quinta-feira, 27 de junho de 2019

Coelho Neto- Firmo, o Vaqueiro- Coelho Neto

Sentados na soleira da palhoça, em face do verde campo, à hora vesperal em que os rebanhos recolhem, o velho Firmo e eu fumávamos, relembrando passagens alegres da vida de outrora.
   Firmo era meu companheiro quando eu ia passar as férias na roça. O que ele sabia de histórias! e como as contava fazendo a voz enternecida e meiga para imitar as princesas que imploravam arremetendo com vozeirão terrível para que eu tivesse a impressão exata do bradar horrível dos gigantes antropófagos. E não só histórias dos livros, outras sabia que eu jamais em letras vira: a que descrevia a iara branca seduzindo o remador do Itapicuru e o conto do sucupira, com que no bom tempo faziam cessar a minha impertinência. Algumas era inventadas por ele, diziam; outras, o velho Firmo, vaqueano e andejo, aprendera por esses sertões de Deus por onde caminhara.
   Andava pelos oitenta anos, mas quem o visse a cavalo, no campo, não lhe diria tanta idade. O diabo era o reumatismo que lhe não deixava as pernas. No seu tempo ninguém levava a melhor ao Firmo do Curral novo. Raparigas, que uma vez o viam montado no garboso fábrica, o laço em volta da cinta, a guilhada firme sobre a coxa coberta de couto cru, perdiam-se de amor por ele.
  Era um caboclo atirado, musculoso e rijo: grandes olhos negros brilhavam no seu rosto queimado pelos verões e os cachos do seu cabelo rolavam-lhe pelos ombros largos.
  Velho, embora, "ninguém lhe chegava ao pé sem muito jeito", como ele próprio dizia sorrindo com os seus dentes limados, agudo como pontas de flechas. Apesar  de alquebrado e enfermo, andava com arrogância e notava-se-lhe na voz, áspera e forte, o hábito de comando.
 Em tempos de festa, quando vinham para a mesma eira moças do lugar e moças de mais longe, Firmo saltava na roda, sapateando, rasgando na viola o tirana dos campeiros, e quem ousava pegar no verso do caboclo?!
 As tabaroas morenas sorriam com os olhes fascinados e unidas desfaziam-se das flores para que o o cantador as fosse pisando no sapateado.. por isso o  Firmo andava sempre de ponta com os companheiros e, mais de uma vez, o descante acabou varrido a faca; mas quem ficasse do lado do caboclo podia estar descansado- nunca fugiu de arrelia, fosse com um, fosse com dez ou mais.
    Mãezinha, a velha mucama de casa, quando o via passar no caminho, curvado pitando o seu cachimbo de taquara, dizia maliciosa:
    - Isso, ahn! isso, foi o diabo!
    Firmo  "viva encostado  no tempo de dantes", a saudade era o seu conforto. "Hoje em dia que é que a gente vê? má língua e moleza só", dizia e citava o valente de antanho e mostrava as velhas gabando-lhe a beleza que a idade fanara. "Serapíão, homem que nem o diabo!...Ana Rosa, essa curumba...foi mulata de dengue, era um motim aqui em cima por causa dela. Filomena, com essa cara de peixe moqueado, teve o seu luxo e foi gente... Eu também pisei duro, ora!"
    Firmo viva das recordações passava os dias caminhando de um para outro lado, visitando as palhoças, ou à beira do rio para ver e ouvir as lavadeiras, quando não se metia a fazer bodoques para as crianças.
   À tarde sentava-se em um pilão quebrado, à porta da casa, e deixava-se estar inerte, os olhos ao longe: " Estava vivendo..."dizia quando eu lhe perguntava que fazia ali sozinho. Estávamos, às vezes, sentados juntos, ele a contar-me histórias, quando nos chegava, nítido e agudo, o grito do campeiro. Firmo calava-se, um estremecimento agitava-o, os olhos dilatados recobravam o brilho antigo e punha-se de pé, devassando a paisagem triste, à luz crepuscular.
   De repente aparecia a nuvem de poeira anunciando o gado que chegava...uma mancha vermelha, uma mancha negra, outra e logo o magote, os bois juntos, emaranhando os chifres; um mugia, outros imitavam-no levantando os focinhos ou ferravam-se às marradas, sendo às vezes, necessária a intervenção do vaqueiro que aparava os dois a ponta de vara. e a marcha aproximava-se  morosa.
   Firme ficava enlevado acompanhando os movimentos da manada, inclinando-se para um lado, para outro, aspirando sofrego. De repente batia as palmas e juntava, logo em seguida, as mãos na boca à guisa de porta-voz, brandando:
   - Eh! eh! ruma!  ruma! Eh! cou...
  E ficava longo tempo, excitado, a olhar. Não perdia uma só das peripécias e, se um touro espirrava, correndo aos galões pela campina, o velho entrava a bramar do outeiro, tão alto, tão alto que as raparigas, que andava na eira recolhendo a roupa ou socando o arroz, paravam assustadas erguendo os olhos para o lado da palhoça do vaqueiro velho. Mas nínguém o incomodava antes de ser lançado o boi fujão e quando o vaqueiro aparecia, arrastando o animal laçado. Firmo suspirava baixinho:
   - Ah! Nossa Senhora! meu tempo!
   Foi pelo Natal que o vi pela última vez. Começavam os preparativos da festa, quando cheguei ao sítio. Nas casas dos escravos, as vezes, à noite, ensaiavam as crianças. Na eira os rapazolas preparavam jiraus; colhia-se o arroz novo para os presepes e de todos os lados, mal o sol fugia, começavam as toadas das cantigas ao Deus Menino e as falas dos infantes que figuravam no Mistério.
   Firmo estava doente, mal podia mover-se; passava os dias na rede. Subi a vê-lo, uma noite justamente na véspera do grande dia. Encontei-o deitado, fumando, os olhos semicerrados.
   -Eh! vaqueiro velho...Então que é isso?!
  - Estou derrubado, patrãozinho.
  - Mas que diabo tem você?
  - Moléstia má, patrãozinho; parece que desta feita vou mesmo.
 - Ora qual...
  - Eu  é que sei como me sinto, patrãozinho. Se até o pito me faz nojo...
  - Pois eu preparei uma surpresa que te vai  fazer mais bem do que todas as mezinhas de mãe Tude. Quem está aí fora? Adivinha...
   - Ah! patrãozinho. alguma alma boa...Quem há de ser?
   - Raimundinho.
   O velho sacudiu-se novamente na rede e, voltando-se para a porta com um sorriso, perguntou:
   - E onde está esse negro que não entra?
   - Boa noite à gente da casa! disse da porta o cafuzo.
   - Entra, negro!
   O cafuzo, um codoense de fama, atravessou o limiar da porta.
   - Então, tio Firmo, a febre pode mais, hein?
   - Sim, porque eu não vi quando ela entrou....quando não! Então, negro, que é que vamos fazendo?....
   _Vim fazer a minha festa. Dizem que vão queimar fogaréus no Curral Novo....
   - Como vai Noca?
   - Boa.
   - E Ana? está na cidade, mais o pai?
  - Hen hen,afirmou o cafuzo.
   - Negro, você não vai daqui hoje. Ah! patrãozinho, vosmecê vai ver o que é um diabo. Negro, ajunta a madeira ali atrás da arca...
  - Está encordoada?
    - Ò danado! Onde você viu viola sem corda? e afinada, ajunta.
   O codoense agachou-se, apanhou a viola do vaqueiro e logo correu os dedos ágeis pela cordas.
  - Passa pra luz, cafuzo.
   - Lá vou...
   Sentou-se no centro da mesa, cruzou as pernas e tombando a cabeça, gemeu a toada sertaneja
   - Anda com Deus.
  - Lá vai; pigarreou e desferiu:
   "No coraçao de quem ama
    Nasce uma flor que envenena".
    - Eh, gritou o Firmo entusiasmado, concluindo a quadra:
  - Pega, negro...não deixa o verso  no chão!
  De fora, continuo e doce, vinha o coro longínquo das crianças em louvor de Jesus e, de vez em vez, reboava o mugido de um touro.
 Quando o cafuzo descansou a viola, Firmo disse da rede, com esforço, arrastando a voz fraca:
    - Canta, canta, mais, cafuzo...Quem não tem Nosso Pai ouve a cantiga. Canta.
  Era tarde quando desci o outeiro. Raimundo lá ficou cantando.
  No dia seguinte, à hora em que saiu o gado, estava eu debruçado à varanda quando vi o cafuzo que preparava o animal viajeiro:
    - Raimundinho, como vai ele?
   De longe apontou para a palhoça:
   - Sim.
   O braço caiu-lhe, olhou-me algum tempo comovido; depois, saltando para o animal, levou o polegar à boca fazendo estalar a unha nos dentes: "Ás quatro da manhã...Atirei um verso e disse, para bulir com ele; Pega velho! Não respondeu. Tio Firmo, mesmo velho e doente, não era homem, para deixar um verso no chão... Fui ver, coitado! ...estava morto". E deu de esporas para que eu não lhe visse as lágrimas.
   Subi ao outeiro...Pobre Firmo! Lá estava no fundo da rede, cercado de gente. Guardara o sorriso, morrera feliz, ouvindo os cantos do seu tempo e bem perto de casa o mugido dos rebanhos. E bem que o choraram nessa noite os grandes bois, e diziam, entretanto, que eles estavam louvando o Senhor Menino; chorando o companheiro é que eles estavam, os grandes bois que pressentem todas as desgraças e que vêm a Morte passar, à noite, com a foice de rastro, atraves das campinas. Bem que choraram nessa noite os bois: decerto viram a Morte entrar na cabana de Firmo.
               (SERTÂO)
 


