quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Cunham Etá Maloca - Conto -Barbosa Rodrigues

 Dizem que havia outrora, no rio Uanauá, moças virgens que guardavam os talismãs e os atributos de Jurupari.
 Dizem que uma vez fugiu uma das moças e foi procurar marido.
 Chegando ao mato e anoitecendo, aí dormiu. De madrugada estava chorando quando ouviu homens falarem.
 Um deles estava dizendo:
 - Eu não me hei de casa; se encontrar uma moça bonita, então me casarei.
   Depois disso encontraram a moça, e o homem, vendo-a, achou-a formosa e ela também o achou bonito.
  O homem lhe disse:
 -Queres te casar comigo?
A moça disse:
 - Quero.
O homem era da nação Jacamim.
Os pais os casaram e depois de casados foram eles banhar-se no riacho e aí acharam a erva jacamim com a qual esfregaram o corpo e se lavaram.
Dizem que então ambos transformaram-se em jacamins.
  Depois disso sentiu que tinha ovos e a barriga cresceu a não pode mais andar.
 Dizem que a mulher dissera:
-Isto não são ovos, isto talvez sejam filhos. Alguns meses depois deu a à luz duas crianças, uma mulher e um homem.
 Foram crescendo as crianças.
 O menino, era formoso e dizem que gostava de frechar, pelo que a  mãe lhe disse:
   - Meu filho, em tempo algum tu frechararás Jacamins.
 A mãe deles nunca os vira quando dormiam; uma noite, porém, foi vê-los dormir.
  Olhando para seus filhos assustou-se.
  A menina, dizem que tinha sete estrelas na testa, e o menino uma cobra de estrelas enrolada no corpo.
 A mãe ficou assutada e chamou o marido para ver as crianças. 
Veio o pai  delas e assustou-se também. Falou:
 - Eu sou ave, como é que tenho crianças?
  Depois disso, dizem, foi ter com os pajés e disse-lhes:
- Que quer dizer isto: eu sou ave e minha mulher tem crianças?
  Os pajés disseram-lhe:
 - Também são teus filhos. Quando estiveste com tua mulher ela estava olhando para as estrelas e por isso saíram as estrelas neles.
  Enquanto o pai conversava com os pajés e a mãe foi também passear, o menino nas frechas e no arco e foi caçar.
 Encontrou Jacamins e matou todos.
 Depois de ter morto todos, vieram outros que também matou. Depois foi para casa.
Ele disse à mãe:
 - Minha mãe! Eu matei todos os Jacamins. Vamos ver? - Vamos.
Quando eles chegaram ela viu que o menino tinha morto o pai e todos os pajés.
  - Meu filho, tu mataste teu pai e bem assim os pajés; agora ninguém nos dá o sustento. Tu nos estragaste muito.
Então dizem que o menino respondera:
- não entristeça o seu coração, mãe; para isso estou eu; o que faltar eu lhe darei.
 Em caminho disse ao filho:
 - Meu filho, como chegaremos à terra de teus avós? Quando outrora de lá saí não tinha filhos, estava virgem, agora teu avô há de querer meter-me na casa tenebrosa para que não conheça homens.
  - Deixe estar, minha mãe, eu verei; quando eu chegar lá eu acabo com essas coisas.
  Quando eles chegaram na terra do avô, o menino pegou numa grande pedra e lançou sobre a casa e a achatou: as mulheres todas que lá estava fugiram. A pedra que caiu pelo seu próprio peso afundou-se pela terra.
 O avô quando viu aquilo teve medo do menino e toda aquela gente também teve dedo dele.
 Dizem que, então, o chefe falara:
 - Eu toda vida estimarei muito a vocês, mas só quero que consertem o que estragaram e ponham tudo com anteriormente estava.
 Disse então o menino ao chefe:
  - Eu também gosto de ver todas as coisas em seu lugar.
 Ficaram então bem na terra dos parentes.
 Depois disso, a menina por não ter marido adoeceu.
 O menino então disse a sua mãe:
- Dê para mim minha irmã para eu levá-la e curá-la, porque só eu sei onde onde está o remédio.
 Deste modo o irmão levou-a para o céu, por não querer que ela se curasse e é ela que agora vemos e chamamos as Sete Estrelas(Plêiades).
   Vendo depois disso, a mãe, que eles se demoravam foi-lhes no encalço a procura-los e quando passava por  um riacho a cobra grande a engoliu.
 Quando chegou o filho macho, não achando a mãe foi também  a sua procura.
 Foi por todas as terras e por onde foi passando deixou filhos ate encontrara sua mãe.
Depois de achar a mãe levou-a para o céu.
Ela é hoje aquela estrela que nós chamamos Pinon ou Cobra Grande.
 O que eu conto foi nosso princípio, na origem de nossos avós. FIM


(Poranduba Amazonense)

Contos Brasileiros Antigos - Uma nova jornada!

Vou começar uma nova jornada de transcrições!A história é a seguinte. Fui levar meu filho ao homeopata e a secretaria muito querida sabendo que eu estava transcrevendo Contos antigos me ofereceu dois livros antigos de contos, fiquei tão feliz pelo fato de ter confiado a  mim dois exemplares de livros.

Contistas Brilhantes

O livro Obras-Primas do Conto Brasileiro.

Afonso Arinos(Nasceu em Paracatu, Minas 1/05/1868) Advogado - - Pelo sertão - Devem fazer parte das leituras das vindouras gerações de brasileiros.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Um tempo para cada coisa!

Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus. (Bíblia Sagrada)

Tempo para nascer, e tempo para morrer;
Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado;
Tempo para matar e tempo para sarar;
Tempo parar demolir, tempo para construir;
Tempo para chorar e tempo para rir;
Tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras e Tempo para ajuntá-las, e tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se.
Tempo para procurar, e tempo para perder, tempo para guardar, e tempo para jogar fora;
Tempo para rasgar e tempo para costurar, tempo para calar, e tempo para falar;
Tempo para amar, e tempo para odiar, tempo para a guerra e tempo para a paz.
 Fim

 O tempo de transcrever os contos de Grimm e Andersen acabaram, ficou uma lacuna no meu coração, pois há muito  tempo este objetivo me acompanhava. 
 Mas tenho muito outras meta, postar no You tube, todas os contos deste blog!  já comecei espero encontrar meus leitores e seguidores la´. Canal (Silvana Ramos) e (sil_asmr)

Me encontre no tiktok ( sil_asmr) no Instagram ( sil__asmr )no you tube (sil_asmr ) e silvana Ramos no Kwai (sil_asmr)


Amo muito isso tudo! Que Deus me dê a oportunidade de novos horizontes. Amém! Apoie meu trabalho através do PIX silasmr.contato@gmail.com

terça-feira, 5 de junho de 2018

O DUENDE PEDRINHO - CONTOS DE ANDERSEN pix silasmr.contato@gmail.com


"OBRIGADA QUERIDO LEITOR ESSE TRABALHO FOI FEITO COM DEDICAÇÃO E AMOR. ESTE ÚLTIMO CONTO VAI SER SABOREADO COM TODO CARINHO!"
Chave pix : silasmr.contato@gmail.com   , se puder apoiar meus livros estão precisando ser restaurados.


O DUENDE PEDRINHO

            Conheces o duende Pedrinho. Mas conheces também a senhora do jardineiro! Era dama letrada, sabia recitar versos, e até os escrevia com facilidade; só a rima"o forjar dos elos" é que lhe dava algum trabalho. Sim, tinha talento; talento de escritora e de oradora. E poderia ser até pregadora, ou pelo menos mulher do pregador.
    - Como a terra é encantadora nas suas roupas domingueiras! - dizia ela 
    E estilizando e " rebitando" essa ideia, fizera dela uma longa canção.
   O seminarista Kisserup - afinal o nome nem vem ao caso - o seminarista era filho da irmã da senhora do jardineiro; foi fazer-lhe uma visita e ouviu-a declamar o poema; disse então que o achava realmente edificante, um estímulo para o coração. E declarou:
   - A senhora tem espírito.
   Ao que o jardineiro retrucou logo:
   - Asneiras! Não lhe meta essas coisas na cabeça! Uma mulher deve ter é corpo, um corpo sadio; e deve  prestar atenção mas é às panelas, para que a comida não se queime.
   - Pois o queimado, retiro-o com brasa - respondeu ela. - E se fores tu quem estiver " esturrado", tiro-o logo com um beijo! Parece mesmo que ele só gosta de repolhos e de batatas, e no entanto adora as flores!
    E, dizendo isso, deu-lhe um beijo, acrescentando ainda:
   - As flores são o espírito!
   - Cuida das tuas panelas! - disse ele, dirigindo-se para o jardim.
   É que para ele era o jardim a panela que lhe interessava.
   Mas o seminarista ficou conversando com a senhora. Aquelas belas palavras que ela pronunciara - " A terra é encantadora!" - davam-lhe impulso para um sermão inteiro, sermão que fez à sua maneira.
   - A terra é encantadora. Dominai-a! E nós nos tornamos seus donos. Um, pelo espírito, outro, pelo corpo. Este foi posto no mundo como um ponto de admiração, pasmado: aquele, como um hífen, que desperta em todos esta pergunta: " Que pretende ele? " Um chega a ser bispo; outro não passa de um pobre seminarista. Mas tudo foi subitamente organizado; " A terra é encantadora, e está sempre endomingada!" É na verdade um poema que inspira ideias, senhora, um poema cheio de geografia, e de sentimento.
   - O senhor tem espírito. Sr. Kisserupp; muito espírito, digo-lhe eu! Quem, conversa com o senhor fica esclarecido a respeito de si próprio.
  Continuaram palestrando nesse tom, sempre com a mesma beleza e elevação; mas na cozinha havia alguém que também falava: e era o duende Pedrinho, o homenzinho vestido de cinzento, de carapuça vermelha à cabeça. Qualquer pessoa pode vê-lo. Estava o duende Pedrinho sentado na cozinha e espiando as panelas enquanto falava; mas ninguém o ouvia, a não ser a grande gata preta - a ladra de nata, como a chamava a senhora.
    O duende pedrinho estava muito zangado com a dona da casa, porque ela não acreditava, absolutamente não acreditava na sua existência! É verdade que ela jamais o vira; mas entendia o duende que mulher tão erudita devia saber que ele existia, e devia também tratá-lo com certa consideração. Mas o fato é que ele nunca se lembrava de lhe destinar na Noite de Natal nem se quer uma colherada de arroz-doce, como todos os seus antepassados tinham recebido - e note-se: de senhoras que não eram absolutamente eruditas! E arroz ressumando manteiga e nata! A gata. só de ouvir falar nisso, ficou com água nas barbas.
   - Diz que sou um símbolo - continuou o duende Pedrinho.- Isso é coisa que minha imaginação não pode alcançar! Para ela é como se  eu não existisse. É o que verifico, toda a vez que a ouço, como fiz neste mesmo momento. Lá está conversando com o seminarista - aquele professoreco! Pois eu digo, com o jardineiro: " Cuida das tuas panelas!" Mas a mulher não se importa, e agora vai ver como a panela derrama!
   E o duende pedrinho soprou o fogo e levantaram-se labaredas altas. 
 - Chichhhh...Chich...
   Lá derramou o leite
   - Vou agora furar as meias do jardineiro. Vou fazer um bom buraco nos dedos e outro no calcanhar. Então ela terá o que cerzir, e em vez de cesuras de versos, há de se ocupar com os rasgões da meia do marido. Fazer versos! Ora essa! Vá cerzir meias!
   Nisto a gata deu um espirro. Apanhara um resfriado, apesar de andar sempre de casaco de pele.
   - Eu abri a porta da despensa - disse o duende Pedrinho. - Vi lá uma nata fervida, tão grossa como um pirão...Se não queres saboreá-la, vou eu lambe-la.
   - Ora, de toda a maneira levo sempre as culpas e as pancadas: vou pois petiscar também a nata.
  - É isso, é: vai comer a nata. Enquanto isso vou ao quarto do seminarista: penduro-lhe o suspensório no espelho e ponho as meias na bacia. Ele vai pensar que o ponche estava forte demais e que se embriagou! Esta noite sentei-me no monte de lenha, ao pé do canil. Gosto tanto de enraivecer o cão de guarda..Lá fiquei, bamboleando as pernas. O cachorro não podia alcança-las, por mais pulos que desse, e ficou fora de si. Ladrou  sem cessar, e eu sempre sacudindo as pernas...Foi um belo espetáculo! O seminarista acordou; levantou-se três vezes e foi olhar à janela. mas ele não me viu, apesar de  estar com os óculos no nariz. Ele até dorme de óculos!
   - Quando a senhora vier, grita" Miau!" - disse a gata. - Não ouço muito bem hoje: estou doente.
 - Tua doença é gula! - respondeu o duende Pedrinho. - Mas vai, vai petiscar. Lambisca até curares a tua doença. E enxuga bem as barbas depois, senão a nata fica grudada nelas! Eu fico à escuta.
    E o duende Pedrinho pôs-se à porta, que estava apenas encostada. Não havia mais ninguém na sala, além da senhora e do seminarista. Conversavam sobre o que o seminarista chamava, com tanto acerto " as coisas  que em todas as casas deviam ser postas acima das panelas e dos prato- os dons o espírito".
    SR Kisseruppp - dizia a senhora - agora vou aproveitar a ocasião para lhe mostrar uma coisa que nunca mostrei a alma vivente, e menos ainda a um homem: vou mostra-lhe meus poemas, alguns dos quais saíram bem meu agrado. Intitulei-os Sons de Harpa de uma Alma de Mulher, porque gosto muito de palavras poéticas.
   - Sim, é isso mesmo que devemos fazer; e também devemos eliminar da língua os estrangeirismos.
  - Pois é o que faço. O senhor jamais me ouvirá dizer bebê, ou constatar: digo sempre - " criança de peito" ou " verificar".
    Dizendo isso, ia retirando de dentro de uma arca um diário de capa verde, com duas manchas de tinta.
   - Este livro contém muito poema sério -disse ela. -
  O que sinto com mais intensidade são as coisas tristes. Aqui temos, por exemplo, o Suspiro o noturno, Meu arrebol, e Quando conquistei Klemm - quero dizer meu marido. Esta poesia o senhor pode deixar de lado sem a ler, posto que esteja cheia de sentimentos e ideias. Os deveres da dona de casa é o melhor de todos os meus poemas. São todos muito melancólicos, porque é esta a linha do meu talento. Há uma única poesia humorística cheia, de pensamentos alegres, como ocorre mesmo à gente, de vez em quando... Mas o senhor não deve zombar de mim! São pensamentos concernentes ao fato de ser eu poetisa. Só eu e minha mesa de trabalho - e agora também o senhor- conhecemos estes escritos, Sr. Kisserupp! Eu adoro a Poesia. Ela se apodera de mim, agita-me, domina-me, governando-me como soberana. Foi isso mesmo o que escrevi aqui,, sob o título: O duende Pedrino. Conhece certamente a velha crença dos campônios a respeito do duende Pedrinho, que sempre anda  a fazer travessuras pela casa inteira. Veio-me a ideia que era eu a casa, e que a poesia, o sentimento que existe em mim, o espírito que me domina, é o duende Pedrinho, cujo poder e grandeza celebro no poema a que dei esse nome. Mas o senhor vai prometer-me que não falará disto a ninguém, nem sequer a meu marido...Agora peço-lhe que o leia em voz alta, para eu ver se decifrou a minha letra.
   O seminarista começou a ler e a senhora o escutava.
   O duende pedrinho também ouvia, pois, como já disse se pusera à escuta; e chegara à fresta da porta justamente  no momento em que se pronunciava o título: O duende Pedrinho.
   - Isso é comigo! - disse o homúnculo. - Que terá ela escrito a meu respeito? Pois não há de se ver! Não! Essa ela há de me pagar! Vou chupar todos os ovos, roubar todas as galinhas e perseguir o terneiro até que ele fique bem magrinho! Vejam só esta dama! 
   E continuo escutando; espichou um grande bico e abriu bem os ouvidos.
   Mas dali a pouco, ouvindo assim falar na magnificência, no poder e no domínio que o duende Pedrinho exercia sobre a senhora- sabes bem que ela se referia à Poesia, mas o homenzinho tomou as coisas ao pé da letra...aplicando tudo aquilo a si próprio - pouco a pouco ele foi ficando risonho: já lhe resplandeciam os olhos de alegria. E já um que de nobreza lhe ia pontando nas comissuras da boca. Levantando bem os tacões, pôs-se nas pontinhas dos pés e chegou a ficar uma polegada mais alto. Estava encantado com as coisas que se diziam acerca do duende Pedrinho.
    - A senhora tem espírito e uma vasta cultura! Como eu tinha julgado mal essa mulher! Ela me incluiu nos seus Sons de Harpa, que vão ser impressos e lidos! Pois de hoje em diante a gata não lhe lamberá mais a nata: isso fica exclusivamente comigo! Um só lambisca menos que dois, é claro; e assim posso contribuir para certa economia - em honra da patroa, que quero respeitar e venerar.
  - Mas este duende Pedrinho é tal qual um homem - pensava consigo a gata velha. - Basta um doce "miuau" da senhora, um único"miau" que ela lhe dedique, e imediatamente muda de opinião. É! A patroa é muito esperta!
   Mas aquilo não era esperteza da dama, não: a natureza do duende Pedrinho é que era igual à humana... 

                            FIM!



