quarta-feira, 3 de julho de 2019

-ERNANI FORNARI POR QUE MATARAM O VIOLINISTA -ERNANI FORNARI


POR QUE MATEI O VIOLINISTA

Antes de mais nada, devo explicar por que motivo escrevi o Sem Aplausos, conto hoje tão famoso e já traduzido em mais de dez idiomas, a despeito( segundo lamentou um lamentável crítico norueguês) do fim trágico e desumano que dei à personagem central.
  A história da origem desse conto é a seguinte:
   Na mesma noite em que se verificava, em Chicago, o espantoso incêndio - quase digo espaventoso! - de um de seus maiores teatros( se não me falha a memória, a Michigan Theatre), no qual morrera mil setecentas e oitenta e três pessoas - vamos! um recorde em matéria de carbonização coletiva! - recebia eu daquela cidade um cabograma bastante singular. Calcule-se isto: importantíssima companhia de seguros gerais, a General Insurance Company of Chicago, encomendava-se, com toda a urgência, um conto literário, " meio realista e meio romântico", que deveria ter por tema um incêndio num teatro.
   Ora, tratando-se de empresa norte-americana, e de seguros, tão extravagante incumbência tinha, percebe-se logo, um único escopo: aproveitar o lutuoso acontecimento nacional - esses práticos americanos! - para uma intensa propaganda da referida companhia seguradora.
   Relutei um pouco, o entanto, em satisfazer a solicitação da General Insurance, embora, está-se a ver, me desvanecesse e honrasse sobremaneira o haver meu nome , entre o de milhares de escritores de renome, sido lembrado e escolhido para tal tarefa. Minha relutância era ditada não só por escrúpulo sentimental, muito natural aliás, em se tratando de um brasileiro como eu, mas ainda por desagradar-me francamente fazer obras de empreitada. Sempre entendi que o escritor só deve escrever  quando sente a "necessidade fisiológica" de escrever - se me expresso convenientemente.
   Convenhamos, porém, que cinco dollars por linha não é, por aí, uma dessas ofertas diante das quais os escrúpulos do homem mais sentimental possam resistir por muito tempo. Vai daí então, um dia, decidi-me e escrevi, com rara felicidade - modéstia à parte - o tal conto que, há já alguns anos, todo o mundo conhece e, ainda hoje, lê com o mais vivo interesse e profunda emoção, apesar de certos erros e incorreções das primeira edições inglesa e japonesa.
  Agora, porém, seja-me permitido dizer que, inicialmente o meu trabalho era muito diferente desse que corre por esse mundo sensacionalista. Tinha até outro título, quiça bem mais sugestivo que Sem Aplausos.
   Para que se possam bem avaliar as transformações a que está sujeita uma obra de arte, e possam também os leigos na matéria enfronhar-se na sutil metafísica das composições literárias, vou transcrever aqui o aludido conto, tal qual foi originalmente escrito. Isso feito, exporei as razoes poderosíssimas que me levaram a matar o formoso e genial violinista - crueldade de que venho sendo tão rudemente acusado por alguns confrades despeitados com a repercussão do meu célebre conto:
   Ei-lo , num resumo, em sua forma primitiva:

  O "MAL-AGRADECIDO"