Vesperal:  Evento que se realiza no período da tarde 
Tabaroa :mulher acanhada; mulher criada no interior; ...
Curumba;  Pessoa de baixa condição social.
2. Indivíduo que sai do sertão e vai procurar trabalho nos engenhos.
3. Mulher velha.
moqueado : moqueado
adjetivo
BRASILEIRISMOBRASIL
  1. 1.
    assado ou tostado em moquém.
  2. 2.
    posto para secar em moquém.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Hugo de Carvalho Ramos - Ninho de Periquitos - Hugo de Carvalho Ramos

Abrandando a canícula pelo virar da tarde Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacula de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.
   Era pelo domingo, véspera quase da colheira. O milharal  estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.
    Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.
    - Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de "malícia" num cupim velho do pé de maria-preta. Não esquecesse...O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões, foi ao paiol de palha de arroz mais uma vez avaliando com, a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes de coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.
   - Ora, deixassem  lá em paz os passarinhos.
    Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.
  O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão, - nesses dias sem pingo dágua - galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde e galharada esguia, toda tostada desde a época de queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada. Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera  ninho dessa estação.
    O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-os num repente, surpreendido. É que a picadela incisiva, dolorosa rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.
   E enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-o, persistentes, seus olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...
   O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha....
   Era um urutu, o terrível urutu do sertão, para qual a mezinha doméstica, nem a dos campos, possuíam salvação...
   - Perdido...completamente perdido...
   O réptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta: e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo "jacaré" inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
   Então, sem vacilar, num movimento inda mais brusco, apoiando a mão molesta à casa carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.
  E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, com um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...
                                               (TROPAS E BOIADAS)


Canícula - calor muito forte.

embira: Folha broto da palmeira buriti, do qual se extrai uma fibra mais fina denominada seda que se usa para fabricação de cordas, redes, esteiras, ...


coivara
substantivo feminino
  1. 1.
    BRASILEIRISMOBRASIL
    quantidade de ramagens a que se põe fogo nas roçadas para desembaraçar o terreno e adubá-lo com as cinzas, facilitando a cultura; fogueira.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Artur Azevedo - Plebiscito - Artur Azevedo - Obras-Prima do Conto Brasileiro.

A cena passo-se em 1890.
   A família está toda reunida na sala de jantar. O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpando numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade: Dona Bernardina, sua esposa, está muio entretida a limpar a gaiola de um canário belga. Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distraí-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossa folhas diárias.
   De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
   - Papai, que é Plebiscito!
   O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
   O pequeno insiste:
  - Papai?
   Pausa.
  - Papai?
  Dona Bernardina intervém:
  - Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.
  O senhor rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
   - Que é? que desejam vocês?
   - Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
  - Ora, essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito!
    - Se soubesse não perguntava.
  O  Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola.
   - Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
   - Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
   - Que me diz?! pois a Senhora não sabe o que é plebiscito?
    -Nem eu nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
   - Ninguém, alto lá! Eu creio que tenho dado prova de não ser nenhum ignorante.
   - A sua cara não me engana. Você o que é, é muito prosa. Vamos: se sabe diga o que é plebiscito! Então?  a gente está esperando! Diga!...
   - A Senhora o que quer é enfezar-me?
   - Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa, quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou,  o menino ficou sem saber!
   - Proletário...- acudiu o Senhor Rodrigues - é o cidadão que vive do seu trabalho mal remunerado...
   - Sim, agora sabe porque foi ao dicionário. Mas dou-lhe um doce se me disser o que é plebiscito, sem se arredar desta cadeira.
   - Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
   - Oh! ridículo é você mesmo que se faz. Seria tão simples dizer: "Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho".
   O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
   - Mas se eu sei...
   - Pois, se sabe diga!
   - Não digo para não me humilhar diante de meu filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! vá para p diabo!
   E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava na ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
                                                                ***

  A menina toma a palavra:
  - Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
    - Não tosse tolo, observa Dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabe o que é plebiscito.
    - Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão:
   - Sim! sim! façam as pazes! diz a menina num tom amigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito.
   Dona Bernardina dá um beijo na filha e vai bater à porta do quarto.

