sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A PEQUENA SEREIA - CONTOS DE ANDERSEN

        Longe, muito longe da terra, mar a dentro, a água é azul, tão azul como céu e tão límpida como o cristal mais transparente. E atinge tamanha profundidade que jamais âncora alguma lhe tocou o leito.
   E é lá, no seio profundo das águas, que vive o povo do mar.
   Crescem ali plantas e flores maravilhosas, de folhas e hastes flexíveis, que ondeiam ao mais leve vaivém da água, como se fossem criaturas vivente. Por entre a ramaria deslizam peixes de toda a espécie, como as aves esvoaçam entre as árvores aqui na terra. E no sítio mais profundo assenta o palácio do rei dos mares. As paredes são de coral e as altas janelas ogivais, do mais puro âmbar; o teto é todo coberto de conchas que se abrem e fecham ao movimento das marés- e isso dá ao palácio um efeito deslumbrante, pois cada concha contém uma pérola tão preciosa, que poderia adornar, sem deslustre, a coroa de uma rainha.
    O rei dos mares enviuvara havia muitos anos, e sua velha mãe é quem lhe dirigia a casa. Dama de grande sabedoria era ela, sem dúvida nenhuma; mas dotada também de um orgulho desmedido pela nobre estirpe de que descendia. Ocupava tão alto grau na escala hierárquica, que usava doze pérolas na cauda, ao passo que outras pessoas, também de nobre nascimento, só podiam usar seis. Quanto mais, era dama de excelentes qualidades, entre as quais ressaltava o grande amor que dedicava às netas- as princesas do mar.
     Eram seis meninas lindíssimas, mas a mais moça ainda sobressaía às outras  em formosura. Tinha a cútis tão fina e tão delicada como uma pétala de rosa, e os olhos azuis como o mar profundo. Mas, como as irmãs, não tinha pé, e rematava-lhe o corpo uma cauda de peixe.
     - Passavam o dia inteiro brincando nos imensos salões, no palácio submarino, em cujas paredes cresciam belas flores. Os peixes entravam nadando pelas largas janelas, como as andorinhas entram pelas nossas casas, quando as acham abertas; nadavam em direção às princesinhas, e comiam migalhas nas suas mãos; e elas os acariciavam.
      O jardim do palácio oferecia um verdeiro espetáculo de beleza. A ramagem das árvores era vermelha como o fogo, e, ao mesmo tempo, despendia reflexos azuis, tão zuis como o mar profundo; os frutos brilhavam como o ouro, e as  flores desprendiam chamas. E os galhos estavam sempre ondulando. Cobria o solo do jardim uma areia finíssima, azul como a chama do enxofre. E tudo era iluminado por uma luz azulina, maravilhosa.
      Mais parecia que os seres estavam suspensos no ar, envoltos em céu, do que mergulhados no fundo do mar. E, quando não soprava vento algum, via-se o sol lá em cima, como uma resplandecente flor vermelha.
    Cada princesinha tinha no jardim o seu recanto, onde podia semear  e plantar o que mais lhe agradecesse. Uma semeou flores, formando um desenho, de modo que, quando crescessem as plantas, apresentariam a forma de uma baleia; outra preferiu a figura de uma sereia mesmo; mas a menorzinha deu ao seu canteiro o formato do sol  e semeou nele somente flores da cor de seus raios, conforme os via de dentro da massa líquida e azulada. Era uma criança singular, silenciosa e pensativa; e, enquanto as irmãs se entusiasmavam com os pequenos objetos que encontravam, provenientes de navios naufragados, ela apenas se interessava- além das suas flores chamejantes, que se assemelhavam ao  sol lá de cima- por uma estátua de mármore, que algum naufrágio atirou ao fundo do mar, e que representavam um belo mancebo. Plantou junto da estátua um salso-chorão vermelho, e quando a árvore cresceu e deu sombra à linda estátua, seus galhos desciam até o fundo, tocando as areias azuis e projetando uma sombra cor de violeta;  e as sombras dançavam no fundo, como os ramos dentro d'água, dando a impressão de que a copa brincava com as raízes.
     A princesinha ouvia com avidez as histórias que avó contava a respeito do mundo de cima. Pedia-lhe constantemente que contasse mais alguma coisa, tudo o que sabia dos navios e das cidades, de pessoas e animais. Maravilhava-se de saber que as flores da terra exalam perfumes-pois que as do mar não tem cheiro algum- e os bosques são verdes; e gostava sobretudo de ouvir contar dos "peixes" de cima, que andam esvoaçando por entre as árvores, e cantam com voz tão suave que encantam a quem os ouve. É que a vó chamava peixes aos passarinhos, para que a sereiazinha a entendesse, ela que nunca vira um pássaro.
    - Quando tiveres quinze anos- dizia a avó- subirás à superfície; poderás sentar nos rochedos, lá em cima, e verás à luz do luar os navios que passam as cidades e as florestas.
    No ano seguinte a mais velha completou quinze anos. Cada uma das irmãs era mais moça que a precedente justamente uma ano, de modo que a menor ainda teria esperar cinco, para subir à tona d'água e ver como era o nosso mundo, o dos humanos. Entretanto, a mais velha prometeu às irmãs contar o que mais lhe interessasse, o que visse  de mais lindo no primeiro dia; porque a avó certamente não tinha contado tudo, e elas ansiavam por conhecer todos os aspectos da terra.
    Nenhuma, entretanto, desejava tão ardentemente subir à tona como a menor, a que tinha de esperar mais tempo e que era tão reservada e pensativa. Costumava ela ficar à noite à janela,e  via então os peixes que nadavam, agitando as águas azuis com a cauda e as barbatanas. Via também a lua e as estrelas, que lá dentro d'água pareciam mais pálidas, mas maiores do que nós a vemos daqui. Se uma nuvem negra as furtava ao olhar da menina, ela já sabia que era uma baleia que nadava lá em cima, ou algum navio que passava, repleto de passageiros. E certamente nenhum deles poderia sonhar que lá estava uma linda sereia pequenina, de olhos ansiosos, seguindo a quilha do seu navio!
    Completara, pois, a princesa mais velha quinze anos, e recebera permissão de subir à superfície do mar.
   Á volta tinha mil e uma coisas para contar; mas o que lhe parecia mais belo era ficar sentada na areia da praia, ao luar, contemplando a grande cidade que se entendia não muito distante, toda pontilhada de luzes, que brilhavam como estrelas; e ouvir os sons da multidão; e ver os altos campanários e ouvir o repique dos sinos. E a princesinha desejava ardentemente misturar-se à vida de todas aquelas coisas, exatamente porque lhe era vedado aproximar-se delas.
      Escutava-a a irmãzinha atentamente. E mais tarde, quando chegou à janela, à noite, para olhar através das águas, veio-lhe tudo aquilo à memoria; viu a grande cidade, cheia de ruído e de tumulto, até lhe parecia ouvir os sinos da igreja repicando lá em cima!
    No ano seguinte  a  segunda irmã obteve a permissão para subir e nadar à vontade. Subiu mesmo na hora do pôr do sol, e apareceu-lhe que nunca vira coisa tão bela! Contou que todo o céu parecia de ouro, e que a beleza das nuvens ninguém poderia descrever; umas eram vermelhas e outras cor de violeta, e corriam rapidamente acima da sua cabeça. Um bando de cisnes selvagens, semelhantes a um longo manto branco, voava ainda mais longe do que elas, atravessando o mar, rumo ao sol poente. Também ela mudou em direção ao sol, mas ele entrou no horizonte, e as belas cores rosadas desapareceram da superfície da água e da curva dos céus.
    Um ano depois foi a terceira irmã quem subiu. Era a mais arrojada: nadou ousadamente para um rio que ia desembocar no mar. Avistou lindas colinas verdes cobertas de parreiras; viu imponentes castelos, que espiavam por entre bosques magníficos; ouviu o canto dos passarinhos. tamanho era o calor que o sol despendia, que ela mergulhava a cada instante para refrescar o rosto afogueado. Nisso enxergou ao longe, em uma pequena enseada, um grupo de crianças , que se banhavam alegremente nas águas. Quis associar-se aos seus brinquedos, mas as crianças assustaram-se e fugiram. E no mesmo momento apareceu um animal preto, desconhecido. Era um cão, mas a sereia julgou que fosse uma fera. O cão latia com fúria. E ela, também assustada, tratou de ganhar o mar largo. Mas a jovem princesa jamais esqueceria as lindas florestas, nem as crianças, tão belas, e que podiam nadar na água, mesmo sem possuir cauda de peixe!
    Era a quarta a mais tímida das irmãs. Manteve-se no meio das ondas e afirmava que assim gozara uma vista mais bela, porque dali via tudo quanto a rodeava, na extensão de muitas milhas. Vira navios, que passavam distantes, e lhe pareceram gaivotas.Os golfinhos brincalhões davam saltos mortais, e as enormes  baleias esguichavam água pelas narinas, parecendo que ela estava cercada de fontes, às centenas.
     Chegou a vez da quinta. Nascera no inverno, de sorte que viu coisas que as outra não tinham podido observar da primeira vez que subiram à flor das águas. O mar era todo verde e flutuavam por toda parte enormes blocos de gelo- parecidos com pérolas, segundo descreveu, mas muito maiores do que as igrejas que o humanos constroem. Tinham formas fantásticas e brilhavam como diamantes. Colocou-se sobre o maior deles, e todos os navios que passavam por ali fugiam a toda a pressa, aterrados, como se tivessem medo de se aproximar do sítio em que ela estava, com os longos cabelos voando ao sabor do vento. Mas ao escurecer o céu for ficando tenebroso: reboava o trovão, os relâmpagos rasgavam a escuridão incessantemente. e as ondas escuras erguiam os enormes blocos de gelo, que se iluminavam ao clarão dos raios. Todos os navios colheram o velame, e, enquanto os passageiros eram tomados de pânico, a sereia lá estava, tranquilamente sentada no seu bloco de gelo flutuante, olhando para os relâmpagos azuis, que ziguezagueavam sobre o mar fosforescente.
    Quando uma sereia fazia a primeira ascensão à superfície, ficava encantada diante da novidade e da beleza do que via; já crescidas agora, e podendo subir quantas vezes quisessem à flor d'água, foram perdendo aquele interesse primitivo pelas coisas de cima. Mal subiam, já desejavam ver-se de novo no fundo do mar, e ao fim de um mês diziam todas que o seu mundo era mais bonito, e que sentiam mais prazer em ficar em casa.
     Às vezes as cinco irmãs subiam, à noite, de braços dados, formando uma fila. eram todas dotadas de magníficas vozes, como nenhuma criatura humana jamais possuiu. Quando se aproximava uma tempestade, e elas pressentiam algum naufrágio, vinham cantar à frente dos navios, exaltando as maravilhas do fundo do mar, e dizendo aos marinheiros que podiam descer até lá sem temor algum. Mas eles não as entendiam, julgavam que era  as vozes da tempestade ; e nunca chegavam  a ver as magnificências submarinas, porque se a nave naufragava, morriam afogados, e somente seus corpos iam dar ao fundo, ao palácio do rei do mar.
    Quando as cinco irmãs subiam à tona, de braços dados, à hora do sol posto, a menor ficava sozinha, e, vendo-as assim suspender-se na água, sentia vontade de chorar; mas a sereia não tem lágrimas, como se sabe, e isto é que torna seu sofrimento mais aflitivo.
    - Quem dera já ter quinze anos! - suspirava ela. - sei bem que havia de amar esse  mundo lá de cima e as criaturas que nele vivem!
    Afinal chegou o dia tão almejado. e a  avó, a velha rainha disse-lhe:
   - É a tua vez, querida. Vem, quero adorna-te.
    Cingiu-a com um diadema de lírios d'água, formados de metades de pérolas. E determinou que oito grandes ostras se pegassem à cauda da princesa, como insígnia de sua elevada categoria.
    - Mas isso me magoa! - disse a princesinha.
    - Sim, mas é assim mesmo: o orgulho nos traz sofrimento.
     Ah! Com que alegria arrancaria da cabeça aquela coroa e lançaria longe de si os símbolos de nobreza! As flores vermelhas do seu jardim lhe assentariam muito melhor do que aquele adorno... Mas tinha de sujeitar-se àquilo!
    E, erguendo-se para a superfície, com a rapidez de uma bolha de ar, gritou:
    - Adeus! Adeus!
    Já o sol tinha desaparecido no poente, quando ela ergueu a cabeça fora d'água, mas as nuvens vermelhas e franjadas de ouro ainda lhe refletiam o esplendor. E a tarde, já vizinha  da noite, brilhava em toda a sua beleza, através daquelas tintas rosadas que se diluíam. O ar era suave e fresco e o mar completamente sereno. Ao seu manso ondular embalava-se um grande navio de três mastros; tinha uma única vela içada, pois que não soprava a menor brisa, e os marinheiros descansavam, sentados em grupos, pelos convés. De bordo vinham sons de canto e de música; e ao anoitecer acenderam-se centenas de lanternas coloridas. A sereiazinha foi nadando, nadando, até se aproximar da grande nave. Viu então lá dentro, através dos vidros das vigias, passageiros ricamente trajados. Mas o mais belo de todos era um príncipe, um adolescente de grandes olhos negros, que não teria mais de dezesseis anos, e cujo aniversário se celebrava justamente naquela hora, com grande  magnificência. Os marinheiros dançavam no convés, e quando o jovem príncipe subiu, foram soltos  mais  de cem foguetes, que iluminaram o céu  como se fosse dia dia. E a sereia teve tamanho medo, que se escondeu na  água. Mas imediatamente se refez do susto e voltou à superfície. Viu então, que o céu chovia  sobre sua cabeça uma chuva de estrelas. Nunca tinha visto fogos de artifícios: eram enormes sois, que giravam, espalhando faíscas; eram peixes ígneos, que fendiam o ar azul; e todas aquelas maravilhas se refletiam na água tranquila. O navio inteiro estava inundado de tanta luz, que se distinguiam perfeitamente todos os objetos, até as cordas - e, é claro, viam-se com mais precisão ainda as pessoas. E como era formoso o príncipe, que apertava, sorrindo, as mãos das pessoas presentes, enquanto a música soava, na noite linda!
     Era já muito tarde, e a princesa não podia apartar os olhos do navio nem do belo príncipe. Foram apagando-se as luzes multicores. Já não subiam foguetes, nem troavam os canhões. Mas do fundo do mar vinha um surdo rumor. A sereia ainda se conservava ali, espiando pelas vigias. Mas agora o navio vogava mais depressa: as velas foram-se enfunando uma  após outra. as ondas iam crescendo, nuvens pesadas se acumulavam no céu   e os  relâmpagos rasgavam a escuridão. Era uma tempestade tremenda que se aproximava, e os marinheiros tornaram a arriar as velas. O grande navio balançava aos embates do mar, agora enfurecido. As ondas erguiam-se, como gigantescas montanhas negras, que amaçavam cair sobre a mastaréu.