 " O vozerio chiado das mulheres; a parla monótoma dos homens; por vezes, o pigarro ruidoso de algum mundano resfriado e a tosse perra de algum milionário contrabandista e asmático; o zumbido do enxame das galerias; os cheiros promíscuos de carnes " prósperas" e de essências finas, e os jorros feéricos das luzes, invadiam o ambiente de  preguiça e sonolências boas.
   Mãos tenras e transparentes de louras misses abandonavam-se com sedução estufadas  sobre o mainel do balaústre dos camarotes, cujo revestimento de veludo vermelho dava realces macabros à alvura daquelas estranhas florações. Estofadas e graves matronas, que haviam comparecido ao concerto unicamente para exibir seu último Patou, investigavam, de luneta em punho, o "mau gosto" dos vestidos das outras mulheres e a autenticidade das jóias que enchiam a platéia de estilhaços de luz e centelhas inquietas.
   Em baixo - alguns homens encasacados e carecas a quem irritavam o atrito dos tafetás  e aquele zum-zum de coletividade, retiravam-se para os corredores, pletóricos e desconfiados com as galerias.
   Em cima - estudante e operários, irreverentes e brutais, jogavam chalaças aos "homens" daquelas mulheres tão ricas, tão lindas  e, sobretudo, tão distantes.
   Na rua - a chuva espelhava o asfalto das avenidas movimentadas e barulhentas.
   A campainha deu o último sinal. Os que ainda fumavam e discutiam, nos corredores, abandonaram o cigarro e entraram precipitadamente a tomar os lugares.
                @@@
   Com os olhos fincados no infinito, dava o artista a impressão de que tocava para um público invisível. Divino prestigiador de sons, arrancava do violino, com a vara mágica do arco, cabalisticamente, para jogá-los dentro das almas - fogo de artifício e abismos vertiginosos, cristais partidos e uvas machucados, num deslumbramento que se fazia delírio  e embriaguez.
  Por vezes, seus dedos longos e nervosos, tomados de delirium tremens, cabriolavam sobre o braço do instrumento, com se fossem diabos assanhados de dor sobre o chão esbraseado da Cidade Dolorosa. Outras vezes, tocava em tantas cordas ao mesmo tempo, faziam-se seus dedos tão suaves, tão suplicantes e evocativos, que parecia estar seu arco, lá fora, a correr sobre os  fios de água com que a chuva encordoava a noite.
   Sempre, porém, aquela sensação de arrebatamento e angústia, com se todo o teatro, sentado num balanço enorme, a cortar o espaço num vai-e-vem ansioso, estivesse suspenso no ultimo andar do arranha-céu mais alto de Chicago.
            3%%%
   De súbito - que é isso?! - gritos abafados, passos em correrias, rumores de móveis arrastados, e rac-rac de papeis machucados, vieram sobressaltar o auditório.
   - Que é isso?!
    Levantaram-se todos a um tempo, com curiosidade espavorida. Foi um minuto de cem anos. O violino  silenciou, num stacatto, aumentando a confusão. Era como se aquele instrumento, calando-se tão rapidamente, protegesse a toda aquela gente. os espectadores, de pé, burburinhando, numa bisbilhotice, medrosa de quem espera saber, sem querer ver, procuravam a causa do tumulto que eles mesmos, já agora, provocavam.
     - Ai!
    - Meu Deus!
   E o negrinho indicador - que orgulho tinha o pobrezinho de sua libré vermelha! - precipitado dos balões abaixo, tomba ao comprido sobre o gume dos espaldares e resvala para o chão, molengo e estrebuchante, perto de uma dama que desmaia. Quase ao mesmo tempo, a goela escancarada do palco vomita sobre a multidão histérica uma baforada de fumo.
   Era a resposta.
   Imediatamente, chamas dançatrizes, aos requebros, numa coreia acrobática e desengonçada, a trepar pelos cenários, bastidores e bambinelas, invadem a cena para  representar a verdadeira Dança do Fogo. O palco lança à plateia línguas enormes de labaredas, num crepitar satisfeito, como se fosse a bocarra de um dragão vagneriano a estalar  gulosamante os beiços.
    Gritos e gemidos, choros e clamores de mulheres e de homens desvairados ou esmagados pela turba em fuga; fragores por toda parte de quedas de caibros, portas e  colunatas; estrépitos de gente a atirar-se das frisas e dos camarotes; metralhar de lâmpadas elétricas a estourar na ribalta e nas gambiarras - ecoavam tetricamente pela abóboda azul do velho teatro,
    A acústica aumentava o terror-pânico dando ao menor ruído intensidades cósmicas de elementos em fúria. As saídas eram poucas para tanta gente - e queriam todos passar ao mesmo tempo.
   Matavam-se para não morrerem.
   O artista ante aquele espetáculo de fogo e de lamentos, embebedou-se de horror.
   Abraçado ao violino, açoitado pelas chamas, apedrejado pelas fagulhas, quedou-se, estuporado, bobo, grudado ao soalho, duro e parado com a estátua de sal da legenda bíblica, enquanto a fumaça, cada vez mais espessa, apertava-lhe a garganta com seus moles dedos de gás carbônico, asfixiando-o. Quando, com  esforços sobre-humanos. conseguiu mover-se, já era tarde.
   E lá ficou, estirado junto de escada de que tombar. Um círculo de fogo estreitava o cerco à sua volta, apertando-o num grilhão de labaredas.