Quero agradecer cada letra digitada cada palavra interpretada cada sonho realizado, de aprendizado e evolução espiritual.
Obrigada aos autores destes contos pela dedicação, de nos legar sonhos que mexem com a imaginação e nos faz viajar pelos livros de Grimm e Andersen. Obrigada, obrigada!
 Foram 3 anos resgatando os Contos que não li no momento em que ganhei, mas guardem os volumes com muito carinho pois inconscientemente sabia que um dia eu valorizaria-os com toda o meu amor e dedicação.
Estou feliz por atingir o objetivo tão sonhado, esse trabalho me ajudou muito a ser melhor como pessoa. Sem pressa de atingir o final, minha ansiedade foi controlada em todos os campos da vida, se refletiu essa paz em toda esfera do meu ser. Minha eterna gratidão. Obrigada!

Agradecimentos pelo termino do projeto " Transcrevendo os Contos de Griim e Andersen" dos meus livros que ganhei há 50 anos atrás!

E com muita emoção que anuncio a transcrição do último conto da minha coleção, meu filho passou por mim e perguntou : 
- Já começou a chorar mãe?
Tu és a pessoa mais emotiva que eu conheço mãe.
Adorei ouvir essa observação do meu anjo Rafael, meu filho!
 Estou feliz pois desde 2015 tenho tenho trabalhado neste projeto pessoal que se tornou público através do blog.
  Quero agradecer à minha família que valorizou este trabalho.
 Aos meu pais que me deram esta coleção de livros.
 Estou realizando um grande sonho, li e transcrevi cada letra dos meus livros. Obrigada mãe e pai vocês não tem ideia da riqueza que me passaram através deste presente.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

O Velho Lampião - Contos de andersen - pix silasmr.contato@gmail.com

   O VELHO LAMPIÃO            

        Já ouviste contar a história do velho lampião da rua? Não pode se dizer que seja lá muito divertida, mas vale a pena ouvi-lá, pois é interessante.
   Era um velho lampião, um bom e honesto lampião, que durante muitos a, muitíssimos anos fizera o seu trabalho, e agora ia ser aposentado. Achava-se pela última vez sobre o poste, espalhando luz pela rua. E o lampião sentia o que deve sentir uma velha comparsa de bailados, que dança pela última vez e amanhã ficará esquecida na sua água-furtada.
   Sentia-se também amedrontado, porque no dia seguinte teria de comparecer pela primeira vez à Prefeitura, onde o prefeito e os conselheiros o inspecionariam, para decidir sobre a sua sorte: se ainda estava ou não em condições de prestar serviço.
   Ficaria então resolvido se dali em diante iria fornecer luz aos habitantes de um arrabalde, ou a uma fábrica do interior. Talvez o destino o levasse diretamente a uma fundição de ferro; atormentava-o uma dúvida atroz: se nesse caso conservaria a recordação de ter sido outrora lampião de rua. Mas, sucedesse o que sucedesse, de uma coisa tinha certeza: iam separá-lo do guarda-noturno e da mulher, que o consideravam como parte da família.
  Quando o lampião foi suspenso pela primeira vez, o guarda-noturno era um moço vigoroso. E assumia o cargo também justamente naquele momento. Sim!  Quão longe ia já o tempo em que um se tornara lampião e o outro guarda-noturno! Naquela época a mulher do guarda era um tanto arrogante; só se dignava a olhar para o lampião quando passava por ele à noite; de dia, jamais. Contudo, nos últimos anos, já envelhecidos todos - o guarda, a mulher e o  lampião - ela também lhe dispensava cuidados, polindo-o e enchendo-lhe o depósito. Era honestíssimo, aquele velho casal: jamais o defraudaram sequer em uma gota de óleo.
     E era esta a última noite que passaria na rua! E teria de ir no dia seguinte à Prefeitura! Duas ideias sinistras!Não admirava, pois, que não pudesse dar uma luz mais brilhante. Mas ainda muitas outras ideias lhe passavam pela cabeça. A quanta coisa não prestara sua luz! A quantas ocorrências assistira...talvez tantas como o prefeito e os conselheiros. Contudo, não manifestou essas ideias; era um lampião muito bom e honesto, que a ninguém desejava fazer mal e menos ainda às autoridades.
   Lembrava-se de tantas coisas, que de vez em quando sua chama bruxuleava. E naqueles momentos tinha a impressão de que havia alguém que se recordasse dele.
  - Sim, havia aquele belo rapaz...é verdade que já faz tanto tempo! Ele tinha na mão uma carta cor-de -rosa, dourada nas bordas. A letra era fininha, dir-se-ia da mão de uma dama. Leu-a ele duas vezes, beijou-a e erguem para mim os olhos, que diziam claramente:
   " Sou o mais feliz de todos os homens!"
    - E só nós dois sabíamos o que estava escrito naquela primeira carta da sua namorada. Sim...E há outro par de olhos de que me lembro. Que coisa estranha são estes saltos do pensamento! Houve um enterro na rua. Repousava a bela moça no mais rico de todos os carros fúnebres, encerrada em um féretro coberto de flores e coroas. Tantas eram as tochas, que desmaiavam a minha luz. Ao longo das casas acotovelava-se a multidão, que acompanhava o cortejo fúnebre. Mas quando perdi de vista as tochas, e olhei em roda de mim, vi uma única pessoa que derramava lágrimas, encostada ao meu poste. E jamais esquecerei o par de olhos dolorosos que se erguiam para mim naquele momento!
   E eram esses pensamentos e outros semelhantes, que ocupavam a mente do velho lampião, que ardia pela derradeira vez. 
   A sentinela que é rendida conhece ao menos o seu substituto, e pode trocar com ele algumas palavras. O lampião ignorava quem lhe iria suceder; e contudo poderia dar-lhe algumas indicações úteis a respeito de chuvas e cerração, por exemplo; e poderia ensinar-lhe o alcance dos raios lunares sobre o passeio, ou qual a direção que o vento costumava tomar - além de muitas outras coisas. 
  Na prancha que atravessava a sarjeta, achavam-se três pessoas, que queriam apresentar-se ao lampião, porque pensavam que ele mesmo podia transferir o cargo A primeira era uma cabeça de arenque, que também sabia luzir no escuro, e achava que se poderia economizar muito azeite, colocando-a no poste. Vinha depois um pedaço de madeira podre, que também cintila no escuro. E afirmava a sua origem: era rebento de um velho tronco, outrora adorno da mata. A terceira pessoa era um vaga-lume. Não compreendia o lampião de onde viera ele, mais ali estava, e também espalhava luz. Mas o pau podre e a cabeça de arenque juravam por tudo quanto para eles era sagrado que o vaga-lume só podia luzir em determinadas épocas, e por isso não devia ser tomado em consideração.
  Declarou o lampião velho que nenhum deles espalhava luz suficiente para ocupar o cargo de lampião de rua, mas ninguém, lhe deu crédito. E quando ouviram dizer que não era o lampião quem transferia o cargo, acharam isso muito acertado; já estava tão caduco que não podia fazer a escolha.
   Nesse instante chegou o vento, soprando da esquina; passou pelos respiradouros do lampião, dizendo-lhe:
  - Mas que é isso? Queres ir embora amanhã? Vejo-te então hoje ela última vez? Nesse caso quero fazer-te um presente de despedida. Vou assoprar no teu crânio de tal maneira que não só te lembrarás no futuro de tudo o que viste e ouviste, mas também terás tanta luz interior que poderás ver tudo quanto for lido ou narrado na tua presença.
   - Ah! - disse o lampíão - mas isso tem muito valor! Agradeço-te de todo o coração. Tomara que não tornem a me fundir!
  - Por enquanto não há perigo que isso aconteça - disse o vento. - Vou agora soprar-te na memória, e se receberes outros presentes assim, poderás ter uma velhice muito alegre.
   - Tomara que não me refundam! Mas - nesse caso conservaria também a memória?
   - Ora, lampião velho, não sejas tão curioso!
    E o vento continuava a soprar.
  Nesse instante surgiu a Lua do meio das nuvens.
  - E a senhora, que vai dar ao lampião! - perguntava o vento.
  - Nada! - respondeu ela. - Estou minguando, e os lampiões nunca me iluminam: pelo contrário, eu é que tenho de aluminá-los.
   E tornou a se esconder atrás das nuvens, para evitar novas importunações.
    Bateu então no lampião uma gota, que parecia ter caído do telhado. Contudo, declarou que acabava de chegar diretamente das nuvens cinzentas, e que era também um presente, e talvez o melhor de todos.
    - Vou molhar-te de tal maneira - disse a gota - que, se assim o quiseres, poderás converter-te em ferrugem em uma única noite, esvaindo-te em poeira.
   Mas o lampião achou que semelhante presente não valia nada, e o vento foi da mesma opinião. E soprou com toda a força, indagando:
  - Ninguém mais quer trazer presentes? Ninguem mais ?
    Caiu então uma brilhante estrela, deixando atrás de si uma longa fita luzente.
    - Que é aquilo? - gritou a cabeça de arenque. - Não era uma estrela cadente? Parece até que entrou no lampião...Mas então, se personalidades tão elevadas se interessam pelo cargo, gente como nós fará melhor indo para casa.
    E foi o que fizeram os três. Mas o velho lampião espalhou uma luz maravilhosa.
    - Que presente magnífico! - exclamou ele. - As estrelas claras, que sempre vi com tanto prazer, e que luzem tão esplendidamente como eu nunca consegui luzir, por mais que empregasse nesse empenho todo o meu sentir, todo o meu pensar- as estrelas me descobriram, a mim, o pobre lampião velho, e enviam-me um presente! E agora, todas as coisas que tenho na memoria, e vejo com tamanha nitidez como se estivessem diante dos nossos olhos, poderão ser também vistas por todos aqueles a quem amo. E é nisso justamente que consiste a verdadeira alegria: a alegria que não podemos repartir com outros, é apenas meia alegria.
    - Honra-te essa maneira de pensar - disse o vento. - Mas para isso seria preciso que tivesses velas de cera. Se elas não forem acesas dentro de ti, que tua estranhas faculdades de nada servirão aos outros. Estás vendo?Oh! As estrelas não se lembraram disso.. Pensam que tudo quanto serve para a iluminação é vela de cera - até tu! Mas vou sossegar agora.
   E sossegou mesmo. E quando isso suspirava o lampião velho:
   - Ah! Deus nos acuda! Velas de cera! Nunca as possuí, e certamente jamais hei de possuí-las...Tomara que não me refundam!
   No dia seguinte...
  Bem, será melhor saltar o dia seguinte. Na noite seguinte descansava o lampião em uma cômoda poltrona. Adivinhem onde! Ora, em casa do velho guarda-noturno. Em consideração aos seus longos anos de serviços, solicitara do prefeito e dos conselheiros o favor de ficar com aquele lampião velho, que acendera pela primeira vez no dia em que vinte e quatro anos antes,assumira o cargo. Considerava-o como um filho, porque não tinha outro. E atenderam o seu pedido.
   Agora se achava o lampião sobre a cômoda poltrona ao  lado da estufa acesa. Até parecia maior, assim sozinho em cima da cadeira.
      O velho casal jantava, lançando olhares cheios de simpatia para o velho lampião ao qual teriam dado com prazer um lugar à mesa.
  É verdade que habitavam apenas um porão, que penetrava duas braças na terra. Para chegar ao quarto, era preciso atravessar um corredor lajeado. Mas lá dentro tudo era agradável e quentinho. Para conservar o calor, tinham pregado tiras de pano na porta. Tudo era limpo, asseado. A cama tinha dossel, e as portas e janelinhas estavam guarnecidas de cortinas. No peitoril viam-se dois estranhos vasos, que o marinheiro Cristiano trouxera das Índias Orientais - ou Ocidentais. Eram potes de barro comum, e representavam dois elefantes, mas sem costas: no lugar delas brotavam, da terra que os enchia, ótimos alhos porros, no que servia de horta, e um grande tufo de gerânios, no que era jardim. Pendia da parede um grande quadro colorido: o Congresso de Viena. E nesse quandro tinha o casal de velhos, reunidos, todos os reis e imperadores. Um relógio de parede, com pesos de chumbo, fazia tique-taque. Estava sempre adiantado, mas eles achavam melhor assim: antes adiantado que atrasado.
   O casal estava jantando, como já disse, e o lampião da rua achava-se na cômoda poltrona, junto da estufa. Parecia-lhe que todo o mundo estava revolucionado. Mas quando o velho guarda o olhou e falou das coisas que tinham visto juntos - das chuvas e nevoeiros, das noites de verão, tão curtas e tão claras, e também das longas noites de inverno, com sua nevada, aquelas noites em que a gente sente saudades do conchego da casa - o lampião começou a ambientar-se e tornou a tomar pé. Enxergava com tanta nitidez como se tudo aquilo estivesse acontecendo naquele instante. Sim! O vento acendera nele uma boa luz!
   Eram muito ativos e diligentes os dois velhos. Não estavam nunca ociosos. domingo à tarde tiravam livros da gaveta, de preferência livros de viagem. E o velho lia coisas a respeito da África, das vastas selvas, dos elefantes selvagens; escutava-o a mulher, muito atenta, deitando olhares de esguelha para os outros, os de barro, que serviam de canteiros. E dizia:
  - Eu imagino, eu imagino!
   E o lampião desejava de tudo o coração que houvesse acesa nele uma vela de cera. Porque nesse caso a velha poderia ver tudo distintamente, com todos os pormenores, como o via ele: as altas árvores, os ramos emaranhados, os negros nus, a cavalo; os elefantes, em multidões, pisoteando os juncos e arbustos com as pesadas patas.
 - De que me servem todas as minhas faculdades, se não encontro uma vela de cera? - suspirava ele. - Os coitados só tem azeite e vales de sebo, e isso não basta!
  Um dia, afinal, foi ter ao porão uma grande  quantidade de tocos de vela de cera. Os maiores foram queimados, e os menores serviram para encerar a linha da costura da velha. Portanto não faltava agora vela de cera mas ninguém se lembrou de por um pedaço no lampião.
   - E aqui estou eu com faculdades tão raras - pensava ele - e completamente inúteis. Trago tudo comigo, e não consigo fazê-los aproveitar essas vantagens. E nem sabem que tenho o poder de transformar as paredes brancas nas tapeçarias mais esplêndidas, nos bosques mais lindos - em tudo, enfim, quanto se possa desejar.
     Contudo, cuidava muito do lampião; conservavam bem areado, e sempre em um lugar onde era logo visto. Achavam as visitas que aquilo era um traste velho, mas os donos da casa não se importavam com a opinião dos outro: queriam bem ao lampião.
   Um dia - era  o aniversário natalício do guarda - a mulher aproximou-se sorrindo do lampião e disse:
   - Hoje vais iluminar a casa, em homenagem ao meu marido.
   E o lampião chiava, nos seus enfeites de folha, pensando:
  - Ora até que afinal alguém acenderá a vela!
   Mas foi azeite o que puseram nele O lampião ardeu a noite inteira. Percebia, porém, agora que o presente das estrelas permaneceria inaproveitado toda a vida.
   Um dia teve um sonho - porque não era difícil sonhar, era um lampião que possuía todas aquelas faculdades. Sonhou que os dois velhos tinham morrido, e que ele fora levado para a fundição de ferro, a fim de se refundido. Teve tanto medo como naquele dia em que tivera de ir à Prefeitura, para ser inspecionado pelo prefeito e por todo o conselho. Mas, embora senhor do poder de se desfazer, quando lhe aprouvesse, em ferrugem e pó, não fez. Meteram-no em um cadinho e transformaram-no em um castiçal de ferro, o castiçal de ferro mais bonito que se possa desejar. Deram-lhe a forma de um anjo, com um grande ramalhete. No meio do ramalhete é que se colocava a vela de cera. O castiçal achou um lugar em uma secretária verde, num gabinete de luxo. Havia em redor dele muitos livros, e nas paredes quadros belíssimos, e todas aquelas coisas pertenciam a um poeta. Tudo quanto este pensava ou escrevia, aparecia ao redor dele. O ambiente transformava-se em matas densas e tenebrosas, em prados amenos, onde se pavoneavam cegonhas, no convés de um navio em alto mar, no firmamento recamado de estrelas.
   - Quantos donos tenho em mim! - disse o velho lampião ao despertar. - Quase que desejo ser refundido...Mas ainda não! Não quero  que isso aconteça enquanto viveram os dois velhos. Eles me estimam tanto por causa da minha personalidade; poliram-me, encheram-me de azeite. Seja como for, tenho tão boa aparência como todo aquele Congresso, cujo aspecto também lhes causa tamanho prazer.
    E dali em diante viveu sempre em perfeita tranquilidade interior - e era isso mesmo o que merecia o velho lampião da rua, tão bondoso e tão honesto.
FIM