    Para  sereia era aquele um modo de viajar encantador; já não pensavam assim, porém, os marinheiros. O navio estalava, rangia, as grossas pranchas cediam às investidas repetidas das vagas; começou a fazer água, e o mastro partiu-se pelo meio, como um caniço. A nave adernou e a água invadiu o porão.
    Compreendeu então a sereiazinha o perigo que corria a gente do navio; e ela própria tinha de se acautelar para não ser apanhada pelas vigas. Por momentos o mar tão negro que ela nada via, mas a luz dos relâmpagos o iluminava a cada passo, e nesse curto instante podia ver tudo a bordo; procurava então o príncipe, e exatamente no momento em que o navio soçobrava, viu-o submergir. Alegrou-se com a ideia de que ia tê-lo por companheiro no fundo do mar, mas lembrou-se imediatamente de que homens não podem viver dentro d'água e que ele chegaria já morto ao palácio de seu pai. Não! Isso não! Ele não havia de morrer! Nadou na sua direção, por entre as vigas e pranchas que vogavam acima das vagas, sem se lembrar de que os destroços do navio podiam reduzi-la a migalhas. Mergulhou profundamente e depois, subindo de novo à tona, procurou alcançar o jovem príncipe, que mal podia sustentar-se naquele mar revolto. Já lhe desfaleciam os membros, tinha fechados os belos olhos, e teria morrido se a sereia não corresse em seu socorro. Ela o segurou, mantendo-lhe a cabeça acima da água, e abandonou-se à mercê das ondas.
    Ao amanhecer serenou a tempestade; não se avistava, porém, em parte alguma nenhum sinal do navio. Ergue-se o sol radiante do meio das águas, e parecia que ia reanimar o príncipe; mas ele continuava de olhos fechados. A sereia beijou-lhe a fronte, alta e lisa, e deitou-lhe para trás os cabelos. parecia-se o príncipe com aquela estátua de mármore do seu jardim. e ela tornou a beijá-lo, desejando ardentemente que voltasse à vida.
     Estavam agora à vista de terra. Perto da costa estendia-se uma floresta magnífica, e, destacando-se do fundo verde, uma igreja ou convento-ela não sabia bem o que era- levantava para o alto suas torres esguias. no jardim havia laranjeiras e limoeiros, e em frente mesmo da entrada erguiam-se altas palmeiras. Naquele lugar o mar formava uma pequena enseada, e a água ali, ainda que muito profunda, era completamente calma. Ela nadou com o príncipe para essa baía, e ali o deitou, com o maior cuidado, para que a cabeça ficasse mais alta que o corpo, e bem exposta ao sol.
    Retiniram todos os sinos da casa branca e um grupo de moças apareceu no jardim. A sereia nadou então para os recifes, e escondeu-se atrás das pedras, ocultando o rosto entre os flocos de espuma, para que ninguém a descobrisse; e ficou espiando, a ver se alguém viria socorrer o príncipe.
     Dali a pouco uma das mocinhas aproximou-se do lugar onde ele estava. A princípio pareceu assustada, mas logo chamou outras pessoas; a sereia viu o príncipe voltar a si, e viu-o sorrir para os que o cercavam . Não lhe dirigiu sequer um olhar- nem sabia que fora ela quem o salvara. E, quando ele foi levado para a grande mansão, o coração da sereia se encheu de melancolia. Triste e abatida, mergulhou na água e voltou para o castelo do pai.
     Se já era calada e taciturna, mais ainda se mostrava agora. As irmãs perguntavam-lhe o que tinha visto, na sua primeira ascensão à tona d'água, mas a sereiazinha nada dizia.
     Subiu muitas vezes, pela manhã e à tarde, ao lugar onde deixara o príncipe. Viu amadurecerem as frutas do jardim, viu quando fizeram a colheita; viu  a neve derreter-se no alto das montanhas; só não avistou o príncipe - e cada vez voltava mais triste para casa. Sua única consolação era sentar-se no jardinzinho e contemplar a linda estátua de mármore, tão parecida com ele; mas já nem tratava das flores, que agora cresciam como plantas silvestres, entrelaçando-se com os galhos das árvores e formando recantos sombrios.
     Afinal não pode mais conter-se , e abriu o coração a uma das irmãs, que imediatamente contou a história às outras. Essas, porém, guardaram o segredo, confiando-o unicamente a duas outras sereias, que por sua vez não o divulgaram: narraram-o apenas às suas amigas mais íntimas. Acontece que uma dessas conhecia o príncipe. Também presenciara a festa a bordo do navio, e informou as outras: contou-lhes de onde vinha ele, e onde ficava o seu reino.
    - Vem, irmãzinha! - disseram as outra.
     E, de braços dados, subiram à superfície, em uma longa fila; e lá se foram para o sítio onde ficava o palácio do príncipe.
     Era todo de pedra amarela e resplandecia; a escadaria de mármore descia até o mar. Coroavam o teto magníficas cúpulas douradas, e por entre as colunas que cercavam o edifício, erguiam-se estátuas de mármore que pareciam ter vida. Pelas janelas viam-se, através os vidros transparentes, salões magníficos, ornados de tapeçarias e cortinas esplêndidas, e quadros preciosos. Era um prazer para os olhos ver todo aquele esplendor.
     Agora, que sabia onde morava o príncipe, a sereia ia nadar muitas vezes pelos arredores do palácio. Aproximava-se da praia e ia até onde nenhuma das outras se aventurava a nadar. Chegava a subir o estreito canal que passava debaixo do belo balcão de mármore, que projetava sua longa sombra sobre a água. ali, sentava-se, contemplando o jovem príncipe, que se julgava completamente só, ao luar.
     Muitas vezes viu-o passear à noite, no seu lindo barco todo adornado de bandeiras, ouvindo a música. Punha-se então a escutar, escondida entre os juncos; e, se por acaso o vento lhe agitava o longo véu prateado, sob  a luz do luar, as pessoas que a viam pensavam que era um cisne, batendo as asas brancas.
    E quando os pescadores saíam à noite, para estender as redes à luz das tochas, e ela ouvia os grandes louvores que faziam ao seu príncipe, regozijava-se de lhe ter salvo a vida, quando o encontrou no meio das ondas, meio morto. Lembrava-se então com alegria dos beijos que lhe dera, enquanto lhe amparava no peito a cabeça desfalecida - mas ele nada sabia disso e nem sequer sonhava com a sua existência.
     Ela cada vez gostava mais dos seres humanos, cada vez desejava mais ardentemente viver entre eles; parecia-lhe que viviam em um mundo mais vasto e mais belo que o seu. Podiam voar por sobre o mar nos seus navios, podiam escalar montanhas altíssimas, que chegavam até as nuvens; e as terras que possuíam - seus campos e florestas - estendiam-se ao longe, a perder de vista.
     Queria saber um mundo de coisas que  suas irmãs não lhe podiam explicar; foi então perguntar à avó, que conhecia bem o mundo superior, a que chamava, com muita propriedade - as terras acima do mar.
    - Se os homens não se afogam, podem viver eternamente? - indagou ela. - Não morrem, como nós, aqui no mar?
     - Eles também tem de morrer - explicou a anciã- e o ciclo de sua existência é mesmo mais curto que o nosso. Nós podemos viver trezentos anos; mas quando desaparecemos daqui somos transformadas em espuma, e nem sequer  seremos enterradas entre aqueles a quem amamos. Nossa alma não é imortal. Nunca teremos uma nova vida: somos como as algas verdes, que não podem florescer de novo, uma vez cortadas. Os seres humanos, porém, tem uma alma que vive eternamente. Sim, mesmo depois que o corpo é entregue à terra, a alma vive ainda, e ascende então, através do ar puro e transparente, até as estrelas brilhantes lá de cima! Assim como nós subimos à superfície das águas, para ver as habitações dos homens, sobem eles para regiões desconhecidas e esplêndidas, que jamais teremos o privilégio de ver.
   - E por que não temos também uma alma imortal? - perguntou a sereiazinha, acabrunhada. - Eu daria de boa vontade os centos de anos que posso viver para ser uma criatura humana, ainda que por único dia - e ter assim a esperança de partilhar as alegrias do mundo celestial.
   - Nem é bom pensar nisso! - exclamou a velha dama.- Sabemos bem que somos melhores e muito  mais felizes do que a raça humana lá em cima.
    - E eu hei de morrer e andar vagando pelo mar afora, feito espuma? E não ouvirei mais a música das vagas, nem verei as flores, tão lindas, nem o sol vermelho? E não há nenhum meio de obter uma alma imortal?
  - Não - disse a velha rainha do mar - a não ser que um homem venha a te amar tão profundamente que sejas para ele mais que pai e mãe. Se ele concentrar em ti todos os seus pensamentos e todo o seu amor, e se deixar que um sacerdote ponha a sua mãe direita na tua, prometendo ser-te fiel nesta vida e na eternidade, então a sua alma se transferirá para o teu corpo, e obterás uma parte na felicidade que espera os humanos. E ele te dará uma alma, sem perder a sua. Mas isso jamais acontecerá! Tua cauda de peixe, que entre nós, gente do mar, constitui um símbolo de beleza,é considerada na terra uma deformidade: lá é preciso ter dois espeques fortes, que eles chamam pernas, para ser uma criatura bela!
    A sereiazinha suspirou, olhando tristemente para sua cauda de peixe.
    - Não devemos ficar tristes - disse a velha dama. - Trataremos de saltar e dançar durante nossos trezentos anos de vida - o que já não é pouco, convenhamos! Estaremos assim mais dispostas a descansar, no último quartel. Hoje teremos um baile na Corte.
    - Nessas ocasiões de festa, o palácio apresentava um esplendor que as pessoas da terra jamais imaginariam. As paredes e o teto do salão  de baile eram de cristal transparente, apesar da sua grande espessura. Centenas de conchas de mexilhões colossais- umas vermelhas, outras verdes como a relva macia- estavam penduradas em filas de ambos os lados, desprendendo chamas azuis, que iluminavam o imenso salão, e sua luz se projetava através das paredes de cristal, de modo que se via perfeitamente à grande distância. Uma multidão de peixes, de todo o tamanho, nadavam na água; uns de escamas reluzentes e purpurinas, outros que pareciam de ouro e prata.
     Atravessava o salão um rio largo, em cujas águas dançavam, ao som de seus próprios cantos, melodiosos e suaves, as sereias e os tritões. Nenhum ser humano possui voz como aquelas! A sereiazinha cantou também: e seu canto foi mais suave e mais belo que todos os outros; por isso aplaudi-a a Corte inteira. Sentiu-se a princesinha por um momento transportada de alegria, pois sabia que tinha a voz mais doce que jamais foi ouvida na terra ou no próprio mar,. Mas seus pensamentos logo se voltaram de novo para o mundo de cima, porque não podia esquecer por muito tempo nem o belo  príncipe, nem a dor de não possuir uma  alma imortal como a dele. Saiu, pois, furtivamente do palácio paterno, onde tudo era canto e festa, e foi esconder-se, desconsolada, no seu jardinzinho. Ouviu então uma buzina, que soava através da água.
     - A esta hora- pensou ela- vai ele navegando lá em cima; ele, em que penso incessantemente, e a cujas mãos eu confiaria, alegremente a felicidade de minha vida inteira...... Ah! Tentarei tudo, tudo arriscarei para conquistá-lo, e para obter uma alma imortal! Vou procurar a bruxa do mar, que dantes me inspirava tamanho terror: quem sabe  se ela  me pode ajudar ou aconselhar agora?
     E a sereiazinha saiu do jardim e encaminhou-se para o sorvedouro atroador onde morava a feiticeira. Nunca andara por semelhante caminho; ali não cresciam flores nem algas: era só o chão nu, cinzento, coberto de areia. As águas precipitavam-se na gruta da feiticeira em um redemoinho espumante, e  para lá levavam tudo quanto apanhavam nas profundezas do mar. Para chegar aos domínios da feiticeira, a sereiazinha era obrigada a atravessar aquela medonha voragem que podia sorvê-la num instante; e boa parte do caminho passava por um lamaçal quente, que fervia sempre e ao qual a feiticeira chamava a sua turfeira. Além desse caminho ficava a casa, no meio de uma estranha floresta: as árvores e arbustos eram polvos- meio animais, meio plantas- que pareciam serpentes de cem cabeças a brotar do chão. Os galhos eram braços compridos e viscosos, cujos dedos pareciam vermes flexíveis; seguravam fortemente tudo quanto podiam apanhar do mar,e, uma vez arrebatada a presa, não a abandonavam mais. Ao ver aqueles monstros, a princesinha ficou aterrada; o coração batia-lhe violentamente, e esteve a ponto de dar volta. Mas pensou no príncipe e na alma que os seres humanos possuíam, e criou novo ânimo. Amarrou os longos cabelos flutuantes, para que os polvos não a apanhassem pelos cachos,e, cruzando os braços junto ao corpo, foi atravessando, como um peixe, por entre os horrendos monstros, que estendiam os tentáculos para agarrá-la.
      Chegava agora a um grande pantanal, na floresta e viu cobras-d'água, grandes e gordas, que se espojavam na lama, distendendo o horrendo corpo amarelo-esbranquiçado. No meio daquele lodaçal asqueroso erguia-se uma casa, construída com destroços de naufrágios; lá dentro estava a bruxa do mar, dando de comer, com a própria boca, a um sapo, tal e qual como algumas pessoas fazem com os canários, oferecendo-lhes um torrão de açúcar. Chamava seus pintinhos às cobras gordas e repugnantes, que lhe subiam pelo corpo, enlaçando-lhe o colo.
     - Já sei o que queres- disse ela - É uma loucura, mas terás o que desejas, exatamente porque isso te trará a infelicidade, minha bela princesa! Queres livrar-te de tua cauda de peixe e obter em lugar delas duas pernas, como as que as criaturas humanas tem para caminhar- e isso para que o príncipe venha a te amar e casar contigo, doando-te uma uma imortal, ainda por cima!
     E a velha bruxa riu - uma risada repulsiva, e tão estrondosa, que o sapo e as cobras caíram ao chão.
    - Vens justamente a tempo- continuou a bruxa - porque de amanhã em diante eu não poderia prestar-te auxílio, durante um ano inteiro. Vou preparar  uma poção , deve nadar para terra manhã, antes que nasça o sol, e bebê-la. Desaparecerá então tua cauda, que se transformará naquilo que os homens chamam de duas lindas  pernas - mas nota bem: isso será tão doloroso como se fosses atravessada por uma espada afiadíssima. Quantos te virem dirão logo que és a mais bela criatura do mundo. Conservarás no andar a elegância e a graça com que nadas na água; ninguém dançará com mais leveza e donaire do que tu - mas cada passo  que deres será como se fosses pisando sobre facas de ponta, e pensarás que teu sangue está jorrando dos pés feridos. Estás disposta a suportar tamanho sofrimento?
     A sereia pensou no príncipe e na sua alma imortal,  e disse com voz trêmula:
     - Sim, estou pronta!