                @@@
   Sobre o leito número 3, imóvel, inchado de ataduras, jazia um monstro todo branco, mal feito boneco de algodão e gaze.
   E, naquele instante, ele descerrou os olhos, com quem desperta de um sono igual ao de Lázaro.
   Silêncio absoluto.
  Pelos orifícios da ligadura, fixou os olhos para o que lhe estava à frente: deitado numa cama, perto da janela, um homem todo enfaixado abria e fechava a boca, gemendo- gemido que ele não ouvia! Incrédulo, olhou novamente: mais além, sempre em frente, também num leito de ferro, um rapaz barbado, magro, cor de vela de promessa, enxotada, com uma coisa  que tanto podia ser um braço como um bambu, as moscas que, pressentindo cheiro de decomposição, lhe pousavam sobre a face cadaverizada.
   Que estranho lhe parecia tudo aquilo! Que casa era aquela? Por que aquela quietude tumular no meio de tanta gente que parecia sofrer e gemer?
   E ficou-se a considerar, olhos no teto, abstratamente mover-se. Não o conseguiu: uma dor dilacerante gritou-lhe o " não pode!" que paralisa o gesto.
  Foi então que se lembrou de tudo.
   De tudo mesmo:
   Olhou-se, devagar, quase a medo, ainda com um resto de esperança de que a realidade lhe dissesse que tudo aquilo de que estava se lembrando não passara de um sonho agoniante e mau. E eis que se surpreende naquele estado absurdo e ridículo, enrolado, como uma múmia preciosa, num sudário de algodão hidrófilo. Quis então apalpar-se. Mas como?  se já não tinha...se já não tinha...
   E o rugido que lhe explodiu na alma toda concentrada na garganta, foi a sanção de sua irremediável desgraça. Pôs-se a gritar desatinadamente, a olhar para todos os lados:
  - Onde estão meus braços?! Onde estão meus braços?!
  Ah, aleijado!
    O enfermeiro correu imediatamente para ele , ajudando-o a recostar no travesseiro.
   - Que é que está sentindo? Machucou-se?
   E o pranto brotou-lhe do coração bom como as searas, convulsivamente. De uma coisa somente lembrava-se ele agora:nunca mais poderia tocar.  Nunca mais! Nunca mais sentiria ecoar em seu cérebro e tombar dentro do coração, em troca das semente de Beleza que espalhava pelo mundo, o tempestuosos rebramir dos "  bravos" e a chuva  dessedentante das palmas - ventania que, dando ondulações de mar a seu trigal de ouro, espalhava o pólem de novas fecundações; linfa que, mitigando o tantalismo de seu sonho de perfeição, era verdadeira selva de sua arte interpretativa.
   Esquecido das dores que lhe queimavam a carne, da sede viva que lhe escaldava a boca, deixou pender a cabeça sobre os pensamentos - porque sobre o peito não podia. E seus pensamentos eram como caudas de cometas, que por onde passam destroem tudo: Ter que continuar a viver! Ter que tornar a andar pela terra! Andar! Não! Arrastar-se, rastejar, com um réptil asqueroso e feio, por  este  mesmo mundo que o vira sobrevoar, divino e belo de triunfo em trinfo, impotente, agora na plenitude da sensibilidade, quebradas em pleno voo suas asas da Glória, trazendo acorrentada ao corpo inútil uma alma surda e muda aos chamamentos de si mesma! Sentir a música interior vibrando, e não ter meios de expressão para ela! Ouvir aplausos glorificando outros menos capazes que ele, e não poder exclamar: "Eu sei tocar melhor!" Ouvir aclamações vitoriando outros tão grandes e tão artistas como ele e não poder gritar: " Eu sei tocar assim!" E nem ao menos ter uma só mão para agarra-se à morte! Por que não o haviam deixado morrer entre os escombros do teatro, confundidas as suas cinzas com as de seu violino?
   E  as lágrima iam-lhe umedecendo , a pouco e pouco, as gazes.
   Nesse instante, viu vagamente, como quem olha através de um aquário de cristal, o vulto de alguém junto de sua cama. Viu, sem compreender , o enfermeiro afastar-se apressadamente, depois de haver dito qualquer coisa ao vulto, que se aproximava cada vez mais.
   Era um bombeiro. alto, grisalho, cara rosada a estampar comoção. o bombeiro disse-lhe qualquer coisa carinhosa, que o violinista não pode ouvir.
   Ele porém, não precisava ouvir - adivinhava tudo.
   - Foi o senhor quem me salvou, não foi? - perguntou, a voz sumida, como se ela rompesse das profundidades de uma caverna. Veio ver como está passando o monstro, não é?
    O bombeiro, com os olhos marejados de lagrimas, sacudiu a cabeça, confirmando por confirmar.
      Através dos buracos da ligadura, os olhos do, artista fuzilaram como dois infernos. Que raiva lhe deu aquele homem de faces lisas, de aspecto saudável e, sobretudo, com as duas mãos intactas!
   - Escute - tornou, com voz débil. - Chegue-se mais, que quero agradecer-lhe.
    O homem acercou-se da cabeceira do leito e inclinou bem o rosto sobre os lábios do desgraçado, a fim, de ouvi-lo melhor.
   Inopinadamente, nem esforço violento, munindo-se de toda a energia de que era ainda capaz seu físico combalido, o violinista arrancou das profundidades pulmonares um estalo seco, e, com a boca cheia, cuspiu bem na cara de seu salvador.
    - Toma, bandido! - urrou. - Era o que tu merecias!!"
                           @@@@

