domingo, 19 de novembro de 2017

Contos de Andersen - A casa Velha

Era uma vez uma casa velha, que tinha quase trezentos anos. Podia-se verificar isso na trave onde estava esculpida a data da construção, entre tulipas e guirlandas de lúpulo. Liam-se ali também divisas escritas em caracteres antigos, e todas as janelas eram encimadas por carrancas. Cada andar ficava mais saliente do que o inferior, e a gárgula que rematava a goteira do teto era uma cabeça de dragão. A água devia escorrer pela boca aberta; mas como havia um furo na goteira, era por ali que ela se escoava.
   Todas as outras casas da rua eram novas e bonitas, com grandes vidraças e paredes bem lisas; e não era difícil ver que elas nada queriam de comum com a casa velha. E certamente diziam entre si:
   - Quanto tempo ainda ficará de pé este velho pardieiro vacilante, para nos envergonhar? Além de tudo, suas sacadas avançam tanto que de nossas janelas não podemos ver o que se passa do outro lado. A escada exterior é tão larga como uma escadaria de castelo, e tão alta, como se fosse dar em um campanário. Quanto ao corrimão de ferro, parece a porta de um jazigo da família; e a casa tem maçanetas de cobre, ainda por cima! Que falta de gosto!
   Ali mesmo, em frente, havia uma casa nova, que pensava como as outras. Mas à janela dessa casa estava sentado um meninozinho de belas faces rosadas e grandes olhos, claros e luminosos. Aquela casa velha - fosse ela iluminada pelo sol ou pelo luar- agradava-lhe infinitamente e quando ele considerava as velhas paredes, cujos ornatos já tinham em parte desabado, parecia-lhe ver, em imaginação, os quadros mais maravilhosos. Por exemplo, o aspecto daria, com todas as escadas exteriores que levavam outrora para as casa, com suas sacadas empenas pontudas. Via soldados armados de chuços, e goteira terminadas por um dragão, ou outro animal fabuloso. Era uma casa que ainda valia a pena ver!
    Na casa velha morava um senhor que usava calções, casaca de botões de cobre, e uma peruca, uma peruca de verdade, isso logo se via. Todas as manhãs vinha um homem idoso fazer a limpeza da casa e trazer provisões mas durante o resto do dia o cavalheiro dos calções ficava sozinho. As vezes ia para a janela, a olhar para a rua. Então o meninozinho lhe fazia um sinal com a cabeça, e ele respondia, de modo que travaram relações e se tornaram amigos sem trocar uma palavra, o que não era, afinal necessário mesmo.
  Um dia o menino ouviu, por acaso, os pais dizerem:
  - O velho cavalheiro da frente pode ser muito feliz...mas vive horrivelmente só e abandonado.
  No domingo seguinte, o meninozinho enrolou alguma coisa em um papel e foi postar-se a porta da casa. E quando o criado que fazia as compras apareceu, disse-lhe:
   - Escute..quer levar isto de minha parte ao velho senhor que mora ali em frente Eu só tenho dois soldados de chumbo e vou mandar-lhe um, porque sei que ele está sozinho e abandonado.
  O velho criado pareceu ficar muito contente; fez com a cabeça um sinal de aquiescência e levou o soldado para a casa velha.
   Pouco depois o menino recebeu um convite para ir visitar o cavalheiro, se o desejasse e lhe dessem permissão.
   E obteve licença. As maçanetas de cobre e as grades da escada brilhavam mais que nunca como se tivessem sido areados em honra ao visitante, e os trombetas esculpidos - porque havia trombetas esculpidos entre as tulipas, sobre a porta de entrada - sopravam com toda a força, e pareciam ter o rosto mais intumescido do que habitualmente. Dir-se-ia que sopravam:
   - Taratatá!...taratati! O meninozinho está aqui! Taratatá, taratati!...
   Enfim, abriu-se a porta.