APOIE O RESTAURO DOS LIVROS ANTIGOS PIX: SILASMR.CONTATO@GMAIL.COM

quarta-feira, 28 de março de 2018

Contos de Andersen - OS DOZE PASSAGEIROS

Fazia um frio cortante: o céu estava cheio de estrelas; nem a mais leve aragem movia as folhas das árvores.
   - Paf!
   Foi uma panela velha que caiu junto ao portão do vizinho.
   - Pum! Pum! 
   Eram tiros. Saudações ao Ano Novo. Porque isso foi na noite de São Silvestre, e naquele instante o relógio da torre dava as doze badaladas.
   -Pa-ta-trás!
   Era a diligência que vinha chegando.
  A grande carruagem parou à porta da cidade. Trazia doze passageiros; nenhum assento vazio.
    - Viva! Viva! Hurra!Hurra!
   Eram as pessoas da cidade que assim festejavam a noite de Ano Bom. À meia-noite levantaram-se, com as taças cheias na mão, para dar vivas ao ano que acabava de entrar.
  - Feliz Ano Novo! Desejo-lhe uma bonita esposa, muito dinheiro, e nenhum desgosto, nenhum pesar!
    Eram os votos que uns apresentam aos outros. Depois tocavam os copos, que tiniam e cantavam. E a diligência, com os hóspedes estrangeiros, doze ao todo, lá estava parada diante do portão da cidade.
   Mas quem eram os forasteiros? Cada um trazia seu passaporte e sua bagagem; e até traziam - todos eles - presentes para mim e para ti, e para todos os habitantes da cidade pequenina. Mas quem eram? Que queriam ali? E que viriam trazer?
   - Bom dia! - disseram eles à sentinela postada à entrada da cidade. 
   - Bom dia! - respondeu o homem.
   Porque já tinham soado as doze badaladas.
   - Seu nome? Sua profissão? - perguntou a sentinela ao primeiro que desceu do carro.
   - O senhor pode ler tudo isso no meu passaporte - respondeu o hóspede. - Eu sou eu!
   E era mesmo um homem de verdade; trajava um sobretudo de pele de urso, e calçava notas forradas de pele.
E continuou:
   - Eu sou o homem em quem muita gente deposita suas esperanças. Vá visitar-me amanhã: Quero oferecer-lhe um brinde de Ano Bom,. Ativo moedas e mais moedas para a multidão. Arranjo bailes - trinta e um bailes, bem contadinhos! Mais não posso dar: não posso gastar em bailes mais de trinta e uma noites. Meus navios estão presos no gelo, mas no meu escritório reina o conforto e há calo. Sou comerciante, chamo-me Januário, e só trago faturas no bolso.
   Nesse momento descia o segundo passageiros. Era um sujeito divertido. Empresário de espetáculos, de profissão, diretor de bailes a fantasia, e de toda a espécie de divertimentos. Sua bagagem consistia em um grande barril. E, apontando para ele, foi dizendo:
    - Deste barril, na época do carnaval, saíra o gato. Não se preocupem, eu vou diverti-los a todos, e me divertirei também. Não tenho muito tempo de vida, pois viverei menos que todos os outros da família: somente vinte e oito dias...De vez em quando dão mais um dia; mas isso nem serve de nada...Viva! Viva!
   - O senhor não pode gritar aqui! - disse a sentinela.
   - Certamente que posso! - brandou o homem. - Eu sou o rei Momo, e viajo sob o nome de Fevereiro!
  Desembarcava nesse instante o terceiro, que parecia o jejum em pessoa; mas vinha de nariz para o ar; porque era parente dos "quarenta cavalheiros". e era que predizia o tempo. Não é, contudo cargo lucrativo, e por isso mesmo ele tratava de referir-se somente à sua função na quaresma. Trazia na lapela um raminho de violetas muito pequeninas.
  -  Márcio! Márcio! Olá, Márcio! - gritava o quarto passageiro atrás dele, batendo-lhe no ombro. - Não sentes o perfume? Entra depressa no quartel! Lá estão tomando ponche, a tua bebida predileta. Até sinto o cheiro daqui! Vai ligeiro, Márcio!
   Mas isso não era verdade. O que ele queria era somente apresentar-se, pregando no outro um logro de 1 de abril. E foi assim que o quarto iniciou sua carreira na cidade. Era muito elegante, e pouco trabalhava. Em compensação, arranjava muitos feriados.
   - Quem dera que o mundo fosse mais constante! - disse ele. - Mas é assim,...A gente ora anda contente, ora mal-humorado, conforme as circunstâncias. E já chove, e já faz sol: é época de mudanças. Eu sou gato-pingado. Posso rir e chorar, conforme a necessidade. Trago na mala roupas de verão, mas seria insensatez vesti-las agora. Aos domingos passeio de sapatos brancos e meias de seda, e com as mãos metida em um regalo.
  Depois dele desceu uma mocinha. Era a senhorita Maia, de vestido de verão e galochas. O vestido era verde, cor de folha de tília. Trazia anêmonas mo cabelo, mas apesar de tudo isso cheirava tão a aspérula que o guarda deu um espirro.
  - Deus o ajude! - disse a mocinha.
   E era tão linda! era cantora, não dessas de teatro nem de variedades, mas cantora de bosque: andava  vagando pelo mato fresco e verde, cantando para si própria, para seu prazer.
  - Vai descer Dona juno! Aí vai Dona Juno! - gritaram de dentro do carro.
   E a jovem Dona Juno desceu - bela, distinta e soberba. Via-se que Dona Juno - ou Dona Junho, como lhe chamam agora- estava habituada a ser servida pelos sete dorminhocos preguiçosos. Costumava dar um grande banquete no dia mais comprido do ano, para dar tempo aos convidados de comer os numerosos pratos do cardápio. Tinha carruagem própria, mas viajava na diligência, como os outros, para mostrar que não era arrogante. Não viajava sozinha: acompanhava-a o irmão mais novo, o Júlio.
    Era esse um mocinho nutrido, trajava roupas de verão e chapéu Panamá. Não carregava consigo bagagem volumosa, porque isso é desagradável, com o muito calor. Só se preocupava, pois, com o calção de banho, o que já não é pouco.
  Foi a vez da própria mãe descer do carro: Dona Augusta, por corruptela, Agosto. Negociante de frutas por atacado, era agrônoma e também se dedicava à criação de peixes. Andava de crinolina, era gorda e corada. Auxiliava todo o trabalho com as próprias mãos, até levava a cerveja aos peões na lavoura. E costumava dizer:
   " - Tu comerás o pão amassado como suor do teu rosto - assim está escrito na Bíblia. Mas virão depois os passeios, e as danças, e as brincadeiras na relva, e as festas da colheita.
  Era uma boa dona de casa.
  Logo atrás dela desceu outro homem. Era um pintor, mestre Setembrino, perito no colorido. A floresta inteira tinha de lhe passar pelas mãos: as folhas deviam mudar de cor. Mas quando estava disposto, fazia um trabalho lindo! Em breve a mata começaria a rutilar, na cintilação de vermelho, e do amarelo, e de castanho. O mestre assobiava, como um estorninho, enquanto ia trabalhando ativamente; e enfeitava a sua caneca de cerveja com um ramo de lúpulo estanho-esverdeado. O homem gostava de ornatos. Aí vem ele descendo com toda a bagagem: a sua caixa de tintas.
  Segue-o o estancieiro, que vem pensando no mês da seara , na lavra de terra; mas também se lembra dos prazeres da caça. E traz um cão e uma espingarda, e nozes na bolsa de caça. E só se ouve craque,craque, porque ele viaja com grande bagagem: até um arado inglês carrega! E fala de agricultura; não é porem, muito ouvido, por que o vizinho vem tossindo e gemendo, que dá pena.
   É novembro, que vem assim tossindo. Está muito resfriado e assoa-se constantemente. Mas dizia ele que assim mesmo tinha de acompanhar as criadas, para lhes ensinar o serviço de inverno. Aquele resfriado passaria, quando se pusesse a rachar lenha. Cumpria-lhe serrá-la e parti-la, porque era mestre no grêmio dos lenhadores. Passava as noites cortando paus para fabricar patins; dentro de poucas semanas começaria a procura desses calçados graciosos.
  Surgiu, enfim, o último passageiro: era uma mulher, era a vovó dezembro, trazendo o seu braseirinho. A velha estava com muito frio, mas os olhos brilhavam como duas estrelas claras. Trazia um vaso de barro com um pinheirinho.
   - Vou cuidar muito desta árvore, para que esteja bem alta na noite de Natal - disse ela. Há de chegar ao teto, cheia de velas acesas, de maças douradas e de figurinhas recortadas. Então o braseirinho estará quente como uma estufa; eu tiro do bolso o livro de contos de fadas e leio em voz alta. E todas as crianças que estão na sala ficam quietinhas; mas as figurinhas da árvore ganham vida, e o anjo de cera que está lá bem no topo abre as asas de ouropel, e desce voando la do seu ninho verde para beijar todos os que estão presentes, gente grande  e gente miúda - e beija até as crianças pobrezinhas que ficaram lá fora no corredor e na rua, cantando o Hino de Natal da estrela de Belém.
   - Bem - disse então a sentinela. - O carro pode partir agora. estão aqui os doze. Vamos à baldeação!
   - Espere! - disse o oficial de plantão. - Primeiro quero que todos entrem no meu gabinete, de um em um! Vou ficar com os passaportes. Cada um vale por um mês. Decorrido este, atestarei o comportamento de cada um no passaporte. Sr. Januário, faça o obséquio de entrar...
   E o Sr. Januário entrou.
   Quando o ano se houver escoado,eu te direi o que te trouxeram os doze viajantes - e também o que me trouxeram, para mim e para todos nós, enfim. Agora ainda nada sei, e nem eles mesmos o sabem. É que vivemos em uma época tão esquisita...
FIM

quarta-feira, 21 de março de 2018

CONTOS DE ANDERSEN - UMA FOLHA DO CÉU

   Lá bem em cima, no céu, no ar mais puro, um anjo voou do jardim do paraíso com uma flor. Uma folha desprendeu-se da haste e veio sair na terra, no meio de um bosque. Logo criou raízes e começou a crescer.
   Não quiseram as outras reconhecer nela uma das suas iguais. E diziam:
   - Que broto mais esquisito!
 Quem mais a ridicularizava era o cardo e a urtiga; falavam com o maior desprezo:
   - De onde virá isso? É alguma semente de hortaliça, sem dúvida..Pois já se viu árvore alguma brotar tão depressa? E pensará ela que estamos aqui para amparar?
  Chegou o inverno; a terra cobriu-se de branco. A planta celeste comunicava à neve um brilho maravilhoso, como se um raio de sol a iluminasse interiormente. Na primavera apresentou uma flor tão linda, como nunca se vira igual.
   Fizeram uma comunicação ao professor de Botânica mais afamado do país. Deu-se ele pressa em aparecer, munido do diploma que atestava seu vasto saber. Examinou a planta, analisou-a, provou as folhas. Não se assemelhava a nenhuma planta conhecida por ele. Não encontra gênero, não achava família em que a classificar. E acabou por declarar:
   - É uma planta anômala, uma aberração da natureza: não se enquadra em nenhum sistema.
   - Isso não se enquadra em nenhum sistema! - repetiram cardos e urtigas.
   Vieram as árvores altas e corpulentas e ouviram contar o que se passava. Nada disseram, nem de bem nem de mal, que é a coisa  mais sensata que pode fazer quem ignora.
   Chegou àquele bosque uma pobre mocinha, que parecia a própria inocência: puro era o seu coração, e grande a inteligência, pela fé que a animava. A única coisa que possuía no mundo era uma Bíblia pela qual parecia que Deus lhe falava. Aprendera ali quão maus são os homens, mas sabia também que quando eles nos forçam a sofrer a injustiça, quando não nos compreendem e zombam de nós, devemos lembrar-nos do exemplo do melhor, do mais puro dos filhos de Deus, que eles pregaram à cruz e repetir as suas palavras:
   - Perdoa-lhes, Pai, que eles não sabem o que fazem! 
    A moça parou diante da planta miraculosa, cuja flor espalhava no ar um perfume agradável, e que brilhava ao Sol como um ramalhete de fogo de artifício. Quando o vento lhe agitava as folhas, ouvia-se o eco de harmonias celestes. A jovem ficou em êxtase diante daquela maravilha. Curvou-se sobre a planta, para admirá-la de mais perto, e para lhe aspirar o perfume. Sentiu o coração vivificado, o espírito esclarecido pela sabedoria divina. De boa vontade teria colhido a flor;  mas seria malfeito, e a flor murcharia. Apanhou apenas uma folhinha, que pôs entre as páginas da Bíblia; e a folha ali ficou, fresca e verde.
    Algumas semanas mais tarde a bíblia foi posta sob a cabeça da mocinha, que dormia no seu ataúde. A folha lá estava ainda. A jovem repousava no caixão tranquilamente, e no seu rosto, suave  e grave, notava-se um ar de felicidade.
     Enquanto isso a planta ia crescendo e florescia. As aves de arribação inclinava-se diante dela com respeito e os cardos e espinheiros resmungavam:
   - Olhem só esses estrangeiros! Nem sequer sabem por que prodigalizam assim suas homenagens! Não, nós cá não nos portamos tão estupidamente!
    E as feias lesmas são mato cuspiam diante da planta caída do céu.
  Um porqueiro, que andava juntando gravetos para acender o fogo, arrancou cardos, espinheiros e urtigas, e também a bela planta com toda as a s raízes, dizendo consigo:
   - Tudo isso só serve para cozinhar a minha sopa.
   Já fazia muito tempo que o rei daquele país sofria de uma melancolia atroz, que nada conseguia dissipar. Para se distrair, resolveu tomar conhecimentos dos problemas do seu povo, através da literatura. Ouviu a leitura de todas as obras nacionais, boas e más, profundos e leves, e não obteve resultado algum. Buscaram recurso na sabedoria do homem mais sábio do universo. Respondeu ele que havia um meio de curar o rei: era fazer com que sua majestade apanhasse uma folha de flor celeste que se achava em um bosque do seu reino. E dava a descrição da planta. Reconheceu então aquele espécime que despertara tanta curiosidade. - Com a breca! E eu que a arranquei! - disse consigo o porcariço. - Há tempo que há não resta dela senão um punhado de cinza...Ora vejam o que é a ignorância!
   Ficou muito confuso com o seu procedimento inconsiderado, mas guardou-se bem de ir contar o que acontecera, afinal...ainda fazia muito em se envergonhar; tinham os sábios revelado mais conhecimento do que ele?
    Sumira-se a planta. Não restara dela mais que uma única folha, no túmulo de uma mocinha. Mas ninguém o sabia.
   O rei foi em pessoa ao mato para verificar por seus próprios olhos a desaparição da planta.
   - Era então aqui que ela estava! - exclamou ele. - Será este doravante um lugar santo.
   Mandou cercar o sítio com uma grade de ouro e ali foram postadas sentinelas para o guardar.
  O famoso professor de Botânica escreveu uma longa dissertação, empanturrada de ciência, sobre as qualidades da planta divina; demostrou tudo o que se perdera, com o  eu desaparecimento. O rei cobriu de ouro cada página da obra  - e foi o asno do autor quem mais ganhou no caso.
   E as pobres sentinelas se aborreciam de morte lá no mato.
FIM

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Tia Dor-de-Dentes - Contos de Andersen

  Queres saber onde tirei esta historia, não é? Pois escuta: tirei-a da barrica - da barrica de papel velho. Sim! Muito livro bom, muito livro raro já foi parar às mãos do vendeiro, ou do negociante de banha - não para que ele o leia, mas para aplicá-lo em fins mais importantes: ele precisa de papel para embrulhar o polvilho e o café, papel para os arenques, a manteiga e o queijo. E para isso, até folhas manuscritas podem servir.
    É muito comum entrar naquela barrica o que lá não devia ir ter. Conheço um aprendiz de caixeiro de botequim, filho de um negociante de banha, que subira do porão à loja do rés-do-chão, e que se ilustrou graças ao que leu no balcão - tanto folhas impressas como manuscritas. Possui uma coleção interessante desses papéis; ali se acham não poucos documentos importantes, tirados da cesta de alguns funcionários públicos, cheios de ocupações, ou muito distraídos... E também certas, cartas confidenciais, em que uma amiga narra historias pouco edificantes, que a destinatária a ninguém devia confiar. Aquele moço é um repositório vivo para a salvação de uma parte considerável da literatura, para o que tem à disposição um vasto distrito: a loja do pai e a do patrão. Foram salvos por ele muitos livros e páginas de livros que bem mereciam ser lidos duas vezes!
   Mostrou-me a sua coleção de folhas impressas e manuscritas, retiradas da barrica do negociante de banha. Havia ali algumas folhas de um grande diário, cuja letra, de tão bela e clara, logo me chamou a a tenção.
   - Isso foi escrito pelo estudante - disse-me ele. - Aquele estudante que morava em frente à nossa casa, e que morreu no mês passado. Como se lê nessas páginas, padecia muito de dor de dentes. é muito engraçado ler essas coisas. Só tenho algumas páginas do manuscrito, que formava primitivamente um livro inteiro, e  mais algumas páginas soltas. Meu pai deu por ele à senhoria do estudante, um quarto de quilo de sabão verde. Aqui está o que consegui salvar.
   Levei comigo, emprestado, o manuscrito, li-o e agora o dou a público, com o título original, que era A Tia Dor-de-Dentes.