Esse era o conto.
   Como se vê, muito diferente e bem menor que o atual.
Agora, porém, vem a parte pungente e extraordinária desta amende honorable:
   Mal eu terminara de reler as laudas já escritas, e, fatigado, pousava a caneta sobre a escrivaninha, quando ouço passos no corredor. Como minha velha governanta tinha o hábito de levantar-se, às vezes, alta madrugada para trazer-me à biblioteca uma chávena de chocolate, pensei que deveria ser ela. Esperei. Bateram  à porta, fortemente. pela violência, devia ter sido com o pé. Surpreso, exclamei:
  - Entre!
   -Não posso abrir a porta, - retrucou uma voz desconhecida do homem, voz de entonação estranha, rouca.
   Um homem, àquela hora tardia, dentro de minha casa? Levantai-me de um salto. Abri a gaveta, tirei o revólver, empunhei-o e, sorrateiramente, pé ante pé ( não fosse artimanha de algum ladrão!), fui até a porta e escancarei-a de chofre.
   Fiquei, porém, interditado de susto. Diante de mim avultou, como uma aparição fantasmal, um especto horrendo, uma "coisa" que de humana tinha apenas  a forma do tronco, Sem braços, trazia, em lugar da cabeça,um embrulho amarfanhado de carne, ouriçada aqui e ali de tufos de cabelos ruivos e duros. A cara, transformada numa massa informe, qual se houvessem a tirado nela um punhado de polme esverdeado e gosmento,assemelhava um busto de argila ainda por  modelar, plástica e úmida.
   Recuei apavorado.
   O fantasma entrou na biblioteca, a arrastar os pés, chaplinescamente trágico. Aproximou-se bem do quebra-luz e, voltando-se para mim, bradou a chorar:
   - Contemple-me! Olhe-me bem e goze a sua obra! Veja o que sua crueldade fez de mim, veja - um ridículo aleijão humano! ...Eu, que era o encanto das mulheres dos pássaros, serei, de hoje em diante, o espantalho até das crianças. Por simples capricho estético, sua impiedade joga-me vivo num mundo que me queria tanto, e que, agora, fugirá de mim horrorizado. Julgou talvez que seria desumano matar-me, não é? E por que?...Então não compreende que a vida para mim, já agora, é mil vezes pior do que a morte, porque é fazer-me morrer e ressuscitar sessenta veze por minuto? Por que consentia que me salvassem? Diga! Por que fez isso, senhor? Por que? - E dos buracos dos olhos tombavam lágrimas grossas como glicerina.
    - Mas,eu...
   - Sei o que vai dizer. A técnica, as injunções da forma, não é assim?  Mas sua vaidade implacável de autor cruel esquece, em benefício de sua criação artística, oque será da vida de sua criatura. Que lhe importa que alguém, sofra por sua culpa, se o senhor consegue obter, com essa vida e com esse sofrimento um miserável efeito literário?..Bárbaro que é! Acaso já pensou no destino miserável que me espera lá fora? Eu, um dos maiores artista de meu tempo, de pires de lata à boca, à porta dos Cafés, vivendo da comiseração reunira, vivendo mais da grandeza do que fui que do farrapo imundo que hoje sou, a esmolar em nome de meu passado esplendor! Veja. - e soluçava - veja o seu violinista célebre, acabando, para não morrer de fome, grotesco fenômeno de circo, a cabeça enfiada anum capuz, para que a sua cara não repugne os espectadores, pintando e escrevendo com os pés, com os pés desarrolhando garrafas, preparando omelettes e comendo-as em cena, para a basbaquice das plateias plebeias. Com os pés! - eu que trazia nas mãos para transmiti-la aos homens, toda a emoção musical das esfera celestas! - E caiu de joelhos, suplicando-me. Mate-me, senhor! por piedade! Não me deixe assim na terra, senhor! Não posso viver sema quelas mãos em que eu carregava o universo da minha arte! Mate-me, pelo amor de Deus!
   Não sei, em verdade, quanto tempo durou essa dolorosa entrevista com minha personagem, nem o que ela disse mais. Recordo-me apenas que, quando eu quis falar, ela já havia desaparecido, a porta de meu gabinete estava novamente cerrada, e eu, de caneta na mão, nervoso, reformava integralmente o meu conto, que, como é sabido de todos, termina desta maneira dramática:
   " E o violinista, levando a mão à cabeça( é oportuno relembrar que, no Sem Aplausos, o violinista perde somente uma das mãos), pegou das ligaduras todas e, com repelão feroz, arrancou o penso, as ataduras que lhe envolviam o busto, cravou com gana os dedos  crispados no rosto em chaga viva, e rasgou, raspou, até  encontrar a alma e puxá-la por ali, e libertá-la para sempre."
     @@@
   O mais interessante, porém, é que dois dias após haver enviado para Chicago, pela  Western, o referido conto, recebia eu da General Insurance outro cabograma em que ela me consultava sobre a possibilidade  de eu, reformado o final do  Sem Aplausos, fazer com que o violinista sobrevivesse ao incêndio, para que  - esse  práticos americanos! - também ele " pudesse gozar das  vantagens de um seguro conta acidentes".
   Revoltou-me tanto prosaísmo,e, inflexível em meus princípios estéticos, respondi, desabrido:
   " Arte é arte. Violinista morto. Impossível ressuscitá-lo. Saudações".
                               Ernani Fornari
 