      - Mas pensa bem nisto; uma vez que obtenhas a figura humana, não poderás voltar à condição de sereia! Nunca mais descerás ao fundo do mar, onde vivem tuas irmãs, nem tornarás ao palácio de teu pai. E, se não conseguires conquistar o coração do príncipe, de modo que ele por ti esqueça pai e mãe, e se una  a ti em corpo e alma, levando-te diante do sacerdote, para que ponha a sua mão sobre a tua, como marido e mulher - tampouco obterás uma alma imortal! E quando ele casar com outra, mesmo no dia seguinte ao do casamento, teu coração estalará e te dissolverás em espuma sobre as ondas.
    - Estou resolvida a tudo ! - disse a sereiazinha, pálida como uma morta.
    - Mas terás de pagar meu trabalho, e previno-te de que não exijo pouco: possuis a voz mais linda que já se ouviu no fundo do mar e sobre a terra, e contas com ela certamente, para encontrar o príncipe. Pois é a tua bela voz que quero: em troca de meus serviços deves dar-me  o que tens de melhor, porque preciso preparar a beberagem com meu sangue, para que ela tenha a força de uma espada de dois gumes.
    - Ma se me tiras a voz, que me fica então?
    - Tua formosura, a graça de teus movimentos, teu olhar cheio de encantos: é suficiente para conquistares o coração de um homem. mas que é isso? Tua coragem se evaporou? Vamos! Espicha a língua! Quero o meu salário: em troca terás a bebida maravilhosa.
     - Seja! - disse e sereia.----------------------------------------------------------------------
    E a bruxa pôs ao fogo o caldeirão, para preparar a droga mágica. Tirou então algumas cobras de um feixe que tinha amarrado e com elas esfregou o caldeirão dizendo:
    - Grande virtude é a limpeza!
    Feriu-se então no peito, deixando escorrer o sangue enegrecido na vasilha. Ergueu-se dali um vapor espesso, formando as figuras mais fantásticas, e tão horrendas, que ninguém poderia vê-las sem estremecer. A cada momento ela deitava um novo ingrediente no caldeirão e este fervia, com lamentos que pareciam o pranto do crocodilo. Afinal a poção ficou pronta, e o líquido tinha agora a aparência da água mais pura e cristalina.
    - Aqui está- disse a bruxa.- Se os polvos te segurarem quando atravessares meus bosques, basta que deites sobre eles uma gora deste líquido para que seus braços e dedos se desfaçam em mil pedaços.
    Mas a princesinha não teve necessidade de recorrer ao seu talismã: os polvos davam volta, assustados, ao ver a poção, que desprendia chispas, como uma estrela cintilante. E ela atravessou rapidamente a floresta, o banhado e a voragem escachoante.
    Ficou por algum tempo contemplando o palácio paterno; as tochas do salão de baile estavam apagadas: toda a família dormia àquela hora. Não ousou ir ver as irmãs, nem o pai nem a vó- agora que estava muda e ia deixá-los para sempre. O coração doía-lhe tanto que parecia estalar de dor. Entrou de mansinho e colheu uma flor de cada um dos canteiros das irmãs; atirou mil beijos para o palácio, e nadou para a superfície, atravessando as águas azuis.
     Ainda não tinha nascido o sol quando avistou o castelo do príncipe. Num instante alcançou a magnífica escadaria de mármore, banhada de luar. Bebeu então aquele líquido ardente, e foi como se uma espada de dois gumes lhe trespassasse o corpo delicado. Desmaiou e ficou ali, como morta.
    Quando o sol se levantou das águas, despertou, e sentiu então uma dor agudíssima; mas, ali, defronte dela, estava o príncipe, que a contemplava docemente. A sereia baixou os olhos; e nesse instante viu que já não tinha cauda de peixe: possuía o mais belo par de pernas que uma moça pode desejar. Mas viu-se também nua, e, cheia de vergonha, envolveu-se nos seus longos cabelos. Perguntou-lhe ele quem era e como viera ter aquele lugar. Em resposta, dirigiu-lhe a jovem um longo melancólico olhar. Como não falasse, o príncipe tomou-a pela mão e conduziu-a ao palácio. Cada passo que dava, como advertira a bruxa, causava-lhe dores atrozes; era como se pisasse sobre pontas de agulhas e facas afiadas. Mas tudo suportava com alegria, e caminhava de mãos dadas com o príncipe, tão leve como se fosse uma bolha de sabão. E ele, como quantos a viam, maravilhava-se de graça do seu andar.
     Vestiram-lhe roupas de seda e musselina, e não havia em todo o palácio criatura tão bela; mas era muda: não falava nem cantava. Lindas escravas, vestidas de seda e ouro, vieram cantar diante do príncipe e de toda a família real, e como uma cantasse melhor que as outras, o jovem senhor bateu palmas e sorriu para ela. Isso afligiu muito a sereia, que sabia que já cantara muito melhor...
    E pensava consigo:
    - Se ele soubesse que, para estar ao seu lado, sacrifiquei para sempre a minha voz!...
    -As escravas agora dançavam: executavam movimentos cheios de elegância, ao som de uma música deliciosa. Então a sereiazinha  ergueu-se; distendeu graciosamente os braços, pôs-se na ponta dos pés, e saiu flutuando pelo vasto salão. Executou uma dança tão etérea como ninguém tinha visto igual. Cada movimento revelava uma beleza nova, e seu olhar falava ainda mais ardentemente ao coração do que os cantos das escravas. Todos estavam encantados, mas quem mais se entusiasmou foi o príncipe, que a chamava " seu achado precioso".  E ela dançou e tornou a dançar, ainda que sentisse, cada vez que seus pés tocavam o solo, que agudas facas os retalhavam. Declarou o príncipe que não se separaria dela, e permitiu-lhe que dormisse diante da sua porta, em uma grande almofada de veludo.
    Determinou logo que lhe dessem vestes masculinas, para que o acompanhasse em seus passeios a cavalo. Iam então  pelas florestas cheirosas, sentindo nos ombros o roçar dos galhos das árvores, e ouvindo o canto dos passarinhos, pousados na verde folhagem. E a princesinha subiu montanhas ao lado do príncipe; sangravam-lhe os pés delicados, mas, apesar do martírio, ela sorria, e continuava a segui-lo na escalada. E lá de cima viam as nuvens, que fugiam a seus pés, como bandos de aves migratórias em busca de terras distantes.
   À noite, enquanto todos dormiam no palácio, a sereia ia sentar-se nos últimos degraus da escada de mármore, para refrescar os pés ardentes na água do mar; e pensava então naqueles que deixara e que viviam lá no fundo.
    Uma noite suas irmãs, de braços dados, subiram à superfície da água,cantando cantigas melancólicas. Ela lhe fez sinal. As sereias, reconhecendo-a, aproximaram-se e contaram quanto se tinham afligido com a sua falta. E desde então se habituaram a ir visitá-la todas as  noites; uma noite viu até a avó, que há muitos anos não subia à tona, e também viu seu pai, o rei do mar, de coroa à cabeça. Ambos estenderam-lhe os braços , porque não ousavam, como as moças chegar tão perto da terra.
   De dia em dia aumentava seu amor pelo belo príncipe, que também tinha afeição àquela menina encantadora e boa. Nunca, porém, lhe passara pela cabaça a ideia de casar com ela. E, contudo, era preciso casar com ele, sem o que jamais alcançaria uma alma imortal! Mais ainda - se ele viesse a desposar outra, no dia seguinte ao casamento ela se desfaria em espuma!
    E, quando ele a abraçava, beijando-lhe a linda fronte, seus olhos pareciam perguntar:
    - Não me amas mais que a todas as outras, então?
    - Sim, és a minha predileta - disse-lhe ele- porque tens o melhor coração, entre todas, e porque me és tão devotada; e, principalmente, porque te pareces com uma menina que vi  um dia, mas a quem nunca mais encontrei na vida. Meu barco naufragou e as ondas me arrastaram para terra, atirando-me para junto de um templo, onde serviam várias donzelas. Uma delas encontrou-me na praia e salvou-me a vida. Vi-a somente duas vezes, mas é a única jovem a quem poderia amar. Tu te pareces com ela e quase apagaste já da minha alma a sua imagem. Ela pertence ao templo sagrado: por isso minha boa estrela te enviou para o meu lado- e jamais nos separaremos!
    - Ai de mim! - suspirou consigo a sereia.- Não sabe que quem lhe salvou a vida fui eu! Eu, que o levei, nadando, até o bosque onde está o templo sagrado, e escondida entre a espuma, fiquei ali, à espera de que algum ser humano viesse socorrê-lo! Ah! conheço, sim, a linda jovem a quem ele ama mais do que a mim!
    Suspirava, muito triste - porque as sereias não podem chorar- dizendo no íntimo do coração dolorido:
    - Diz que a moça pertence ao templo sagrado, e por isso jamais retornará ao mundo, e que nunca mais a verá- enquanto eu estou aqui, ao pé dele, e vejo-o todos os dias... Pois bem: hei de velar por ele, hei de amá-lo, e sacrificarei por ele a minha vida!
    Não tardou que aparecesse rumores de que o príncipe ia casar com a bela filha do rei vizinho, e para isso estava aparelhando um magnífico navio. O príncipe ia fazer, de fato, uma viagem de recreio àquele país. Devia acompanhá-lo numeroso séquito. Mas a sereiazinha sorria, sacudindo a cabeça: conhecia, melhor que ninguém, os pensamentos do príncipe, que lhe dissera:
    - Tenho de viajar; preciso ver essa linda princesa, pois que meus pais assim o querem; mas a ninguém me obrigará a trazê-la como esposa, não! Não a  amo, não posso amá-la: ela não pode parecer-se como tu, com a donzela do templo. E se eu fosse compelido a escolher uma noiva, casaria contigo, meu mudo achado, com um olhar tão expressivo.
     E beijo-lhe os lábios rosados, acariciou-lhe os longos cabelos, e descansou a cabeça sobre o coração da sereia, que batia descompassadamente, na esperança da felicidade humana, e de uma alma imortal
     E, quando se acharam no magnífico navio que os levava para os domínios do rei vizinho, perguntou-lhe:
    - Não tens medo do mar, minha pobre pequena?
     E falou-lhe das tempestades e das clamarias, dos peixes singulares que vivem nas profundezas das águas, e das coisas admiráveis que os mergulhadores tinham visto no fundo do mar. E, ouvindo-o, sorria a sereia, que sabia mais de tudo isso do que qualquer ser humano.
     Á noite, à luz do luar, quando todos dormiam a bordo,a sereia sentou-se na amurada e, olhando fixamente para  as águas claras, imaginou que via o palácio de seu pai. E acima dele pairava sua velha avó, coroada de prata, que olhava intensamente para a quilha do navio. depois as irmãs subiram à tona: olhavam tristes para ela e torciam as mãos aflitas. acenou-lhes sorrindo; desejava dizer-lhes que estava bem, e era feliz; mas nesse momento aproximou-se o grumete, e as sereias submergiram depressa, deixando-o a pensar que as formas alvas que lhe parecia ter avistado não eram mais que a espuma que sobrenadava.
     No dia seguinte o navio aportou à esplêndida capital do reino vizinho. Todos os sinos repicavam, soavam trombetas no alto dos torreões; e a tropa, de vistosos uniformes e armas brilhantes, estava a postos para prestar as honras devidas ao ilustre estrangeiro.
     Eram festas diárias; sucediam-se incessantemente os bailes e espetáculos. Mas a princesa ainda não chegara: diziam que fora educada em longínquo convento, onde adquirira todas as prendas da realeza. Mas afinal chegou. A sereia estava ansiosa por vê-la a ajuizar por si própria da beleza da outra. E teve de reconhecer que nunca vira rosto mais belo.
     Ao avistá-la, exclamou o príncipe:
     - És tu! Tu, que me salvaste, quando estava estendido na areia da praia morto!
      Tangiam todos os sinos; os arautos proclamavam pelas ruas o próximo casamento. Em todos os altares ardiam óleos perfumados em lâmpada de prata. Os sacerdotes agitavam os turímbulos, enquanto os noivos uniam as mãos , para receber a benção. A sereiazinha, vestida de seda e ouro, segurava a cauda da noiva; mas seus ouvido não ouviam a música solene, e seus olhos não viam nada da cerimônia; ela pensava na morte sombria que se aproximava e em tudo o que perdera no mundo, e perdera irremediavelmente.
     Na mesma tarde foram os noivos para bordo. Troavam os canhões e as  bandeiras esvoaçavam ao sopro da brisa. No convés tinha sido armada rica tenda de ouro e púrpura, toda forrada de lindas almofadas, para repouso do casal de príncipes.
    Aproveitando o vento favorável, o navio desfraldou as velas e deslizou suavemente no mar sereno.
    Á noite foram acesas luzes multicores, e a maruja dançou alegremente na coberta. Não podia a sereia deixar então de recordar a primeira vez que subiu à flor d'água e presenciou uma festa semelhante. E entrou na ronda da dança, equilibrando-se no ar, como uma andorinha perseguida: e todos admiravam aquela dança maravilhosa, porque nunca ela havia dançado com tanta graça e leveza. Sentia nos pés agudas facadas - mas isso não lhe importava, pois que dor mais cruciante lhe despedaçava o coração. Sabia que era a última noite que passava ao pé daquele por quem tinha abandonado a família e o lar, pelo qual sacrificara a linda voz e padecera dores pungentes. Era a última noite em que podia contemplar a imensidão do mar e o céu estrelado. Noite eterna que nenhum sonho, nenhum pensamento animaria, era aquela que a esperava - porque não tinha alma e já não lhe era dado conquistá-la.
     Tudo era sossego agora, a bordo todos dormiam- todos, menos o timoneiro que dirigia a nau, e a sereiazinha, que, junto à amurada, examinava o Oriente, esperando o primeiro raio de sol, que devia matá-la. Viu então as irmãs, que se erguiam da branca espuma. Estavam tão pálidas que quase não as reconheceu, e já não possuíam aquela cabeleira longa e flutuante.
    - Nós entregamos os cabelos à bruxa velha  para que nos ajudasse agora e não morresses hoje. Ela nos deu em troca uma faca- e que afiada!  Olha aqui! Agora, antes que o sol nasça, enterra-a no coração do príncipe. Quando o sangue quente te salpicar os pés, voltarão eles à sua primitiva forma de cauda de peixe e tornarás a ser sereia: poderás então descer como nós ao fundo do mar, voltarás ao nosso lar, e viverás trezentos anos. Nossa avó tem vivido tão triste... Depressa! Tu ou ele - um tem de morrer antes que o sol nasça.
   E, lançando à irmã um último olhar, cheio de súplica, desapareceram as sereias no redemoinho das ondas.
   Ela ergueu a cortina escarlate da tenda e entrou.Curvou-se e contemplou o príncipe.  Olhou depois para o céu, onde a aurora aumentava de esplendor de instante a instante; olhou para o agudo punhal, e tornou a olhar para o príncipe, que em sonhos pronunciava o nome da noiva. Ah! Como ele a ama! E a sereia sentiu os dedos apertarem convulsivamente a faca... Mas ergueu a cabeça e, num gesto resoluto, atirou o punhal ao mar. Olhou ainda o príncipe, com um olhar já meio apagado. Lentamente, alcançou a amurada, e, ao confundir-se com as ondas, sentiu que seu corpo se ia diluindo em espuma.
FIM