- Seu Rodrigues, venha sentar-se, não vale a pena zangar-se por tão pouco.
   O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.
   - É boa! brada o Senhor Rodrigues, depois de largo silêncio; é muito boa! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!
   A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogmático:
   - Plebiscito...
  E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
   - Plebiscito é uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! è mais um estrangeirismo.

     FIM


Plebiscito -Plebiscito é um voto ou decreto passado em comício, originariamente obrigatório apenas para os plebeus. Hoje em dia, o plebiscito é convocado antes da criação da norma, e são os cidadãos, por meio do voto, que vão aprovar ou não a questão que lhes for submetida. Wikipédia

E o Senhor Rodrigues viu certo no dicionário: na Roma antiga, decreto aprovado em comício popular, orign. obrigatório apenas para os plebeus.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Antônio de Alcântara Machado - GAETANIHNHO - Antônio de Alcântara Machado - obras-Primas do Conto Brasileiro

       Chi, Gaetaninho, como é bom!
  Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
    - Eh! Gaetaninho! Vem para dentro.
  Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
   - Súbito!
   Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante de mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar à direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
   Éta salame de mestre!
                       ***

   Ali na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sono de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um carro.
   O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
   Mas se era o único meio? Paciência.
          ***

   Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
   Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério, noivo dela, de lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro, Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira  e o gorro branco onde se lia Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas separando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravara vermelha outro de gravata verde) e o padrinho seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
   Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instante só. Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o Aí, Mari! todas as manhãs o acordou.
   Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.

       ***

 Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
   Os irmãos(esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade de quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
   O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.
   - Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
   - Meu pai deu uma vez na cara dele.
  - Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
   O vicente protestou indignado:
  - Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
   Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
  O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa,
   - Passa pro Beppino!
   Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
   - Vá dar tiro no inferno!
  - Cala a boca, palestino!
   - Traga bola!
   - Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
   No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
   A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
  - Sabe o Gaetaninho?
  - Que é que tem?
   - Amassou o bonde!
   A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

       ***

  Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
    Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
                (Brás, Bexiga e Barra Funda)


expressões :
No conto "Gaetaninho" a expressão "êta salame de mestre" aparece no contexto de um "confronto" era o personagem principal, o próprio Gaetaninho, e a sua mãe, de modo que, para evitar uma chinelada, Gaetaninho faz uma "manobra" de desvio, como a de um jogador de futebol que aplica um drible majestoso em seu adversário, de modo que a expressão significa um gesto incrível, algo surpreendentemente bem executado - como um salame, um tipo de linguiça, que é feita por um mestre, um exímio conhecedor das técnicas de fabricação.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

-Anibal M. Machado - A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE - -Anibal M. Machado

 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:



Queridos aos poucos vou transcrevendo. Um abraço, obrigada pela paciência! Muita gratidão por este trabalho.

Preamar -Maré cheia, maré alta.





 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:
    -Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com minha filha!
   Saiu satisfeita. Alguns malandros empunhando cavaquinhos foram-se afasando, meio desajeitados. Um deles dava opinião:
   - Dor eu não topo, franqueza...Sou contra o sofrimento.
    Tentaram pedir silêncio novamente. Um rapariga comentava enxugando as lágrimas:
   - Só se você visse, Bentinha, quanto mais a faca enterrava mais mulher sorria....Morrer assim nunca se viu...
   O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. Opreto jelhado bebia mudamente o último sorriso dela, e inclinava a cabeça de um lado par outro como se estivesse contemplando uma criança.Umascola de Samba repontava no Mangue. Anda se ouviam aclamaãos turma da Mangueira. Quando o canto se foi aproximado, a mulata parecia que ia levantar-se.
   E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe susurava baixinho aos ouvidos. o negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:
   
   "Quem quebrou meu violão de estimação?
    foi ela..."



Queridos aos poucos vou transcrevendo. Um abraço, obrigada pela paciência! Muita gratidão por este trabalho.


Preamar -Maré cheia, maré alta.


 Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da  Central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão. O que o está torturando é a ideia de que a presença dela deixará a todos de cabeça virada, e será a hora culminante da noite. Se o negro soubesse que luz sinistra seus olhos estão destilando e deixando escapar como as primeira fumaças pelas frestas de uma casa trancada onde o incêndio apenas começou!...Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, por que,  pelo resto, se conserva misterioso, fechado em sua pele, como numa caixa de ébano. Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço convidando-o? Era a morena do momento, devia tê-la seguido...Ah, negro, não deixes a alegria morrer. É a imagem da outra que ele não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. A final a outra não lhe pertencia ainda, pertence ao seu cordão; ele não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe deu todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: Já lhe foi prometido. Andar na Praça assim, todos desconfiam...Quanto mais agora, que estão tocando  o seu samba...Ele está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música na obsessão de que amada pode ser de outro se abraçar com outro...O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que ela fica maravilhosa, "a rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. e nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
  Pela primeira vez o negro fica triste.
  E está até amedrontado com as ameças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca. A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros os que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins  metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse começaria o seu carnaval. O grito dos clarins que produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga; de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá pontos no Brasil em que por esta noite sem fim haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casa, as pontes, as árvores, os pontes, parecem tremer de dançar em convivência com as criaturas e a convite de um Deus obscuro que convocou a todo pela voz desse clarim de fim de mundo?... A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala.  O povo dá  passagem aos blocos que abrem esteira na multidão entre apertos e gritos.
    - "Isso não é assim à bessa, Jerônimo! Cuidado com ela, é virgem..."
   Rompem novos cantos. Os " Destemidos de Quíntino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das porta-estandartes.
  Não se vê o corpo delas, vê-se o ritmo dos passos que elas transmitem ao pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
   - Oh! aquela, lá, que colosso!...É pena não se poder vê-la: mas é mulata, te garanto...
  - Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!...Dezoito anos com certeza...Coxas firmes...Meio maluca...
   - A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza,,,Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
   - Pelo frenesi, a gente conhece logo.
   Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam. paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
   - Imagino como estão tremelicando os seios daquela lá longe; aquela diaba deve estar suando...Eta gostosura da raça! ...
   - Cala a boca, Jerônimo. Você acaba apanhando...
   Os cordões se entrecruzaram, baralharam os cantos. Vem crescendo agora um batecum medonho de tambores, Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas do hino...Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória entre alas do povo. Se o negro quiser sair daquele lugar já não pode mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa fundo em seu coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será, ela, meu Deus!...
   O negro está temendo. Mas não pode ser ela. Rosinha quando aparece ninguém resiste, é um alvoroço, um admiração geral...Não vê que é assim...Até o ar fica diferente. É o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
   O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim.  Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho-de-Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntaram por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem,...Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar...Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o  Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Ele enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão...Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casa, param os bondes, trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do carnaval. Perto estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam perto cheias de dengue, sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Sente-se mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim,. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo! do corpo de Rosinha, como se ela tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa tem ela? - essa é que é a verdade. Ele está sofrendo. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem ela poderá pertencer ainda, do que ser alguém, como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda de Geraldão, o safado. Era Geraldão, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era Armandinho, mas esse era direito, era seu amigo, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
   Suas pernas o vão levando agora sem direção. Ele não se acha a caminho da casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trecho de sambas e marchas lhe chegam aos ouvidos e lhe pousam na alma:

     O nosso amor
     Foi uma chama...
     Agora é cinza,
     Tudo acabado
     E nada mais....

  Tudo acabado, tudo é tristeza, caramba? ... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor-de-corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que  não está dançando como os outros? O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - " Não chega muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da legação se há perigo - " Mas eles são ferozes? - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos". - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmungou desaforos: - Nós é que temo medo de vancês, seus caras de não sei que diga: nós não é bicho, é gente!...
    Passa rente aos olhos da miss excitada um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um ....posso? - "You are crazy, Any!..." - exclama-lhe a velha escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
    - Mataram uma moça!
   A notícia, que viera da esquina da rua Sant'Ana, circulou depois em torno da Escola Benjamim Constant; corria agora por todos os lados alarmando as mães.
    - Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares.  - Mataram, sim, mataram uma moça!...
   - Que maldade mataram uma moça assim num dia de alegria! Será possível!?...Mas mataram, sim, senhora, garanto que mataram!...
   - Como é o tipo dela? O senhor viu?
   - Disseram-me que é morena, de uns dezenove anos, por ali...
   - Morena? Dezenove anos! ...Aí, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!...Diga depressa como é o resto do tipo dela...
   Outra senhora cheia de pressentimento se aproxima do informante:
   - O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?
    E tinha uma cicatriz? Aí! se tinha não me diga mais nada...não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!...Nenucha! Nenucha! Cadê Nenhucha?...
   As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, vazam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
   A animação da praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesse, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha...Eu sei...eu nem quero ver". A mãe de  Nenucha transferiu o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalmou. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária da fábrica. A fera tinha sido presa.
   Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas, seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram, as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas,- "Mariazinha, que  susto tua mãe passou! Não vai lá mais não , ouviu? É  melhor irmos embora, teu namorado esta rondando...
   Outras mãe cheias de maus presságios partiram ainda à procura das filhas.
   Uma senhora que recebia a corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, largou-se aos berros ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete com certeza...Nem tinha dúvidas...Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro...Dizia sempre que ela havia de ser dele. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinho de sua Odete... Aqueles seios! ...Bem não queria que eles crescessem tanto. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava, perguntando a todos onde se achava a filha morta. era Odete sim, tinha quase certeza. Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha...Quem é que não estava vendo? Ela mesma, como mãe,reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os bondes cheios viravam para apreciá-los quando Odete parava na calçada. Odete a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles...Depois eles cresceram mais do que se esperava e ela tomou medo, Já produziam escândalos...Foi o Demônio que tomou conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero. A  pobrezinha mal podia atravessar a rua, se sentia perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando, olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito sériazinha, a sua Odete...Que gente mal-educada...Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?...Foi pior. Ah meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila, vendo os seios de uma filha crescerem assim dessa maneira?...Não era entretanto pelo volume - ia considerando obscuramente a mãe - que os seios de Odete atraiam tanto. Era pelo formato principalmente; mas não unicamente pelo formato...Afinal os seios de sua filha eram bonitos, a própria mãe o reconhecia, mas havia muitos iguais por aí, pensava ela. O que não sabia explicar era que em Odete a atração dos seios provinha principalmente de serem dela, de comporem um conjunto de relações secretas entre as proporções do corpo, o olhar, a umidade dos lábios, as linhas da nunca. E quando ela caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o perigo deles, isto é, de Odete, se expor desamparada ao público numa ocasião como o carnaval em que os homens estão sempre excitados e são tão inconvenientes. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre aparecem primeiro e na frente como a proa dos navios...
   A mulher caminhava e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. foram os seios, foram... Bem que ela queria levá-la para longe desses brutos. Agora, lá vai ela como louca à procura do corpo de sua filha.
  Ela caminhava e via crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação; estava calma como se tivesse se conformado com tudo que acontecera.  Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho a fantasia na praia de  Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego e dava presentes. Depois...o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Queria que ela não fosse aos bailes, que usasse blusa larga. Dizia que ela remexia demais as cadeira quando caminhava. Proibiu de trazer flor na cabeça, de conversar com os amiguinhos.
    - Mas a senhora tem certeza de que foi a sua filha ? - interrompeu um mascarado.
   - Se eu estou vendo o cadáver dela!...Ah, meu Deus, que dor! Não. Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
   Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética: - Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina...Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela...Me ajudava tanto...
   Um sujeito vestido de Hailá Selassié escutava comovido.. Pouco a pouco a pobre senhora, foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do pesadelo. Fixou-os de olhos esbugalhados, deu um grito de horror. eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão que se voltavam pra ela querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava, Era inútil iludi-la.
   Lá fora um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:

   Cadê Maria Rosa,
    Tipo acabado de mulher fatal?

   E anunciava que ela tinha como sinal

   Uma cicatriz,
   Dois olhos muito grandes,
   Uma boca e um nariz.

               ***

   A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantilha da companheira, dobrou-a e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocasse. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:
    -Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com minha filha!
   Saiu satisfeita. Alguns malandros empunhando cavaquinhos foram-se afastando, meio desajeitados. Um deles dava opinião:
   - Dor eu não topo, franqueza...Sou contra o sofrimento.
    Tentaram pedir silêncio novamente. Um rapariga comentava enxugando as lágrimas:
   - Só se você visse, Bentinha, quanto mais a faca enterrava mais mulher sorria....Morrer assim nunca se viu...
   O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. O preto ajoelhado bebia mudamente o último sorriso dela, e inclinava a cabeça de um lado par outro como se estivesse contemplando uma criança.Uma escola de Samba repontava no Mangue. Anda se ouviam aclamações à turma da Mangueira. Quando o canto se foi aproximado, a mulata parecia que ia levantar-se.
   E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe sussurava baixinho aos ouvidos. O negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:
   
   "Quem quebrou meu violão de estimação?
    foi ela..."