cabograma
substantivo masculino
  1. TELECOMUNICAÇÕES
    mensagem telegráfica transmitida através de cabo submarino; cabo.



esbraseado
adjetivo
  1. 1.
    transformado em brasa.
  2. 2.
    muito quente.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Coelho Neto- Firmo, o Vaqueiro- Coelho Neto

Sentados na soleira da palhoça, em face do verde campo, à hora vesperal em que os rebanhos recolhem, o velho Firmo e eu fumávamos, relembrando passagens alegres da vida de outrora.
   Firmo era meu companheiro quando eu ia passar as férias na roça. O que ele sabia de histórias! e como as contava fazendo a voz enternecida e meiga para imitar as princesas que imploravam arremetendo com vozeirão terrível para que eu tivesse a impressão exata do bradar horrível dos gigantes antropófagos. E não só histórias dos livros, outras sabia que eu jamais em letras vira: a que descrevia a iara branca seduzindo o remador do Itapicuru e o conto do sucupira, com que no bom tempo faziam cessar a minha impertinência. Algumas era inventadas por ele, diziam; outras, o velho Firmo, vaqueano e andejo, aprendera por esses sertões de Deus por onde caminhara.
   Andava pelos oitenta anos, mas quem o visse a cavalo, no campo, não lhe diria tanta idade. O diabo era o reumatismo que lhe não deixava as pernas. No seu tempo ninguém levava a melhor ao Firmo do Curral novo. Raparigas, que uma vez o viam montado no garboso fábrica, o laço em volta da cinta, a guilhada firme sobre a coxa coberta de couto cru, perdiam-se de amor por ele.
  Era um caboclo atirado, musculoso e rijo: grandes olhos negros brilhavam no seu rosto queimado pelos verões e os cachos do seu cabelo rolavam-lhe pelos ombros largos.
  Velho, embora, "ninguém lhe chegava ao pé sem muito jeito", como ele próprio dizia sorrindo com os seus dentes limados, agudo como pontas de flechas. Apesar  de alquebrado e enfermo, andava com arrogância e notava-se-lhe na voz, áspera e forte, o hábito de comando.
 Em tempos de festa, quando vinham para a mesma eira moças do lugar e moças de mais longe, Firmo saltava na roda, sapateando, rasgando na viola o tirana dos campeiros, e quem ousava pegar no verso do caboclo?!
 As tabaroas morenas sorriam com os olhes fascinados e unidas desfaziam-se das flores para que o o cantador as fosse pisando no sapateado.. por isso o  Firmo andava sempre de ponta com os companheiros e, mais de uma vez, o descante acabou varrido a faca; mas quem ficasse do lado do caboclo podia estar descansado- nunca fugiu de arrelia, fosse com um, fosse com dez ou mais.
    Mãezinha, a velha mucama de casa, quando o via passar no caminho, curvado pitando o seu cachimbo de taquara, dizia maliciosa:
    - Isso, ahn! isso, foi o diabo!
    Firmo  "viva encostado  no tempo de dantes", a saudade era o seu conforto. "Hoje em dia que é que a gente vê? má língua e moleza só", dizia e citava o valente de antanho e mostrava as velhas gabando-lhe a beleza que a idade fanara. "Serapíão, homem que nem o diabo!...Ana Rosa, essa curumba...foi mulata de dengue, era um motim aqui em cima por causa dela. Filomena, com essa cara de peixe moqueado, teve o seu luxo e foi gente... Eu também pisei duro, ora!"
    Firmo viva das recordações passava os dias caminhando de um para outro lado, visitando as palhoças, ou à beira do rio para ver e ouvir as lavadeiras, quando não se metia a fazer bodoques para as crianças.
   À tarde sentava-se em um pilão quebrado, à porta da casa, e deixava-se estar inerte, os olhos ao longe: " Estava vivendo..."dizia quando eu lhe perguntava que fazia ali sozinho. Estávamos, às vezes, sentados juntos, ele a contar-me histórias, quando nos chegava, nítido e agudo, o grito do campeiro. Firmo calava-se, um estremecimento agitava-o, os olhos dilatados recobravam o brilho antigo e punha-se de pé, devassando a paisagem triste, à luz crepuscular.
   De repente aparecia a nuvem de poeira anunciando o gado que chegava...uma mancha vermelha, uma mancha negra, outra e logo o magote, os bois juntos, emaranhando os chifres; um mugia, outros imitavam-no levantando os focinhos ou ferravam-se às marradas, sendo às vezes, necessária a intervenção do vaqueiro que aparava os dois a ponta de vara. e a marcha aproximava-se  morosa.
   Firme ficava enlevado acompanhando os movimentos da manada, inclinando-se para um lado, para outro, aspirando sofrego. De repente batia as palmas e juntava, logo em seguida, as mãos na boca à guisa de porta-voz, brandando:
   - Eh! eh! ruma!  ruma! Eh! cou...
  E ficava longo tempo, excitado, a olhar. Não perdia uma só das peripécias e, se um touro espirrava, correndo aos galões pela campina, o velho entrava a bramar do outeiro, tão alto, tão alto que as raparigas, que andava na eira recolhendo a roupa ou socando o arroz, paravam assustadas erguendo os olhos para o lado da palhoça do vaqueiro velho. Mas nínguém o incomodava antes de ser lançado o boi fujão e quando o vaqueiro aparecia, arrastando o animal laçado. Firmo suspirava baixinho:
   - Ah! Nossa Senhora! meu tempo!
   Foi pelo Natal que o vi pela última vez. Começavam os preparativos da festa, quando cheguei ao sítio. Nas casas dos escravos, as vezes, à noite, ensaiavam as crianças. Na eira os rapazolas preparavam jiraus; colhia-se o arroz novo para os presepes e de todos os lados, mal o sol fugia, começavam as toadas das cantigas ao Deus Menino e as falas dos infantes que figuravam no Mistério.
   Firmo estava doente, mal podia mover-se; passava os dias na rede. Subi a vê-lo, uma noite justamente na véspera do grande dia. Encontei-o deitado, fumando, os olhos semicerrados.
   -Eh! vaqueiro velho...Então que é isso?!
  - Estou derrubado, patrãozinho.
  - Mas que diabo tem você?
  - Moléstia má, patrãozinho; parece que desta feita vou mesmo.
 - Ora qual...
  - Eu  é que sei como me sinto, patrãozinho. Se até o pito me faz nojo...
  - Pois eu preparei uma surpresa que te vai  fazer mais bem do que todas as mezinhas de mãe Tude. Quem está aí fora? Adivinha...
   - Ah! patrãozinho. alguma alma boa...Quem há de ser?
   - Raimundinho.
   O velho sacudiu-se novamente na rede e, voltando-se para a porta com um sorriso, perguntou:
   - E onde está esse negro que não entra?
   - Boa noite à gente da casa! disse da porta o cafuzo.
   - Entra, negro!
   O cafuzo, um codoense de fama, atravessou o limiar da porta.
   - Então, tio Firmo, a febre pode mais, hein?
   - Sim, porque eu não vi quando ela entrou....quando não! Então, negro, que é que vamos fazendo?....
   _Vim fazer a minha festa. Dizem que vão queimar fogaréus no Curral Novo....
   - Como vai Noca?
   - Boa.
   - E Ana? está na cidade, mais o pai?
  - Hen hen,afirmou o cafuzo.
   - Negro, você não vai daqui hoje. Ah! patrãozinho, vosmecê vai ver o que é um diabo. Negro, ajunta a madeira ali atrás da arca...
  - Está encordoada?
    - Ò danado! Onde você viu viola sem corda? e afinada, ajunta.
   O codoense agachou-se, apanhou a viola do vaqueiro e logo correu os dedos ágeis pela cordas.
  - Passa pra luz, cafuzo.
   - Lá vou...
   Sentou-se no centro da mesa, cruzou as pernas e tombando a cabeça, gemeu a toada sertaneja
   - Anda com Deus.
  - Lá vai; pigarreou e desferiu:
   "No coraçao de quem ama
    Nasce uma flor que envenena".
    - Eh, gritou o Firmo entusiasmado, concluindo a quadra:
  - Pega, negro...não deixa o verso  no chão!
  De fora, continuo e doce, vinha o coro longínquo das crianças em louvor de Jesus e, de vez em vez, reboava o mugido de um touro.
 Quando o cafuzo descansou a viola, Firmo disse da rede, com esforço, arrastando a voz fraca:
    - Canta, canta, mais, cafuzo...Quem não tem Nosso Pai ouve a cantiga. Canta.
  Era tarde quando desci o outeiro. Raimundo lá ficou cantando.
  No dia seguinte, à hora em que saiu o gado, estava eu debruçado à varanda quando vi o cafuzo que preparava o animal viajeiro:
    - Raimundinho, como vai ele?
   De longe apontou para a palhoça:
   - Sim.
   O braço caiu-lhe, olhou-me algum tempo comovido; depois, saltando para o animal, levou o polegar à boca fazendo estalar a unha nos dentes: "Ás quatro da manhã...Atirei um verso e disse, para bulir com ele; Pega velho! Não respondeu. Tio Firmo, mesmo velho e doente, não era homem, para deixar um verso no chão... Fui ver, coitado! ...estava morto". E deu de esporas para que eu não lhe visse as lágrimas.
   Subi ao outeiro...Pobre Firmo! Lá estava no fundo da rede, cercado de gente. Guardara o sorriso, morrera feliz, ouvindo os cantos do seu tempo e bem perto de casa o mugido dos rebanhos. E bem que o choraram nessa noite os grandes bois, e diziam, entretanto, que eles estavam louvando o Senhor Menino; chorando o companheiro é que eles estavam, os grandes bois que pressentem todas as desgraças e que vêm a Morte passar, à noite, com a foice de rastro, atraves das campinas. Bem que choraram nessa noite os bois: decerto viram a Morte entrar na cabana de Firmo.
               (SERTÂO)
 