sexta-feira, 23 de outubro de 2015

PEPITA DE LEÃO

Pepita de Leão, filha mais velha de José Salomão de Leão,professor e jornalista, e de sua esposa, Belmira da Costa Leão, nasceu em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, a 15 de dezembro de 1875. Cedo revelou sua vocação para o magistério e, quando se mudou com a família para porto Alegre, capital do  Estado, matriculou-se na Escola Normal, recebendo o diploma de professora em 1901. Depois de ensinar particularmente, submete-se, em 1904, a concurso de provas para ingresso no magistério público. Aprovada, foi nomeada para a escola de Estância Grande, no Município de Viamão. Por essa época o Ginásio do Rio Grande do Sul( hoje Colégio Estadual Júlio de Castilhos) decidiu aceitar estudantes do sexo feminino, e Pepita de Leão fez o curso de bacharel em Ciências e Letras, concluindo-o em 1907. Ensinou durante alguns anos no mesmo Ginásio, depois dirigiu grupos escolares em São Borja e Taquari. Voltando a Porto Alegre, dedicou-se novamente ao ensino particular até ser nomeada professora num dos grandes grupos escolares da capital. Em 1941 foi convidada a reger uma cadeira de português no curso ginasial do Instituto de Educação de Porto Alegre, cadeira que ocupou até agosto de 1945, quando adoeceu gravemente, vindo a falecer  dois meses depois, a 10 de outubro de 1945.
    A par de sua atividade docente, Pepita de Leão cultivou a literatura, tendo publicado vários livros traduzidos e alguns originais, além de trabalhos esparsos em jornais e revistas, sobre educação e especialmente literatura infantil. Entre os livros que traduziu, figuram obras de autores mundialmente conhecidos: Kingsley, Lewis Carrol, Joana Spyri, David Wyss, Robert Louis Stevenson, Charles Dickens, Hans Christian Andersen. Deste último, organizou a edição dos Contos, que a Editora Globo ora apresenta ao público brasileiro.