                               I
     Quando eu era criança, a tia viva a me dar doces, que meus dentes suportaram muito bem, sem cariarem. Hoje, que cheguei à idade adulta, ela ainda me mimoseia com doces, dizendo-me que sou um poeta.
   Sim, tenho em mim qualquer coisa de poeta, não o suficiente, porém. Muitas vezes, andando pelas ruas da cidade, tenho a impressão de passear em uma grande biblioteca. As casas são as estantes, e cada pavimento é uma prateleira de livros. Num deles lemos uma historia é uma prateleira de livros. Num deles lemos uma história da vida cotidiana; noutro, uma boa comédia antiga. Há a seção de obras científicas; ali estão livros de leitura edificante; ao passo que além estão outros que só contêm má leitura. Mas todos esses livros me trazem à mente ideias filosóficas, ou levam-me a devanear.
   Há em mim qualquer coisa de poeta, mas infelizmente não é muita coisa...Certamente há de haver muita gente que traga consigo tanta poesia como eu; e contudo essas pessoas não ostentam uma placa, ou um colar, em que se veja gravada a palavra"poesia".
       Receberam eles, tanto como eu, uma dádiva divina, o dom de um talento, que, embora grande demais para o uso doméstico, e muito pequenino para ser dividido com outros. Vem como um raio de sol, enche-nos a alma e o pensamento; vem como um perfume de flor, como uma melodia: e, ainda que o percebemos, não sabemos de onde vem.
  Ontem à noite, sentado no meu quarto, deu-me o desejo de ler alguma coisa. Mas ler o que? Não tinha nada comigo: nenhum livro, nenhuma folha escrita. Eis que de repente cai da tília e entra janela adentro, uma folha fresca e verde. A brisa noturna levou-a para perto de mim.
   Contemplei então as inúmeras artérias ramificadas. Uma lagarta pequenina andava de rastos pela folha, como se quisesse examina-la cuidadosamente. Isto me fez pensar na sabedoria humana. Também nós rastejamos por sobre uma folha; nada mais conhecemos além dela, e contudo arrojamo-nos a fazer uma conferência sobre a árvore inteira - raízes, tronco e copa - uma conferência sobre a grande árvore que chama Deus, o mundo, a Imortalidade...não conhecendo dela mais que folha pequenina!
   Ainda estava ali sentado quando entrou a Tia Mille.
   Mostrei-lhe a folha com a lagarta a rastejar e contei-lhe minhas divagações. Os olhos da Tia Mille luziram:
   - Tu é um poeta - talvez o maior que existe entre nós! Ah!Se me for dado ver isso, morrerei contente. Sim, desde o enterro do cervejeiro. Rasmussen, causou-me admiração a tua poderosa fantasia.
  E a Tia Mille deu-me um beijo.
   Mas quem é a Tia Mille? E quem era o cervejeiro Rasmussen?
  A tia da minha mãe era para nós, crianças, tia também. Nunca lhe demos outro tratamento.
   Dava-nos geleias e doces, embora isso nos fizesse mau aos dentes. Mas, conforme dizia, não tinha coragem de recursar nada às criancinhas. Seria crueldade negar-lhes as guloseimas que tanto apreciavam.
   E era a razão por que tanto estimávamos a Tia Mille.
   Era uma moça velha - sempre velha. Nunca a vi senão velha, mesmo nas minhas recordações mais longínquas. Mas também parecia que nunca ficava mais velha.
   Em moça padecera muito de dor de dentes. Falava nisso muitas vezes; e por isso o seu amigo Rasmussen, o cervejeiro, que era muito brincalhão, chamava-a de Tia Dor-de-Dentes.
   Havia já muitos anos ele não fabricava mais cerveja: vivia das rendas. Visitava muitas vezes a tia. Era mais velho do que ela, e já não tinha dente nenhum - restavam-lhe apenas alguns cacos escuros.
  Comera muito doce em menino, era ao que nos dizia, a nós, crianças; por isso ficara assim.
   A tia, essa certamente nunca comera doces na juventude, pois tinha os dentes mais alvos e mais lindos do mundo.
   Mas isso é porque ela os poupava, e nem dormia com eles, segundo dizia o cervejeiro Rasmussen.
    Uma manhã, à mesa do café, a tia contou um mau sonho que tivera naquela noite: perdera um dente. E explicou:
   - Isso significa que vou perder um amigo ou amiga.
  - Mas se era um dente postiço - interveio o cervejeiro, com um sorriso- só pode significar que a senhora vai perder uma amiga falsa.
   Ao que a tia retrucou, tão zangada como eu nunca a vira: 
   - O senhor é que é um cavalheiro pouco amável!
   Depois que ele saiu, a tia disse que seu velho amigo só queria caçoar com ela: na verdade era o homem mais distinto do mundo, e quando morresse se transformaria, lá no céu, em um anjinho de Deus.----
   Meditei muito sobre essa transformação, e tinha minhas dúvidas quanto a reconhecê-lo nessa nova configuração.
   Quando eram ambos moços, o cervejeiro pedira mão da tia. Ela, porém, levou muito tempo hesitando; ficou para tia, e veio a ser uma solteirona. Mas sempre lhe dedicou uma amizade leal.
   Pois o cervejeiro Rasmussen faleceu.
  Foi a mais caro de todos os carros fúnebres o que levou para a sepultura, acompanhado por um grande cortejo de homens de espada e uniforme.
   A tia, toda de preto, estava à janela, e com ela estávamos nós, as crianças; ali perto tinham colocado o berço do irmãozinho que a cegonha nos trouxera na semana anterior.
   Quando o féretro acabou de passar, a rua ficou deserta. A tia queria sair da janela, mas eu ainda teimava em olhar para fora. Estava à espera do anjo, do cervejeiro Rasmusssen. Pois ele não acabava de se tornar um filho de Deus, pequenino e alado? E não ia aparecer?
   - Tia, não achas que ele vai aparecer agora? Ou quem sabe se a cegonha, quando nos trouxer outro irmãozinho, vai trazer o anjo Rasmussen?
   Arrebatada pela minha imaginação, a tia exclamou:
    - Esta criança há de ser um grande poeta!
   Palavra essas que ela repetia sempre: ouvia-as nos meus tempos de escola e depois que cresci, e ainda agora me acompanham na minha vida de acadêmico.
   Para mim ela foi sempre - e continua a ser - a amiga mais compassiva, nas minhas horas dolorosas, tanto nas de produção poética, como nas de dor de dentes, pois que de ambos os males fui afligido.
    - Toma nota de todos os teus pensamentos - disse ela um dia - e guarda-os em uma gaveta da escrivaninha. Jean-Paul, o célebre romancista alemão, assim fazia, e não veio a ser um grande poeta? Não que eu goste dele: acho que não é empolgantes. Tu sim, deves escrever coisas empolgantes, e hás de faz-elo, disso estou convencida!
   Passei toda a noite, depois dessa conversa, acordado na cama; tinha o coração cheio de ânsia e de pesar; sentia-me ao mesmo tempo tomado de arrebatamento e de prazer, e animado do desejo ardente de vir a ser realmente o grande poeta que a tia antevia e sentia em mim. Eram as dores do momento poético, que eu padecia. Mas...ai de mim! Ha uma dor ainda mais atroz! a dor de dentes, que me atormentava e me esgotava, enquanto eu me estorcia como um verme, sob a ação dos saquinhos de farelo e dos emplastros.
  - Conheço bem tudo isso!
   Era a ti que, falava, com um sorriso melancólico a adejar-lhe na boca, que cintilava com a alvura dos dentes.
    É chegada, porém, a hora de iniciar novo capítulo da história da tia e da minha.
                              III

   Tinha mudado de casa, e já havia um mês habitava a nova morada, quando tive ocasião de falar dela à minha tia.
   " Estou morando com uma família silenciosa, que não se preocupa comigo, mesmo que eu toque três vezes a campainha. A não ser isso, a casa é realmente barulhenta; há sempre um estrondo de vento, de temporal de criaturas humanas em qualquer parte. Moro mesmo por cima do porão: cada carro que entra ou que sai agita os quadros nas paredes. É que o portão abala e sacode a casa como um terremoto. Quando já estou deitado, sinto o choque entre todos os membros; mas dizem que isso fortifica os nervos. Se sopra o vento - e o vento sopra sempre, nesta terra - as venezianas batem contra a parede, e tornam a bater. A sineta do portão do jardim do vizinho retine à menor rajada.
   "Os inquilinos vão voltando de um em um, desde a tardinha até a madrugada. Logo acima do meu quarto fica um professor de música, que durante o dia dá lições de trombone. É o último a entrar, e jamais se recolhe sem ter primeiro feito alguns passeios pelo quarto, e isso a passo pesados e calçado de sapatos munido de pregos na sola.
    "As janelas não tem postigos, mas em compensação há uma vidraça quebrada, que a minha senhoria remendou com papel. Mesmo assim o vento soprara pelas fresta, zunindo como um moscado: é essa a minha música de acalanto. E quando, afinal, adormeço, sou despertado logo pelo canto de um galo. A criação do morador do porão anuncia, lá da sua capoeira, que o dia vai apontar. Os pequeninos pôneis que não tem estábulo,e ficam amarrados à caixa de areia, debaixo da escada,batem nas portas e no madeiramento a qualquer movimento que fazem.
   " Raia enfim o dia. O zelador, que mora no sótão com a família, desce a escada com grande estrondo, com os tamancos a tocar castanholas. Fecha-se o portão com estardalhaço, e a casa estremece. E depois de ter uma criatura suportando tudo isso, eis que o morador do pavimento superior começa seus exercício de ginástica. Levanta em cada mão uma pesada bola de ferro, mas não tem força para segurá-la, de sorte que elas levam a cair no chão a todo instante. Já a juventude da casa que frequenta a escola sai aos gritos. Abro a minha janela, para aspirar o ar, que seria agradável e refrescante, se não estivessem as raparigas que moram nos fundos a lavar luvas com um líquido de tirar manchas: é o seu ganha-pão. 
    " A não ser tudo isso que acabo de narrar, é uma casa bastante simpática, e moro com uma família silenciosa."
   Foi esse o relatório que fiz à tia sobre o meu novo lar. Mas eu o fiz com mais animação, pois que a narrativa verbal dispões de tonalidades mais vivas do que a escrita. e quando acabei, a tia gritou:
   - Mas tu és mesmo um poeta! Não deixes de escrever esse conto, e vais ser um segundo Dickens. Para mim, é claro, vales muito mais, porque dás colorido ao que contas. Descreves a tua casa de tal maneira que é com se a gente a visse mesmo. Estou até com arrepios...Continua, continua a escrever! Enche tudo isso de vida, de gente, de gente simpática, ou  melhor - de gente infeliz!
   E de fato, foi descrita a casa, tal com aí está, com seu barulho e seus defeitos, mas um único personagem, que era eu, e sem a ação, que só mais tarde foi acrescentada.
          IV

   Era uma noite de inverno. Fazia um tempo horrível, e a nevasca quase que nos impedia de andar. Terminara o espetáculo que a tia assistira, e eu lá fora para acompanhá-la a casa.
   Ora, já era difícil andar sozinho, quanto mais conduzir uma pessoa. Todos os fiacre estavam tomados; a tia morava longe, para o centro da cidade, ao passo que a minha casa ficava perto. E foi uma sorte, porque a não ser assim, teríamos de nos abrigar em aluma guarita até que o tempo abrandasse.
          Íamos andando sobre a neve profunda, em volta de nós turbilhonavam os flocos, em fúria. Eu mantinha a tia, senão ela não poderia conservar-se de pé; segurava-se a mim, e eu a ia empurrando para diante. Caímos apenas duas vezes, mas ambas as quedas foram suaves.
   Chegamos por fim à minha morada. Sacudimos as roupas, e continuamos a sacudi-las enquanto subíamos a escada, e ainda assim, chegando ao vestíbulo, tínhamos neve bastante para lhe cobrir o soalho.
   Despimos tudo o que era possível dispensar. A senhoria emprestou à tia um par de meias e uma touca - coisas que ela achava absolutamente necessárias. Declarou ainda que a tia não poderia voltar para casa naquela noite, e disse-lhe que se acomodasse na sala. E ali, em um sofá, diante da porta sempre fechada que da para o meu quarto, ela se preparou para arranjar uma cama.
   E assim ficou tudo combinado.
   O fogo ardia na minha estufa de azulejos, e foram dispostos na mesa os petrechos para o chá. O ambiente era já mais acolhedor, embora não tanto como em casa da tia: no inverno ela dispunha cortinas espessas diante das portas, e forrava o chão com tapetes felpudos, estendidos sobre três camadas de papel, para manter o calor na sala. E a gente sentia-se ali como em uma garrafa bem arrolhada, cheia de ar quente. Mas, como já disse, o ambiente da minha casa também se tornou acolhedor, posto que lá fora o vento continuasse a uivar. 
        A tia não se cansava de conversar. Veio de novo à tona a infância; veio o cervejeiro Rasmussen; vieram as velhas recordação
  Lembrava-se ainda do tempo em que me nasceu o primeiro dente, e da alegria que esse acontecimento despertou na família inteira.
   O  primeiro dente! O dente da inocência! Um dente de leite. brilhando como uma gota de leite mesmo!
    Vem a princípio um só, depois vão brotando outros, uma fila inteira, uns ao lado dos outros - os mais lindos dentes de criança! E contudo, são eles apenas a vanguarda, e não os dentes verdadeiros, que hão de durar a vida inteira.
   Estes vem depois, e mais tarde o dente do siso, o pião da fileira, que traz consigo dores e tormentos.
   E um belo dia eles se vão! Somem-se, de um a um, antes e acabado o tempo de serviço. Vai-se até o último dente - e o dia em que desaparece o último, não é dia de festa, não: é um dia melancólico.
   E nesse dia...estamos velhos! Sim, nem que o coração se conserve jovem - estamos velhos.
   Não são ideias nem palestras que inspirem alegria; e contudo, falamos de tudo isso, Tornamos atrás, aos anos da infancia, recordando, recordando...
   Já o relógio tinha dado duas horas, quando a tia se recolheu ao seu quarto, dizendo-me:
   - Boa noite, meu querido menino. Agora vou dormir como se estivesse na minha cama.
   E ela recolheu-se. Mas o que não havia era tranquilidade, nem dentro nem fora de casa. 
  O vento sacudia as janelas, fazia estalar os longos gatos de ferro, e tinir a sineta do portão do jardim do vizinho. Já o locatário de cima voltara pelo quarto. Afinal atirou longe os sapatos e deitou-se. E, quando pegou no sono, roncava com tanta força, que se ouvia o ruído mesmo através do forro do teto.
   E não achei sossego nem sono. A tempestade não amainou; pelo contrário, parecia cada vez mais animada. O vento cantava e zunia, e meus dentes, por seu lado, também deram para se mostrar animados, zunindo e cantando lá a seu modo. E entoaram os acorde da dor de dentes violenta. 
  Vinha da janela uma aragem fria. O reflexo de luar ia e vinha, como as nuvens que a tempestade levava e trazia. Era uma vaivém de luz e sombra. e por fim a sombra criou forma. Vi que alguma coisa se movia, e senti um sopro gelado.
   Sentado no chão estava um vulto delgado e comprido, como os que as crianças desenham na lousa, quando querem representar uma criatura humana. O corpo não é mais que uma linha; outra linha representa os braços. Linhas são também as pernas, e a cabeça é um círculo cheio de ângulos.
  Mas o vulto ia-se tornando mais nítido, Já tinha agora uma espécie de vestimenta, fina e vaporosa, que indicava pertencer ele ao sexo feminino.
  Ouvi um zumbido. Era o vulto ou o vento quem cantava na vidraça quebrada, como um zangão.
   Não! Era Dona Dor-de-Dentes em pessoa! Era Sua Horribilidade, Satania Infernalis! Deus nos libre dela  e nos proteja contra a sua visita!
   - Aqui a gente está bem - murmurou ela. - Uma habitação confortável...O solo é pantanoso! Já aqui zumbiram mosquitos de ferrão empeçonhado. Mas agora quem temo ferrão sou eu e vou afiá-lo em dentes humanos! E como brilha a sua alvura ali na cama...Até agora tem resistido a coisas doces a azedas, quentes e frias; a cascas de nozes e caroços de ameixas. Mas eu vou sacudi-los e abalá-los, vou saturar-lhes a raiz de correntes de ar, até que fiquem geladas!
   Que horror! Palavras horrendas! Visita execrável!
   -  Então, és poeta? - continuou ela. Pois espera um pouco: vou ensinar-te a fazer poesia - vou ensinar-todos os metros da dor! Derramarei ferro e aço no teu corpo; atarei fios na extremidade de todos os teus nervos!
   E foi como se uma broca em brasa me perfurasse as mandíbulas; e eu me retorcia e em revolvia.
   - Uma excelente dentadura! - dizia ela. - Um belo orgao em que vou tocar. Dará um concerto magnífico, um concerto de gaita de boca, acompanhado de timbales e pistões, de pífaros e trombones no dente do siso. Para um grande poeta - grande música!
   Pois sim, senhoras! Ela se pôs a tocar. o aspecto era pavoroso ainda que não se visse nada, a não ser as mãos, aquelas mãos glaciais, cinéreas, como sombras, com os longos dedos finos que pareciam brocas. O polegar e o indicador eram munidos de acicates e parafusos; o médio terminava em sovela pontiaguda; o anular tinha forma de uma broca, e o mínimo era uma seringa, cheia de veneno de mosquito.
  - Vou ensina-te a versificação - disse ela. o grande poeta deve ter grande dor de dentes e o pequeno poeta uma dor pequena.
  - Aí! Seixa-me ser então um poeta menor! Deixa que eu seja poeta! - supliquei-lhe. -Eu não sou realmente poeta...Tive apenas um ataque de poetite, um ataque como este que tenho agora de dor dentes...Vai-te! Vai-te! Deixa-me!
    Reconheces agora que sou mais poderosa que a poesia, a filosofia, a matemática, e toda a música? Mais poderosa que as sensações pintadas ou esculpidas em mármore? Eu sou mais antiga do que todas elas: nasci junto ao Jardim do Paraiso - lá fora, onde silvava o vento e cresciam na umidade os cogumelos. Induzia Eva a vestir-se por causa do frio - e também a Adão. Ah! podes crer que a primeira dor de dentes teve força!
   - Acredito em tudo, tud; mas vai-te! Vai-te daqui! 
   - Sim: se deixares de ser poeta; se nunca mais te meteres a escrever versos, em papel nem na lousa nem em qualquer outro material de escrita, eu te abandonarei! Mas aqui estarei de volta, assim que recomeçares a poetar! 
   - Juro! -gritei então. - Mas some-te, que eu não te sinta mais!
   - Ainda hás de me ver , mas sob uma forma mais nutrida, mais simpática: ver-me-ás sob a aparência da Tia Mille, e hei de te dizer: "Faze versos, meu menino! És um grande poeta e tornares a fazer poesias, hei de te instrumentar a letra, e hei de tocá-la na tua gaita de boca,querido menino! ...Lembra-te disto, quando vires a Tia Mille!
   E sumiu-se.
  Como aduis, senti ainda uma picada de sovela ardente na mandíbula; mas logo depois a dor aplacou. E eu sentia que ia deslizando sobre a amplidão das águas, onde se balouçavam os nenúfares alvos de lagas folhas verdes. Via-se afundar na água abaixo de mim e murchavam e se desfaziam; e com eles eu também me afundava, confundindo-me com a paz e a tranquilidade.
   E as vozes das águas cantavam:
  - Morrer, diluir-me como a neve...Evaporar-me, transformando-me em nuvem ! Singrar no espaço como as nuvens!...
    Através das águas descia té onde eu me achava o brilho de grandes e ilustres nomes, de legendas inscritas em bandeiras vitoriosas,de títulos de imortalidade, escritos sobre as asas de uma efêmera.
 O meu sono era profundo - um sono sem sonhos não ouvia o zunido do vento, nem o bater da porta, em o tinido da sineta do vizinho, nem os vigorosos exercícios ginásticos do locatário de cima.
   Era a bem-aventurança!
   Mas nisto uma rajada de vento abre a porta que dava par ao compartimento da tia, que se levantou de um pulo e foi ao meu quarto, já vestida e calçada.
    - Dormiste como um anjo de Deus; não tive coragem de te acordar.
  Eu despertara, entretanto. Ao abrir os olhos, tinha-se-me apagado inteiramente da memória a presença da tia em minha casa; mas lembrei-me imediatamente desse fato, de mistura co a visão da dor de dentes: sonho e realidade se confundiam.
  - Creio que ontem, depois que nos despedimos,não escreveste mais nada, não? Que pena! Porque tu és e dicas sendo sempre o meu poeta!
   Pareceu-me que ao dizer essas palavras errava-lhes nos lábios um sorriso pérfido. Eu já não sabia se aquela era a minha boa Tia Mille, que tanto me estimava, ou o vulto medonho que, durante a noite, me arancara a promessa.
  - Escreveste alguma poesia, querido menino?
  - Não! Não ! -gritei logo. - Mas...a senhora é realmente a Tia Mille?
  - Pois quem havia de ser?
   E de fato era ela mesma.
  Deu-me um beijo, embarcou no fiacre e voltou para casa. Enquanto ela lá ia indo, escrevi estas páginas. Não são verso e nunca serão impresso...
   Está morto o cervejeiro; morta a tia; morto o estudante, cujas faíscas de espírito foram acabar na brrica.
  Tudo acaba na barrica! 