   Na ante-sala, pelas paredes, havia velhos quadros, que representavam cavalheiros de armadura e belas damas de vestido de seda. Parecia que se ouvia o tinido das arma e o ruge-ruge dos estofos. Mais adiante havia uma escada, por onde se subia até muito alto; depois era preciso descer alguns degraus para chegar a uma galeria muito estragada: nos buracos e fendas brotavam ervas e trepadeiras. Esta galeria deitava sobre o pátio, e estava tão coberta de plantas, que parecia um pequeno jardim: mas era apenas uma galeria. Havia ali velhos vasos com caras ladeadas por enormes orelhas; as flores vicejavam nela à vontade. De um desses vasos escapavam-se cravos em todas as direções; balançavam-se ao vento e desbrochavam ao sol.
   Dali, passava-se para uma grande sala, forrada de couro, em que se viam grandes flores douradas. Dir-se-ia que aquelas paredes proclamavam:
  - Os dourados fana-se, mas o couro fica.
   Viam-se ali grandes cadeiras de braços, de lago espaldar esculpido. E também elas pareciam dizer:
   - Senta-te, senta-te! Oh! Como eu estalo! Eu vou ter reumatismo nas costas, certamente, como aconteceu com o armário grande!
   Enfim, o menino chegou à sala da sacada: lá é que estava o velho cavalheiro.
  - Agradeço-te teu soldado de chumbo, meu amiguinho - disse ele - e agradeço-te também esta visita.
  E todos os móveis a dar estalos, como se também quisessem dizer: " Obrigado! " E havia tamanha quantidade deles, que quase impediam a passagem, porque todos queriam ver o meninozinho.
  Na parede estava o retrato de uma moça muito linda; seus traços tinham alguma coisa de celeste; trajava um vestido antigo e severo. Ela não dizia nenhuma palavra de agradecimento, mas olhava com ternura para o menino, que perguntou:
    - De onde tiraste este retrato?
    - Do belchior - respondeu o cavalheiro. - Há lá muitos quadros; mas ninguém se importa com eles, porque representam pessoas que já morreram há muito tempo. Eu conheci esta senhora antigamente: há já meio século que ela está morta e enterrada. 
      Acima do retrato, em um quadrinho envidraçado, havia um ramalhete de flores secas, que também pareciam ter meio século de existência.
   E a pêndula do grande  relógio ia e vinham e os ponteiros giravam, e tudo na sala continuava a envelhecer, sem que ninguém o notasse.
   - Meus pais dizem que tu és sozinho, e tão abandonado...
   - Não! - disse o velho cavalheiro. - Os velhos pensamentos e as velhas saudades também me vem visitar, como tu. Além disso, estou muito contente.
    Foi buscar um livro de figuras. Representava uma longa fila de carruagens estranhas, como não se veem mais hoje em dia; soldados vestidos como valetes de baralho, e paisano levando bandeiras ondulantes. Na da corporação dos alfaiates, havia uma tesoura, mas na dos sapateiros, em vez de sapatos, havia uma águia de duas cabeças, porque o trabalho dos sapateiros é sempre feito aos pares. Era um livro de figuras verdadeiramente lindo.
   Depois, o velho cavalheiro foi à sala do lado buscar bolos, maças e nozes; e era muito agradável estar ali naquela velha casa.
   - Eu estou farto disto - gritou o soldado de chumbo, que estava sobre a cômoda; não posso mais ficar aqui: é muito solitário e muito triste. Não, quando uma pessoa está habituada à vida de família. é impossível viver assim. Não posso mais. Os dias parecem intermináveis, e pior ainda as noites! Aqui não é como na tua casa, onde teus pais conversam com tanta alegria, e tu e os outros fazem tanto barulho. Como é sozinho e abandonado este velho! Pensas que ele recebe alguma vez um beijo, um olhar afetuoso? Pensas que ele jamais terá uma árvore de Natal? Ninguém lhe dará mais nada, a não ser um túmulo! Eu não posso ficar aqui! 
- Não, não tomes as coisas assim, tão tragicamente- disse o menino. - Pois eu acho isto aqui bem bonito, e sei que os velhos pensamentos e as velhas saudades vem também aqui de vez em quando.
