ela.
Quisera desembarcar ali; mas o trem não parou e foi deixar os viajantes em Vernex. Foram andando por entre os muros caiados, queimados pelo sol que cercam os vinhedos de Montreux. Diante das cabanas dos camponeses, erguiam-se grupos de figueiras, loureiros e ciprestes. A casa da madrinha ficava a meia encosta.
Foram recebidos com calorosa cordialidade. Era a madrinha uma senhora alta, de ar sorridente e gracioso; na infância, devia parecer-se com uma anjo de Rafael: agora, com os cabelos prateados, dir-se-ia uma figura de santa. As filhas eram moças altas e esbeltas, elegantes e trajadas à última moda. O jovem primo estava vestido de branco, da cabeça aos pés; os cabelos eram louros, tirando a ruivo. Mostrou-se, desde o princípio, cheio de atenções para com Babette.
Na sala, sobre uma grande mesa, achavam-se gravuras e belos álbuns, ricamente encadernados, mas ninguém pensava em examiná-los. As janelas da sacada estavam abertas, e via-se o magnífico lago em toda a extensão. era tão tranquila aquela toalha líquida, que as montanhas da Saboia, com suas aldeias, seus matos, seus picos nevados nela se refletiam como em um espelho.
Rudy, sempre tão ousado, tão alegre, sentia-se pela primeira vez na vida fora do seu elemento. Caminhava sobre o parquete encerado como se andasse por sobre ervilhas. Como lhe parecia longo o tempo! Como o atormentavam aquelas maneiras inglesas, elegantes e compassadas!
Foi com um suspiro de satisfação que acolheu o momento de sair para um passeio. Mas, novo aborrecimento: andava toda aquela gente tão devagar, que ele podia dar três passos para diante, depois dois para trás, e nem assim ficaria atrasado.
Foram visitar o velho e sombrio Castelo de Chillon, todo cercado pelas águas do lago. Viram a prisão, o aparelhamento de tortura, o cepo para as execuções, a trapa por onde eram lançados os condenados, dizem sobre pontas de ferro, para dentro da água. Byron tornou célebres aqueles lugares no mundo da poesia: mas Rudy sentia-se ali quase tão desgraçado como se fosse um prisioneiro. Encostou-se a uma janela e olhou a ilhota pequenina e solitária, a das três acácias. Lá sim, desejaria estar longe de toda aquela sociedade que o importunava, a ele, o caçador rústico, com a loquacidade e as maneiras da gente da cidade.
Babette, ao contrário, estava muito satisfeita, e divertia-se maravilhosamente. Disse-o na volta, a Rudy, e acrescentou que o jovem inglês declarara que era uma perfeita moça da sociedade.
- E ele é um perfeito imbecil! - replicou Rudy bruscamente.
Dizia, pela primeira vez, uma palavra que desagradou a Babette. o jovem cavalheiro lhe dera uma lembrança, um lindo volumezinho do " Prisioneiro de Chillon", de Byron, traduzido para ao francês.
- Pode ser interessante- disse Rudy. - Mas agora o casquilho tão bem penteado que te ofereceu o livro...esse eu não posso suportar.
- A mim me pareceu um saco da farinha sem farinha- disse o moleiro, rindo gostosamente da própria pilhéria.
Mas Rudy riu dela ainda mais que ele, e achou que o moleiro era um homem de muito espírito.
XL. O PRIMO
Quando alguns dias depois, Rudy foi ao moinho, lá encontrou o jovem inglês. Haviam-no convidado a ficar para o jantar. Babette tinha preparado as trutas; cercara-as de raminhos de salsa, para lhes dar melhor aparência.
- Isso era bem inútil...- pensava Rudy. - Que faz aqui esse estrangeiro, e por que Babette o cerca assim de honras?