   Ainda apareceram algumas mães retardatárias rondando de longe a morta.
    A morta não tinha mãe nem parentes; só tinha o próprio assassino apra chorá-la E ele quem lhe acaricia os cabelos, lhe faz uma confidência demorada, a chama pelo nome:
   - Está na hora, Rosinha...Levanta, meu bem...è o " Lira do Amor!! que vem chegando...Rosinha, você não me atende! Agora não é hora de dormir...Depressa, que nós estamos perdendo...O que é que foi? Você caiu?! Como foi?... Eu, não! Rosinha ...
   Ele dobra os joelhos para beijá-la. Os que não queriam se comover foram se retirando. O assassino já não sabe bem onde está. Vai sendo levado agora para um destino que lhe é indiferente. É ainda a voz da mesma canção que lhe fala alguma coisa ao desespero:

    Quem fez de meu coração seu barracão?
    Foi ela..."

   Que ninguém o incomode agora. Larguem os seus braços. Rosinha está dormindo...Não acordem Rosinha. Não é preciso segurá-lo, que ele não está bêbado...O céu baixou, se abriu...Esse temporal assim é bom porque Rosinha não sai. Tenham paciência...Largar Rosinha ali, ele não larga, não...Não! E esses tambores? Ui! que ventania...É a guerra...Ele vai se espalhar...Por que estão malhando em sua cabeça?...Na bigorna do Engenho-de-Dentro é assim...Não se massacra um operário dessa maneira...Estão atrapalhando o seu caminho para Rosinha...Se apitam assim, acordam ela...Ela já não está mais presente...Deslizando no éter...Deixem ele passar...Os outros fiquem no chão...Fiquem por aí...Ele vai tirar Rosinha da cama...Ela está dormindo, Rosinha...Fugir com ela, para o fundo do país...Deitá-la no planalto central! ...Abraçá-la no alto da colina...
                                    (REVISTA DO BRASIL)





Preamar -Maré cheia, maré alta.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