ROSWITHA WINGEN-BITTERLICH-

 A ilustradora deste volume, Roswita Wingen-Bitterlich, nasceu 24 de abril de 1920, perto do lago da Constança, Na Áustria Ocidental, próximo à Suiça. Seu pai era, naquela época, empregado do governo. Tanto o pai como a mãe descendem de famílias de funciónarios públicos e militares austríacos. Seus antepassados procedem, em parte, Da Holanda, da alta Itália e da região boêmio-morávia de língua alemã. Durante o primeiro ano de vida de Roswitha, sua família transferiu residência para a Boêmia alemã, na atual Checoslováquia, onde estavam radicados parentes de seu pai. Este abandonou o serviço do governo para ocupar um cargo de direção na indústria. Ali, a família passou a viver muito bem, e nasceram mais dois irmãos de Roswitha. As crianças tiveram uma infância maravilhosa.
    Muito cedo se manifestou em Roswitha a tendência a interpretar  ideias e sentimentos por meio do desenho. Em poder dos pais existem alguns trabalhos que a menina executou aos dois e três anos de idade. São desenhos que representam o pai, a mãe, os irmãos e ela mesma. O interesse, pela arte e o talento artístico, de seus pais, criaram uma atmosfera fecunda no lar paterno. A menina progredia com rapidez, revelando, claramente, acentuada inclinação para a arte.
   Roswitha contava oito anos de idade quando seus pais retornaram à Áustria. Esse fato representou uma modificação radical na vida da menina. Pela primeira vez conhece o que são privações. Daí por diante o tema social se repete sempre em seus trabalhos. Cria obras acentuadamente sombrias e lúgubres, que já não traduzem mais um espírito infantil.
   Aos dez anos Roswitha passa a frequentar o ginásio, e, quando atinge os doze, organiza-se na sua Cidade de Innsbruck, pela primeira uma pequena exposição de suas aquarelas e desenhos a bico de pena. Seus trabalhos despertam grande atenção . Dosi anos depois, realiza-se outra exposição onde são também apresentados quadros grandes a óleo. Em 1935, o Chanceler Schuschinigg inaugura em Viena uma exposição de proporções ainda maiores. A extraordinária repercussão que produz na imprensa do país e do esterior torna a joem artista conhecida, não só em sua pátria, como na europa e nas terras de ultramar. At;e o início da guerra seguem-se exposições na maior parte das cidades da Europa: Praga( 1936), Amesterdã, Roterdã, Copenague (1937), Zurique, Londres, Haia(1938), Munique e Stuttgart (1939). Todas as exposições são coroadas de grande êxito. Depois irrompe a guerra, que  faz cessar essas atividades.
    Após a sua formatura, no verão de 1938, Roswitha passa alguns meses estudando em Roma. No outono do mesmo ano vai para Stuttgart como aluna-mestra a fim de aprender as diversas técnicas da arte gráfica. A seguir frequenta por alguns anos a Academia de Arte da mesma cidade. Produz o ciclo Eulenspiegel, gravuras a água-forte profundamente melancólicas, em torno das quais, mais tarde, um escritor alemão desenvolveu um trabalho sobre a filosofia da arte. Há alguns anos, uma das editoras mais conhecidas da Alemanha publicou essa obra juntamente com as gravuras.
   Aos anos de estudo em Stuttgart segue-se mais uma nao na Academia de arte de Berlim, já bastante abalada pelos crescentes bombardeios aéreos. A partir de 1934, Roswitha passa o último período de guerra com sua mãe na Áustria, enquanto o pai e os irmãos se encontram nas linhas de frente. Logo após terminar a conflagração mundial, casa-se com um escritor alemão, que dois anos depois vem a falecer dos efeitos de sua detenção por motivos políticos num campo de concentração nazista. Sobrevëm uma longa interrupção em sua atividade artística. Entretanto, consegue recuperar-se e adaptar-se novamente à  vida, embora os tristes sucessos dos últimos anos hajam deixado vestígios profundos. Roswitha vive com sua filinha em Innsbruck e dedica-se quase exclusivamnete ã  arte religiosa. Por esse caminho, chega à pintura de afrescos. O primeiro mural de Roswitha, pintado em 1950, encontra-se numa igreja de Viena; mais tarde ela executa outros em diversas cidades.Sua inclinação e taento especiais para o desenho, como meio de expressão de concepções e vivências, persiste e se manifesta sempre de novo, assim como no desenho a cores.
    Em 1955 Roswitha emigra para America do sul. No Brasil contrai novas núpcias com o Prof. Hubert Wingen, e desse consórcio nascem dois filhos.
      Passa a trabalhar como ilustradora em Porto Alegre, onde inicia a sua coloboração para a Editora Globo ilustrando volumes de contos de Hans Christian Anderson.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

HANS CHRISTIAN ANDERSEN

De Esopo a Walt Disney, que longos e acidentados caminhos percorreu o homem! Quantas coisas novas surgiram, mudaram, desapareceram! Mas, em meio à voragem do Tempo, algumas coisas subsistem e se repetem; as crianças de hoje, por exemplo, são como as crianças de sempre. em todas elas, nas contemporâneas de Alexandre ou de Napoleão, como nas de hoje, o que ocorre é o mesmo interesse pelo mundo do faz-de-conta, pelo mundo da imaginação. por isso, como em todos os tempos houve crianças, em todos os tempos houve contadores de histórias. Pode-se até imaginar , já no período das cavernas, um peludo e selvagem troglodita a relatar, mais com os gestos que com palavras, sua luta, com um urso formidável, e as crianças, ao fundo, encolhidas de medo e fascinação, a acompanhar o fantástico desenrolar da peleja.
     A esse troglodita remoto sucederá, na antiguidade, o fabulista Esopo. Depois virão, na Idade Média, os anônimos compiladores das  Gesta Romanorum - com seus romances, narrativas de viagens, bestiários, que se  destinavam aos adultos, mas que a gente miúda disputava ávidamente.  Gente miúda que mais tarde, difundida a imprensa, se encantará com episódios da Bíblia, com histórias dos mártires e das perseguições romanas.
     As crianças foram exigindo histórias, fantasias; e elas foram surgindo. Assim, em 1654, em Nuremberg, o Bispo Comenius publica o primeiro livro ilustrado infantil de que existe notícia. Pouco depois, para aquietar as rebeldias de seu real discípulo, Fénelon escreve suas famosas Aventuras de Telêmaco, que ainda hoje se lêem com prazer. Quase ao mesmo tempo apareciam os Contos de Perrault ( entre eles a História  da Gata Borralheira) e passava a circular na Europa traduções dos fabulosos relatos das Mil e uma  Noites.

PRIMEIRA META CUMPRIDA

 O primeiro livro está salvo, pois meus queridos livros estão estragando, então eu resolvi transcreve-los , isto está preenchendo minha vida , com muita diversão e cultura.

A COTOVIA- CONTOS DE GRIMM

Era uma vez um homem que ia fazer uma viagem muito grande. Ao despedir-se de suas três filhas, perguntou o que desejavam que lhes trouxesse. A mais velha pediu pérolas; a segunda diamantes; a terceira disse:
    - Pai querido, desejo que me tragas uma cotovia que saiba cantar e saltar.
     - Se eu a encontrar , será tua! - E, beijando as três filhas, partiu.
      Quando  chegou a época de regressar, tinha já comprado os diamantes e as pérolas para as duas filhas mais velhas, mas quanto à cotovia que lhe pedira a mais moça, não havia podido encontrá-la em lugar algum e isso lhe fazia pesar a consciência, pois aquela filha era a sua preferida.
      Aconteceu que seu caminho passava por uma floresta, no meio da qual havia um palácio maravilhoso. Perto dele se erguia uma árvore. E eis que no alto dessa árvore o homem descobriu uma cotovia que lá estava cantando e saltitando.
      - Vens muito  a propósito! - exclamou alegremente. Chamou o criado e mandou que subisse à copa da árvore para apanhar o passarinho. No entanto, ao acercar-se, um leão que estava deitado à sua sombra, saltou, feroz, sacudindo a juba e rugindo de tal maneira que a folhagem das árvores em redor chegou a tremer.
   - Devorarei quem tentar roubar minha cotovia.
     O homem, então, desculpo-se, dizendo:
    - Ignorava que o pássaro fosse teu; repararei minha falta e te pagarei bom preço em dinheiro. Peço, apenas, que me poupes a vida.
    Respondeu-lhe o leão:
   - Nada poderá salvar-te, exceto a promessa de me entregares o que primeiro venha a teu encontro quando chegares à tua casa. se te serve esta condição, eu te pouparei a vida e ainda te darei o pássaro para tua filha.
    Mas o homem negou-se, argumentado:
    - Poderia ser minha filha mais moça, que é a que mais estimo. Ela sai sempre ao meu encontro quando volto para casa.
     O criado, louco de medo, interferiu:
    - Não há de ser, precisamente, sua filha que irá ao seu encontro; talvez seja um gato ou um cachorro.
  O   homem acabou se convencendo e, apanhando a cotovia, prometeu dar ao leão que primeiro lhe viesse ao encontro quando chegasse em casa.
    De regresso ao seu país e chegando à sua moradia, quem primeiro saiu a recebê-lo? Precisamente a sua filha querida! Correu, logo, a beijá-lo e, vendo a cotovia, não cabia em si de contente. O pai, no entanto, em vez de alegrar-se, começou a chorar, dizendo:
    - Filhinha querida, pagarei bem caro por esta pequena ave, pois devo entregar-te a um leão feroz que irá te estraçalhar e comer. Depois contou o que sucedera, pedindo-lhe que não fosse, acontecesse o que acontecesse. A jovem, porém, consolou-o.
    - Paizinho querido, deves cumprir tua palavra. Irei e estou certa de que vou conseguir amansar o leão e regressar sã e salva.
    Na manhã seguinte, pediu que lhe indicassem o caminho e , depois de despedir-se de todos, entrou, confiante, na floresta. Acontecia, porém, que o leão era  um príncipe encantado, o qual durante o dia  tinha a forma daquele animal , bem como os seus criados, mas à noite todos eles recobravam suas figuras humanas. Quando a moça chegou, foi acolhida amavelmente e conduzida ao palácio, e, ao anoitecer, viu à sua frente um belíssimo jovem, com quem se casou em meio de grande pompa. Viviam, assim, muito felizes, acordados durante a noite e dormindo de dia. Certa ocasião, quando voltava ao palácio, lhe disse o príncipe:
     - Amanhã tua irmã mais velha casa-se e haverá festa no teu lar; se quiseres tomar parte , meus leões te acompanharão.
     Ela respondeu que sim, que muito lhe agradaria tornar a ver seu pai, e logo seguiu caminho, escoltada pelos leões. Em sua casa todos a receberam com imensa alegria, pois acreditavam que o leão a houvesse  estraçalhado e, portanto, que ela estava morta há muito tempo. Mas a moça lhes contou que belo marido tinha e como viviam felizes. ficou com os  seus até o fim da festa e depois retornou ao bosque. Quando a segunda filha ia, também casar-se, naturalmente a princesa foi convidada e disse ao leão:
    - Não quero ir só. Desta vez deves acompanhar-me.
    Mas o marido lhe explicou que seria extremamente perigoso. pois logo que o tocasse um raio de luz procedente de um fogo qualquer, ele se transformaria em pomba sendo, então, obrigado a voar durante sete anos como aves.
    - Nada temas! - exclamou a moça.- Vem comigo que eu te resguardarei de qualquer raio de luz.
     Partiram os dois, levando seu filhinho. A princesa, ao chegar em casa, ordenou logo que construíssem um muro ao redor de uma das salas, tão forte e espesso que nenhum raio de luz fosse capaz de atravessá-lo. seu esposo permaneceria ali enquanto estivessem acesas as luzes da festa. Mas aconteceu que a porta, que era de madeira verde, rachou, abrindo-se uma  pequeníssima fresta da qual ninguém se deu conta. A cerimônia foi realizada com grande esplendor e quando a comitiva, de regresso, passava diante da sala com suas tochas e velas acesas, um raio luminoso, fino como um cabelo, atingiu o príncipe. No mesmo instante o jovem transformou-se e sua esposa, ao entrar na sala, não viu senão uma pomba branca, que lhe falou:
   - Durante sete anos terei de voar, errante pelo mundo . Entretanto, de quando em quando, deixarei cair uma gota vermelha de sangue e uma pena branca que te mostrarão o caminho. Se seguires essa pista , poderás libertar-me.
    A pomba saiu voando pela porta e a princesa a seguiu. A cada sete passos que ela dava, caíam uma gotinha de sangue vermelho e uma peninha branca, indicando-lhe o caminho. A moça continuou a andar pelo vasto mundo, sem olhar para trás nem cansar-se nunca. Assim o tempo foi passando e quando já quase haviam passado os sete anos, a princesa pensou, alegremente, que em breve estariam libertados do encanto. A pobrezinha nem supunha como ainda estava longe de alcançar o seu propósito. Certa vez, já pronta para prosseguir sua caminhada, notou, de repente, que as gotinhas de sangue não caíam mais, nem as peninhas brancas. E, quando ergueu os olhos, não viu nem sinal da pomba. A princesa, chegando à conclusão de que os humanos não poderiam ajudar, subiu ao encontro do Sol e lhe disse:
    - Tu, que iluminas todas as  frinchas e todos os recantos, não terás visto uma pomba branca?
     - Não - respondeu-lhe o Sol- não vi nenhuma, mas faço-te presente de um cofre que deverás abrir quando te achares em grande dificuldades.
     A princesa agradeceu ao Sol e seguiu caminhando até cair da noite. Quando saiu a Lua, dirigiu-se a ela, preguntando:
    - Tu, que brilhas toda noite e iluminas campos e florestas, não terás visto uma pomba branca?
     - Não - retrucou a lua- não vi; mas faço-te presente de um ovo. Quebra-o quando te encontrares em grandes dificuldade.
    A jovem agradeceu à lua e continuou sua jornada até que a brisa noturna começou a soprar. Dirigiu-se, também, a ela, indagando:
   -  Tu, que sopras sobre todas a s árvores e sobre todas as folhas, não viste uma pomba branca?
    - Não- respondeu-lhe a brisa- não vi nenhuma, mas perguntarei aos outros três ventos; talvez eles a tenham visto.
    Veio o vento leste e o vento oeste, mas nenhum deles tinha viso nada; depois surgiu o vento sul, que disse:
    - Vi a pomba branca; voou até o Mar Vermelho e la´voltou a transformar-se em leão, pôs os sete anos já passaram . ali ele está em combate feroz com um dragão, porém, é uma princesa encantada.
     A brisa noturna, então, falou:
   - Vou dar-te o meu conselho. Vai até o Mar Vermelho. Em sua margem direita há umas varas muito grandes. Conta-as e corta a décima-primeira; com ela golpeia o dragão. em seguida o leão o vencerá e ambos retomarão a forma humana. Logo depois, olha ao redor e verás a ave chamada grifo, que habita as paragens do Mar Vermelho. Tu e teu amado deverão montar nela e o animal os levará de volta para casa, voando por cima do mar. Aqui dou-te uma noz. Quando te encontrares sobre o mar, solta-a; brotará logo e da água surgira uma nogueira grande, onde a ave poderá descansar. Se não puder fazê-lo, não terá força suficiente para transportá-los até a margem oposta. Caso te esqueças de soltar a noz, o grifo os lançará no mar.
    Partiu a jovem princesa e tudo se sucedeu tal como dissera a brisa noturna. contou as varas da beira do mar, cortou a décima-primeira e com ela golpeou o dragão. Em seguida o leão venceu o combate e, no mesmo instante, ambos recuperaram suas respectivas figuras humana. Mas, logo que a outra princesa- a que estivera encantada em forma de dragão- ficou livre do feitiço, tomou o jovem pelo braço, montou com ele no grifo e levantou vôo, abandonando a desventurada esposa, que ficou a chorar, amargamente. por fim, criando coragem, pensou:- "Enquanto o vento soprar e o galo cantar, continuarei andando, até encontrá-los."
     Percorreu longo, longos caminhos, e chegou , finalmente, ao palácio onde os dois moravam . Ali ficou sabendo que iria ser celebrada a festa de seu casamento. Disse ela:" Deus me ajudará" e, abrindo o cofre que lhe dera o Sol, viu que havia dentro um vestido brilhante como o próprio astro-rei. Vestiu-o e entrou no palácio, onde todos os presentes, inclusive a própria noiva, ficaram olhando para ela, assombrados. O vestido agradou tanto à noiva que pensou em comprá-lo para seu casamento. Assim, perguntou  à forasteira se não o queria vender.    - Por dinheiro não- respondeu ela- mas troco-o por carne e sangue.
      A  noiva perguntou o que queria dizer com aquelas palavras e ela lhe respondeu:
     - Deixa-me dormir uma noite no mesmo quarto em que dorme o noivo.
      De início a princesa negou-se. No entanto, como desejava muito o vestido, acabou concordando. Mas mandou a camareira dar secretamente ao príncipe alguma coisa que o fizesse adormecer. Chegada a noite, quando ele já dormia profundamente, introduziram a jovem no aposento. esta sentou à beira do leito e falou:
    - Eu te segui durante sete anos; fui ao Sol, à Lua e aos quatro ventos perguntar por ti e ainda te ajudei contra o dragão. E, agora, vais esquecer-me?
    Mas o príncipe, em sono profundo, só percebeu um ligeiro rumor como o do vento passando entre os pinheiros.
    Pela manhã, a  jovem foi despedida e entregou o vestido. Ao ver que tudo aquilo de nada servira, dirigiu-se para o campo, onde , triste e amargurada, sentou-se a chorar. Nisto se lembrou do ovo que a Lua lhe havia dado. Quebrou-o e pareceram uma galinha e doze pintinhos, todos de ouro, que corriam, ligeiros, piando e voltavam a refugiar-se embaixo das asas da mãe. Era um espetáculo sem igual no mundo. Levantou-se e deixou-os correr pelo campo, até que a noiva os viu de sua janela e, agradando-se dos pintinho, desceu para  perguntar se ela queria vendê-los.
      - Por dinheiro não- respondeu a jovem . - Só os darei em troca de carne e sangue. Permite que eu passe outra noite no quarto do noivo?
       A princesa consentiu, pensando em enganá-lo como da vez passada. Mas  o príncipe, ao ir deitar-se, perguntou a seu camareiro que rumores eram aqueles  que haviam agitado seu sono na outra noite. O criado, então, contou tudo o que acontecer: que lhe haviam mandado dar-lhe uma bebida para dormir porque uma moça queria passar a noite em seu quarto e que agora estava incumbido de administrar-lhe nova dose. Disse-lhes o príncipe:
    - Derrama o narcótico ao lado da cama.
     E, novamente, sua esposa foi introduzida no aposento. Quando começou a contar sua triste sorte, ele  a reconheceu pela voz e, erguendo-se de um salto, exclamou:
    - Agora estou livre de todo o feitiço. Tudo isso foi um como um sonho para mim, pois a princesa estranha me encantou e  obrigou a esquecer-te. Deus, porém, veio libertar-me, em tempo, da perda de minha memória.
      E os dois esposos partiram, em segredo, do palácio, auxiliados pela escuridão da noite, pois temiam o pai da princesa, que era bruxo. Montaram no grifo, que os levou através do Mar Vermelho e , quando chegaram na metade, a princesa soltou a noz. Em seguida surgiu das águas uma nogueira muito grande onde a  ave pode descansar, levando-os depois à sua casa. Lá encontraram seu filinho, já crescido e lindo, e viveram felizes até o fim de seus dias.
FIM