Estava enciumado. Babette divertia-se vendo-lhe o mau humor. Conhecia-lhe as excelentes qualidades, e não lhe desagradava nada conhecer também seus fraquezas. Pôs-se a brincar com o coração de Rudy - e era ele, no entanto, o ídolo de sua alma: no amor de Rudy se concentrava toda a sua felicidade aqui na terra. E contudo, quanto mais obscurecia o rosto do caçador, mais risonho se mostrava seus olhos! Sim! De boa vontade amimaria mais ainda o inglês, se tivesse certeza de que Rudy fugiria dali cheio de raiva, porque veria então quanto ele a amava!
Não era de moça sensata o que ela estava fazendo, não; mas Babette tinha apenas dezenove anos e não refletia, senão havia de ver que semelhante garridice não ficava nada bem à noiva de Rudy.
Retirou-se o cavalheiro, mas voltou à noite, para andar vagando em roda do moinho. Chegou ao regato que fazia girar a roda. Vendo uma luz que brilhava no quarto de Babette, foi andando naquela direção. Saltou o riacho e quase caiu: conseguiu porém, equilibrar-se todo molhado e sujo. Recomeçou a andar, e chegou a uma velha tília que ficava muito perto das janelas de Babette. Não sabia subir como Rudy, mas enfim conseguiu encarapitar-se na árvore. Uma vez lá, pôs-se cantar uma queixa de amor. Julgava-se possuidor de uma voz melodiosa como a do rouxinol, mas seu canto não era mais agradável que o de um mocho.
Ouviu-o Babette, e ergueu a cortinha para ver o que era. Avistou entre os galhos de tília um homem todo vestido de branco; percebeu, é claro, que não era nenhum rapaz do moinho, mas o seu admirador, o jovem inglês. Estremeceu, de medo e de cólera; apagou a lâmpada e fechou solidamente a janela, deixando o jovem maluco continuar seus gorjeios, e dizendo consigo:
- Que coisa terrível não seria, se Rudy estivesse no moinho!
Ora, ele lá não estava, é verdade; mas era muito pior. Também ficara pelos arredores. Ouvira a gritaria do inglês. Correra para lá e agora ela ouvia seus brados de cólera, lá embaixo da árvore.
- Vão-se bater! Vão-se matar!
E ela abriu de novo a janela, chamou Rudy e pediu-lhe suplicou-lhe que fosse embora.
Mas ele não quis atender ao seu pedido.
- Eu exijo - disse ela.
- Pois bem, queres que eu parta? Era então combinação! Não te envergonhas disso, Babette?
- É indigno o que estás dizendo, Rudy, e eu te detesto! - gritou ela. - Vai-te, vai-te daqui!
E desatou a chorar.
- Não mereço esse tratamento - dizia ele, muito irritado.
E foi-se dali, com o rosto em brasa, e o coração ardendo em furor.
Babette atirou-se no leito, soluçando e se lamentando:
- Eu, que te amo tanto, Rudy! Como podes acreditar que sou capaz de semelhante coisa?
E, a esse pensamento, sentiu-se arrebatada de cólera tremenda. E isso foi bom, porque a não ser assim, o desgosto a teria devorado.
XII. AS POTÊNCIAS FUNESTAS
Rudy voltou pelo caminho das montanhas, pelos campos de neve, onde reina a Dama das geleiras. Vai subindo sempre. O ar vai ficando cada vez mais vivo e mais fresco, mas nem assim se acalma o caçador. Passa perto de um belo tufo de rosas dos alpes cercadas de gencianas azuis; com a coronha da espingarda, quebrou, despedaçou as pobres flores.
Avista de repente duas camurças; brilham-lhe os olhos, os pensamentos tomam agora novo rumo. Sobe, para tê-las ao alcance da carabina; avança com precaução, sem fazer ruído. As camurças andam ao acaso, sobre a neve. Ele apresta a espingarda. De repente sente-se envolvido pelo nevoeiro, e nada mais vê. Dá alguns passos e encontra uma muralha de rocha. E começa a chover desabaladamente.