Vesperal:  Evento que se realiza no período da tarde 
Tabaroa :mulher acanhada; mulher criada no interior; ...
Curumba;  Pessoa de baixa condição social.
2. Indivíduo que sai do sertão e vai procurar trabalho nos engenhos.
3. Mulher velha.
moqueado : moqueado
adjetivo
BRASILEIRISMOBRASIL
  1. 1.
    assado ou tostado em moquém.
  2. 2.
    posto para secar em moquém.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Hugo de Carvalho Ramos - Ninho de Periquitos - Hugo de Carvalho Ramos

Abrandando a canícula pelo virar da tarde Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacula de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.
   Era pelo domingo, véspera quase da colheira. O milharal  estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.
    Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.
    - Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de "malícia" num cupim velho do pé de maria-preta. Não esquecesse...O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões, foi ao paiol de palha de arroz mais uma vez avaliando com, a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes de coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.
   - Ora, deixassem  lá em paz os passarinhos.
    Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.
  O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão, - nesses dias sem pingo dágua - galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde e galharada esguia, toda tostada desde a época de queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada. Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera  ninho dessa estação.
    O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-os num repente, surpreendido. É que a picadela incisiva, dolorosa rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.
   E enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-o, persistentes, seus olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...
   O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha....
   Era um urutu, o terrível urutu do sertão, para qual a mezinha doméstica, nem a dos campos, possuíam salvação...
   - Perdido...completamente perdido...
   O réptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta: e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo "jacaré" inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
   Então, sem vacilar, num movimento inda mais brusco, apoiando a mão molesta à casa carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.
  E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, com um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...
                                               (TROPAS E BOIADAS)


Canícula - calor muito forte.

embira: Folha broto da palmeira buriti, do qual se extrai uma fibra mais fina denominada seda que se usa para fabricação de cordas, redes, esteiras, ...


coivara
substantivo feminino
  1. 1.
    BRASILEIRISMOBRASIL
    quantidade de ramagens a que se põe fogo nas roçadas para desembaraçar o terreno e adubá-lo com as cinzas, facilitando a cultura; fogueira.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Artur Azevedo - Plebiscito - Artur Azevedo - Obras-Prima do Conto Brasileiro.

A cena passo-se em 1890.
   A família está toda reunida na sala de jantar. O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpando numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade: Dona Bernardina, sua esposa, está muio entretida a limpar a gaiola de um canário belga. Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distraí-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossa folhas diárias.
   De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
   - Papai, que é Plebiscito!
   O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
   O pequeno insiste:
  - Papai?
   Pausa.
  - Papai?
  Dona Bernardina intervém:
  - Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.
  O senhor rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
   - Que é? que desejam vocês?
   - Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
  - Ora, essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito!
    - Se soubesse não perguntava.
  O  Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola.
   - Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
   - Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
   - Que me diz?! pois a Senhora não sabe o que é plebiscito?
    -Nem eu nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
   - Ninguém, alto lá! Eu creio que tenho dado prova de não ser nenhum ignorante.
   - A sua cara não me engana. Você o que é, é muito prosa. Vamos: se sabe diga o que é plebiscito! Então?  a gente está esperando! Diga!...
   - A Senhora o que quer é enfezar-me?
   - Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa, quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou,  o menino ficou sem saber!
   - Proletário...- acudiu o Senhor Rodrigues - é o cidadão que vive do seu trabalho mal remunerado...
   - Sim, agora sabe porque foi ao dicionário. Mas dou-lhe um doce se me disser o que é plebiscito, sem se arredar desta cadeira.
   - Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
   - Oh! ridículo é você mesmo que se faz. Seria tão simples dizer: "Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho".
   O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
   - Mas se eu sei...
   - Pois, se sabe diga!
   - Não digo para não me humilhar diante de meu filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! vá para p diabo!
   E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava na ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
                                                                ***

  A menina toma a palavra:
  - Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
    - Não tosse tolo, observa Dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabe o que é plebiscito.
    - Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão:
   - Sim! sim! façam as pazes! diz a menina num tom amigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito.
   Dona Bernardina dá um beijo na filha e vai bater à porta do quarto.

- Seu Rodrigues, venha sentar-se, não vale a pena zangar-se por tão pouco.
   O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.
   - É boa! brada o Senhor Rodrigues, depois de largo silêncio; é muito boa! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!
   A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogmático:
   - Plebiscito...
  E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
   - Plebiscito é uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! è mais um estrangeirismo.

     FIM


Plebiscito -Plebiscito é um voto ou decreto passado em comício, originariamente obrigatório apenas para os plebeus. Hoje em dia, o plebiscito é convocado antes da criação da norma, e são os cidadãos, por meio do voto, que vão aprovar ou não a questão que lhes for submetida. Wikipédia

E o Senhor Rodrigues viu certo no dicionário: na Roma antiga, decreto aprovado em comício popular, orign. obrigatório apenas para os plebeus.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Antônio de Alcântara Machado - GAETANIHNHO - Antônio de Alcântara Machado - obras-Primas do Conto Brasileiro

       Chi, Gaetaninho, como é bom!
  Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
    - Eh! Gaetaninho! Vem para dentro.
  Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
   - Súbito!
   Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante de mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar à direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
   Éta salame de mestre!
                       ***

   Ali na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sono de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um carro.
   O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
   Mas se era o único meio? Paciência.
          ***

   Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
   Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério, noivo dela, de lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro, Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira  e o gorro branco onde se lia Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas separando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravara vermelha outro de gravata verde) e o padrinho seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
   Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instante só. Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o Aí, Mari! todas as manhãs o acordou.
   Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.