E este é o fim da história - a história da Tia Dor-de-Dentes.
FIM
  

     

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Contos de Andersen - Uma História das Dunas

    Passou-se esta história nos areais da Jutlândia. Ela não começa, porém, lá no Norte: ao contrário, principia a história bem longe, ao Sul, na Espanha. Transporta-te em pensamento para essa Espanha inundada de sol. Que ar quente, e que soberbo país! Por toda a parte viceja uma vegetação esplêndida: a folhagem leve e as flores vermelhas da romanzeira sobressaem no fundo sombrio dos maciças de loureiros. Vem das montanhas uma brisa fresca, que reanima a gente, e vai passar sobre os laranjais e sobre os palácios mouriscos, de cúpulas douradas. Vem pelas ruas uma procissão de crianças, que trazem tochas e bandeiras flutuantes. O céu, de um azul límpido, resplandece. Vem de mais longe o som de canções, o ruído de castanholas: moças e rapazes dançam e saltam à sombra das acácias em flor. Encostado a um mármore antigo, um mendigo os observa, enquanto vai comendo uma melancia: é feliz, lá a seu modo, goza a vida, e parece a meio mergulhado num sonho.
    É que a vida assemelha-se a um sonho suave nessa terra encantada. É só abandonar-se a gente a ele. E é o que fazia um jovem casal que possuía todos os bens deste mundo: saúde e alegria, riquezas e honras.
   - Nunca houve ninguém no mundo mais feliz do que nós! - diziam eles, do fundo do coração.
    Entretanto luzia ainda na sua imaginação um grau mais alto de felicidade: podiam ter um filho, um filho que a ambos se assemelhasse em corpo e alma. Com que transportes de alegria não seria recebida essa criança privilegiada! Que cuidados, que amor a esperavam! E haviam de cercá-la a opulência e alegrias sem fim.
   Para eles, os meses passavam-se como um dia de festa.
   Um dia a moça disse ao marido:
    - A existência é, só por si, um dom da graça divina, um dom maravilhoso e inapreciável(que, pela sua extrema importância, o seu sabido valor, é difícil de ser avaliado em dinheiro ou em apreço)"; e contudo, a existência não basta, e o homem quer ainda que sua felicidade vá aumentando sem cessar, aqui e lá em cima.
   - O orgulho humano não se contenta jamais. E é puro orgulho crer que viveremos eternamente; é o que prometia a Serpente, que é a mãe da mentira.
     - Não duvidas, contudo, da vida futura! - replicou a moça.
   Pareceu-lhe que, pela primeira vez, uma sombra lhe velava os pensamentos, desabrochados ao sol da alegria.
    - A Fé o proclama - respondeu o marido - afirma-o a Igreja. Mas é justamente a plenitude de minha felicidade que me obriga a reconhecer que semelhante esperança é uma presunção. É uma temeridade exigir além desta vida uma felicidade sem fim. Não recebemos já bastante aqui na Terra, e não nos devemos dar por satisfeitos?
  - Sim, nós. Mas há milhares de criaturas humanas para quem a existência não é mais que uma dura prova; que são votadas à pobreza, à doença, ao infortúnio. Se não houvesse mais nada para além do túmulo, os bens deste mundo seriam repartidos com muita desigualdade, e Deus não seria o que é: a própria justiça.
     - Talvez estejamos julgando as coisas de um ponto de vista muito pessoal. Aquele mendigo que lá está tem prazeres que ele aprecia tanto como os que goza um rei no seu trono. E depois, em virtude do teu raciocínio, a besta de carga que leva pancada, que sofre fome, que se arrasta penosamente para a morte, não teria o direito de reclamar também compensações depois da morte? Não se poderia dizer igualmente que é uma injustiça ter ela sido posta em um lugar tão baixo na criação?
    - Cristo disse: "Na casa de meu Pai há muitas moradas." O céu, como o amor divino, é infinito. Como o homem, o animal é uma crianção de Deus, e eu creio firmemente que nenhuma vida será perdida; cada criatura gozará de toda a felicidade que seja suscetível de receber.
   - Quanto a mim - disse o marido - basta-me este mundo.
   E, dizendo-o, olhava com ternura para a esposa, tão jovem, tão linda e tão amorosa. Levou-a para o terraço, e o fumo de seu cigarro erguia-se em espirais, no ar fresco e perfumado do cheiro das flores de laranjeira e dos cravos. Na rua ressoavam as guitarras e as castanholas, no azul do céu cintilavam as estrelas. Dois olhos mais brilhantes que as estrelas, dois olhos cheios de ternura, contemplavam o moço feliz.
    - Para viver um minuto assim- disse ele. - Vale a pena nascer, gozá-lo, e desaparecer para sempre.
   E sorria ao dizer isso; mas a jovem esposa ergueu o dedo, em sinal de doce censura. A sombra que tinha obscurecido sua felicidade, contudo, se desvanecera: eram felizes demais.
   Tudo parecia combinar-se de propósito para lhes acarretar cada vez mais honras, mais prazeres, mais riqueza.O moço foi enviado pelo rei como embaixador junto ao czar da Rússia. Seu nascimento e sua  cultura tornavam-no digno de tão elevadas funções. Dispôs-se a preencher brilhantemente a missão; sua grande fortuna, agora aumentada com a que trouxera a esposa, filha de um dos principais armadores da península, lhe permitiria representar nobremente seu país em Petersburgo.
   Estava de partida, justamente este ano, para Estocolmo, um dos mais belos navios do armador, e ele o destinou a conduzir o genro e a filha à Rússia. Determinou que tudo fosse preparado a bordo com se fosse para receber um rei; por toda a parte os tapetes mais ricos, ouro e sedas e tudo o que oferece o luxo mais requintado.
    Há uma balada antiga que diz que um príncipe da Inglaterra embarca em um navio cujo cordame é de seda, O navio em que embarcaram os espanhóis fazia lembrar o da balada antiga.
     E na partida, dizia-se, como na balada:

          Permita Deus que ainda um dia 
           Tornemos todos a ver-nos,
           Sempre na mesma alegria!

    Não seria longa a travessia; o vento era propício. Mas já no mar alto, cessou; o oceano ficou imóvel, as ondas adormeceram. O tempo continuava soberbo, e no belo navio tudo eram festas e alegrias.
   Enfim voltou a brisa e impeliu-os na boa direção. O navio avançava entre a Escócia e a Jutlândia. O vento ia soprando cada vez mais forte, e, sempre como na balada antiga:
  
     Desabou a tempestade
      As nuvens despejam água;
     O navio, desarvorado,
     Não acha onde aportar.
    Lança âncora de ouro.
   Mas, do vento arrebatado,
    Vai, levando seu tesouro,
    Na Dinamarca aportar.

                                         II

    Isso foi há muito, muito tempo. Reinava então na Dinamarca o Rei Cristiano VII, que era ainda jovem, Quantas coisas aconteceram depois disso! Que mudança se operou, quando mais não seja no solo da Jutlândia: banhados e lagos foram convertidos em prados verdejantes; charnecas cobertas de urzes transformaram-se em terras fecundas. Abrigadas pelas cabanas, há até macieiras e roseiras. É certo que se precisa procurá-las, porque o vento terrível do oeste as obrigas a curvar-se até quase o chão.
    Mas, na ponta da Jutlândia tudo ficou como dantes. Estende-se a terra léguas e léguas, com seus túmulos de Gigantes, seus caminhos onde a gente se enterra na areia até os joelhos. Ao oeste, onde as ribeiras se escoam nas baías que o mar forma, vêem-se pantanais, turfeiras cercadas de dunas muito altas, de vértices desiguais e denteados, que formam uma cadeia de Alpes pequeninos. Mais além, erguem-se penhascos escarpados, roídos pelas ondas enfurecidas. Para aquela banda avançava o navio, levando os dois esposos, tão felizes.
  Era no fim de setembro, e em um domingo. O sol brilhava, o ar era puro. De todos os lados ouvia-se o repique dos sinos das igrejas que orlam a Baía de Nissoum. São essas igrejas construídas de pedra de cantaria, para que não as arrebate o mar, quando invade a terra. Não tem campanário: o sino suspenso entre dois postes, ao lado do templo.
   Terminado o serviço divino, saíram os fiéis da igreja, dirigindo-se, a maior parte, para o cemitério. Como ainda hoje, não se via nele nem árvore nem arbusto; nem uma flor, nem uma coroa nos túmulos: nada mais que montículos de areia, cobertos de ervas que, fustigadas sem cessar pelo vento, cortam como lanças. Em lugar de monumentos, viam-se aqui e ali blocos de madeira vomitados pelo mar, e talhados em forma de féretro. Mas dentro de pouco tempo, os furacões e a bruma carregada de umidade deterioravam até aquela madeira maciça.
  Sobre o túmulo de uma criança tinha sido posto um desses blocos, já todo embolorado coberto de areia, e a meio enterrado nela. Uma mulher ia andando para quele lado, e, sem procurar, foi direito à tumba, que ficou contemplando em silêncio, com os olhos cheios de lágrimas. Logo depois, reuniu-se-lhe o marido; não falaram, mas ele lhe pegou na mão e levou-a devagarinho para as dunas. Durante muito tempo andaram assim, em silêncio. Por fim, disse o marido:
  - Como pastor pregou bem hoje! Na verdade, se não tivéssemos Deus, estaríamos bem abandonados!
    - Sim...Mas o Senhor concede a alegria, depois envia a dor...Ele tem direito, sim. Amanhã o nosso rapazinho completaria cinco anos, se tivesse ficado conosco.
   - Por que pensas sempre assim na tua dor? A criança não está bem, no lugar onde pedimos todos a Deus que nos deixe ir ter um dia?
    Calaram-se de novo e foram andando para a sua casinha, oculta nas dunas. De repente, de uma daquelas colinas onde a erva não consegue reter a areia com as raízes, ergue-se uma nuvem, de fumo espesso. Era a areia, que um golpe de vento súbito arrebatava nos ares. Um seguir do pé-de-vento apanhou os peixes que secavam em cordas perto de casa elançou-os contra a folhas da janela. Depois tudo voltou à tranquilidade; o sol luzia como antes.
  Mas o sinal tinha sido compreendido. Marido e mulher apressaram-se a volta; vestiram suas roupas diárias e correram à praia. Já lá encontraram os vizinhos, e todos se ajudando entre si arrastaram as barcas para areia. Soprava agora de novo o vento, mais forte, mais áspero, mais frio. E, quando iam de volta para casa, ainda lhes lançou ao rosto turbilhões de areia e de pedregulhos. Já as vagas engrossavam; o vento cortava-lhes a crista de espuma e espalhava-a pelo mar, que ficava todo branco.
   Com a noite sobreveio a tempestade. Foi um crescendo de assobios, de uivos, de lamentos; pareciam os gritos de milhares de demônios saídos do inferno. Aquele fragor tremendo dominava o bramido da ondas; as vagas erguiam-se quase tão altas como as dunas. E de vez em quando o vento açoitava de tal sorte a casinha, que ela tremia quase até os fundamentos.
   Durante as primeiras horas, a obscuridade foi completa; tudo era negro. Por volta da meia-noite o ar aclarou um pouco e apareceu a Lua. Mas a tempestade continuava a remexer as profundidades do oceano.
   O valente casal tinha-se acomodado, ainda que fosse impossível pregar olho com um furacão daqueles. De repente batem à janela, e uma voz anuncia:
   - Um grande navio bateu no primeiro rochedo!
    Ambos saltam do leito, vestem-se a toda a pressa e correm ao mar.
   Havia luar bastante para que se pudesse ver ao longe, se os turbilhões de areia não obrigassem os olhos a se fechar. E foi somente se afastando por terra, pelo meio das dunas, aproveitando os instantes de espera entre dois golpes de vento, que os pescadores conseguiram chegar à praia. Lá, ao longe, via-se a espuma das vagas esvoaçando nos ares, como plumas de cisne. As ondas rolavam para a costa como imensas cataratas efervescentes. Apenas o olho experimentado dos marinheiros podia distinguir o navio: era um soberbo três mastros. De repente, o mar levantou-o, impelindo-o para a terra, a poucos passos do lugar conveniente. O navio deu com um segundo rochedo e imobilizou-se. Era impossível socorrê-lo. Vagas enormes cobriam-no quase por completo. Eles viam o esforço desesperado da equipagem; até julgavam ouvir os gritos de angústia dos náufragos. Veio enfim uma vaga que, caindo com tanto fragor como se fosse um gigantesco rochedo, arrancou a popa do navio. A proa ergueu-se no ar. Foi então que duas pessoas, estreitamente abraçadas, se lançaram ao mar; um minuto depois a onda atirou à praia um único corpo: era uma mulher.
   Julgaram-na morta os marinheiros dinamarqueses. Algumas mulheres a ergueram, e, julgando entrever nela sinais de vida, levaram-na para a casinhola do pescador.
  E como era bela, e ricamente trajada! Devia ser uma dama de categoria muito elevada.
  Deitaram-na no pobre leito: o calor reanimou-a, mas tomara-a, violentíssima febre. Não sabia nada do que acontecera, nem dava tino do lugar onde se achava. E isso era até um grande bem para ela, porque o que mais amava no mundo estava no fundo do oceano. Sempre como dizia na balada antiga:
   
 O navio, desfeito em cacos,
  Era horrível de se ver!