Agitava-o violenta febre; tinha a cabeça em fogo, o corpo gelado. Pegou no cantil - estava vazio: esquecera-se de enche-lo antes de sair do moinho. Rudy sentia-se mal, ele, que nunca adoecera, que não sabia o que era doença. Vencido pela fadiga, só desejava estirar-se no chão e dormir, mas a água cai do céu em torrentes.
Tenta recuperar-se, para procurar o caminho. As coisas dançam danças estranhas diante dos seus olhos. De repente avista, contra o rochedo, um chalé muito lindo, que parecia recém-construído: não se lembra de tê-lo visto jamais. À porta está uma jovem parecida com Annette. a filha do mestre-escola, aquela com quem dançara uma vez. Não! não é Annette. Contudo, já a viu em alguma parte; talvez fosse em Grindelwald, na noite em que voltava da festa dos atiradores.
De onde vens? - perguntou ele.
- De parte nenhuma- respondeu a moça. - Estou em minha casa, guardando meu rebanho.
- Teu rebanho? Aqui não há pastagens, não há mais que neve e rochas.
- Sim? Como conheces estes lugares! - disse ela rindo. - Pois olha: lá para aquele lado há uma bela campina, e é lá que pastam as minhas cabras. nem uma só se perde. O que é meu comigo fica sempre.
- Pareces bem ousada.
- E tu também - retrucou ela.
- Tens aí um pouco de leite? Estou com uma sede horrível!
- Tenho coisa melhor que leite. ontem passaram aqui alguns viajantes, e esqueceram-se de uma garrafa de vinho - um vinho como nunca provaste, certamente. Eu não tomo vinho; vou dar-te a garrafa: é para ti.
E ela pegou, de fato, em uma garrafa, encheu uma tigela de vinho e ofereceu-a a Rudy.
- Que bom! - exclama ele, depois de beber. - É verdade: nunca provei vinho tão gostoso, nem tão forte.
Chamejam-lhe agora os olhos; sente o sangue correr pelas veias como fogo; dissiparam-se -lhe a cólera e o desgosto. Voltou-lhe toda a alegria antiga, exuberante e sem freio.
- Mas és mesmo a linda Annette! - exclamou ele. - Não te lembras de mim?
- Sim, sim - disse a jovem. - Mas quero que me dês esse anel que levas no dedo.
- Meu anel de noivado!
- É justamente por isso que o quero para mim.
Encheu de novo a tigela de vinho e chegou-a aos lábios do caçador. Bebe-o moço, e sente que uma vida intensa se espalha por todo o seu ser. Parece-lhe agora que o universo inteiro lhe pertence. afinal, diz lá consigo:
- De que serve a gente se encher de cuidados? É melhor gozar a vida, é melhor ser feliz. A verdadeira felicidade é a alegria.
Olhou de novo para o moça. Era mesmo Annette. Um instante depois não era mais Annette; também não era o fantasma que lhe aparecera perto de Grindelwald. Ali estava uma jovem fresca e clara, como neve recém-caída do céu, graciosa como um ramalhete de rosas dos Alpes, esbelta e leve como uma camurça jovem. Rudy mergulhou o olhar nos olhos maravilhosamente claros da donzela. E que sucedeu ao moço caçador? Como descrever uma sensação inexprimível? Ele se sentiu descer, descer, descer, cada vez mais baixo, no abismo profundo de gelo onde reina a morte. Muralhas imensas, que pareciam feitas de cristal esverdeado, refletiam uma luz zulada. Milhares de gotas d'água caíam, fazendo uma música sinistra. Lá estava a Rainha da geleiras. Deu um beijo na fronte de Rudy, e ele sentiu tomado, dos pés à cabeça, de fio mortal. Soltou um grito de dor, cambaleou e caiu. e tudo escureceu.