CHÃO DE TERRA PRETA - CONTO - AMADEU QUEIROZ

              Antigamente, no tempo dos bugres, certo caçador que andava com outros pelo mato atirou a um macuco encontrado perto de um córrego sem nome. Daí por diante todas as vezes que os caçadores queriam se referir ao dito córrego, diziam: " O Córrego do Macuco". Por essa forma, o nome da ave passou para a água corrente, foi ficando e ficou até hoje.
               Tempos depois, um roceiro, que veio de longe, comprou terras servidas pelo Córrego do Macuco, e ali fez uma casa - casa de pobre - para sua abrigação: a  companheira e mais cinco crianças. À beira do córrego, pai e mãe, criaram a família - os filhos na enxada, as filhas na enxada e no fogão, e logo que deram conta da tarefa, os dois velhos morreram. Os herdeiro repartiram a terrinha entre si e como tocou quase nada a cada um, cada um vendeu a sua parte e gastou o dinheiro para começar a vida. As filhas se casaram, os filhos saíram mundo afora, procurando trabalho e mulher; menos o Chico, que se casou com  com gente da vizinhança e ficou  teimando no seu pedaço de chão, até o dia em que lhe nasceu o segundo filho, um menino.
                 Nessa quadra da vida, deu-lhe tanta doença em casa, a ponto de passar um ano sem trabalhar, e gastando. Por fim, quando os doentes sararam, viu-se endividado até os cabelos e teve de vender o chão e o rancho, para  pagar os empréstimos.
                  Do pouco que possuía, só salvou o crédito, o mais  perdeu tudo, até o nome que o pai lhe deixou: o córrego  pegou-lhe, para sempre, o nome que, por sua vez, recebera de um macuco. A princípio era chamado - o Chico, do Macuco: - depois - Chico Macuco, e por fim, só Macuco....
                   Mas de seu, ficou ainda com muita coisa - ficou com a obrigação e com a necessidade. Então, passou a mão na enxada, arrastou a  família, foi morar em casa alheia e trabalhar no chão dos outros...Foi dar a troco de um jornal de miséria, toda a força dos braços e tudo que é tempo de luz no dia, só guardando para si as sombras da ave-maria e o escuro da noite.
               E passaram muitas luzes e sombras, muita escuridão passou enquanto o jornal ia ficando no mesmo ser e a família nas mesmas privações. Mas, ao tempo que o camarada Macuco descansava um pouquinho, ia olhando à roda de si e, com o passar dos dias, foi à lavoura de todas as plantas, a conhecer a força das terras, a tirar proveito do ajutório do sol e da chuva.
             O fazendeiro gostou do camarada, lhe deu casa, lhe deu serviço, e pagava pontual. A casa era de sapé, ficava na vertente, numa chapada da grota, à beira de uma terra preta, gorda, em que ninguém nunca plantou. Não tinha horta nem arvoredo nem cercado em torno, tinha a bica d'água à porta da cozinha, perto do mamoeiro velho esgalhado. O mamoeiro fazia as vezes de galinheiro, a galinha de pintos deitava-se debaixo dele; o ninho de jacá estava pendurado nele; toda a criação dormia empoleirado nos seus galhos e se abrigava do sol ou da chuva embaixo da sua folhagem.
         A casa tinha dois quartos e cozinha; os quartos se encheram com as camas e com a canastra frasqueira, a cozinha ficou vazia, era maior, dava para o fogão e para se morar. Mas, porém, tudo era pobreza e pouquinho.
          De manhã cedo, a menina e o menino iam à fazenda buscar o que era preciso - leite, couve, cebola de folha. Leite vinha por paga, o mais era dado; ovo, sempre havia algum em casa.  A fazenda não ficava longe, as crianças iam sozinhas, mas era tão pequenas, que se sumiam no meio da estrada. A menina ia indo, carregando o calderãozinho, parava, olhava para trás e andava outra vez, arrastando os pés, sem brincar, sem falar,? o menino fazia a mesma coisa mascando a ponta dos suspensório de tira de pano...
          Nestas aperturas, o roceiro Macuco entendeu de dar um jeito na vida para poder vestir a família. O ganho não lhe deixava sobra: na vila só comprava mantimentos para a semana e, as vezes, um doce para as crianças: três biscoitinho de amendoim, duros e velhos, mas o roceiro não perguntava a idade deles, perguntava o preço.
          - Três por duzentos réis? Ota!
             - ...Mãe, o que é que tem em riba do doce?
           - Açucre.
               - Açucre antão é duro? Boba...
           Quando a precisão era grande, comprava também algum remédio, pouco porém. Se um bicho venenoso mordia as crianças e elas metiam as unhas, tostava um folha de mato chimango e punha em cima da inflamação: se as bichas alvoroçavam, aplicava na barriga das crianças um empacho de erva mentruz; se a mulher sentia dor de cabeça amarrava na testa um lenço molhado em pinga com alcânfor; se ele, Macuco, ficava mofino, amarrava só um lenço na cabeça e aguentava...Mas de qualquer jeito precisava vestir a família, então  pedia a Deus forças para trabalhar, mas a força brota da terra, entra pela boca, enche o peito, sai pelos braços, desce pelo cabo da enxada e entra na terra outra vez.
            Ao anoitecer, o roceiro Macuco voltava para casa, com a enxada no ombro, carregando o peso da canseira aí se encontrava com a mulher, que também ia indo com as crianças, cada uma carregando o seu feixe de lenha, e todos seguiam, juntos sem dizer uma palavra...
              De tanto maturar, teve uma ideia que dava esperança: plantar um fuma, na chapada da vertente, em redor da casa, de meias com o fazendeiro. Plantação alqueire de chão, pouco mais ou menos. Então, foi procurar o dono da terra, o fazendeiro, e explicou-lhe:
                O chão é de boa face; a terra é própria; está em roda da minha casa; a mulher me ajudando, nós dois podemos tratar vinte a vinte e cinco mil pés de fumo, que é mais que pode levar o dito chão. O senhor me adianta as despesas e, no fim, nós partimos. O lucro é bom, mas o seu há de ser melhor porque o fumo dá soca e, a terra sendo boa, a soca também é - dá bem e serve bem o que dá. Ainda, por cima, a terra do fumal fica mais estercada, mais macia; as folhas velhas do fumo, a bagaceira dos talos, das velhas, que a planta vai largando, tudo engorda a terra que, depois,dá com fartura, sem trabalho. Macuco fez a sua proposta, explicou tudo muito bem, induzindo o fazendeiro a experimentar a meação na lavoura do fumo. O dono só entrava com a terra e abria um crédito ao meeiro; mesmo assim titubeou, imaginou, perguntou tanta coisa, e deixou a resposta para mais tarde. Mais tarde aceitou com uma dose de interesse e um pouquinho de desconfiança.
    - O que for da fazenda, eu vou te fornecendo e assentando; para o que a família precisar - mantimento, remédio e roupa - eu te dou um crédito na vila; na apuração do negócio,você paga tudo o que comprou. Está combinado: é negócio a meias; tiradas as despesas, parte-se o lucro, a soca me pertence, fica de fora. Contrato escrito, não é preciso, nós somos de fiança um para o outro.
             Acertaram. Macuco deu parte à mulher e como já era mês de agosto caiu, sem demora, em cima da terra. Primeiro, formou os canteiros para a semeadura, depois, colocou por cima deles uma camada fina de gravetos, folhas secas e lenha miúda; ateou fogo em tudo e, logo que a queima se acabou, os canteiros ficaram cobertos com uma camada de cinza. Deixou esfriar a cinza, espalhou esterco de curral por cima e revirou a terra na fundura de meio palmo. Assim, a terra ficou pronta para a semeadura, livre de pragas e das sementes do mato daninho.
              Até chegar setembro - o que é o tempo de semear-se o fumo - Macuco voltou a capinar a roça, e capinou quatro semanas a fio. O tempo chegou, ele mexeu aplainou a terra, semeou a sementes nos canteiros, que a fechou a meia altura. para evitar o estrago das galinhas. Até passar dois meses - prazo que a planta pede para nascer e ficar no ponto de mudar-se - Macuco e a mulher levaram os dois meses no serviço da enxada, pois, quando iam chegando ao fim, voltava ao princípio, para repassar a capina.