Foram ter à praia lascas de madeira, mas nem um só dos outros seres viventes.
  Instantes depois a senhora soltou um grito de dor e abriu os belos e grandes olhos. Disse algumas palavras em linguagem que ninguém compreendia. Deu à luz uma criança. 
    Aquela criança devera repousar em um berço dourado, entre cortinados de seda, no interior de um palácio magnífico. Todos os bens da terra lhe eram destinados; seu nascimento devia ter sido saudado pelos gritos de alegria de uma cidade inteira; e Deus fazia-a vir ao mundo naquele pobre recanto. Não chegou sequer a receber um beijo de sua mãe; puseram-na sobre o seu seio, contra o coração; o coração já não batia. Estava morta.
   A criança, que devera ter por amas a Riqueza e a Felicidade, foi assim lançada naquela terra rude, entre dunas desoladas, para partilhar a sorte dos pobres.
  Há muito tempo já não existia mais nas costas da Jutlândia o costume bárbaro de pilhar os náufragos. A infeliz criança teria encontrado por toda a parte quem tratasse dela; mas em lugar nenhum poderia ter sido tão amimada como na casa da pobre pescadora, que na véspera ainda chorava na sepultura do filho, que devia fazer cinco anos naquele dia. Foi ela quem o adotou.
   Ninguém soube quem era a dama estrangeira. Nenhum dos destroços que o mar atirou à praia trazia o nome do navio, nem a sua procedência.
  La na Espanha no palácio suntuoso, jamais chegou carta ou notícia contando a sorte da filha da casa nem de seu marido. Não tinham chegado ao seu destino; houvera tempestades violentas -foi tudo o que se soube. Enfim, depois de meses de incerteza, chegou do Norte a dolorosa notícia: o navio se perdera, corpos e bens.
   Nas dunas, perto de Hunsby, a cabana do pescador abrigava o rebento desconhecido da rica família espanhola. Jorge - Jorgen, em dinamarquês - foi o nome de que lhe deram.
   - Que pele morena tem ele - dizia a gente da aldeia - é certamente filho de judeu.
  - Ou de italiano, ou espanhol - retrucou o pastor.
   Mas a mulher do pescador, que o recolhera, essa não se preocupava de saber a que raça ele podia pertencer: amava-o de todo o coração.

                                    III
   A criança cresceu e se desenvolveu; seu sangue nobre conservou-se quente sob o céu frio da Jutlândia; e, apesar da magra nutrição, o menino tornou-se robusto. Falava o dialeto dinamarquês da região. A semente da Granada de Espanha se havia transformado no grão de aveia que brota nas costas  do Mar do Norte.
Que coisas podem suceder às criaturas humanas!
  
Um tempinho, uma paradinha para momentos em família!
 Continua em 2018 Feliz Natal e um Próspero Ano Novo. Muitos beijos para meus amigos! 

Retornando:

   Todos os liames da vida o enraizavam no solo onde nascera. Conheceu a fome, frio, as dores e as misérias daquela gente pobre; mas gozava também as suas alegrias.
    Quando queria divertir-se, tinha a costa semeada de brinquedos, até o infinito: pedrinhas vermelhas como coral, amarelas como o âmbar, brancas como bolas de neve, arredondadas e polidas como ovos de passarinho. Achava ali esqueletos de peixe, os longos fios brancos das evas marinhas dessecados pelo vento, mil coisas que lhe atraíam o olhar e o excitavam à reflexão. A criança tinha o espírito muito vivo; era maravilhosamente dotada
   Com que facilidade guardava na memória as histórias dos tempos antigos e as velhas canções - e como sabia recitá-las! Com pedrinhas e conchas, construía pequenos navios e outros objetos lindos, que dava à mãe adotiva para adornar a casa. Talhava na madeira de um cajado figuras originais. Qualquer trecho de música que ouvia, repetia-o com uma voz grave e vibrante. Havia naquele menino as cordas mais numerosas e mais ricas, que teriam talvez retinido ao longe, através do mundo, se ele não estivesse confinado naquela cabana, à beira do Mar do Norte.
   Um dia, outro navio soçobrou naquelas paragens. Uma caixa cheia de bulbos das tulipas mais raras deu à costa. Aquela boa gente, sem saber o que era aquilo, cozinhou alguns bulbos, que acharam afinal detestáveis. O resto ficou sobre a areia, e acabou por apodrecer; não chegaram a brotar e a desabrochar no brilho de suas cores magníficas. Seria assim também com Jorge? Estava destinado a se estiolar longe do clima em que teria podido atingir seu desenvolvimento completo?
   Enquanto isso, o menino crescia, em excelentes disposições. Não se apercebia da monotonia da vida naquele recanto esquecido do universo. Ajudava quanto podia, no trabalho, seus pais adotivos. Se queria repousar, bastava-lhe, para se distrair, olhar para o mar, sempre instável, passando da calma perfeita ao furacão.  De tempos a tempos sobrevinham náufragos, que serviam de assunto durante alguns meses. Além disso, Jorge era piedoso: ir à igreja, para ele constituía uma festa.
     De quando em quando havia  visitas, e a mais agradável de todas era o irmão de sua mãe adotiva, o pescador de enguias, que morava em Fjaltring. Vinha duas vezes por ano, no seu carrinho pintado de vermelho, com flores azuis e brancas. Era um carro fechado como uma caixa, e todo cheio de enguias. Puxavam-no dois bois vermelhos, e ele deixava Jorge conduzi-los à ponta da estrada.
   Era um sujeito alegre, o pescador de enguias. Trazia sempre um tonelzinho de aguardente. As pessoas grandes recebiam um cálice cheio. A Jorge davam um dedal cheio. E o pescador dizia:
   - Isto faz digerir a gordura da enguia.
   E contava depois uma história, sempre a mesma; se ela agradava ao auditório, repetia-a ainda. Aquele conto veio a ser, para Jorge, como outro Evangelho. E ele o aplicava muitas vezes aos acontecimentos de sua vida. Devemos, pois, ouvir também a história:
   "As enguias andavam passeando na baía, e pediram licença à mãe para subir mais um pouco, rio acima.
   "- Podem ir, sim - disse ela. - Mas cuidado! não vão muito longe; o perverso pescador poderia aparecer e roubá-las todas.
   " Elas foram, na verdade muito longe, e de oito que era, não voltaram senão três; e disseram à mãe:
   " - Mãe, nós só fomos um pouquinho mais adiante do nosso porto, mas o maldito pescador chegou e matou nossas cinco irmãs!
  "- Elas hão de voltar - disse a mãe.
  " - Como hão de voltar, se ele lhes arrancou a pele?
E partiu-as ao meio, e cozinhou-as!
  "- Elas voltarão, sou eu quem o diz!
  " - Mas o pescador comeu-as, mãe!
   "- Elas hão de voltar, mesmo assim.
   " - Mas ele bebeu aguardente em cima, mãe!
   " - Ai! Então não tornaremos a vê-las, não: a aguardente é o veneno da enguia!
   " E é por isso - rematava o pescador de enguias - que temos sempre de tomar um copinho dela depois da enguia."
   Bem desejaria Jorge, como as jovens enguias, sair um pouco além daquela baía, ir , fosse onde fosse, a qualquer parte; mas o que mais desejava era subir a um navio e percorrer os mares. Mas sua mãe adotiva e o pescador diziam-lhe:
  - Fica aqui conosco! Se tu soubesses como os homens são maus...
   Não poderia ao menos ir além das dunas, entrar pelas terra, ver um bocado da região? Enfim, seus desejos se realizaram. Teve quatro dias de alegria contínua, os mais belos de sua infância. Morrera um parente rico de seu pai adotivo, e no Norte subsiste o costume, vindo dos tempos do paganismo, de dar um grande banquete depois do enterro.
  A família dirigiu-se, pois, levando Jorge, para o lugar onde o parente rico residia, e que ficava a leste, a muitas léguas de distância. Saindo das dunas, atravessaram a charneca, depois os pantanais, e chegaram aos prados verdejantes em que ocorre o Skjaeruamaa, o rio das enguias que os homens cruéis apanham e cortam ao meio. Mas afinal, os homens não são muitas vezes menos cruéis uns com os outros...
   À beira do rio, erguiam-se a
s ruínas do castelo que o Cavaleiro Bugge edificou, há mais de quinhentos anos. O cavaleiro foi assassinado por salteadores. Mas ele próprio - a quem chamavam, aliás, o bom senhor - ele não tinha tentado matar o arquiteto que construíra o castelo e a alta torre de paredes tão grossas? Depois de pronta a construção, quando o arquiteto se retirou com o pagamento convencionado, disse o cavaleiro ao seu escudeiro:
   - Corre atrás dele e grita: " Mestre! A torre vacila!" Se ele se voltar, é que não tem confiança na sua obra: mata-o então e traz-me o dinheiro, que tão mal ganhou. Mas se continuar seu caminho , deixa-o ir em paz.
   Fez o escudeiro o que lhe ordenara o amo. O arquiteto não se voltou, mas respondeu, continuando a andar:
   - Não é verdade: a torre não se move mais do que se moveria um rochedo. Mas um dia virá do Oeste alguém, com um manto azul, que poderá deitá-la abaixo.
   E de fato, ao fim de cem anos, o mar invadiu as terras e a torre caiu.
  Foi reconstruído, e ficou um pouco mais alto. É o Norre-Vosborg. Os viajantes passaram ao lado dele, e Jorge, que ouvira contar as maravilhas que encerravam nos serões da casinha da praia, só tinha olhos para o belo palácio com seu duplo fosso, suas torres, seu parque. Havia lá árvores como ele jamais vira; altas tílias em flor, que enchiam o ar de perfumes, e em um canto do parque um bosquezinho de sabugueiros, também floridos. O menino
pensou que aquilo era neve no meio da folhagem. E jamais esqueceu aquele espetáculo, que à sua imaginação infantil, se apresentava como verdadeira magia.
   Foi preciso, contudo, arrancá-lo àquela visão encantadora. O caminho era agora mais fácil. Encontraram outros convidados que iam ao enterro; iam de carro, e Jorge e seus pais subiram para a traseira e se empoleiraram sobre uma caixa. Jorge não era menos feliz do que pode ser um rei, na sua carruagem tirada a seis cavalos.
  Iam andando pela charneca; os bois que puxavam o carro paravam de quando em quando ao avistarem alguma erva perdida no meio das urzes. Deixavam então os animais pastar. O sol era ardente, e viam-se ao longe nas nuvens de fumo transparente, onde a luz do sol se refletia de maneira estranha.
   - Aquilo é Loki, que guarda seus carneiros- disse um dos homens a Jorge.
   E o  menino julgou-se transportado ao mundo encantado dos velhos deuses escandinavos,
   E que tranquilidade! Até onde alcançava a vista, estendia-se a charneca, como um belo tapete, formado de urzes de flores rosadas, de zimbros de um verde sombrio, e azinheiros novos.
  Bem quisera Jorge correr, folgar naquele matagal; mas havia tantas cobras venenosas escondidas por toda a parte...Falaram-lhe também nos lobos que outrora infestavam a região. O velho que guiava o carro contou que 'no tempo de seu pai' os cavalos se viam mal com esses animais ferozes, que ainda não tinham sido exterminados, Um dia achara um cavalo com a patas dianteiras sobre um enorme lobo, que acabava de matar; mas na luta tivera toda a pele das pernas lacerada, feita em farrapos.
   Atravessaram- e, na opinião de Jorge, muito depressa - a charneca, depois areais profundos. Enfim, chegaram.
   A casa  está cheia de convidados; há gente dentro e fora da habitação. É um verdadeiro acampamento de viaturas. Cavalos e bois de canga formam um grande rebanho. E lá se vão, a toda pressa, procurar pasto entre as urzes. Atrás da granja erguem-se dunas de areia semelhantes às da praia. Estendem-se em grande extensão. Como se formaram tão adentro, no interior das terras? Seriam levadas pelo vento? Elas tem também a sua história. 
   Durante o serviço fúnebre foram cantados salmos. Todos estavam recolhidos, mas somente alguns velhos choravam. Grande parte dos assistentes não tinha conhecido o morto. Uma vez fora da igreja, todo o mundo estava alegre e bem disposto, exceto os velhos, sobre os quais a tristeza tem mais domínio. As mesas estavam sobrecarregadas de iguarias; os convidados tinham de que se regalar: carnes, peixes, bolos, hidromel, aguardente, para fazer digerir a enguia. Nada faltava.
  Jorge ia e vinha, saltando, cabriolando, admirando tudo; colhia flores, deitava-as fora, apanhava bagas de mirtilo e dançava de alegria, quando o suco vermelho lhe tingia as mãos.
   Ficava de boca a berta a contemplar os túmulos dos gigantes, cujas histórias impressionantes ouvira contar. À tardinha elevava-se, como colunas de fumo, o nevoeiro seco, que o sol coloria das cores mais belas.
  Passaram-se assim três dias, no auge do prazer. No quarto, porém, todos se despediam e voltaram para suas casas.
   Quando Jorge e seus pais tornaram a avistar as dunas da praia, o velho pescador exclamou:
  - Estas sim, são as dunas verdadeiras: só elas podem resistir ao vento!
   Contou então ao menino como se haviam formado as outras dunas, no interior das terras.
   Um dia alguns camponeses encontraram um cadáver e enterraram-no no cemitério. Mas o mar invadiu a charneca, e ia avançando e avançando, levando por diante montanhas de areia, e espalhando o terror por toda a parte. Foi então que um velho, cheio de sabedoria, aconselhou-os a desenterrar o morto:
    - Se o encontrarem a sugar o polegar, é um homem do mar; e as ondas não deixarão de invadir a terra enquanto não lho restituírem.
   Ora o morto tinha de fato, o polegar na boca. Os camponeses meteram-no em um carrinho, e foram a galope deitá-lo ao mar. E as águas pararam imediatamente e voltaram ao leito; mas as dunas que tinha levado, ficaram lá onde estão até hoje.
   Jorge gostou muito da história e não duvidava que fosse verdadeira; mas afinal o pescador que a contava também não tinha a menor dúvida a respeito de sua veracidade.
         