Mas tare voltou a si. Compreendeu que tinha sido joguete das potências funestas. A moça se sumira, sumira-se o chalé. Só via neve por toda a parte. Estava molhado até os ossos, e tremia de frio. E o anel de noivado, que Babbete lhe dera...também desaparecera.
Pôs-se a procurar o caminho, mas um nevoeiro espesso e úmido cobria a montanha; rochedos passavam a seu lado, rolando com enorme fragor. Espiava-o a Vertigem, que o julgava já exausto de forças. Se tivesse caído, estaria perdido, de fato; mas ainda desta vez ele devia escapar ao perigo
No moinho, Babette continuava abatida, desolada sempre lavada em lágrimas. Já há seis dias Rudy não aparecia - ele, que tinha tantas faltas de que se penitenciar, ele, que devia ir implorar o seu perdão, ele, a quem ela amava acima de tudo!
XII. NA CASA DO MOLEIRO
- Mas outra embrulhada entre os humanos - disse o gato da sala ao da cozinha. - Está agora tudo acabado entre Rudy e Babette. Ela chora lágrimas ardentes, e ele sem dúvida, já nem pensa nela.
- Pois então faz muito mal - retrucou o da cozinha.
- De acordo; mas isso não me preocupa nem um instante. Babette que case, se quiser, com o homem dos bigodes ruivos! É verdade que também ele não voltou mais ao moinho, desde aquela noite em que pretendeu trepar, como nós, ao telhado.
Durante aqueles dias tão compridos, Rudy refletia no que lhe sucedera naquela noite, na montanha. A febre fizera-o delirar. tivera uma visão? Não chegava a discernir o que tinha então sentido.
Continuava a condenar Babette; mas fizera também seu exame de consciência. Rememorava a sinistra tempestade, a tormenta furiosa que lhe agitara o coração. Deveria confessar à noiva os sombrios pensamentos que o tinham dominado naquele dia? De fato, perdera o anel que lhe dera. Tê-lo atirado longe, em um acesso de cólera? Essa ideia não lhe saía da cabeça, e foi o que conduziu o coração do moço caçador para a noiva. E ela? Ela poderia de sua parte, confessar todas as suas culpas ao noivo? Sentia o coração despedaçar-se, à lembrança das doces palavras que dela tinha ouvido. Tinha-a diante dos olhos, constantemente, cheia de graça e de alegria confiante. E esses pensamentos foram como os raios do sol, quando transpassam uma nuvem escura.
- Ela tem de me confessar tudo - disse consigo.- É preciso que se justifique!
Dirigiu-se pois o moinho. Vieram as explicações, que foram longas, e eis aqui de que modo terminaram: Rudy fora um malvado, um pecador, ousara duvidar da fidelidade de Babette, e seu procedimento era abominável! Que falta de confiança, que violência! Era o bastante para torná-los a ambos infelizes para o resto da vida, Sr. Rudy!
E ele ouviu um sermão severo da boca de Babette, que parecia linda, naquele papel. Em um ponto, contudo, deu ela razão ao noivo: aquele inglês era mesmo um tolo, um vaidoso, um namorador ridículo. E ela declarou que ia deitar ao fogo o livro que ele lhe dera, para que nada mais lhe viesse recordar nunca semelhante basbaque.
- Tudo já se remediou - disse o gato da sala ao seu camarada da cozinha. - Rudy voltou. Explicaram-se. É que ambos se compreendem, e, lá no seu entender, nisso se baseia a suprema felicidade.
- Pois olha à noite, enquanto estou à espreita dos ratinhos - contou o outro - ouço-os dizer que a suprema felicidade consiste em comer vela e ter uma provisão de carne deteriorada. A quem dar crédito - aos ratos ou aos namorados?
- A nenhum - disse o gato da sala. - É sempre o mais seguro.