   - Eu não os vejo, nem os conheço; eu não posso ficar aqui mais tempo.
   - Mas é preciso que fiques - disse o menino.
   Voltou o velho cavalheiro, de rosto alegre, trazendo excelentes doces, nozes, maças...e o menino não se lembrou mais do soldado de chumbo.
   A criança voltou, encantada, para casa.
   Passaram-se os dias e as semanas, e o menino sempre fazendo pequenos sinais para a casa velha, sinais que o velho cavalheiro respondia.
    E fez nova visita. E os trombetas pareciam repetir:
   - Taratatá! O menino está aqui!...Taratati!
    E de novo parecia que se ouvia o retinir das armas, o ruge-ruge da seda, das tapeçarias e o ai-ai-ai dos móveis, sempre com reumatismo nas juntas. Tudo foi bem como da primeira vez, porque ali os dias eram todos iguais.
   - Eu não posso mais ! - repetiu o soldadinho. - Estou chorando chumbo...Aqui é muito triste. Antes eu queria ir à guerra e perder braços e pernas! Ao menos seria um a mudança. Não, não posso mais! Agora já sei o que acontece quando os velhos pensamentos e a saudade nos vem visitar...Porque os meus também tem vindo, e asseguro-te que não dão prazer nenhum! A gente tem vontade de saltar da cômoda abaixo. Eu via vocês todos, tão claramente, como se estivessem aqui nesta sala. Lembrei-me daquele domingo, em que a porta se abriu de repente, e tua irmãzinha Maria que ainda não tem dois anos, entrou e se pôs a dançar. Só o que acontecia é que ela não dançava no compasso, e ora se erguia num pé, ora no noutro, fazendo pequenas reverências: e todos ficavam muito sérios. Mas eu, eu ria, ria tanto, dentro de mim, que caí da mesa e fiz muito mal em rir assim! Pois bem: eu revejo tudo isso, e tudo o que vivi depois...É isso, é, os velhos pensamentos e as saudades...Mas dize-me: como vai meu camarada, o outro soldado de chumbo. Ele sim, ele é feliz! Mas eu não posso mais!
    Eu te dei de presente - disse o menino. - Não vês então que tens de ficar aqui?
   Nisto entrou um velho cavalheiro, trazendo uma caixa onde havia toda a espécie de curiosidades: peças de xadrez, frascos de perfumes e grandes baralhos antigos, dourados, com já não se vêem hoje em  dia. Foram abertos também grandes armários, para o menino ver o que guardavam; e até o piano, que tinha uma paisagem pintada na parte superior, foi despido da coberta. Mas quando o velho cavalheiro tocou, para acompanhar uma velha cançoneta que cantarolou, parecia que o piano estava rouco.

   - La cantava muitas vezes esta romança - disse ele, lançando um olhar para o retrato comprado ao belchior.
   Mas seus olhos brilhavam.
   - Eu quero ir para a guerra! Quero ir para a guerra! - gritou o soldado de chumbo.
   E gritou com toda a força - gritou com quanta força tinha! - e precipitou-se no chão.
   Procuraram-no. Mas onde se teria metido? Procurou-o o velho cavalheiro; o menino procurou-o; mas o soldado de chumbo sumira-se, e não apareceu.
   - Eu hei de achá-lo - disse o velho.
   Mas tudo foi em vão! Nunca mais! Havia muitos buracos e fendas no soalho. Certamente o soldado caiu em uma delas, de ficou lá, como em um túmulo entreaberto.
  Passou-se o dia; o menino não saiu de casa; passou-se também a semana, e muitas outras semanas se passaram depois. Os vidros das janelas cobriram-se de flores de gelo, e o menino tinha de soprá-las, para poder ver a casa velha. A casa desaparecera sob a neve; havia neve em todos os ornatos, em todas as inscrições, e também na escada: era como senão fosse habituada. E já não o era mesmo: o velho cavalheiro tinha morrido.