                      IV

  Depois de ver tanta coisa magnífica, ele desejava mais que nunca correr mundo. Aos quatorze anos era grumete em um navio. Mas que foi encontrar? Mau tempo, mares encapelados, homens maus e duros, pão seco, noites de frio, bofetadas. À primeira que sentiu no rosto, o nobre sangue espanhol que lhe corria nas veias se revoltou. Sentiu-o ferver e subiram-lhe aos lábios palavras amargas; mas reteve-as a tempo; o bom-senso levou a melhor. Compreendeu que só resultaria da revolta pior tratamento. Naquela cólera contida, experimentou o que deve sofrer a enguia, quando lhe arrancam a pele e a cortam ao meio para a lançar na frigideira:
    - Não é nada- disse consigo - hei de voltar, como a enguia!
     Chegaram às costas da Espanha. Por uma ironia da sorte, o navio ancorou no mesmo porto onde os pais de Jorge tinham vivido no seio da riqueza. O pobre grumete estava sempre de guarda a bordo. Entretanto, no último dia, mandaram-no à terra, a fazer compras.
    Via pela primeira vez uma grande cidade Que altas lhe pareceram as casas! As ruas estavam cheias de pessoas atarefadas - citadinos, camponeses, monges, soldados - e toda a quela gente corria e gritava. E que ruído! Ouvia-se o tilintar das sinetas das mulas, cantos, sons de instrumentos, e ainda o barulho dos martelos mais oficinais. O sol era ardente, o ar pesado. Parecia tudo aquilo um forno cheio de moscas, de abelhas e de besouros, e tudo zumbia. Atordoado, Jorge não sabia para que lado se virar. Olhava de vez em quando para sua pobre roupa, que parecia ter sido mergulhada na lama e seca depois ao calor da chaminé, e isso lhe aumentava ainda mais a timidez e o embaraço.
   De repente avistou a catedral, cujas portas estavam abertas. Nas abóbodas sombrias ardiam centenas de luzes, e sentia-se o cheiro de incenso. Os mendigos mais esfarrapados entravam no santuário, e ele pediu ao marinheiro que o companhava que o deixasse subir os degraus do pórtico. Entrou na igreja e viu quadros soberbos, sobre fundo de ouro. No altar, a Madona com o Menino Jesus, toda cercada de flores, iluminada pela luz dos círios. Os padres, vestidos de ouro e seda, cantavam enquanto os meninos do coro agitavam os incensórios de prata. Que esplendor! Que magnificência! O menino sentiu a alma penetrada, aniquilada. A fé de seus pais parecia despertar nele, e desatou a chorar.
   Mas teve de sair dali, teve de ir ao mercado, comprar provisões. Depois seguiu para o porto. Carregado de pacotes, meio morto de fadiga, depois de tão longa marcha, sentia-se cansado de corpo e alma. Todas aquelas impressões nova, e tão variadas, o acabrunhavam. Avistou um palácio magnífico, ornado de estátuas, de colunas de mármore. Sentou-se num degrau da ampla escadaria, para descansar um momento. Mas surgiu o porteiro, todo agaloado, brandindo um bastão encimado de prata, e expulsou-o dali, cobrindo-o de injúrias - a ele o filho da casa, o herdeiro do palácio e de todas as suas riquezas! Porque era a morada do seu avô que, no meio daquele luxo, se consumia de desgosto, por ter perdido a filha única.
    O navio fez-se ao mar, e Jorge voltou à mesma vida: palavras duras, sono insuficiente, trabalho excessivo. Sabia agora o que custa ver o mundo. Dizem que é bom passar trabalho, quando moço; assim...talvez: contanto que na velhice haja felicidade.
   Voltou o navio a Ringkjobing, na Jutlândia. Terminado seu tempo de serviço, Jorge voltou a Huusby para ver os pais, e as queridas dunas. Mas, na sua ausência, morrera-lhe a mãe adotiva, e essa notícia perturbou-lhe toda a alegria do retorno.
   Passou o verão. Veio o inverno, um dos mais rigorosos, trazendo tempestades de neve, que varriam tudo, na terra e no mar. Jorge admirava-se de ver as coisas repartidas com tanta desigualdade sobre a face do globo: aqui o frio, os furacões; na Espanha o sol radioso, o ar calmo e ardente. Por algum tempo lhe pareceu que o Meio-Dia era melhor; mas quando caía uma bela geada, e via os alvos bandos de cisnes nadar para os rios, gostava mais do norte. Pois o estio não tem também ali seus encantos, sua beleza? E ele revia em imaginação o Castelo de Vosborg, as tílias, os sabugueiros e mirtilos da charneca; e preferia tudo aquilo aos esplendores das regiões meridionais.
  Voltou a primavera e começou a pesca. Jorge crescera muito; era um rapaz forte, cheio de vida, sempre pronto para o trabalho; e ajudava com zelo seu pai adotivo. Era destro na natação, e zombava das ondas com um peixe. Quando se demorava muito no mar, o velho pescador dizia-lhe que tivesse  cuidado com os bandos de cavalas: elas vencem o melhor nadador, cercando-o; arrastam-no então e o devoram. Mas não era seu destino ser presa das sardas, isso não   
   Um dos vizinhos, tinha um filho, Martim, que era muito amigo de Jorge. Engajaram-se ambos como marinheiros em um navio que ia à Noruega e à Holanda. Nunca tinham brigado, mas uma querela pode sobrevir inesperadamente. Jorge era violento, e dado à cólera, em razão da sua  raça. Um dia surgiu entre eles uma discussão, por motivo fútil. Jorge empalideceu  e seus belos olhos mudaram de expressão; não tinham nada de belos naquele momento! Chegou a puxar a faca. Mas Martin disse-lhe tranquilamente:
  - Ora essa! Então queres brigar comigo?
   Jorge nada disse; sua mão abaixou-se como por encanto; e foi cuidar do seu trabalho. Mas deu volta e foi de novo em busca de Martim, dizendo-lhe:
   - Bate-me no rosto, pois que o mereço. Sinto dentro de mim alguma coisa que está sempre fervendo, e que transborda de vez em quando.
   - Não falemos mais nisso - respondeu o amigo. Depois dessa altercação, sua amizade aumentou ainda mais; e quando, de volta à aldeia. Jorge contou o que se passara. Martim acrescentou que seu camarada era colérico, mas tinha bom coração.
   A moça com quem Jorge mais gostava de conversar na aldeia chamava-se Elisa. Ela era tão clara como ele moreno; tinha o cabelo louro como o linho, e os lhos tão azuis  como o mar, quando brilha à luz do sol. Passeavam juntos um dia, quando ela disse:
   - Tenho um pedido a fazer-te, Jorge: a mulher que cuidava da casa de teu pai foi embora, e peço-te que me dês esse lugar. Sou forte e destra, e vais ver como sei preparar a cerveja quente que vocês tomam quando voltam fatigados da pesca, e como limpo e preparo bem o peixe! Desejo muito ir para casa de teu pai. Estimo-te como um irmão. Martim quer que eu vá para a casa de seus pais, mas isso não é possível, porque estamos noivos.
   Ao ouvir essas palavras, pareceu a Jorge que estava sobre areia movediça: vergaram-lhe as pernas, o chão lhe fugia, e não achou uma palavra para dizer. Apenas inclinou a cabeça, em sinal de assentimento. Sentiu, no fundo do coração, que não poderia mais suportar a vista de Martim. E desde aquele momento não pensou senão em si próprio e em Elisa, a quem, entretanto, não tinha dedicado, até ali, grande atenção. E quando mais pensava naquilo,quanto mais se consumia, mais evidente lhe parecia que Martim lhe roubara única coisa que lhe importava neste mundo; o amor de Elisa.
  No dia seguinte foi à pesca com o pai de Martim. O velho apanhou uma febre, e tiveram de voltar mais cedo. O mar estava revolto, e não era fácil nessas ocasiões evitar os três recifes que ficam à entrada da baía. Um dos marinheiros fica de pé, quando chegam em frente do rochedo, e observa as ondas; os outros remam com se fossem para o largo, até que o companheiro dá o sinal de que se aproxima a vaga que deve erguer o barco acima do rochedo. Então remam para terra; o barco é assim erguido na crista da onda, e torna a cair com ela. Some-se todo inteiro, de modo que, da praia, não se vê sequer o mastro, e pode parecer que a embarcação submergiu. Um instante depois ela reaparece, erguida pela vaga: diz-se-ia um caranguejo monstruoso que saiu do mar. Recomeça-se essa manobra segunda e terceira vez - nos dois outros escolhos;e, terminada a última, passou o perigo. Diante dos  rochedos, porém, o menor atraso, a minima hesitação da parte de quem comanda a manobra, pode ocasionar a perda do barco, que se reduzirá a cacos.
   Acercavam-se do primeiro recife quando Jorge adiantou-se de repente, dizendo:
  - Pai, deixa-me passar e ficar de pé na frente.
   É que um pensamento infernal acabava de lhe morder o coração.
  - Depende de mim - dizia consigo - que eu e Martim moramos aqui!
   E olhava alternativamente para o rochedo e para o companheiro. Chega a vaga; mas eis que Jorge dá com o rosto pálido e adoentado do pai adotivo; com um vigoroso esforço de vontade, afasta a tentação, dá o sinal a tempo e chegam à praia.
   Não o abandonam os pensamentos sinistros. Procura na memória as faltas que Martim podia ter cometido contra a amizade recíproca, desde que se conheciam; não encontrava, porém, agravos suficientes para lhe querer mal. Contudo, uma coisa ficava sempre de pé: é que Martim o despojara do seu mais caro tesouro, e isso era o bastante para lhe votar um ódio de morte. Alguns pescadores notaram a modificação das maneiras de Jorge para com o camarada, mas Martim, esse, nada via; era, como sempre, amável e complacente.
    O velho pescador ia cada vez pior; ficou de cama e afinal morreu, deixando sua casinha a Jorge. Não era muita coisa, mas Martin não possuía nem isso.
    - Agora- disse um dos vizinhos a Jorge - não tornarás a ser marinheiro: ficas conosco, a pescar.
   Todavia não era essa a intenção do moço, que pensava de novo em correr mundo. o pescador de enguias tinha um primo na Velha-Skagen, um negociante rico, armador, e homem excelente. E Jorge pensou em entrar para o serviço de sua casa, Fica bem longe de Huusby, Skagen: era isso precisamente o que  mais lhe agradava.
   Resolveu partir antes do casamento de Martin, que devia realizar-se dentro de poucas semanas. Quando soube desse projeto, disse-lhe o vizinho:
   - Mas por que te vais assim? É uma ideia insensata. Tens agora uma casa: Elisa há de te preferir a Martim.
   Jorge respondeu apenas algumas palavras incoerentes. O vizinho foi ter com a moça; custou um tanto fazê-la falar, mas afinal ela acabou por dizer.
  - Ele tem uma bela casinha; isso merece reflexão.
  Por sua parte, Jorge também refletiu muito. As ondas do mar são tumultuosas; não tanto, porém, como os pensamentos do homem, não tanto como os que atravessavam o espírito de Jorge, sacudindo-o, de todos os lados. Afinal disse à moça:
   - Escuta: se Martim tivesse também uma casa, qual de nós preferirias?
   - Mas é que ele não tem, nem terá jamais uma semelhante à tua.
  - Supõe contudo, por um instante, que ele venha a achar uma.
    - Nesse caso eu casaria com Martim; meu coração pertence a ele: mas é certo que não se vive de amor...
   Separaram-se; Jorge não dormiu um só instante.Tinha a alma violentamente agitada, mas uma ideia brotou-lhe repentinamente no cérebro, e foi crescendo pouco a pouco, e chegou a dominar seu amor por Elisa. De manhã voltara a calma ao seu coração; foi procurar Martim, e cedeu-lhe a casa por pouco mais de nada, dizendo-lhe que só o dominava um desejo: voltar a navegar no mar.
  Não era uma cabeçada, não: era uma resolução bem meditada. Quando soube do caso, Elisa abraçou-o, muito contente: Jorge lhe permitia casar com Martim, que ela preferia a qualquer outro.
  Jorge queria partir na manhã seguinte. À noite teve a lembrança de ir ver Martim, para levar consigo a recordação da antiga amizade. Ao atravessar as dunas encontrou aquele prestativo vizinho, que de novo lhe falou de Martim; e observou-lhe ainda como era extraordinário que aquele rapaz fosse tão bem-visto das moça. Jorge interrompeu-o bruscamente, dirigindo-se para a casa do camarada. Chegando à porta, ouviu conversas e risadas, e percebeu a voz de Elisa, que não desejava tornar a ver. Deu volta sem entrar, dando-se por feliz de não ter de ouvir os agradecimentos de Martim, e, principalmente, de escapar a tempo, para não ver a felicidade do outro.
                              
                                             v
Ao raiar do sol afivelou o saco de viagem e partiu; seguiu ao longo da praia, em direção a Fjaltring, onde faria uma visita ao pescador de enguias.
   Era belo o mar, de um azul muito puro. A areia estava coalhada de conchinhas de toda a espécie. Elas lhe lembravam os dias da infância, pois eram o seu brinquedo favorito. Erguia algumas, deitava-as fora e apanhava outras; afinal, de tanto se curvar assim, pôs-se a deitar sangue do nariz: a agitação em que vivia desde a véspera lhe fizera subir o sangue à cabeça. Sentiu depois disso o cérebro mais livre; mas algumas gotas tinham respingado na manga da camisa.
     Prosseguiu seu caminho, mais alegre agora, e mais livre. Colhia flores onde as encontrava e punha-as no chapéu. Via o vasto universo aberto diante de si, e, como as jovens enguias do velho pescador, lá ia em busca de alegria. Não esquecia, contudo, as palavras sábias da mãe enguia:
    - Minhas filhas, cuidado com os homens, tão maus e tão cruéis!
    - Mas - dizia consigo - que tenho a temer? Sou corajoso, e nunca fiz mal a ninguém.
    Já ia alto o sol quando chegou à Baía de Nissoum. Lançou um último olhar para Hunsby, e avistou dois cavaleiros que se dirigiam para aquele lado, seguidos de outros homens a pé.
    Aquilo não lhe interessava; continuou seu caminho. Na embocadura do rio chamou o canoeiro. Quando iam em meio da travessia chegaram os dois cavaleiros à beira do rio e dali deram ordem ao canoeiro, em nome do rei, que voltasse. Jorge não compreendia seu tom ameaçador mas achou que devia obedecer,e tomou um remo para ajudar o canoeiro.
      No momento em que a canoa tocava e terra, os dois homens lançando-se sobre Jorge, ligaram-lhe as mãos com uma corda, dizendo-lhe:
    - Teu crime te custará a vida; ainda tivemos a sorte de te alcançar!
     O pobre rapaz não pode proferir uma palavra, de tão assombrado. Soube afinal, que o acusavam de ter assassinado Martim, que fora encontrado morto, com uma facada na garganta.
   Lembram-lhe então na véspera à noite, o vizinho o encontrara a caminho da casa de Martim; e que, noutro tempo, já tinha levantado a faca contra ele; E, quando lhe descobriram na manga as manchas de sangue, ninguém mais pôs em dúvida que tivesse sido ele o assassino. E tudo quanto pode alegar em prova de sua inocência foi inútil.
    Como deviam ir por mar a Ringkjoobing, onde morava o juiz, e o vento era contrário, um dos cavaleiros propôs que levassem Jorge ao Castelo de Vosborg. Havia lá uma prisão onde a boêmia, a grande Margarida, fora encerrada durante os últimos dias que precederam a sua execução.
      Sentindo-se forte na sua inocência, Jorge resignara-se à sorte. Passaram diante das ruínas que vira quando ia com o pai e a mãe àquele enterro memorável, que lhe proporcionara os dias mais felizes de toda a sua infância. Tornou a ver no parque de Vosborg as tílias que perfumavam o ar e os sabugueiros em flor.
      Desta vez penetrou no castelo, mas não como tanto desejara outrora, para lhe admirar as maravilhas. Atrás de uma das alas da velha construção, fizeram-no descer para a sombria cava que servira de reclusão à famosa boêmia. Ela havia matado cinco crianças, para lhes comer o coração, e estava persuadida de que se tivesse podido devorar mais dois, teria adquirido o poder de se tornar invisível, e de voar nos ares.
     Havia lá apenas uma enxêrga (colchão grosseiro, rústico,.colchão grosseiro, rústico,..)miserável e dura. Contudo, amparado pela consciência, Jorge poderia dormir nela tranquilamente, se não viesse perturbar-lhe os pensamentos a lembrança da feiticeira. Vinham-lhe à memória s histórias de bruxedos, de arte diabólicas, que ouvira contar, e o menor ruído fazia-o estremecer. Acalmava-o a lembrança das tílias e sabugueiros floridos, da sua infância tranquila, de seus corajosos e honestos país, cujo exemplo sempre seguira.
 No dia seguinte, conduziram-no à cidade e o encerraram em uma prisão que não era melhor do que a de Vosborg. Naqueles tempos era a justiça muito severa com a gente humilde. Por um delito insignificante, o infeliz era muitas vezes moído a pancadas ou arruinado pelas multas. Por sorte, o juiz que instruiu todo o processo de Jorge não o levou muito depressa a julgamento, apesar das aparências, tão acabrunhantes. E, enquanto esperava ficava o detido naquele retiro, tão frio e tão sombrio. Tinha assim tempo de sobra para refletir, e perguntava de si para si por que lhe fora reservada semelhante sorte, uma vez que nenhuma falta cometera. Chegou, afinal, à conclusão de que o enigma lhe seria decifrado na outra vida, e esse pensamento acalmou-o. A fé na imortalidade, que haurira na pobre cabana de pescadores jutlandeses - e que seu pai, o grande senhor espanhol repelia - foi para ele, no meio das trevas, no seio das tristezas, do desânimo e do desespero, um facho, uma consolação, uma força, uma graça de Deus, desse Deus que não engana jamais.
   Tinha, ainda assim, horas de angústia pungente. Escutava, então, o silêncio lúgubre que o cercava, interrompido somente pelos rugidos do mar nas tempestades da primavera. Era um rolamento acima de uma abóboda. Aquele rumor parecia a Jorge uma doce melodia, pois lhe recordava o tempo em que vogava, livre, no oceano,
    - Ser livre, mesmo descalço, mesmo coberto de farrapos!
    E batia-lhe o coração a esse pensamento; e ele da punhadas na porta do calabouço.
   Enfim, depois que enlanguescera meses e meses, quase um ano, na prisão, seu infortúnio teve um termo. Um vagabundo, um aventureiro, conhecido por Nil, o ladrão, foi preso em virtude de um leve delito, e, no decorrer do processo, descobriu-se que fora ele o matador de Martim.
   Na noite do crime, Martim tinha ido dar uma volta pelo botequim, para dar parte da sua felicidade aos camaradas. Ofereceu-lhes muitos copos de aguardente, e ele próprio bebeu mais que de costume. Assim animado, pôs-se a tagarelar e a se gabar. Anunciou que tinha agora uma casa.
    - Mas como a conseguiste? - indagou Nils, que estava no grupo.
   -  Ora essa!Com o meu dinheiro!
    E, dizendo isto, Martim batia no bolso, todo entonado como um ricaço. E foi esse gesto vaidoso que o perdeu. Quando voltava a casa, Nils seguiu-o, atirou-se a ele, cortou-lhe a garganta com a faca. Mas a vítima apenas tinha no bolso algumas moedas de cobre.
    Todos esses fatos ficaram provados diante da justiça, e Jorge foi posto em liberdade. O juiz apresentou-lhe algumas desculpas. Jorge lamentou os longos meses de cativeiro e de sofrimento que padecera. O juiz então olhou-o de cima e disse-lhe que ainda devia dar-se por muito feliz de ter saído quite, porque teriam podido julga-lo mais cedo, diante das presunções singulares que o acusavam, e condená-lo à morte.
   Recebeu, porém, demonstrações de simpatia. O burgomestre deu-lhe dois escudos para começar a viagem, e um burguês bondoso levou-o para jantar em sua casa. Naquele mesmo dia chegou à cidade o negociante de Skagen a cuja casa se dirigia Jorge quando foi detido.Chamava-se Bronne. Soube de que sucedera, e compadeceu-se da infelicidade do moço. Resolveu fazê-lo esquecer aquelas provas cruéis e mostrar-lhes que há gente boa no mundo. E disse-lhe:
   - Esquece tudo isso; enterra essa lembrança. Vamos passar um traço sobre este ano mau - ou antes - vamos atirar ao fogo o seu almanaque. Irás comigo para a linda Cidade de Skangen.

