quarta-feira, 22 de maio de 2019

Hugo de Carvalho Ramos - Ninho de Periquitos - Hugo de Carvalho Ramos

Abrandando a canícula pelo virar da tarde Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacula de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.
   Era pelo domingo, véspera quase da colheira. O milharal  estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.
    Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.
    - Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de "malícia" num cupim velho do pé de maria-preta. Não esquecesse...O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões, foi ao paiol de palha de arroz mais uma vez avaliando com, a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes de coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.
   - Ora, deixassem  lá em paz os passarinhos.
    Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.
  O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão, - nesses dias sem pingo dágua - galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde e galharada esguia, toda tostada desde a época de queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada. Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera  ninho dessa estação.
    O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-os num repente, surpreendido. É que a picadela incisiva, dolorosa rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.
   E enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-o, persistentes, seus olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...
   O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha....
   Era um urutu, o terrível urutu do sertão, para qual a mezinha doméstica, nem a dos campos, possuíam salvação...
   - Perdido...completamente perdido...
   O réptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta: e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo "jacaré" inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
   Então, sem vacilar, num movimento inda mais brusco, apoiando a mão molesta à casa carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.
  E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, com um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...
                                               (TROPAS E BOIADAS)


Canícula - calor muito forte.

embira: Folha broto da palmeira buriti, do qual se extrai uma fibra mais fina denominada seda que se usa para fabricação de cordas, redes, esteiras, ...


coivara
substantivo feminino
  1. 1.
    BRASILEIRISMOBRASIL
    quantidade de ramagens a que se põe fogo nas roçadas para desembaraçar o terreno e adubá-lo com as cinzas, facilitando a cultura; fogueira.

2 comentários:

  1. Ao longo dos meus sessenta e três é normal perder a conta das vezes que li esse conto maravilhoso. E, como estamos vivendo um momento de preocupação com as causas climáticas procurei resgatar essa leitura

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  2. Obrigada pelo comentário. Muito bom encontrarmos pessoas preocupadas com questões climáticas,precisamos preservar para as gerações futuras.

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