   À tarde parou diante da porta uma carruagem, e puseram nela o esquife do velho, que ia ser sepultado no campo. E ele lá se foi assim, sem acompanhamento de ninguém, porque todos os seus amigos já estavam mortos há muito tempo. Só o meninozinho lhe atirou um beijo quando o carro passou em frente à sua janela.
   Alguns dias depois a casa foi vendida em leilão, e o menino, viu levaram os velhos cavalheiros e as belas damas, os vasos de flores de orelhas compridas, as velhas cadeiras e os armários velhos - uns para um lado, outros para outro. O retrato comprado ao belchior voltou para a casa do belchior, e lá ficou pendurado à parede, porque ninguém conhecia a dama, nem se importava de ficar com ele.
   Na primavera seguinte a velha casa foi demolida, porque " era uma construção antiga", diziam as pessoas. Da rua podia-se ver o interior da sala, cuja tapeçaria de couro caía em frangalhos. As plantas trepadeiras se enrolaram pelo balcão e pelos barrotes caídos, e por fim tudo foi varrido dali.
   - Ora, até que enfim! - diziam as casas vizinhas.
   Construíram no mesmo lugar uma linda casa com grandes janelas e paredes brancas, bem lisas, e na frente, onde ficava outrora a velha morada, havia agora um jardinzinho, para onde se debruçava a vinha virgem dos muros vizinhos. Na frente do jardim erguia-se uma grade de ferro, com um portão de ferro muito imponente; e todos quantos passavam, paravam para ver o jardim. Os pardais, que viviam agora a duzias na vinha virgem, gritavam lá entre si quanto podiam, mas não falavam da casa antiga, porque já tinha sido demolida há tantos anos, que não poderiam lembra-se dela.
  O meninozinho, durante todo esse tempo, ficara homem; um homem distinto, que dava muita alegria aos pais. Casara e fora morar justamente naquela casa.
   Um dia, estava ele no jardim, vendo sua mulher plantar uma flor do campo, que lhe agradara particularmente. Ela apertava de leve a terra em redor da planta, com os dedos delicado, e de repente soltou um gritinho: "Aí!" Alguma coisa lhe picara o dedo. Que poderia ser? Era...Oh! Quem havia de dizer! Era o soldado de chumbo que outrora se perdera em casa do velho cavalheiro; escorregara entre os escombros e tinha ficado enterrado no chão tantos anos!
   A moça limpou o soldadinho, primeiro com uma folha verde, depois com o seu fino lenço, de que recendia um perfume delicioso; e pareceu ao soldadinho que despertava de um longo sono.
   - Que é isto? - perguntou-lhe o marido.
   E, sacudindo a cabeça, pôs-se a rir.
    - Não - continuou ele. - Não é possível que seja o mesmo soldadinho de chumbo...Em todo caso, ele me recorda um episódio da minha infância.
  E contou então à esposa a história da casa velha, e do velho cavalheiro, e do soldado de chumbo que mandara de presente ao senhor, tão sozinho e tão abandonado, Contou tudo tão bem, que a moça sentou os olhos marejados de lágrimas.
   - Pode ser que seja o mesmo - disse ela, - Mas, seja ou não quero guardá-lo, em lembrança do que me contaste. E desejo ver também o túmulo do velho cavalheiro.
   - Não sei onde é, e ninguém acompanhou seu enterro. Eu ora, eu não era mais que um gurizinho.
   - Coitado! Como não devia se sentir só! - disse ela.
   - Sim! terrivelmente só! confirmou o soldado de chumbo. - Mas - continuou - como é bom haver alguém que se lembre da gente!
   - Sim, é bom, é...- repetiu uma voz junto dele.
   E o soldado reconheceu que vinha dos frangalhos da tapeçaria. As douraduras tinham desaparecido, o couro já parecia lama; mas ainda tinha a sua opinião, que continuava a enunciar:
   - Os dourados fanam-se, mas o couro fica!
   E contudo, o soldadinho de chumbo não lhe dava crédito.
Fim
   

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