A suprema felicidade, esperavam-na Rudy e Babette para breve. Aproximava-se o dia do casamento. Não se celebraria ele nem na igreja de Bex, nem na casa do moleiro. A madrinha pedira que se realizasse na linda igrejinha de Montreux, e que fosse festejado em sua casa. O moleiro concordara com a proposta; sabia bem que belos presentes, que dote reservava a madrinha ao jovem casal, e achava que valia a pena fazer-lhe a vontade.
O primo voltara para a Inglaterra.
Marcou-se o dia. Na véspera, ficariam todos em Villeneuve, e tomariam ali o trem que partiria bem cedo para Montreux. E assim as filhas da madrinha poderiam ajudar Babette a se revestir de seus belos ornamentos.
- Tudo isso é muito bom - disse o gato da sala.- Mas espero que no dia seguinte haja um banquete aqui em casa. Senão, não soltarei um só miado para lhes desejar felicidade no lar!
- Não te preocupes! - disse o gato da cozinha. - Creio que vamos ter um vasto festim. Já foram depenados os marrecos, já mataram os frangos e os pombos. Lá embaixo está um veado inteiro suspenso à parede. nem posso parar com os maxilares quietos, vendo tanta coisa boa...Vão partir amanhã.
Sim, amanhã. Era mesmo no dia seguinte. Rudy e Babatte ficaram naquela noite até muito tarde a conversar sobre mil coisas. Era a sua última palestra no moinho. Os Alpes resplandeciam, inundados de uma luz rosada. Repicavam os sinos da tarde. As Filhas do sol cantavam, girando no ar:
- Que Rudy, o nosso favorito, seja feliz como merece!
XIV. OS ESPECTROS DA NOITE
Chegara a noite; grandes nuvens enchiam o vale inteiro do Ródano. Desencadeara-se um furacão medonho, último sopro do siroco que, depois de atravessar a Itália, vai exalar os supremos esforços da sua fúria ao pé dos Alpes. Despedaçou as nuvens. E elas tornaram a se formar, tomando as figuras dos monstros do mundo primitivo e dos animais fantásticos dos contos de fadas.
Os espíritos da natureza, as forças elementares, debatiam-se livremente enquanto os homens dormiam. Á luz do luar, que fazia reluzir a neve das montanhas, via-se desfilar o exército da Dama das Geleiras. Um bando de Vertigens brincava nos turbilhões do Ródano. Sobre um enorme pinheiro que o furacão arrancara e que flutuava ao rio, sentava-se a Dama em pessoa. Saía dos seus palácios de gelo, levando em vagas amontoadas, águas de um frio mortal.
E de todos os lados, no ar, sobre as ondas, ouvia-se o eco destas palavras:
- Aqui estamos, gente da boda!
Enquanto isso, Babette sonhava sonhos estranhos.
Via-se casada com Rudy, ha muitos anos. ele andava caçando camurças. Ela ficara em casa. A seu lado estava sentado o jovem inglês, de cabelos louros e olhos ardentes. E não tardou que sentisse o coração oprimido por um peso que cada vez aumentava mais.
E, de repente, sentiu-se abandonada, sozinha. Seus cabelos tinham embranquecido de desgosto. Levantou os olhos para o céu e avistou Rudy na crista da montanha. Estendeu-lhe os braços, em coragem para chamá-lo; mas teria sido inútil: viu logo que não era Rudy, mas seu casaco e seu chapéu, que ele deixara espetados em uma vara, para iludir as camurças.
E ela, penetrada de uma dor profunda, lamentava-se em sonhos, dizendo:
- Que sorte se eu tivesse morrido no dia do meu casamento, naquele dia, que foi o mais feliz da minha vida!...Senhor Deus, teria sido essa a maior graça que me poderia conceder. Ah! Se tivesse adivinhado o futuro!
Então, maldizendo a vida, ela se lançara em um precipício.
Acordou sobressaltada: os fantasmas se desvaneceram. Mas ficou-lhe a lembrança de um sonho horrível, que a atormentara. lembrava-se claramente de que nele figurava o moço inglês, que não tornara a ver, e em que não tornara a pensar jamais. Teria ele voltado a Montreux? Iria assistir ao seu casamento? Seria aquilo algum pressentimento?
