quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Contos de Andersen - O DIA DAS MUDANÇAS

 Ole, o guarda da torre, é um velho amigo meu.
   Costumo subir até lá pelo Ano Bom; mas resolvi ir visitá-lo agora, no dia da mudança geral: o ambiente embaixo não está nada agradável, naquelas ruas atulhadas de lixo, de cacos e de outras coisas semelhantes. E isso sem falar nos montões de palha, escapada dos colchões rasgados...A gente vai tropeçando naquilo. Vi algumas crianças que brincavam naquela palha: brincavam de "ir para a cama". Acharam convidativo o brinquedo: entravam de rastos nos montes de palha, cobriam-se com pedaços de papel de parede, velho e rasgado, que faziam as vezes de coberta. Ah! Aquilo era demais! Afastai-me dali e subi para a torre de Ole.
   E eis o que ouvi do meu amigo:
   - É, hoje é dia de mudança. As ruas e o becos hoje servem de latas de cisco- enormes latas de cisco. Para mim uma só carroçada é bastante: tiro dali muita coisa, como aconteceu em que a gente apanha facilmente um resfriado. O lixeiro estava parado coma  carroça cheia - mostruário das ruas da cidade no dia das mudanças. Do lado de trás, erguia-se um pinheiro ainda verde, e com os galhos cobertos de ouropel. Servira na noite de Natal, e depois ao atiraram à rua. O lixeiro espetou-o no meio do cisco, e aquilo lhe dava um aspecto divertido- ou talvez triste: isso depende das ideias da gente. Pois eu tive cá as minhas ideias ao vê-lo, e certamente os objetos que se achavam no caminho também tiveram as suas - ou poderiam tê-las, o que vem a dar no mesmo. Lá estava uma luva de senhora...que pensaria ela? Queres que te diga? pois a luva apontava com o dedo mindinho na direção do pinheiro. É que ela pensava lá consigo:
   - Estou com tanta pena dessa árvore! ...Porque eu também estive em fuma festa, e tudo lá eram luzes...Minha vida cifrou-se em uma noite de baile, um aperto de mãos, e rebentei...Depois...minhas recordações param aí. Não me lembro de mais nada: já não tenho razão de viver.
   Era isto o que pensava a luva - ou o que poderia ter pensado.
   Mas os cacos diziam:
  - Que história estúpida essa do pinheiro!
   Os cacos acham sempre tudo estupido. E Eles continuaram a falar:
  - Quando a gente vai ter à carroça de lixo, não deve se pavonear assim, nem usar mais ouropéis. Nós sim, sabemos bem que fomos úteis no mundo- muito mais úteis do que essa vara verde!
   Ora, afinal , era a opinião deles. E talvez haja muita gente que pense assim. E contudo, era belo o aspecto do pinheiro, que dava um ar de poesia àquele montão de lixo.
  Já me ia sentido fatigado, porque o trajeto não era fácil lá embaixo, no meio dos trastes velhos que enchem as ruas nos dias de mudanças. Tratei de sair dali; subi para a torre, e aqui fiquei , olhando para baixo com certo senso de humor, como agora.
  Lá andam os homenzinhos, a brincar de "trocar as casas"! Lá andam carregados, a se esfalfar com seus bens; e os mexericos domésticos, as querelas de família, as preocupações e os pesares mudam-se com eles da velha morada para a nova. E no fim, que resultado tiram eles, ou tiramos nós de tudo isso? A resposta está contida no verso antigo, que diz:
  
    Lembre-se do grande dia de mudanças da Morte!
  
