quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

NO ÚLTIMO DIA - CONTOS DE ANDERSEN

  
                                    



O dia mais sagrado entre todos os dias é aquele em que teremos de morrer: o dia solene dia da transformação. Já pensando seriamente nessa hora tremenda, inelutável e derradeira, que terás de passar nesta terra?
   Era uma vez um homem, um fanático, como se costuma dizer, um desses que lutam pelo Verbo, que para ele era a Lei; um servidor zeloso de um Deus zeloso...E agora se achava a Morte ao pé da sua cama, a Morte, de rosto carrancudo.
   - Chegou a tua hora. Tens de seguir-me- disse a Morte, tocando-lhe os pés com o dedo glacial.
   Os pés do homem gelaram. A Morte tocou-lhe então a testa, depois o coração, que se despedaçou àquele contato. A alma seguiu o anjo da Morte.
   Entretanto, naqueles poucos segundo que se escoaram, durante o transe, passou, como passam as altas e negras ondas de um mar, pelo agonizante, tudo quanto a vida lhe trouxera, tudo quanto a vida nele despertara. E assim, com um único olhar, devassa as profundezas insondáveis e abrange com o raio de um só pensamento o caminho incomensurável: desvenda, com um só olhar, num conjunto imenso, os enxames inumeráveis de astros, de globos e mundos, na vastidão do espaço.
   Em semelhante momento, sente-se o pecador tomado de aflição: não lhe resta mais nada a que se apegar, e ele tem a sensação de que vai afundando num infinito vazio. Não assim o homem justo; esse reclina serenamente a a cabeça, como uma criança resignada: " Seja feita a Vossa vontade!"
    O homem que ali estava morrendo, porém, não tinha alma de criança: sentia-se homem. Não se horrorizava, naquele momento, como o pecador; sabia que tinha a fé verdadeira. Observara os preceitos da religião em todo o seu rigor. Não ignorava que milhões de pessoas tinham de transpor a via larga que conduz à condenação: seria capaz de aniquilar-lhes os corpos a ferro e fogo, com são e serão sempre aniquiladas as suas almas.O seu caminho, porém, dirigia-se para o céu, onde a graça lhe abriria a porta - a prometida graça.
   E a alma acompanhou o anjo da Morte: mas antes, dirigiu ainda um último olhar para o leito onde jazia a imagem de barro, vestida com a mortalha branca, uma imagem estranha do seu próprio Eu....
   Iam caminhando, e voando. Atravessavam uma vasta sala, mas essa sala era ao mesmo tempo um bosque; ali a natureza cerceada, amarrada, estacada e arranjada em fileiras - era, enfim, tratada artificialmente, como os antigos jardina francesas: era uma mascarada!
   - Eis a vida humana! - disse o anjo da Morte.
  Todos andavam mais ou menos disfarçados. Nem todos os que trajavam veludos e se cobriam de ouro eram na verdade os mais nobres e mais poderosos; e nem todos os esfarrapados eram de fato os mais pobres e humildes. Que mascarada, esquisita, aquela! E - o que parecia mais estranho - cada pessoa trazia, escondida sob a s vestes, alguma coisa que procurava furtar aos olhares das outras. Contudo, sacudiam-se uns aos outros, violentamente, para que objeto escondido aparecesse; via-se então apontar a cabeça de um animal a careta de um macaco, um bode grotesco, uma serpente viscosa, um peixe meio morto.
   Era o animal que nos aflige a todos: o animal que se arraigou no homem. E todos aqueles animais iam pulando, dando saltos, na ânsia de avançar. Cada pessoa procurava cingir bem ao corpo a roupa, mas vinha outra que a afastava, gritando:
   - Vejam, vejam! Olhem! Aqui está ele! Aqui esta ela! 
    E cada qual queria desnudar a miséria do outro.
   - Que animal trazia eu? - perguntou a alma peregrina.
   O anjo da Morte apontou para um vulto soberbo que estava em frente deles. Tinha a cercar-lhe a cabeça uma auréola brilhante e multicor; mas junto do coração do homem estavam ocultos os pés do animal: os pés de um pavão. A auréola era apenas a cauda cintilante da ave.
   Continuaram a andar e ouviram vozes desagradáveis que se elevaram dos galhos das árvore; eram vozes humanas:
  - Ó andarilho da Morte! Não te lembras de mim?
   Eram os maus pensamentos, os maus desejos do tempo em que vivia, que lhe dirigiam aquela pergunta:
  - Não te lembras de mim?
   Por um momento a alma sentiu-se tomada de pavor: reconhecera as vozes, os maus pensamentos e desejos que assim se erguiam, como testemunhas em um tribunal. E exclamou:
   - Na nossa carne, na nossa natureza perversa, nada existe de bom. Mas os maus pensamentos que havia em mim não chegaram a se concretizar em atos. O mundo não viu o mau fruto.
   E tratou de se apressar, para escapar aquela vozeria importuna. Mas as grandes aves negras esvoaçavam em roda dela, gritando, como se quisessem dar a notícia ao mundo inteiro. A alma dava saltos, como um veado perseguido, mas a cada passo tropeçava em seixos pontiagudos, que lhe dilaceravam os pés, magoando-os dolorosamente.
  - De onde vem estas pedras que cobrem a terra, como folhas secas?
    - São palavras imprudentes que deixaste escapar. Elas feriram profundamente o coração do teu próximo - mais profundamente do que essas pedras te esfolam os pés?
   - Eu não tinha essa intenção - disse a alma.
  - Não julgues, para que não sejas julgado! - brandou uma voz nos ares.
   - Todos nós pecamos - exclamou a alma, tornando a erguer-se. - Observei a Lei, obedeci ao Evangelho, fiz o que pude, não sou como ou outros...
   Estavam então diante da porta do Céu, e o anjo que guardava a entrada perguntou:
   - Quem és? Dize-me qual é a tua fé, e comprova-a pelos teu atos!
   - Cumpri rigorosamente todos os preceitos. Humilhei-me à vista do mundo. Odiei e persegui o mal e os maus.
   -És, então, um dos sequazes (pessoas que seguem outras pessoas ou alguns princípios.)de Maomé?
   - Eu? Não! Jamais!
   " - Todos os que tomarem a espada morrerão à espada", diz o Filho. Tu não tens a sua crença. Serás, talvez, um filho de Israel, que dirá, como Moisés: " Olho por olho dente por dente!" Um filho de Israel, cujo Deus zeloso é o deus somente do teu povo?
  - Sou cristão!