 

 



 

O POBRE E O RICO - CONTOS DE GRIMM

Há muitíssimos anos, quando Nosso Senhor andava pela Terra, aconteceu que certa vez, ao entardecer, sentiu-se cansado e a noite veio surpreendê-lo antes de chegar a uma hospedaria. Encontrou em seu caminho duas casas, uma em frente à outra: a da esquerda era grande e luxuosa; a da direita era pequena e humilde. A primeira pertencia a um homem rico  e a segunda a um pobre. Pensou Nosso Senhor: " Se me hospedo na casa do rico, isso não lhe saíra pesado; vou passar a noite ali."
      Quando o homem ouviu que batiam à porta, abriu  a janela e perguntou ao forasteiro o que desejava. Respondeu-lhe Nosso Senhor:
     - Peço pousada por uma noite.
    O rico fitou o viajante dos pés à cabeça. Viu que trajava modestamente e não tinha a aparência de pessoa com os bolsos cheios de dinheiro. Sacudiu a cabeça, dizendo:
   - Não posso acolher-te ; todas a peças estão  repletas de plantas e sementes e, se fosse abrigar todos os que batem à minha porta, em breve teria eu mesmo de pegar num bastão e mendigar. terás de pedir hospedagem noutra parte.
     Fechou a janela e deixou parado Nosso Senhor. Este, voltando-se, encaminhou-se para a outra casa. Mal havia batido, o pobre abriu a porta e o convidou a entrar.
    - Passa aqui a noite- disse-lhe o dono da casa.- Já escureceu e hoje não poderás ir adiante.
    Tal acolhida agradou a Nosso Senhor e ele entrou. A mulher do pobre estendeu-lhe a mão, deu-lhe as boas-vindas e lhe disse que se considerasse como em sua casa; pouco tinham , mas de bom grado lhe ofereciam. Em seguida pôs a cozinhar umas batatas e nesse meio tempo ordenhou a cabra, para terem, também, um pouco de leite. Quando a mesa estava posta, Nosso Senhor sentou-se e comeu com eles. A refeição frugal agradou-lhe muito , pois a satisfação refletia-se no rosto dos que o cercavam. Terminada a janta e sendo já hora de deitar, a mulher chamou o marido à parte e lhe disse:
    - Escuta, marido: esta noite poderíamos dormir na palha para que  o pobre forasteiro possa descansar em nossa cama. Caminhou todo o dia e deve estar exausto.
    - Estou plenamente de acordo - respondeu ele.- Vou dizer-lhe.
     E, aproximando-se do Senhor, ofereceu-lhe a cama onde poderia descansar comodamente. Nosso Senhor não quis tirar o conforto dos dois velhos e recusou a oferta, mas eles tanto insistiram que, por fim, teve de aceitar. O casal, então, ajeitou um leito na palha e ali dormiram.
    Na manhã seguinte, bem cedo, prepararam uma refeição, a melhor possível, para o forasteiro. E quando o sol entrou pela janela, Nosso Senhor despertou, comeu de novo, com eles e se dispôs a seguir seu caminho . Na porta, voltou-se e disse:
    - Já que se mostraram tão compassivos e piedoso, podem fazer três pedidos que eu os atenderei.
    - Que outra coisa poderíamos desejar senão a salvação eterna e que, enquanto vivermos, não nos falte saúde e um pedaço de pão?
     E disse Nosso Senhor:
   - Não lhes agradaria ter uma casa nova em lugar desta velha?
     - Oh, sim! - exclamou o homem. - Se isso fosse possível, é claro que me agradaria.
     E Deus Nosso Senhor satisfez os seus desejos; transformou a casa velha em nova e partiu, depois de dar-lhes a benção.
    O sol já estava alto quando o rico se levantou. Foi à janela e viu em frente uma linda casa nova, coberta de telhas vermelhas, no lugar onde antes estava uma velha choupana. Arregalou bem os olhos e foi chamar a mulher, exclamando:
    - Não podes me dizer o que houve? Ontem à noite ainda havia uma choupana velha e miserável, e hoje vejo uma casa bonita, completamente nova. corre lé e indaga como isso aconteceu.
     A mulher saiu para indagar do pobre e este lhe contou:
   - Ontem à noite chegou um viajante à procura de albergue e esta manhã, ao despedir-se, atendeu a três pedidos que nos concedeu: a salvação eterna, saúde e o pão de cada dia; além disso, transformou nossa choupana nesta bela casa.
    A mulher do rico correu a relatar ao marido o que ouvira, este exclamou desesperado;
    - Gostaria de me arrancar os cabelos e de me esbofetear a mim mesmo! O forasteiro esteve aqui, pedindo-me que o deixasse passar a noite em nossa casa, e eu o mandei embora!
    - Pois não perca tempo,- disse-lhe a mulher.- Monta a cavalo e ainda alcançarás o homem. Faz com que também te conceda três graças.
    O rico seguiu o bom conselho da mulher e partiu a cavalo, Não tardou em alcançar Nosso Senhor e, dirigindo-se a ele, com toda a lisura e cortesia, pediu que não levasse a mal não tê-lo acolhido logo, mas que, enquanto entrara para apanhar a chave, ele se havia ido. Portanto, se quisesse dar volta , o acolheria, de muito bom grado, em sua casa.
   - Bem- disse-lhe Nosso Senhor- se algum dia eu voltar a estas terras, assim farei.
    O rico, então, perguntou se não poderia formular três desejos, como o seu vizinho. Nosso Senhor respondeu-lhe que sim , mas aconselhou que não o fizesse, pois seria para o seu mal. Mas o rico disse-lhe que não se preocupasse porque escolheria algo que, na certa, o tornaria feliz, contanto que lhe fosse concedido.
    - Pois então volta à tua casa e verás realizados teus três desejos- falou o Senhor.
   O rico, tendo conseguido a promessa, deu volta e começou a pensar sobre o que poderia  pedir. Mergulhado em seus pensamentos, soltou as rédeas e o cavalo pôs-se a dar pinotes, fazendo-o perder, a cada instante, o fio de seus pensamentos.
     - Calma! Calma! - disse, batendo no pescoço do animal; mas este seguiu com suas travessuras. O homem acabou perdendo a paciência e esbravejou:
    - Tomara que quebre o pescoço!
     Mal havia pronunciado essas palavras- pluft!- foi jogado ao chão e o cavalo caiu morto a seu lado. Com isso o seu primeiro desejo estava cumprido. Avarento como era, ele não quis abandonar ali a sela. Tirou-a do animal, colocou-a nos ombros e seguiu a pé. " Ainda te  restam dois desejos" - pensou, consolando-se com essa ideia. Caminhava, devagar, pela areia, pois o sol estava a pino e já era meio-dia, o calor começou a tornar-se insuportável e ele a sentir-se cada vez  mais impaciente. Pesava-lhe a sela e, por outro lado, não acertava com que seria mais conveniente pedir. " Ainda que desejasse todos os tesouros e riquezas da terra" - dizia para os seus botões- " sei que depois me ocorreriam outras mil coisas. Devo, pois, arranjar tudo de maneira que, ao formular meus desejos, não possa ambicionar mais nada. " E , suspirando, disse me voz alta:
     - Sim, se eu fosse aquele camponês que um dia , podendo também pedir três graças, desejou; primeiro beber muita  cerveja; depois tanta cerveja quanta fosse capaz de beber , e finalmente mais um barril de cerveja...
   As vezes creditava haver encontrado algo que pedir, mas logo aquilo lhe parecia muito pouco. Então, de repente, lhe veio o pensamento de que, enquanto ele se cansava daquele jeito, sua mulher, bem instalada em casa, numa sala fresca, estava passando muito bem! A idéia o enfureceu tanto que, sem dar-se conta, resmungou:
     - Tomara que ela estivesse montada nesta sela não pudesse desmontar , em vez de estar eu carregando este trambolho às costas.
     No que acabou de pronunciar a última palavra , a sela desapareceu de seus ombros e o homem compreendeu que acabava de se realizar seu segundo desejo. Aí mesmo é que começou a sentir mais calor. Deitou a correr para chegar  rapidamente em casa e meter-se numa sala a fim de pensar, com calma, em algo bem importante para o seu terceiro pedido. Mas quando lá chegou  e abriu a porta, a primeira coisa que viu foi sua mulher montada nas sela, gritando e chorando porque não podia descer. Disse-lhe o marido:
    - Acalma-te ; eu te conseguirei todas as riquezas do mundo, mas fica sentada aí.
     A mulher , porém, chamou-o de idiota e gritou:
    - De que me servirão todas as riquezas do mundo se não posso descer desta sela? Já que me puseste aqui, tira-me agora.
    O marido, quisesse ou não, teve de formular o terceiro desejo, para que sua esposa pudesse apear da sela. No mesmo instante o pedido foi satisfeito. Como resultado de tudo isso, o rico não teve mais que aborrecimentos, fadiga, insultos e um cavalo perdido. Os seus vizinhos pobres, ao contrário, viveram felizes e tranquilos até o fim da vida.
   FIM