         O chão era grande, o tempo curto, mas o mato era maneiro e a paciência muita, para aguentar a mesma labuta todos os dias, e todos os dias o mesmo tempo: solão desde manhã até de tarde, sem chuva para refrescar a terra, sem nuvem para tapar o sol..
           A noite já dava sinal, e o roceiro Macuco ainda lavrava a terra para a lavoura de meação. A mulher estava ao lado dele e batia enxada também, ajeitando a capina, ajuntando um monte num lugar, outro mais adiante. O menino e a menina trouxeram o fogo para queimar o cisco. O chão estava limpo em derredor, o céu também estava, a fumaça branca subia das fogueiras, acompanhando a viração.
               O roceiro trabalhava calado, reparando; só existia para a enxada e para o silêncio; a vida se lhe concentrava em torno, não tinha olhares distantes...Tudo quanto lhe pertencia estava a seu lado: a mulher, os filhos, o cachorro, o fogo e as galinhas ciscando adiante da sua enxada - seu lar vinha trabalhar com ele, e se espalhava pela terra da sua lavoura.
              Macuco suspendia o trabalho, deixava cair, a um lado do peito, o cabo da enxada na palma da mão - amarelo como cana de reino - cuspia na palma da mão - amarela e lustrosa - e olhava o ar... Todos os homens que trabalham a terra tem olhar sem vida;  os outros não. Uns tem olhar de espanto ou de mistério; outros de sonho ou da mágoa; outros de indiferença ou desengano; o trabalhador da terra tem olhar de espera...
             Quando o sol se escondia, as galinhas era as primeiras a se recolherem ao seu mamoeiro, depois, a mulher com as criança e o cachorro, e por último, o roceiro Macuco. Pela terra, a tarde espalhava as sombras, e os últimos ventos do inverno espalhavam a fumaça branca das fogueiras de cisco.
            A mulher acendia a lamparina de querosene, as crianças lavavam os pés na gamela d'água, comiam leite com farinha e iam se deitar na mesma cama, assim como vinham da capina; o roceiro e a mulher, lavavam os pés na mesma água, bebiam uma tigela de café com rapadura e farinha e iam dormir na mesma cama, assim com vinham da terra...O cachorro pulava para cima do fogão e ninguém ouvia o ressonar do homem nem o rosnar do cão, porque o roceiro cansado tem sono de pedra e o cachorro magro, esfomeado não rosna.
                    Daí a pouco clareava o dia; o roceiro Macuco abria a porta para a   luz entrar: as galinhas desciam do  mamoeiro; uma neblina rasteira cobria a terra preta da campina. O trabalhador bebia outra tigela de café com rapadura e farinha, batia a pedra, soprava na isca, acendia o cigarro, pegava na enxada e voltava para a terra. Ia sozinho, que os mais ficavam em casa - a mulher e as crianças - cada um com a sua a tigela, e o cachorro com um pedaço de angu frio; as galinhas, por sua conta, procuravam o que comer.
             O tempo estava firme, o sol subia, rendia o serviço do roceiro, e a mulher mexia o almoço. A menina permanecia de cócoras ao pé da porta da cozinha, imóvel e calada, depois, se levantava, coçava a cabeça, espreguiçava e ia se  acocorar mais adiante. O menino cortava um gomo de mamoeiro para fazer um pito comprido; neste meio, um pássaro preto cantava no pinheiro seco, o menino tirava o pito da boca, assobiava, arremedando o passarinho, e os dois ficavam cantando juntos.
            No caldeirão de ferro, desde cedinho, já se cozinhava o feijão, e a mulher punha ao lado dele a panela de barro, de fazer arroz. Mexia um pouquinho cada qual, dava uma voltinha, atiçava o fogo, espiava dentro das panelas e ia se encostar à porta do terreiro. Ficava olhando o Chico, parado no meio do terreno preto, descansando um pouco. O marido, com chapéu de palha rasgado, enfiado na cabeça, a roupa pendurada no corpo, mal comparando, imitava um judas de espantar passarinhos de arrozal...Voltava ao fogão, mexia outra vez a panela de arroz, picava as couves e ia buscar os torresmos.
             Pouca panela, pouca comida, trabalho pouco - logo o almoço ficava pronto. A mulher dava mais uma voltinha, empilhava três pratos de folha, à beira do fogão, e gritava pelo Chico. E assim que o marido chegava, cada um recebia o seu prato, a sua colher, cada um ia se acocorar num canto da cozinha, e ninguém dizia uma palavra. A mulher servia o prato seu, dela, e ficava de pé, encostada ao fogão, comendo. O cachorro, sentado sem se mexer, olhava o prato do menino, depois, olhava a menina; por fim, olhava só para a mulher e ficava, com os olhos compridos, esperando.
           Os pratos de folha se empilhavam de novo à beira do fogão; o roceiro Macuco puxava um tamborete, sentava-se, olhava a mulher e dizia:
           - Agora, vamos descansar um pouco...
            Lá fora, o joão-bobo cabeçudo vinha voando com a sua companheira, pousavam no mesmo galho da árvore e gritavam simultaneamente, um ao outro; " Currupiro!" "Currupiro!" Depois, se achegavam, corpo com corpo e ficavam imóveis, bem juntinhos...
            O roceiro Macuco não afrouxou na labutação nem perdeu a hora do dia, afora os domingos, que tinha de ir à vila buscar mantimento e querosene, tudo fiado. O fazendeiro respondia pelos seus gastos, é certo, mas precisava ter sempre dinheiro para comprar uma ou outra coisa de necessidade. Então, vendia frangos, ovos, juás, pinhão, fruta e tudo quanto o fazendeiro deixava tirar do mato, sem apagar.
              E foi indo nessa toada, até preparar a terra e chegar o tempo da plantação das mudas. Aí ele e a mulher não largaram mais o chão - abrindo cova e plantando, abrindo cova e plantando. Os dois ficaram tão mestres na abertura das covas, que conservavam, entre uma e outra, a distância certinha de cinco a seis palmos, o que era preciso ser feito, por via de ser a terra de boa qualidade.
             O plantio pedia muito cuidado: só se aperta, na terra, a raiz e não a haste; portanto, para ajudar, eles ensinaram os filhos, e os filhos plantavam com delicadeza e perfeição, que as mãos das crianças não tinham tamanho nem força para machucar as plantas novas.
            O tempo corriam bem todos os dias, e assim que o campo ficou plantado, choveu uma chuva mansa, fresca, criadeira, as mudas se firmaram nas covas, as folhas se aprumaram e principiaram a crescer à vista dos olhos.
           O roceiro e a mulher redobraram de cuidados e de interesse, tratando com enxada a terra da plantação, removendo a areia das covas e qualquer outra coisa que pudesse prejudicar o desenvolvimento da planta. Os filhos continuavam aprendendo e ajudando; sabiam apanhar as folhas que iam morrendo e secando, na parte inferir dos pés de fumo, a arrancar o mato com as mãos, sem ofender uma folha que fosse.
          Toda a gente pensava só no fumal, e ninguém viu que o fumal tomou conta da terra, cresceu, cresceu gordo, mole, viçoso: tinha pé do tamanho de um homem, tinha folha larga, de mais de gêmeo. Nem um pé falhado, nem um folha praguejada. A terra preta, macia e boa, criava, por igual, o fumo, planta que quer força do chão para vingar.
           O dono da terra foi ver a lavoura, andou abaixo e acima, espiando aqui e ali; calculou, com uma olhada, o valor da colheira, gostou do que viu mas não disse nada. O roceiro Macuco, que estava junto el, também e calava. Por fim, ao voltar para a fazenda, o homem disse isto:
      - Como é que vai o seu gasto, na vila?
    - Vai indo, eu compro só meizinha e mantimento...
   - É isso mesmo. As coisas estão ficando ruins, a gente precisa minguar as despesas...
              O fumal começou a apendoar; as flores tinham pressa de nascer; então, marido e mulher deixava o trabalho e se recolhiam, esperando que também os botões apontassem logo.