A moça franziu as sobrancelhas, amuada, fazendo um muxoxo expressivo, que na verdade era nela adorável.
Mas o sorriso voltou-lhe dali a pouco. Viu os raios do sol, que já brilhava em todo o seu esplendor. E disse consigo:
- Falta um dia, um único dia, e seremos marido e mulher!
Desceu e já encontrou Rudy pronto. Partiram para Villeneuve; e como eram felizes aqueles dois noivos! E o moleiro também: seu rosto honesto e simples resplandecia de alegria. Ria, de bom humor, a propósito de tudo, e jamais alguém o vira tão alegre. Era um bom pai, a despeito de suas maneiras um tanto bruscas.
Entretanto, dizia o gato da sala ao seu colega da cozinha:
- Eis-nos sozinhos, e donos da casa. Quem sabe se poderemos apanhar alguma daquelas coisas boas que prepararam para o banquete?
XV. O FIM
Sempre alegres, chegaram a Villeneuve depois do meio-dia. Almoçaram, e o moleiro acomodou-se em uma poltrona; fumou umas cachimbadas, e dispôs-se a dormir sua sesta.
Os noivos foram passear, de braço dado, à beira do lago das águas profundas, cor de safira e de esmeralda. Sentaram-se em um rochedo, à sombra dos salgueiros, e dali contemplaram o sombrio Castelo de Chilon, cujas torres maciças se refletiam na água do lago. Dali viam também a ilhota das três acácias.
- Como há de se agradável aquele lugar! - disse Babette.
Vinha-lhe de novo um ardente desejo de se sentar à sombra daquelas árvores.
Podia ser satisfeito imediatamente, aquele desejo. Havia um bote amarrado a um tronco e não era difícil desatar o nó. Rudy sabia manejar os remos, e atirou-se ao trabalho, contente. A água cede ao menor esforço, e contudo, nada resiste ao seu poder formidável! Oferece, por assim dizer, complacentemente, o dorso para nos transportar, e tem as fauces sempre escancaradas, prontas a nos devorar; sorri, parece toda doçura, e as devastações, os desastres que causa são incontáveis.
Em poucos minutos os felizes namorados chegaram à ilhota e desembarcaram. Estavam tão contente, que se puseram a dançar. Fizeram três vezes a volta da pequenina ilha, e depois se sentaram em um banco debaixo das acácias. de mãos dadas, olhavam-se. Cercava-os a natureza, resplandecente à luz do sol poente. Na montanha, os pinheirais tomavam uma cor lilás, a cor das flores de urze da charneca. Os rochedos luziam, como metal em fusão, e pareciam transparentes. No céu, as nuvens semelhavam um vasto incêndio. O lago podia ser comparado a uma pétala de rosa de tamanho desmedido.
Pouco a pouco foi descendo a sombra azulada e chegou ao sopé das montanhas nevadas da Saboia; mas os cimos estavam sempre cor de púrpura. Dir-se-ia que o mundo voltara aos primeiros dias da criação, quando as montanhas surgiam do seio da terra como lava avermelhada.
Nenhum dos dois noivos se recordava de ter visto jamais espetáculo tão cheio de beleza. O Dent du Midi, coberto de neve, desprendia mais brilho que a lua cheia, que emergia do horizonte.
- Que esplendor, e que felicidade! - diziam os noivos.
E Rudy continuou:
- Nada mais tenho a desejar neste mundo. uma hora como esta vale felicidade, e pensava enão que nada mais havia, que eu esgotara a taça. mas o dia se acabava, outro dia nascia, ainda mais belo. o senhor é, na verdade, de uma bondade infinita!
- Meu coração trnasborda de reconhecimento - disse Babette.
- A terra não me poderia oferecer maior felicidade!- Exclamou Rudy.