domingo, 18 de outubro de 2015

OS MENINOS DE OURO- CONTOS DE GRIMM

Havia, certa vez, um homem e uma mulher muito pobres, que nada possuíam além de uma choupana e apenas se alimentavam com o que ele pescava. Um dia, ao tirar a rede da água, o pescador encontrou um peixe todo de ouro. Enquanto o olhava, o peixe, para maior surpresa sua, começou a falar:
    - Escuta, pescador! Se me devolveres à água, transformarei tua choupana num palácio maravilhoso.
    - Que  me adianta um palácio- respondeu-lhe o homem- se nada tenho para comer?
    E o peixe tornou a falar:
    - Tratarei disso, também. No palácio haverá um armário e, sempre que o abrires, estará cheio de pratos com manjares deliciosos, tantos quantos desejares.
     - Se assim for - disse o  homem- poderei atender teu pedido.
     - Bem - continuou o peixe- mas há uma condição. A ninguém neste mundo, seja quem for, poderás  contar de onde veio a fortuna. Se disseres uma só palavra, tudo  desaparecerá.
     O homem atirou o peixe maravilhoso na água e voltou para casa. E ei que, onde antes se erguia sua choupana, haviam agora, um grande  palácio. O pescador arregalou os olhos de espanto, e, ao entrar, viu sua mulher toda enfeitada, com vestido novo, sentada num salão magnífico! Ela indagou, radiante:
    - Como aconteceu isso, marido? Confesso que tudo me agrada muitíssimo.
    - Sim - respondeu-lhe o homem - e a mim também; mas estou com fome. Dá-me algo para comer.
   - Nada tenho - afirmou ela- e nada consigo encontrar na nova casa.
      - Que isso não seja empecilho! - exclamou o homem. - Vejo ali um armário grande . Abre-o.
      Ela abriu o móvel e apareceram bolo, carne, frutas e vinho; tudo tão apetitoso que era um gosto ver.
    - Coração, que mais podes desejar? - exclamou, alegremente, a mulher.
     Sentaram-se e comeram e beberam à vontade. depois de satisfeitos, ela indagou:
    - Mas de onde vem toda essa fartura, marido?
     - Não me perguntes- respondeu ele. -Não posso dizer-te. Se eu te disser, nós perderemos tudo.
    - Bem - concordou a mulher. - Se não devo saber, não insisto.
    Mas só dizia isso da boca para fora; daí por diante tanto insistiu e incomodou o marido que este, perdendo a paciência, acabou revelando que tudo aquilo lhes vinha de um peixe de ouro, prodigioso, que ele tinha pescado e ao qual devolvera a liberdade.
    Mal terminou de pronunciar as últimas palavras, o belo palácio, com seu armário e tudo o mais, desapareceu e os dois se viram, novamente, na velha choupana de pescadores.
    O homem não teve outro remédio senão prosseguir na sua profissão, a pesca. mas a sorte não o abandonava e ele tornou a apanhar o peixe de ouro.
   - Escuta! - disse este. - Se me jogares outra vez à água, eu te devolvo o palácio com o armário cheio de assados e cozidos; mas deves ficar firme e não revelar de que modo isso aconteceu; caso contrário, perderás tudo.
   - Terei toda a cautela - prometeu o pescador e jogou o peixe à água.
     Quando chegou em casa, encontrou tudo, de novo, em grande esplendor, e sua  mulher encantada com a sorte. Mas a curiosidade não a deixava sossegada e, passados alguns dias, já estava ela indagando, outra vez, como acontecera aquilo e a quem deviam aquela felicidade. Por algum tempo o homem manteve firme, mas, por fim, exasperado com a insistência da mulher, não se conteve e revelou o segredo.
       No mesmo instante o palácio , desapareceu e ambos se viram, novamente, dentro da velha choupana.
     - Estas vendo?! - gritou o homem.- Agora tornaremos a passar fome!
     - Ora exclamou a mulher. - Prefiro não ter riquezas se não posso saber de onde vem elas!
     O homem voltou à pesca e, passado algum tempo- o destino assim havia disposto- apanhou o peixe de ouro pela terceira vez.
     - Escuta aqui! - falou o peixe.- Vejo que hei de cair sempre em tuas mãos. Leva-me para tua casa e corta-me em seis pedaços. Dois deles darás à tua esposa para comer; outros dois a teu cavalo e os restantes dois, enterrarás no quintal. de todos eles hás de conseguir coisas que nem imaginas!
     O homem levou o peixe para casa e fez como lhe havia ordenado. pouco depois aconteceu que, dos dois pedaços plantados no quintal, brotaram dois lírios de ouro; a égua teve dois potrilhos de ouro e a mulher deu à luz dois menino, também de ouro.
    As crianças cresceram, tornando-se uns belos rapazes e, como eles os lírios e potros também se desenvolveram. Certo dia os dois jovens disseram:
      - Pai, vamos montar nossos cavalos de ouro e sair a correr mundo.
     O pescador ficou muito triste e lhes respondeu:
    - Que será de mim se forem embora e eu ficar sem notícias de vocês?
      - Os dois lírios de ouro ficarão aqui- disseram os rapazes. - Por meio deles saberás como passamos; enquanto estiverem viçosos, estaremos gozando de boa saúde; se murcharem. é que estamos doentes e, se caírem do galho , é sinal de que morremos.
     Puseram-se a caminho e chegaram a uma hospedaria cheia de gente. Quando viram os jovens de ouro, começaram a rir e divertir-se à custa deles. Um dos irmãos, ao ouvir  as pilhérias, envergonhou-se e, desistindo de correr mundo, voltou à casa paterna. O outro, porém, seguiu adiante e chegou a uma floresta imensa. Dispunha-se a passar por ela, quando as pessoas do lugar lhe avisaram:
     - Não te aventures a travessar essa floresta. Está cheia de bandidos que te atacarão e, se virem que és de ouro e teu cavalo também, na certa liquidarão contigo.
     O rapaz, no entanto, não se deixou amedontrar e disse:
     - Preciso passar pela floresta e passarei.
     Adquiriu umas peles de urso, com as quais se cobriu e à sua montaria, de modo que nada se enxergasse. Assim disfarçado, entrou, confiante, na floresta. Tendo cavalgado por algum tempo, ouviu um rumor nos arbustos e murmúrio de vozes. Alguém disse:
    - Aí vem um homem!
    Outro respondeu:
    - Deixa que passe. É um caçador de ursos, pobre e tão pelado como rato de igreja. Que poderíamos tirar dele,
      E assim o moço de ouro atravessou o bosque são e salvo.
      Certo dia chegou a uma aldeia, onde avistou uma jovem, tão bela que achou não ser possível haver outra mais linda no mundo inteiro. E como se sentisse grandemente atraído por ela, dirigiu-se a seu encontro e lhe falou:
    - Amo-te de todo coração. Queres ser minha esposa?
      A moça, que também gostou dele, respondeu aceitando seu pedido.
     - Sim, quero  ser tua esposa e te serei fiel a vida toda.
      Ao se casarem, quando estavam em plena festa, chegou o pai da noiva que, ao ver sua filha casando, indagou:
    - Onde está o noivo?
     Mostraram-lhe o jovem de ouro que continuava coberto de peles de urso. O homem ficou furioso e exclamou:
    - Não permitireis que minha filha case com um caçador de ursos!
    E, investindo contra o rapaz, quis matá-lo. Sua filha, porém, se desfez em súplicas:
    - Ele é meu marido e eu o quero de todo coração.
    Finalmente conseguiu apaziguar o pai. Mas este não pode esquecer sua preocupação e, na manhã seguinte, levantou-se de madrugada, disposto a saber se o genro era, de fato, um mendigo. Entrou no quarto e viu, então, um jovem belíssimo, todo de ouro, deitado na cama e as peles de urso espalhadas pelo chão. Enquanto se retirava pensou: " Que sorte ter reprimido minha cólera; teria cometido uma grande injustiça."
    Enquanto isso, o jovem sonhou que andava caçando um cervo magnífico e, ao acordar, disse à sua esposa:
       - Vou caçar na floresta.
     Apreensiva, ela lhe implorou que ficasse a seu lado.
     - Facilmente poderá acontecer-te uma desgraça! - disse.
      Ele, porém, insistiu:
     - Devo ir e irei.
      Encaminhou-se para floresta e, pouco depois , descobriu, a certa distância, um cervo belíssimo, igual ao que vira em sonho. Fez pontaria para disparar a arma, mas o animal escapou. Lançou-se em sua perseguição, saltando valos e atravessando moitas, sem jamais cansar. Ao anoitecer, porém, o cervo desapareceu. Olhando em redor, o jovem avistou à sua frente uma casa pequenina onde vivia uma feiticeira. Bateu à porta e a velha aparaceu, perguntando:
     - Que procuras a esta hora da noite, em meio desta floresta imensa?
       - Não viste um cervo? - indagou ele.
      - Sim - retrucou a velha - conheço bem o cervo.
      Enquanto ela falava, um cãozinho, que também saíra da casa se pôs a ladrar, furiosamente, para o forasteiro.
     - Cala-te, maldito cachorro- gritou o rapaz- se não queres que eu te dê um tiro.
    Aí a velha gritou:
   - Como? Pretendes matar meu cãozinho? - e, no mesmo instante, o transformou em pedra.
      Em casa, sua esposa ficou esperando por ele em vão.
     " Na certa - pensou ela- aconteceu o que eu receava e o que tanto vinha me pesando no coração!"
     Quanto ao outro irmão, que ficara na casa do pai, e sempre observava os lírios de ouro, viu quando , de repente , um deles murchou.
    - Meu Deus! - exclamou.- Aconteceu uma desgraça a meu irmão. Devo sair para ver se posso salvá-lo.
    - Não vás- pediu-lhe o pai.- Que serás de mim se perco a ti também?
    Mas o jovem lhe retrucou:
    - É preciso que eu vá, e irei.
     Montou seu cavalo de ouro, pôs-se a caminho e chegou ao bosque onde estava  seu irmão, transformado em pedra. A feiticeira saiu da casa e o chamou, com a intenção de encantá-lo também. Mas  o rapaz gritou de longe:
    - Se não devolves a vida a meu irmão, eu te mato a tiros, velha bruxa.
     Embora a contragosto,a  velha tocou a pedra com os dedos e logo o rapaz recuperou a forma humana. Os dois jovens sentiram uma grande alegria ao se reverem e depois de se terem abraçado, saíram juntos do bosque. Um deles dirigiu-se à casa de sua esposa e o outro à de seu pai. Ao vê-lo chegar, o velho exclamou:
    - Já sabia que havias salvo teu irmão, pois o lírio de ouro tornou a erguer-se e continuou com vida.
    E, desse momento em diante, todos viveram contentes e felizes até ao fim de seus dias.
FIM