          O pai, a mãe, os filhos, levantavam-se ao romper do dia e iam para a desponta; almoçavam e iam para a desponta; de noite, deitavam-se para dormir, com os dedos doloridos de tanto despontar, de tanto arrancar um botãozinho tão mole e tão mimoso!
         E assim, despontaram muitos mil pendões; os dias foram passando, e chegou o tempo da desolha - que é o trabalho de se tirarem os brotos que nascem entre as folhas e a haste - trabalho incessante porque o fumo brota sempre. Enquanto o broto é novo, se quebra facilmente com os dedos por isso as mulheres e as crianças ajudam muito; mas é preciso se desolhar com cuidado, para não maltratar as folhas.
            As crianças aprenderam o serviço, e cedinho já iam para a lavoura. O fumal mandou na casa; levou a gente do roceiro para o seio da sua folhagem; governou a boca e a força da família; mandou em toda a gente, e toda a gente lhe mostrava respeito e amizade, porque não parava nem se cansava.
          A mulher e o marido já não trabalhavam pensando só no ganho, no lucro prometido; a ambição deles era também a ambição do pai que quer ver os filhos criados; do criador que quer criar o seu gado; do trabalhador que  deseja concluir sua obra. Macuco percorria o fumal, examinava pé por pé; todos eram irmãos, cresceram juntos, porque a força era igual naquela terra e tanto. E o roceiro quedava, olhando o chão preto, fincava no chão o dedo grande do pé e remexia, com ele, a terra fofa, como se fosse um porco foçando.
           A terra, ao redor das plantas, estava coalhada de borboletas arrancadas. A mulher e as crianças tosquiava, tosquiavam, até ficaram com as mãos amortecidas, com um mau jeito nos pulsos, com as unhas descarnadas, doídas, de tanto quebrar o brotinho...
               - Corta, gente! 
             -  Dói, mãe...
              - Corta, gente!
   Dessa maneira foram arrancadas milhares e milhares de borbulhas, até se acabar o ano e começar o outro. Mas antes que viesse a colheita, o meeiro Macuco tratou de construir o rancho, livre de sol e de chuva, com os seis andaimes para a seca das folhas do fumo. O rancho era coisa simples: quatro esteios de pouca altura, um pau de cumeeira, uma coberta de sapé, dos dois lados, até o chão, e dentro, os varais para se estenderam as folhas colhidas. Como na fazenda não havia sapé para a coberta, o fazendeiro mandou cortar no vizinho, e pôs na conta das despesas: a madeira - meia dúzia de varas - foi tirada ali mesmo...
            Chegou o mês de maio, As folhas da parte inferior dos pés de fumo começaram a amadurecer tomando uma cor amarelada ao mesmo tempo que a parte de cima- a feição da folha - ficava toda empipocada.
          Principiou a colheita. Enquanto o roceiro limpava a cultura - que a colheita se deve fazer no limpo - a mulher apanhava as folhas de vez, que as crianças iam transportando para o rancho...
    - Mãe, ocê é que nem formiga.
   - Ocê é que nem formiga-carregadeira...
   A colheita se faz aos poucos, e leva tempo - cada pé dá duas, três e mais apanhadas. As folhas vão sendo penduradas nos varais do rancho, onde ficam uns cinco dias, para depois se tirar, com todo o cuidado o talo de cada uma. O talo cai com facilidade, basta dobrar a folha sobre ele mesmo para logo se separar.
       Então se faz a torcida, o cordão e, por fim, o rolo, que se entrega ao fabricante.
        O fazendeiro foi passear na roça para ver a a colheita e, decerto gostou porque se mostrou conversando. Aí,o Macuco lhe disse que não podia dispensar o ajutório de camarada. O fazendeiro concordou, e resolveu mandar ver por conta da meação um prático no serviço de torcer e de encordoar o fumo.
          Logo depois, veio um prático trabalhador e diligente. A apanha levou um avanço; as crianças aprenderam, também, a estender e destalar as folhas e, desse modo, todo o mundo trabalhava em tudo, e tanto trabalharam que um dia a colheira se acabou, todas as folhas forma torcidas, encordoados, enroladas e entregues ao fabricante.
          O fumal ficou que era vara só...
            No mês de julho, o fabricante deu conta do fumo, preparado e enrolado, A quadra era boa; o fazendeiro aproveitou e vendeu bem  num lote só. Mandou tirar as contas do Macuco tanto as da vila, com as da fazenda; descontou as despesas feita; apurou a rendição e acertaram o trato. A parte que tocou a cada um foi de um conto e muito, quase dois. A do fazendeiro saiu inteirinha, e a do roceiro. Macuco, descontadas todas as despesas, deu-lhe para salvar um jornal de cinco mil e quinhentos - não se contando a o ajutório da mulher - com uma sobra de setenta e cinco mil réis...
           O fumal produzira com abundância de compensar, mas o trabalhador ficou na mesma. A meação só lhe deu para viver um ano, com jornal um pouquinho melhor que jornal de enxadeiro...Está certo. A mulher e as crianças ficaram doentes, a família teve de comer e o dinheiro num ano subverte-se.
          O fazendeiro não explorou trabalho de ninguém, com maldade ou com imposição, fez negócio limpo e tratado. Não lhe cabia culpa pelo sucedido; tanto que, vendo o meeiro desapontado, sem lucro no bolso e pior de miséria, ficou com dó e lhe deu uns cem mil-réis, do seu bolso.
        - Mas olhe que este dinheirinho que estou te dando não tem nada com o trato da meação. Trato é trato.
        O roceiro Macuco recebeu o dinheiro, com os olhos no chão, sem dizer uma   palavra; por fim, levantou a cabeça e disse:
   - E agora, o que eu hei de fazer?
   - Pois, uaí! você continua aí, vai trabalhando de jornal: cinco mil-réis a seco. E já pode pegar, amanhã, na corta do fumal, para a soca.
         O trabalhador não disse nada a ninguém, nem permitiu que ninguém lhe dissesse nada. De tarde, foi à bica, amolou a foice e, no outro dia cedo, principiou a cortar as hastes desfolhadas do fumal colhido. O fumal velho, podado em agosto, torna a se enfolhar, dá boa soca e seve bem o que dá...
               A poda se faz conservando cada pé na altura de três quartos, mais ou menos. A princípio, o roceiro não cortava na medida certa, depois, pegou a toada e a foice ia e vinha, cortando as plantas na mesma altura. O homem, sem se interromper, avançava para a frente, para a direita, para a esquerda, golpeando com braçadas largas. Olhando de longe, parecia um possesso, de foice em punho matando a torto e a direita. Dir-se-ia que o lavrador enfurecido se vingava da planta. Mas o roceiro Macuco não era homem para destruir os frutos da terra, ele reconstruía a sua obra de lavrador...
             Acabou-se a poda. quando a última vara caiu, o roceiro parou na orla do campo arrasado, cruzou os braços e, apoiando-se no cabo da foice, ficou matutando e contemplando.
            À sua frente estende-se o chão preto, a terra limpa, seca, ouriçada: nem um fiapo de capim, nem um olho de broto espiando; cada pé de fumo podado virou um estrepe agudo. Mas as raízes estão vivas no fundo da terra, esperando que voltem as chuvas criadeiras do tempo das brotas; então, tudo vai outra vez nascer e verdejar, crescer e ocupar a terra erma. A soca vai cumprir a promessa do roceiro Macuco...
         De repente a tarde entristeceu.
            Pelos ouvidos do roceiro passa zunindo o vento que vem trazendo de longe ma nuvem cor de chumbo. Macuco levanta a cabeça e acompanha com a vista a nuvem escura que vai lenta pelos ares...
             A ventania invade os matos, balanceia os pinheiros duros, fustiga desde a graminha até a perobeira que sobe céu acima, enche o espaço e vai levando, para mostrar mais adiante, a todos os trabalhadores da terra, a nuvem escura cor de chumbo, que prenuncia o tempo fecundo das águas.

FIM -