Das montanhas da Saboia,d as montanhas da Suíça, tangiam os sinos, para a prece da noite. para o Ocidente viam-se os Picos da Jura, que resplandeciam em um mar de ouro.
- Que Deus te dê o que ele tem de melhor e de mais desejável no mundo! - disse Babette com os olhos úmidos de ternura.
- Pois é o que ele vai fazer! - replicou Rudy. - Amanhã casaremos, amanhã me pertencerás inteiramente, serás a minha mulherzinha querida!
Nesse instante, Babette soltou um grito!
- O bote! O bote!
Com o movimento das vagas o barco se desprendera, e ia se afastando da ilhota.
- Vou buscá-lo - disse Rudy.
E, desembaraçando-se do casaco e das botinas, saltou à água; hábil nadador, adiantava-se rapidamente para o barquinho.
Alcançou a corrente das águas cinzentas, azuladas, frias, que o Ródano arrasta das geleiras. Lançou um olhar, um só olhar para aquelas águas. Pareceu-lhe que via rolar no fundo um brilhante anel de ouro. Pensou na sua aliança de noivado, que tinha perdido. Mas aquele anel ia ficando cada vez maior, cada vez maior: em um instante formava já um grande círculo luminoso. No meio do círculo abriu-se uma imensa geleira. Precipícios profundos estavam ali abertos. Milhares de gotas d'água, caindo, faziam uma música sinistra, em dobre funéreo. As paredes de cristal refletiam chamas brancas e azuis.
No espaço de um segundo viu Rudy um espetáculo que não se pode descrever senão em muitas palavras.
Achavam-se ali, em multidão, jovens caçadores, moças, homens e mulheres, que tinham caído nas gretas das geleiras, e haviam morrido. Pareciam vivos, tinham os olhos abertos e sorriam-lhe.
Mais para adiante avistava-se uma cidade que as águas do lago tinham sepultado. A torrente das montanhas agitava os sinos das igrejas e fazia ressoar os órgãos. os habitantes estavam ajoelhados no santuário, onde se haviam refugiado no momento da catástrofe.
Bem embaixo, enfim, estava sentada a Dama das Geleiras; levantou-se ao ver Rudy. Segurou-lhe os pés e tocou-os com os lábios; o caçador teve uma comoção tão grande, como se tivesse recebido um choque elétrico. Depois um frio mortal apoderou-se dos seus membros, amortecendo-os.
- Meu! Meu! Tu és meu!
Esse grito de triunfo retiniu ao redor dele; e continuou:
- Beijei-te quando era pequenino: dei-te então um beijo na boca. Hoje beijo-te o calcanhar. És meu, totalmente meu!
E Rudy desapareceu no meio das ondas azuis, tão claras.
Sobre a terra fêz-se silêncio por toda a parte. Calaram-se os ecos dos sinos da noite. As cores brilhantes das nuvens desapareceram.
- Tu és meu!
Essas palavras retiniram no fundo das águas; retiniram igualmente no céu. A voz enchia o infinito.
Não é uma felicidade passar assim de um salto, do amor na terra às alegrias puras do céu? O beijo gelado da morte aniquilara um invólucro perecível; um ser imortal saiu dele pronto para a vida verdadeira que o esperava. A dissonância da morte resolvia-se em uma harmonia celestial.
Chamas isto uma história triste?
Pobre Babette! Sim, para ela esses momentos foram de angústia cruel! O barco afastava-se cada vez mais. Ninguém em terra sabia que os noivos tinham ido à pequenina ilhota. Aumentava a obscuridade. Caiu a noite. Sozinha, desorientada, gemendo, Babette torcia as mãos, no maior desespero.
Um relâmpago brilhou acima do Jura. Outro partiu das montanhas da Saboia. Dali a pouco eram incontáveis, riscando o céu ininterruptamente. O ronco do trovão durava minutos, sem interrupção. o raio, com seus ziguezagues deslumbrantes, iluminava a paisagem como a luz do dia. Num rápido instante se podia distinguir cada árvore, cada raminho. depois tudo recaía na noite negra. O eco das montanhas repetia o fragor da tempestade.