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A PASTORINHA DOS GANSOS- CONTOS DE GRIMM

Vivia, certa vez, uma velha rainha. Seu marido falecera há muitos anos. E sua filha única, muito linda, ao tornar-se moça, foi prometida em casamento a um príncipe de um pais remoto. Chegada a época de celebrarem-se as bodas e quando a jovem princesa ia iniciar a viagem ao reino de seu noivo, a rainha mãe lhe preparou um rico enxoval com peças de ouro e prata, vasos e jóias preciosas; numa palavra: o dote era digno de uma princesa, pois a rainha amava muito a sua filha. Deu-lhe, também, como companhia, uma camareira encarregada de apresentar a princesa ao noivo. para viajar, cada uma recebeu um cavalo, sendo que o da princesa chamava-se Falado e tinha o dom de saber falar. Na hora da despedida, a rainha mãe apanhou um punhal e deu um corte no dedo, fazendo jorrar sangue; depois recolheu três gotas num lencinho branco, que entregou à princesa, dizendo:
     - Querida filha, guarda-as com todo carinho; poderás necessitar durante a viagem.
     A seguir, mãe e filha se despediram tristemente. A princesinha guardou o lencinho branco no seio e, depois de montar a cavalo, iniciou a viagem à corte de seu noivo, Tendo já cavalgado durante uma hora, ela começou a sentir sede e ordenou à camareira:
    - Apeia e enche de água do arroio o copo de ouro que trouxeste para mim. Estou com sede.
     - Se estás com sede- respondeu a camareira- desce do cavalo , ajoelha-te à beira do riacho e bebe água ali mesmo. Não sou tua criada!
     A princesa, que estava com uma sede muito grande, não teve outro remédio senão apear do cavalo e beber da água do arroio, sem poder utilizar-se de seu copinho de ouro.
    - Meu Deus! -suspirou ela, com tristeza.
    E as três gotas de sangue responderam:
    - Se tua mãe soubesse disso!
     A princesinha, porém, que era boa e humilde, calou-se tornou a montar seu cavalo.
    Prosseguiram durante alguma léguas e, como o dia era muito quente e o sol  abrasador, a jovem tornou a sentir sede. Quando chegaram a outro arroio, ordenou, novamente , à sua camareira:
    - Apeia e me alcança água no meu copinho de ouro - pois já havia esquecido a insolência da camareira.
   Esta, porém, lhe respondeu com palavras ainda mais ríspidas!
    - Se quiseres beber, serve-te tu mesma; não sou tua criada!
    Como sentia muita sede, a princesinha apeou, debruço-se sobre a água corrente e exclamou chorando:
    - Meu Deus do Céu!
    E as três gotas de sangue tornaram a responder:
    - Se tua mãe soubesse disso!
    Enquanto estava ali , abaixada, bebendo , caiu-lhe do seio o lencinho branco com as três gotas, e a água o levou, sem que ela percebesse nada, aflita como estava. Mas a camareira viu o que tinha acontecido e alegrou-se, por que daí por diante teria todo o poder sobre a princesa, a qual, sem as gotas de sangue, se tornaria fraca e submissa.
    Quando a princesinha se dispôs a montar de novo a criada lhe disse:
    - Quem vai montar Falado sou eu; tu seguirás a viagem no meu cavalo.
    E a princesa teve de obedecer. Depois a camareira ainda lhe ordenou, com palavras ásperas, que trocasse as vestes reais com as suas inferiores, e, por fim, exigiu-lhe que jurasse não dizer uma palavra a ninguém sobre o que acontecera, quando chegassem à Corte. Se a pobre princesinha não jurasse o que aquela malvada exigia, teria sido morta ali mesmo. Falado, porém, presenciou tudo; e tudo guardou na memória. A seguir, a camareira montou Falado e a verdadeira noiva teve de cavalgar o outro animal. Assim prosseguiram caminho até  chegarem ao palácio real. Houve então grande regozijo na Corte  e o príncipe correu-lhes ao encontro, ajudando a camareira a descer do cavalo na suposição de que era a sua noiva. Conduziram-na com toda a pompa, pela escadaria, enquanto a verdadeira princesa teve de ficar parada embaixo. Quando o velho rei olhou pela janela e a viu no pátio do castelo, tão delicada, distinta e linda, encaminhou-se aos aposentos da noiva e indagou dela quem era aquela jovem que a estava acompanhando.
    - Tomei-a a meu serviço durante o caminho, para que me acompanhasse. De-lhe trabalho, afim de que não fique vadiando por aí.
     O velho rei, porém, não tinha serviço para dar-lhe e só lhe ocorreu dizer;
    - Temos aqui um rapazola que cuida dos gansos. Ela poderá ajudá-lo.
    O menino chamava-se Joãozinho e a noiva verdadeira foi obrigada a  ajudá-lo a cuidar dos gansos.
    Pouco tempo depois, a falsa noiva dirigiu-se ao príncipe, dizendo:
    - Meu amado, quero pedir-te um favor.
    - Eu te atenderei com todo o prazer, - respondeu ele.
     - Manda então cortar a cabeça do cavalo em que vim montada. Esse animal me aborreceu durante todo o caminho.
     Na realidade ela temia que Falado revelasse o seu procedimento com a verdadeira noiva. Quando ficou resolvido que o cavalo seria morto e a princesinha soube disso, ela prometeu, secretamente, ao açougueiro, dar-lhe uma moeda de ouro em troca de um pequeno favor. Havia na cidade  um portão grande, antigo,  por onde ela e Joãozinho passavam todas as noites e todas as manhãs. Pediu, pois, ao homem, que ali pregasse a cabeça de Falado, para que pudesse vê-la seguidamente. O açougueiro assim prometeu e, depois de ter cortado a cabeça do cavalo, pregou-a no portão.
    Quando, de madrugada, a princesa e Joãozinho passaram pelo portal, ela disse:
     - Ó, Falado, que aí estas degolado!
     E a cabeça respondeu-lhe:
    - Ó, tu que aí vais, jovem princesa!
      Se tua mãe soubesse o que se passa,
      Na certa morreria de tristeza.
    Depois ela e Joãozinho seguiram adiante, conduzindo os gansos para fora da cidade. Quando chegaram ao campo, a princesinha sentou-se sobre a relva e começou a pentear os cabelos que eram de ouro puro. Joãozinho, vendo como brilhavam ao sol, entusiasmou-se e quis arrancar-lhe alguns fios, mas ela disse logo:
     - Sopra bem forte, ventinho
     Leva o chapéu de Joãozinho!
      Força-o a correr pelo campo
     Até que eu me tenha penteado
      E de novo levantado.
    No mesmo instante, começou a soprar um vento tão forte que levou o chapéu de Joãozinho, obrigando-o a correr atrás, durante muito tempo. Quando o menino voltou, a princesa já havia arranjado o cabelo e ele não conseguiu um só fio. Joãozinho zangou-se e não falou mais com ela; e assim ficaram cuidando dos gansos até anoitecer,quando, então, regressaram à casa.
     Na manhã seguinte, ao passarem, outra vez, pelo portal antigo, a jovem repetiu:
    - Ó Falado, que aí estás degolado!
     E Falado respondeu-lhe:
    -Ó, tu que aí vais, jovem princesa!
     Se tua mãe soubesse o que se passa,
    Na certa morreria de tristeza.
    No campo, ela sentou-se, novamente, sobre a relva, para pentear os cabelos. Joãozinho correu  para arrancar-lhes uns fios, mas a princesinha disse depressa:
     - Sopra bem forte, ventinho
      Leva o chapéu de Joãozinho!
     Força-o a correr pelo campo
    Até que eu me tenha penteado
     E de novo levantado.
    O vento logo pôs-se a soprar e levou para longe o chapeuzinho do menino; tão rapidamente ele teve de correr atrás. Quando voltou, a princesa há muito tinha penteado o cabelo e ele não conseguiu obter um só fio. Juntos, continuaram a cuidar dos gansos até escurecer.
      Á noite, depois de terem voltado para casa, Joãozinho apresentou-se ao velho rei e lhe disse:
    - Não quero mais cuidar dos gansos com a moça.
     - E por que não? - indagou o rei.
    - Ora, ela me aborrece o dia inteiro.
     O rei, então, ordenou que ele falasse, e o menino pôs-se a contar:
      - Todas as manhãs, quando passamos pelo portão antigo, ela fala com uma cabeça de cavalo que está ali, pregada. Diz assim:
     - Ó Falado, que aí estas degolado!
     E a cabeça responde:
    - Ó, tu que aí vais, jovem princesa!
    Se tua mãe soubesse o que se passa,
     Na certa morreria de tristeza.
     Joãozinho continuou contando o que sucedia depois, lá no campo , e como era obrigado a correr atrás do seu chapéu.
   O velho rei ordenou-lhe que no dia seguinte saísse, novamente, com os gansos. E ele, próprio rei, de madrugada, escondeu-se atrás do portal e ali ouviu quando a princesa falou com a cabeça de cavalo. Depois foi ao campo e escondeu-se atrás de uma árvore, para ver o que acontecia . Presenciou, então, com seus próprios olhos, quando o rapaz e a moça vinham trazendo os gansos e como, pouco depois, ela se sentava na relva e soltava os cabelos que rebrilhavam como ouro. Em seguida, a jovem ordenou:
     - Sopra bem forte, ventinho
       Leva o chapéu de Joãozinho!
     Força-o a correr pelo campo Até que eu me tenha penteado
     E de novo levantado.
      Imediatamente uma lufada de vento carregou o chapéu de Joazinho, obrigando-o a correr para longe enquanto a jovem penteava e arranjava os anéis dos seus cabelo. O velho rei assistiu a tudo e depois, sem ser visto, retirou-se. Quando, ao anoitecer, a pastora dos gansos regressou ao palácio, ele a chamou, indagando-lhe a razão de seu procedimento.
    - Não posso dizer nada nem revelar minha desgraça a ninguém, - respondeu ela; mas vendo, afinal, que não conseguia arrancar-lhe uma palavra, acabou dizendo:
     - Se não podes contar nada a mim, então confia o teu segredo a esse velho fogão de ferro. - E afastou-se e, entre lamentos e lágrimas , desafogou seu coração, dizendo:
    - Aqui estou abandonada do mundo inteiro e, entretanto,sou filha de um rei. Uma camareira falsa me obrigou a entregar meus trajes reais e tomou o meu lugar junto ao meu noivo. Agora sou forçada a servir como pastora de gansos. Ai, se minha mãe soubesse disso!
     Nesse meio tempo, o velho rei se postara junto ao cano da chaminé e por ali ouvira tudo. Entrou, novamente, no aposento e ordenou que ela saísse de dentro do fogão. Mandou que lhe dessem trajes suntuosos, os quais, depois que ela vestiu, realçaram maravilhosamente sua beleza. O rei, então, chamou sue filho e lhe revelou a falsidade de sua noiva, que não passava de uma camareira vulgar, enquanto a verdadeira era aquela que ali estava e que havia cuidado dos gansos e tempo todo.
     O jovem príncipe sentiu-se feliz ao vê-la tão bela e modesta e mandou preparar um banquete para o qual convidou muita gente e todos os seus amigos. O noivo sentou-se à cabeceira da mesa, tendo de um lado a princesa e de outro a camareira, que de tão deslumbrada, não reconheceu sua rival naqueles trajes magníficos. Depois de terem comido e bebido e quando grande animação reinava entre os convidados, o velho rei dirigiu-se à camareira e deu-lhe uma questão a resolver: o que merecia uma pessoa que havia engando a seu senhor de tal e tal maneira e, depois de relatar todo o caso, perguntou:
     - Que sentença merece essa pessoa?
      E a falsa noiva respondeu:
    - Merece que lhe tirem as roupas e a metam num barril todo crivado por dentro de pregos e que, puxado por dois cavalos brancos, seja arrastado pelas ruas a cidade até que a miserável dê o ultimo suspiro.
      - Pois essa serás tu! - respondeu-lhe o rei. - Acabas de pronunciar tua própria sentença.
      E, depois que foi cumprida essa sentença, celebrou-se o casamento dos jovens príncipes. Ambos reinaram a vida inteira em completa paz e felicidade.
 FIM