  É certamente um pensamento grave, mas talvez não te desagrade. A Morte é e sempre foi o funcionário mais pontual, a despeito de seus pequeninos encargos, que são incontáveis. É ela o condutor do caminhão, é o escrivão dos passaportes: é ela quem  nos reconhece a caderneta de viagem; é ainda o diretor da grande Caixa Econômica da vida. Compreendes? Todas as ações que praticamos na nossa vida terrena vão para essa Caixa Econômica; e aparece a Morte com o seu caminho de mudanças, e embarcamos nele, viajando para a Eternidade, é ela que, nos entrega lá na fronteira a caderneta de viagem, que serve de passaporte. Para o farnel de viagem, tira da Caixa uma ou outra ação realizada pelo passageiro, a que for mais característica: o resultado pode ser divertido, mas também pode ser terrível! 
   Ainda não houve homem algum que escapasse a essa viagem. Contam, é verdade que houve um a quem foi vedado" o embarque - o judeu errante, Asvero, que se viu obrigado a correr atrás do caminhão. Se lhe houvessem permitido embarcar, não teria fornecido assunto aos poetas...Deita um olhar do teu olho interior para aquele grande caminhão! Lá verás, sentados, alto a lado, reis e mendigos, gênios e idiotas - e todos tiveram de partir sem bens nem dinheiro, levando penas o salvo-conduto e o farnel tirado da Caixa.
  Mas qual será a ação retirada dali, para nos acompanhar? Talvez seja alguma bem pequenina, tão pequenina como uma ervilha...Mas isso não importa! Todo o grão de ervilha tem o poder de fazer brotar uma trepadeira em flor!
    Àquele pobre que lá ficava num cantinho, sentado em um banco, e que só recebia pancadas e injúrias, talvez lhe deem o mocho como insignia e farnel; e quem sabe se ele não se transformará, no caminho, em uma carruagem, que o leve para o país da Eternidade? E, lá quem sabe se não virá a ter um trono, luzente como o ouro, florido como um caramanchão?
   Aquele outro, que bebeu sempre na taça de todos os prazeres, para esquecer as façanhas que aqui praticou, recebe um barril de madeira; é dele que deve beber durante a viagem. A bebida é pura, de sorte que as ideias se lhe vão purificando também, e ele sente despertar no seu íntimo toda a espécie de sentimentos bons e nobres; vê pois, agora, o que antigamente não podia, ou não queria ver, e lá tem no interior o castigo, o verme roedor, que não morre nunca! E, enquanto na taça havia a inscrição: " Esquecimento" - no barril está escrito: " Recordação"!
   Sempre que leio um bom livro, uma monografia histórica, por exemplo, imagino logo a personagem ali descrita embarcada já no carro da Morte. Sinto-me levado a meditar, a procurar qual seria, dentre suas ações, a que a Morte retirou da Caixa, qual o farnel que lhe deu, na entrada do país da Eternidade. Era uma vez um rei de  França, cujo nome esqueci..às veze a gente esquece o nome das criaturas boas; mas acho que ainda hei de me lembrar desse. Pois bem: era um rei que durante uma época de fome foi o benfeitor do seu povo. E esta erigiu-lhe um monumento de neve, com esta inscrição:" Teu auxílio veio a nós em menos tempo do que este monumento precisa para se dissolver. " Suponho que A Morte, em consideração àquele monumento, lhe teria dado um único floco de neve, que jamais se derreterá: há de esvoaçar, qual uma borboleta branca, acima da cabeça do rei, entrando com ele no país da Eternidade,
   E houve também Luís XI. Sim! Guardei-lhe o nome pois a gente nunca esquece o que é mais mau. Há na sua história um traço que nunca me sai da memória - eu bem desejara que isso fosse mentira! Pois o rei mandou executar o seu condestável'. E ele tinha o direito de assim proceder, com justiça ou sem ela. Mas o pior é que mandou postar os inocentes filhinhos do condestável no patíbulo, para que os salpicasse sangue ainda quente do pai! Dali foram condizidos à Bastilha, e encerrados em uma gaiola de ferro, sem um cobertor, ao menos, para se abrigarem. De oito em oito dias, o rei Luís mandava lá o carrasco, que arrancava um dente de cada um - para que não achassem a vida boa demais...Um dia, o mais velhinho disse ao carrasco: 
    - Minha morreria de desgosto se soubesse que meu irmãozinho tem de padecer tanto... Arranca-me dois dentes e poupa-o! 
     O carrasco sentiu os olhos se lhe encherem de lágrimas, mas as ordens do rei podiam mais!
    E todas as semanas o rei recebia dois dentes de criança, em uma taça de prata, conforme ordenara.
  Suponho que a Morte há de ter tirado da Caixa da vida aqueles dois dentes, dando-os ao rei Luís XI, para a viajem que empreendia para a Eternidade. E que eles haviam de ir voando a sua frente, como duas moscas de fogo, ardendo, queimando-o e mordendo-o -aqueles dois dentes de inocentes crianças. 
  Sim, meu caro: É uma viajem séria, essa do caminhão, no grande dia das mudanças! E quando chegará essa dia
    Pois é justamente isso o que há de mais sério nesta história: É que agente pode esperar o caminhão em qualquer dia, a qualquer hora, a qualquer instante.
    E então - qual das nossas ações será retirada, pela Morte, da Caixa Econômica, para nos servir farnel? 
    Vale a pena pensar a gente nisso!
    O dia das mudanças não figura no calendário.
FIM
  
















  judeu errante, também chamado AasveroAsvero,[1] AhasverusAhsuerus ou Ashver,[2] é um personagem mítico, que faz parte das tradição oral cristã. Diz a lenda que Ahsverus foi contemporâneo de Jesus e trabalhava num curtume ou oficina de sapateiro, em Jerusalém, numa das ruas por onde passavam os condenados à morte por crucificação, carregando suas cruzes. Na Sexta-feira da PaixãoJesus Cristo, passando por aquele mesmo caminho, carregando sua cruz, teria sido importunado com ironias ou agredido verbal ou fisicamente, pelo coureiro Ahsverus. Jesus, então, o teria amaldiçoado, condenando-o a vagar pelo mundo, sem nunca morrer, até a sua volta, no fim dos tempos.

Em Portugal o título de Condestável do Reino ou Condestável de Portugal foi criado pelo rei Fernando I em 1382, para assumir as funções militares do antigo cargo de Alferes-mor, constituindo a segunda personagem da hierarquia militar nacional, depois do Rei de Portugal.

    FARNEL: saco ou bolsa em que se colocam provisões para uma jornada.


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