       ***

 Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
   Os irmãos(esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade de quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
   O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.
   - Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
   - Meu pai deu uma vez na cara dele.
  - Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
   O vicente protestou indignado:
  - Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
   Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
  O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa,
   - Passa pro Beppino!
   Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
   - Vá dar tiro no inferno!
  - Cala a boca, palestino!
   - Traga bola!
   - Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
   No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
   A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
  - Sabe o Gaetaninho?
  - Que é que tem?
   - Amassou o bonde!
   A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

       ***

  Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
    Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
                (Brás, Bexiga e Barra Funda)


expressões :
No conto "Gaetaninho" a expressão "êta salame de mestre" aparece no contexto de um "confronto" era o personagem principal, o próprio Gaetaninho, e a sua mãe, de modo que, para evitar uma chinelada, Gaetaninho faz uma "manobra" de desvio, como a de um jogador de futebol que aplica um drible majestoso em seu adversário, de modo que a expressão significa um gesto incrível, algo surpreendentemente bem executado - como um salame, um tipo de linguiça, que é feita por um mestre, um exímio conhecedor das técnicas de fabricação.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

-Anibal M. Machado - A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE - -Anibal M. Machado

 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:



Queridos aos poucos vou transcrevendo. Um abraço, obrigada pela paciência! Muita gratidão por este trabalho.

Preamar -Maré cheia, maré alta.





 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:
    -Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com minha filha!
   Saiu satisfeita. Alguns malandros empunhando cavaquinhos foram-se afasando, meio desajeitados. Um deles dava opinião:
   - Dor eu não topo, franqueza...Sou contra o sofrimento.
    Tentaram pedir silêncio novamente. Um rapariga comentava enxugando as lágrimas:
   - Só se você visse, Bentinha, quanto mais a faca enterrava mais mulher sorria....Morrer assim nunca se viu...
   O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. Opreto jelhado bebia mudamente o último sorriso dela, e inclinava a cabeça de um lado par outro como se estivesse contemplando uma criança.Umascola de Samba repontava no Mangue. Anda se ouviam aclamaãos turma da Mangueira. Quando o canto se foi aproximado, a mulata parecia que ia levantar-se.
   E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe susurava baixinho aos ouvidos. o negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:
   
   "Quem quebrou meu violão de estimação?
    foi ela..."



Queridos aos poucos vou transcrevendo. Um abraço, obrigada pela paciência! Muita gratidão por este trabalho.


Preamar -Maré cheia, maré alta.


 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:
    -Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com minha filha!
   Saiu satisfeita. Alguns malandros empunhando cavaquinhos foram-se afastando, meio desajeitados. Um deles dava opinião:
   - Dor eu não topo, franqueza...Sou contra o sofrimento.
    Tentaram pedir silêncio novamente. Um rapariga comentava enxugando as lágrimas:
   - Só se você visse, Bentinha, quanto mais a faca enterrava mais mulher sorria....Morrer assim nunca se viu...
   O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. O preto ajoelhado bebia mudamente o último sorriso dela, e inclinava a cabeça de um lado par outro como se estivesse contemplando uma criança.Uma escola de Samba repontava no Mangue. Anda se ouviam aclamações à turma da Mangueira. Quando o canto se foi aproximado, a mulata parecia que ia levantar-se.
   E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe sussurava baixinho aos ouvidos. O negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:
   
   "Quem quebrou meu violão de estimação?
    foi ela..."

   Ainda apareceram algumas mães retardatárias rondando de longe a morta.
    A morta não tinha mãe nem parentes; só tinha o próprio assassino apra chorá-la E ele quem lhe acaricia os cabelos, lhe faz uma confidência demorada, a chama pelo nome:
   - Está na hora, Rosinha...Levanta, meu bem...è o " Lira do Amor!! que vem chegando...Rosinha, você não me atende! Agora não é hora de dormir...Depressa, que nós estamos perdendo...O que é que foi? Você caiu?! Como foi?... Eu, não! Rosinha ...
   Ele dobra os joelhos para beijá-la. Os que não queriam se comover foram se retirando. O assassino já não sabe bem onde está. Vai sendo levado agora para um destino que lhe é indiferente. É ainda a voz da mesma canção que lhe fala alguma coisa ao desespero:

    Quem fez de meu coração seu barracão?
    Foi ela..."

   Que ninguém o incomode agora. Larguem os seus braços. Rosinha está dormindo...Não acordem Rosinha. Não é preciso segurá-lo, que ele não está bêbado...O céu baixou, se abriu...Esse temporal assim é bom porque Rosinha não sai. Tenham paciência...Largar Rosinha ali, ele não larga, não...Não! E esses tambores? Ui! que ventania...É a guerra...Ele vai se espalhar...Por que estão malhando em sua cabeça?...Na bigorna do Engenho-de-Dentro é assim...Não se massacra um operário dessa maneira...Estão atrapalhando o seu caminho para Rosinha...Se apitam assim, acordam ela...Ela já não está mais presente...Deslizando no éter...Deixem ele passar...Os outros fiquem no chão...Fiquem por aí...Ele vai tirar Rosinha da cama...Ela está dormindo, Rosinha...Fugir com ela, para o fundo do país...Deitá-la no planalto central! ...Abraçá-la no alto da colina...
                                    (REVISTA DO BRASIL)





Preamar -Maré cheia, maré alta.