   - Não o reconheço nem na tua fé, nem nos teus atos. A doutrina de Cristo é feita de reconciliação, amor e graça.
  - Graça! - ecoou a voz pelo espaço infinito.
   Abriu-se a porta do Céu, e alma adejou para ir ao encontro daquela magnificência.


                                    


   Mas a luz que dela irradiava era tão penetrante, tão deslumbrante, que a alma recuou, como se tivesse diante de si um gládio, desembainhado. Soavam melodias tão suaves e tão comoventes, como nenhuma voz humana poderia desferir. A alma, tremendo, foi-se abaixando cada vez mais. Mas a claridade celestial   penetrou-a, e ela  sentiu e percebeu o que jamais sentira com tamanha força: o peso do seu orgulho, da sua dureza e dos seus pecados - fez-se a luz no íntimo do seu ser.
   - O que realizei de bom no mundo foi porque não pude proceder de outro modo: mas o mal que fiz...esse vinha de mim mesmo!
   E a alma, ofuscada pela luz celeste, tão pura, caiu desmaiada: toda enovelada em si própria, abatida, estava ainda imatura para a benção do Céu. E, lembrando-se do Deus severo e justo, não se atrevia a murmurar:
   - Graça!
   E foi então que veio a graça - a graça que não esperava!
   O céu de Deus enchia o espaço infinito; o amor de Deus pulsava em todo ele, abundante e inesgotável. E as vozes cantaram:
  - Ó alma humana! Torna-te compassiva, santa, magnífica e eterna!
   E todos nós - todos nós recuaremos tremendo, no último dia de na nossa vida terrena, como aquela alma; recuaremos tremendo, diante do esplendor e da magnificência do Reino Celestial; cairemos profundamente; havemos de nos  prosternar em humildade. E todavia seremos erguidos pelo Seu amor, sustentados pela Sua graça. Esvoaçando por novas veredas, purificados, melhores e mais nobres, cada vez mais próximos da magnitude daquela luz, por ela fortalecidos, seremos capazes de subir até a eterna claridade!
FIM

   

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