                         VI
     E puseram-se a caminho. O Sol e o ar livre fizeram bem depressa esquecer a Jorge o calabouço úmido e sombrio. Naquela região a charneca estava coberta de giestas em flor. Sentado no vértice de um túmulo de Gigante, um pastorzinho tocava árias rústicas em uma flauta que ele mesmo fizera de um osso de carneiro. De tempos em tempo, os mais belos efeitos de miragem faziam aparecer florestas e jardins suspensos.
    Atravessaram a região onde habitaram os lombardos, na época em que, sendo muito grande a população para viver num espaço tão estreito, o Rei Snio resolveu mandar matar os velhos e os jovens, até dezoito anos;m as a boa Rainha Gambarouck aconselhou-o a deixar emigrar toda a juventude. Partiram pois, os jovens, e seus descendentes atravessaram os Alpes e fundaram o reino poderoso de Lombardia.
     Ao ouvir essa história, não teve Jorge, dificuldade em imaginar o que seria aquele país do Sul, onde se tinham implantado os dinamarqueses. Não vira a Espanha, aquela cidade igual a uma colmeia, onde a população zumbia; aqueles soberbos monumentos, aquelas laranjeiras, aquelas romanzeiras, aquelas árvores desconhecidas, todas as riquezas e as magnificências do Meio-Dia Mas esses esplendores não lhe deixaram saudades; achava-se melhor na Dinamarca: não era a sua verdadeira pátria?
    Enfim chegaram os viajantes a Vendilskagá, como é chamada Skagen nas sagas islandesas. Começa no farol que fica na ponta da Jutlândia, tão temida do marinheiros. Nessa extremidade as casas são dispersos nas dunas, que se somem e tornam a se formar, ao favor do vento. A um quarto de légua assenta a Velha-Skagen, onde ficava a morada do rico mercador.
   Era toda de madeira a grande casa, e pintada de alcatrão. O teto das dependências fora feito de velhas barcas viradas. Não havia muro. Nem jardim nem bosques, coisa que as areias não permitiam. A casa estava toda cercada de cordas estendidas, onde secavam ao vento milhares de peixes.
    A pesca ali tinha muito maiores proporções que em Huusby. Mal se lançavam as redes, recolhiam-se arenques às toneladas.
   A esposa do mercador, a filha, toda a gente da casa correu ao encontro dos viajantes. E eram abraços, apertos de mão, perguntas, um nunca acabar, enfim, de narrações. Que lindo era o rosto da moça e que suave o seu olhar!
    Ia Jorge de surpresa em surpresa. Não tinha visto nunca uma casa assim. Todos os dias havia banquetes como aquele do enterro, que nunca lhe saíra da memória - e até mais e suntuosos. Ali serviam peixe, com na mesa de reis e os vizinhos traziam a marca dos vinhedos mais célebres da França.
   Recebeu o moço o mais cordial acolhimento. Quando souberam quanto padecera injustamente, a senhora apertou-lhe a mão com ternura, e nos olhos de Clara, a filha do casal, brilharam lágrimas. E foi assim que ele sentiu ir-se diluindo depressa o resto da amargura que ainda lhe ficara no coração. Clara devia partir dentro de três semanas em um navio de seu pai, para a Noruega: ia passar alguns meses com uma tia, em Christiansand.
   No domingo que precedeu a partida foram todos a igreja para receber a comunhão. Era um belo templo, o maior de toda aquela província, e fora construído por um arquiteto holandês, na Idade Média. Ficava longe da cidade, e o caminho, coberto de areia profunda, era muito penoso de percorrer. Mas naqueles tempos de piedade ninguém olhava esses sacrifícios.
    No altar estava uma imagem a Virgem, como uma coroa de outo; tinha nos braços o Menino Jesus. Ao redor do coro viamse as estátuas dos antigos burgomestres da cidade. O Sol mandava seus raios até o santuário, e  fazia resplandecer os candelabros de prata. Jorge sentiu-se tomado de profunda emoção - como naquele dia em que entrara na nova catedral da grande cidade espanhola. Clara ajoelhara-se a seu lado, mas ele estava tão absorto no pensamento de seu que não viu a moça senão quando se levantaram. Observou então que lha caíam dos olhos lágrima de puro fervor.
   Dali a dois dias partia Clara para a Noruega. E ele lá ficou; tornou-se útil à casa, fazia os trabalhos da pesca. Quanto peixe havia naquelas paragens! Encontravam-se bancos de cavalas, que reluziam à noite, como fósforo. Também abundava la o coró ou roncador, que ronca quando é apanhado. De fato, nem sempre é justo o provérbio" Mudo como um peixe". Contudo, podia ser aplicado a Jorge e ao silencio que guardava sobre o que se passava no seu coração.
   Todos os domingos, na igreja, ia-se-lhe o olhar para o sítio onde Clara se ajoelhara a seu lado, e ali ficava preso. Também não esquecia quanto a jovem se mostrara sempre bondosa e amável om ele.
   Veio o inverno com suas chuvaradas, suas nevadas, suas tempestades, que amontoam areia ao redor das casa a tal altura, que os habitantes muitas vezes se veem obrigados a sair pela chaminé. Mas  em casa do rico negociante não se faziam sentir os rigores da má estação. Tudo lá era bem aquecido; a turfa e a madeira dos navios naufragados crepitavam na lareira. À noite o mercador  lia, em voz alta, velhas crônicas. Falava-se ali do Príncipe Hamlet, que viera da Inglaterra com uma frota e um exército até as costas da Jutlândia, e da grande batalha que ali se ferira. Seu túmulo era perto de Ramme, dizia o livro, no meio dos túmulos de Gigantes que lá existem às centenas. O mercador sabia-o, vira o lugar. Jorge cantava de boa vontade, e de preferência a balado do filho do rei da Inglaterra, que embarcou em um navio dourado a toda a roda, e em cuja proa se via sua própria imagem esculpida, com a noiva nos braços. Chegando a essa passagem, a voz do cantor ficava mais penetrante, e seus grandes olhos negros despediam clarões.
  E enquanto o furacão assobiava, viviam todos ali sossegadamente. A casa regurgitava de provisões: do teto pendiam presuntos e salsichas; havia montões de salmão defumado. E quando chegavam visitas, então a alegria subia ao cúmulo. Ainda hoje reina a hospitalidade nas costas da Jutlândia, como na tenda do árabe.
    Jamais na vida Jorge vira correr dias tão alegres; não se esquecia, porém de Clara. Também, que alegria quando, em abril, foi encarregado de ir buscá-la, em um navio do mercador! Tinha-se tornado um homem; era grande e robusto, e a mulher do negociante dizia:
   - Dá gosto ver um rapaz assim tão belo!
    - Sim - retrucava o marido - Jorge trouxe vida e alegria aos nossos serões de inverno.
   Desse modo ambos se regozijavam com a presença do moço.
   Afinal embarcou ele para ir buscar Clara na Noruega. Ventos favoráveis levaram-no em breve a Christiansand.
                            VII
Uma manhã o mercador subiu ao farol que se ergue na ponta extrema da Jutlândia. A uma milha, mar adentro, ficam os escolhos e os bancos de areia, tão temidos dos navegantes. Naquele dia muitos navios passavam diante dos recifes, Entre eles o mercador julgou reconhecer o seu, que ele esperava. Examinou-o com o óculo de alcance e viu que era a sua embarcação.
    Na ponte estavam Jorge e Clara. Farol e igreja apareciam-lhes como se saíssem do mar - uma cegonha e um cisne. Poderiam estar em terra dentro de uma hora, sentiam ambos no coração uma alegria antecipada.
   Nisso o navio bateu violentamente num escolho. Entrou água aos borbotões no porão. A equipagem correu para as bombas; tentaram tapar a brecha: tudo em vão. Içaram as velas. Fizeram sinais de perigo. O vento soprava para terra, a corrente levava-os em sua direção, mas sem a velocidade necessária. Não havia na costa senão barcas de pesca, lentas na partida, lentas na carreira.
   O navio soçobrou. Jorge tomou Clara com o braço direito, e, segurando-a conta o peito, lançou-se ao mar. No olhar que lhe dirigiu, nesse momento, ela lhe mostrou que o amava. E leu também, nos olhos de  Jorge, que não a abandonaria; havia de salvá-la, a menos que ele próprio soçobrasse.
  Como o príncipe da balada, tinha a noiva nos braços. Apesar daquele peso, nadava como um peixe. Poupava as forças, para não a esgotar antes de alcançar a terra. As ondas às vezes os cobriam, às vezes os lançavam ao ar. Ele, habitualmente tão intrépido, e que nada temia abaixo do céu, não tinha agora todo o sangue frio preciso; estava perturbado, via fantasmas; pareceu-lhe que avistava um leviatã, que ia devorá-los. Dez vez em quando se sentia jogado para o meio dos patos bravos, que dormiam sobre a água, e que levantavam voo, espantados; e os gritos dos patos, e o ruflar de suas asas, lhe cerravam o coração.
   De repente ouviu Clara soltar um suspiro, e viu-a a agitar-se em um estremecimento convulsivo; apertou-a com mais força, mas seu braço já amortecia, as forças iam diminuindo de minuto em minuto. E, contudo, estavam bem perto da terra; aproximava-se uma barca.
   Nisso avistou na água uma figura branca que o olhava fixamente, com ar ameaçador. Erguido pela vaga tornou a ver a figura de olhos imóveis. Fez-se a noite em seu espírito Tudo desapareceu a seus olhos. Mas seu braço não abandonou a moça.
    A figura branca não era um fantasma criado pela imaginação do moço: era uma escultura que decorava o beque de um navio naufragado, contra o qual a vaga o lançara violentamente.
   Àquele choque, perdeu os sentidos. A onda trouxe-o à superfície e os pescadores, que vinham socorrê-lo, levaram-no no barco. Corria-lhe sangue do rosto, e julgaram-no morto. Mas segurava a moça com tanta força, que não foi fácil arrancá-la do seu braço.
   Chegados à terra, todos os meios foram empregados para reanimar Clara; ela sucumbira  e jorge ouvira seu último suspiro: tinha ele feito todos aqueles desesperados esforço para salvar uma morta.
   Jorge ainda respirava; mas seu cérebro estava profundamente abalado. Tomou-o um delírio furiosos; soltava gritos roucos  e selvagens. No terceiro dia, caiu no leito, abatido e acabrunhado, como se a sua vida só dependesse de um fio.
   - Mais valia - disse o médico - que esse fio se rompesse de todo. Não tornará a ser o Jorge que nós conhecíamos.
   Não foi cortado o fio de seus dias, mas sim o da memória e da inteligência. E não pode haver visão mais triste do que a daquele moço tão belo, tão vigoroso, deslizando como um espectro mudo, afastado dos outros homens.
    O rico mercador conservou-o em casa, prodigalizando-lhe os mais ternos cuidados. E dizia à esposa:
     - Bem podia ele ter saído são e salvo da catástrofe, se não tivesse querido salvar nossa filha: agora é ele o nosso filho.
   O mundo considerava-o idiota, mas Jorge não o era. Parecia antes um instrumento cujas cordas afrouxaram, e não ressoam mais. As vezes, as cordas retesavam-se um instante, e faziam soar alguns compasso de uma melodia antiga. Jorge revia então algum incidente de sua vida passada. Mas no momento em que suas recordações se desprendiam do nevoeiro que as envolvia, o véu tornava cair, mais espesso que nunca. E ele voltava ao aniquilamento, olhar fixo, sem ideias, sem nenhuma chama nos grandes olhos, outrora tão brilhantes.
     E era aquele que, no seio materno, parecia destinado a uma sorte tão feliz, a tamanha ventura neste mundo, que seu pai reputava temerário desejar outra existência além do túmulo! Aquelas belas faculdades que trouxera ao nascer estavam para sempre extintas. Em recompensa de uma vida corajosa e devotada, era ferido de uma desgraça sem nome. Tudo aqui na terra está então entregue ao cego acaso?
    - Não!
   É a mãe de Clara quem repete a palavra do salmista: "O Senhor é bom para todos, e a misericórdia está em todas as suas obras." Não! Jorge achará lá em cima a compensação de tudo o que tem padecido!
   E ela orava, rogando a Deus que o chamasse bem cedo para o seu lado.
    Clara repousa no cemitério de Skagen. De vez em quando levam Jorge àquele lugar; e quando lhe dizem que é ali a última morada da moça, não o compreende ele. As raras recordações que lhe atravessam o espírito remontam a uma época mais recuada.
   Acompanha todos os domingos os velhos à igreja. Fica sentado, com o olhar fixo. Um dia, seus olhos voltaram-se para o lugar onde se ajoelhara ao lado de Clara. Soltou um suspiro; dilataram-se-lhe os olhos, brilhantes;empalideceu e disse m voz alta o nome da moça, derramando lágrimas. Tiraram-no da igreja; mas ele disse às pessoas que o cercavam que não era nada, que se sentia bem, que não reparasse nele. Era a noite, que lhe velava de novo a inteligência.
   E durante esse tempo, na Espanha no palácio suntuoso, um velho se consumia de desgosto, no meio de suas riquezas, no meio de todos os esplendores da natureza. Que lhe importava o ar cheio do perfume das laranjeiras? Que prazer encontraria naqueles bosques de loureiros, misturados com as romanzeiras em flor: Que alegria lhe proporcionava todo o ouro que possuía? Teria dado tudo para apertar nos braços o filho de sua adorada filha.
   Que pensaria ele, se pudesse vê-lo? Era bem um filho, que teria tornado a achar, um neto, posto que Jorge tivesse já trinta naos.
   O velho mercador e sua mulher morreram e repousam ao lado da filha.
   Seus herdeiros continuam a cuidar do pobre"maluco".

                       VIII
    Voltara a primavera, e com ela as tempestades. O mar estava furioso, os naufrágios se repetiam sem cessar contra a Ponta de Skagen. A areia elevava-se nos ares, em imensos turbilhões. Por cima das dunas passavam bandos de aves silvestres, soltando gritos.
   Num dia assim tempestuoso estava Jorge sozinho no seu quarto. Aquele tumulto dos elementos pareceu despertá-lo do torpor habitual. Penetrou-lhe uma luz no espírito.
    Tomou-o aquele sentimento de inquietação, aquela necessidade de movimento, que o tinham arrancado de Huusby e de suas dunas. E ele exclamou:
   - Vou para o meu país! Para o meu país!
   Ninguém o ouviu. Saiu , e foi direito às dunas. O vento lançava-lhe ao rosto areia e pedregulhos, mas ele ia andando, sem hesitar, para a igreja. A areia tinha-se amontoado ao longo das paredes, e já subira até o meio dos cruzeiros, mas a porta estava aberta e ainda oferecia passagem livre. Jorge entrou. A tempestade ululava, o mar rugia. Era um furacão como ninguém se lembrava de ter visto outro igual. Reinava a obscuridade em pleno dia. Mas na alma de Jorge fazia-se uma luz. Sentou-se no seu banco. A igreja iluminou-se como a catedral que ele vira na Espanha. Os velhos burgomestres desceram de seus quadros. O órgão soou, em concertos sublimes. Acorreram os mortos, trajando suas roupas de festa; lá estavam os velhos pescadores de Huusby, seus pais adotivos, o rico mercador, sua mulher, sua filha Clara. A moça estendeu-lhe a mão; eles se ajoelharam como outrora, e o padre os abençoou. Então recomeçou a música, com novos acordes, terna e melodiosa, levando a alma a um encantamento que não é deste mundo; era uma música a um tempo sonora e retumbante.
   Um pequenino navio, suspenso como ex-voto no coro da igreja, desceu, colocou-se diante dos desposados, Foi crescendo, crescendo maravilhosamente. As velas eram de seda, o cordame de ouro trançado; a âncora de ouro maciço. Jorge e Clara embarcaram nele com os que ali estavam, todos cheios de alegria. As paredes da igreja transformaram-se em tílias e sabugueiros floridos, que enchiam o ar de perfume, e o navio foi se elevando, vogando no espaço, enquanto os ventos tocavam a música que todos os fiéis entoavam em coro:
   " Nenhuma vida se perderá e o céu será cheio de alegria!
  Jorge cantava essas palavras divinas; nesse instante rompeu-se o laço que retinha cativa sua alma imortal. Na igreja, que a tempestade enchia de areia, jazia um morto.
   No dia seguinte era domingo. O pároco dirigia-se à igreja como os fiéis. Tiveram muito trabalho para abrir caminho, no meio do montões de areia. Quando chegaram diante do templo, viram-no já quase sepultado. Porta e janelas estavam inteiramente obstruídas. Só se via ainda o teto com a torre. Os fiéis rezaram e entoaram cânticos ao ar livre e voltaram à cidade. Ficou assentado que se construíra uma nova igreja mais abrigada contra o vento.
   - Deus - disse o sacerdote - fechou pelas próprias mãos o seu templo.
   E ninguém tentou abri-lo.
   Procuraram Jorge por toda a parte. Julgaram que se tinha perdido no meio da tempestade e que as vagas o arrastaram.
   Seu corpo estava em um grande e belo sepulcro. Deus mesmo lançara terra sobre aquele féretro. E ainda hoje ele lá repousa.
   A areia foi se amontoado sempre em redor da antiga igreja. O teto desapareceu, e só a torre ficou visível; avista-se longe: é o monumento funerário de Jorge. Porventura o terá algum rei mais magnífico e sobretudo mais inviolável?
   Ninguém sabia onde viera ele; ninguém soube como partiu.
   Se eu cheguei a sabê-lo, é que escutei o que diz o furacão, quando sopra através das dunas.
    
  FIM


    A Jutlândia é uma península da Dinamarca e o extremo norte da Alemanha. A porção dinamarquesa tem 29 775 km² e uma população de 2 513 601 habitantes.

Resultado de imagem para pé de louromaciços( montanha) de loureiro