Os pescadores levaram seus barcos para terra. Homens e animais buscavam a toda a pressa um refúgio. O céu derramava torrente de chuva. O moleiro, cheio de ansiedade, perguntava:
- Onde estarão Rudy e Babette, com um tempo destes?
Babette, depois de gritar em vão por socorro, gemera e chorara tanto que já não tinha mais voz, já não tinha mais lágrimas. Estava ajoelhada, meio caída, a cabeça entre as mãos. E não conseguia orar. Só podia pensar:
- Ele está no fundo da água, bem lá no fundo; não voltará mais...O lago é profundo como uma geleira.
Lembrou-se do que contara Rudy da morte de sua mãe; como tinham tirado, frio como um cadáver,d a fenda onde caíra. E dizia consigo:
- A Dama das Geleiras tornou a apanhá-lo!
Um relâmpago, resplandecente como sol irradiando sobre um campo de neve, iluminou o lago. Babette levantou-se, sobressaltada.
Viu acima das águas a Dama das Geleiras de pé; tinha no aspecto uma majestade terrível. A seus pés estava o corpo de Rudy.
É meu - disse ela.
E desapareceu. E tudo ficou mergulhado nas trevas.
- Cruel! - disse Babette. - Por que o mataste na véspera do dia que devia iluminar a nossa felicidade?
Depois continuou:
- Oh! Meu Deus! Iluminai meu espírito e meu coração. Permiti que eu compreenda o mistério de vossos desígnios!
E Deus ouviu-a. Na sua alma fez-se uma luz. Lembrou-se do sonho da véspera, e do que no sonho tinha desejado, como a suprema felicidade para Rudy e para ela própria.
- Desgraçada de mim! Aquilo que sonhei era então meu destino? Valia mais, então, que ele morresse mesmo?
E seus gemidos redobraram. De repente, com o coração despedaçado, triturado, estremeceu à recordação das últimas palavras de Rudy:
- A terra não me poderia oferecer maior felicidade!
Passaram-se muitos anos. O lago sorri. As margens estão cheias de beleza. Vogam barcos a vapor, com os pavilhões flutuando ao sopro da brisa. Os grandes barcos, com as velas latinas desfraldadas, voam sobre a toalha d'água como libélulas gigantescas. A estrada de ferro vai além de Chilon e sobe o Vale do Ródano. Descem excursionistas em todas as estações. Apressam-se em abrir os Guias encadernados em capas verdes ou vermelhas, para ler o que há em matéria de curiosidade. E acham nos seus livros a história dos noivos que, em 1856, foram à ilhota das três acácias; o noivo morreu, e no dia seguinte pela manhã, somente se ouviam da costa os gritos desesperado da moça.
Mas é só o que diz o livro. Não fala da vida retirada que Babette leva junto do pai; não no moinho: o moleiro vendeu-o, porque Babette não queria viver nos sítios que lhe recordavam toda a sua felicidade destruída. Moram em um linda casa, não longe da estação. Fica às vezes horas inteiras à janela, contemplando, por cima dos castanheiros, as montanhas nevadas onde Rudy caçava. Quando vê os picos dos Alpes se colorirem com as esplendidas tintas vermelhas do crepúsculo, lembra-se daquela última tarde em que estiveram juntos. E muitas vez, quando se sente mais triste, mais acabrunhada, parece-lhe ouvir as Filhas do Sol que cantam, dizendo como o furacão arrebata o manto ao viajante, mas "Não há razão para aflições: ele leva apenas o invólucro, não o homem".
E, a ideia de que Deus dispõe todas as coisas pelo melhor, faz-se a luz em sua alma. Não o sabe melhor que ninguém, depois daquele sonho?
FIM
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