quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A MALA ENCANTADA - CONTOS DE ANDERSEN

     Era uma vez um mercador tão rico que poderia calçar a rua inteira com ouro, e ainda lhe sobraria para uma travessa. Mas ele não fez nada disso não! Ele sabia como havia de empregar o dinheiro com melhores resultados: quando gastava dez centavos, ganhava no negócio um cruzeiro, de tão atilado negociante que era. Mas um dia morreu.
   Ficou todo o dinheiro para o filho, que resolveu viver à larga, indo às festas todas as noites, e desperdiçando a fortuna de mil modos: fazia pandorgas de notas de banco, e brincava n praia, atirando pedaços de notas do banco, e brincando na praia, atirando pedaços de ouro aos patos e gansos, em vez de atirar pedrinhas. Com tal sistema, o dinheiro não podia durar muito, e não durou mesmo. Chegou o dia me que nada mais tinha de seu a não ser quatro cruzeiros; de roupas, só lhe ficou um roupão velho e um par de chinelos. Ora, os amigos não se importavam mais com ele. Visto que, com aqueles trajos, não podiam mais andar em sua companhia; mas um deles, que tinha bom coração, mandou-lhe uma  mala velha, com este bilhete: " Para guardares as tuas coisas"
    Foi muito bonito esse gesto; mas o rapaz não tinha nada para guardar, e resolveu meter-se dentro da mala. Ora, a mala era uma mala extraordinária: quando a gente apertava a fechadura, ela saía voando. E ele apertou a fechadura, e - zzzz! ...lá se foi a mala voando, com ele dentro, acima das chaminés, acima das nuvens, e mais longe, e mais longe! De vez em quando o fundo da mala estalava, e ele estava com muito medo de que ela se despedaçasse, porque então - oh! que tombo levaria! Por fim chegou à terra dos turcos. Escondeu a mala no mato, cobriu-a com folhas secas, e foi para a cidade. Não era nada de admirar que andasse naqueles trajos: todos os turcos andam vestidos assim, de roupão e chinelos.
  Encontrou uma ama com um nenê, e perguntou-lhe:
   - Escuta, ama turca! Que castelo tão é grande é aquele, perto da cidade, com as janelas tão altas?
   - Naquele castelo mora a filha do sultão. Profetizaram que ela há de ser muito infeliz por causa de um namorado; por isso ninguém pode visitá-la, a não ser em companhia do sultão e da sultana.
  O filho do mercador, depois de lhe agradecer a informação, voltou à mata; meteu-se na mala e voou para o teto. Depois foi encarregando, e entrou no quarto da princesa pela janela.
  Estava a moça dormindo no sofá; era tão bela que ele não pode resistir ao desejo de beijá-la. Acordou a princesa, e ficou muito assustada, mas ele lhe disse que era um profeta dos turcos que descera do céu para vê-la - o que muito a lisonjeou.
  O filho do mercador sentou-se ao lado dela, e contou-lhe histórias; falou-lhe dos seus olhos: disse-lhe que eram lagos escuros e profundos - e os mais lindos que já vira, e que os pensamentos dela ali flutuavam, como sereias. E falou-lhe de sua fronte, que era uma montanha de neve, adornada das mais belas pinturas. Contou-lhe também que as cegonhas trazem das profundezas dos rios as criancinhas mais lindas. Contou-lhe, enfim, tantas e tantas histórias! E cada qual mais linda..Sim: eram lindas, aquelas histórias! No fim perguntou-lhe se ela queria casar com ele; e a princesa respondeu imediatamente:

                                  
   - Sim. Mas tens de vir aqui no sábado. O sultão e a sultana virão tomar chá comigo; e ficarão muito orgulhosos, quando souberem que vou casar com um profeta. Mas terás de contar uma história muito bonita, porque meus pais gostam muito de contos. Minha mãe gosta mais das histórias sérias, e cheias de moral: mas meu pai aprecia as que o fazem rir.
    - Pois bem: meu presente de noivado será então uma história!
   Antes de se separarem, deu-lhe a princesa um sabre, cuja bainha era toda cravejada de moedas de ouro, presente de grande utilidade para o filho do mercador.
   Foi-se o noivo, voando; comprou um roupão novo e sentou-se na mata, para preparar uma história. Tinha de contá-la no sábado, e não era lá tarefa muito fácil!
   Quando chegou ao remate dela era já sábado. O sultão, sua mulher e toda a corte estava no palácio, para tomar chá com a princesa. E ele foi recebido com muita gentileza.
   - Quer o senhor ter a bondade de nos contar uma história? - perguntou a sultana. - Uma história edificante e de conceitos profundos.
  - Sim - aprovou o filho do mercador - e com muito prazer.
  E começou.
   " Era uma vez um maço de fósforos, cheios de orgulho de sua alta linhagem. Sua árvore genealógica - quero dizer, o grande pinheiro, de que eram lascas pequeninas - fora de fato um gigante da floresta. Os fósforos ali estavam agora, em uma prateleira da cozinha, entre um isqueiro e um velho caldeirão de ferro. E conversavam, falando da mocidade.
  - Sim- diziam eles- quando nós éramos uma árvore viva - porque já fomos um galho verde! - tomávamos todos os dias, de manhã e à noitinha, chá de diamantes, isto é, de gotas de orvalho. Todo o dia o sol brilhava para nós, e todos os passarinhos da mata nos contavam histórias. Via-se logo que éramos muito ricos, porque as outras árvores só se vestiam no verão, ao passo que a nossa família tinha recursos suficientes para usar também no inverso trajes verdes. Um dia apareceram os cortadores; houve uma revolução, e a nossa família foi toda dispersada. O chefe da tribo obteve um lugar de mastro grande em um esplêndido navio, que podia fazer a volta do mundo, se quisesse; os outros ramos foram para lugares diferentes, e tocou-nos a incumbência de produzir luz para pessoas vulgares. E aí está explicado como foi que, apesar de toda a nossa aristocracia, viemos para na cozinha!
   - Meu destino foi diferente - disse o caldeirão de ferro, que estava perto dos fósforos. - Desde o princípio, desde que vim ao mundo, meu tempo se passa sempre do mesmo modo: ou estou sendo esfregado, ou estou fervendo. É que procuro sempre a parte prática, e sou de fato a pessoa mais importante da casa. Meu maior prazer é, depois do jantar, ver-me sentado na prateleira, bem areado, bem lustroso; dou então dois dedos de conversa com meu vizinhos: mas, a não ser o balde d'água, que de vez em quando desce ao pátio, todos nós aqui vivemos sempre de portas a dentro. O único noveleiro é o cesto do mercado; mas esse fala muito mal do governo, e de todo o mundo. Sim! Um dia destes uma panela velha caiu, de puro susto, e ficou em cacos. Ela era liberal, com toda a certeza! Nisto o isqueiro o interrompeu:
   - Já estás falando demais!
   E o aço tiniu  na pederneira, e voaram faíscas. Mas o isqueiro continuou a falar:
   - Não poderíamos ter uma reunião mais alegre? 
    - Sim, sim! - disseram logo os fósforos. - Vamos ver quem é aqui que pertence à família mais aristocrática!
   - Não; eu não gosto de falar de mim - disse uma panelinha de barro. Vamos antes organizar um serão divertido! Eu começo: contarei uma história da vida real; falarei de coisas que todos nós já experimentamos, e serão por isso mesmo mais fáceis de compreender. Isso sim, é coisa de que todos gostam. Vou começar: No Mar Báltico, perto da costa dinamarquesa...
   - Que lindo começo! - exclamaram os pratos. - Todos nós vamos gostar dessa história!
   - Sim, isso aconteceu na minha mocidade, quando eu morava com uma família muito sossegada; os móveis eram encerados, o soalho esfregado e as cortinas mudadas de quinze em quinze dias.
   - Que boa contadeira de histórias! - disse a vassoura. - Logo se vê  que é uma mulher quem etá contando: destila limpeza!
  - Sim, sente-se isso -  disse o balde.
   E, de pura alegria, deu um salto, que retiniu no soalho. A panelinha continuou a sua história, cujo fim era quase igual ao começo. Todos os pratos batiam palmas de alegria, e a vassoura coroou a panelinha: foi procurar no cisno um ramo de salsa murcha e veio depositá-lo, como se fosse uma coroa, na panelinha - porque sabia que com isso enraivecia os outros. E pensava lá consigo:
   Assim ela também me coroará amanhã!
   - Agora vou dançar! - disse a tenaz.
    Valha-me Deus! Como erguia a perna! A almofada velha chegou a cair da cadeira, quando viu aquilo. E a tenaz pensava, enquanto ia dançando:
   - Serei também coroada?

   E, de fato, concederam-lhe uma coroa.
   Mas os fósforos pensavam:
   - Afinal todos eles são gente da plebe!
   Agora o bule de chá devia cantar; mas declarou que estava resfriado. Pura desculpa! É que ele não queria cantar senão quando se via na mesa da sala de visitas.
   No peitoril da janela havia uma velha pena de pato, com que a criada costumava escrever. Não tinha nada de notável, a não ser o fato de ter sido mergulhada muito fundo no tinteiro; mas a pena até se sentia orgulhosa disso. E ela então falou:
   - Se o bule de chá se faz de rogado, não importa. Ali fora está pendurada uma gaiola com um rouxinol, e ele pode cantar. Não aprendeu nada de especial, é claro; mas nós hoje não vamos ser muito exigentes, não é?
   - Pois eu acho isso muito malfeito - acudiu a  chaleira, que era  a cantadeira da cozinha, e meia irmã do bule de chá. - Cantar aqui, aquele passarinho rico e de mais a mais estrangeiro! Então isso é patriótico? Vamos ouvir a opinião de cesto de mercado.
    - Estou muito aborrecido - disse ele. - Ninguém pode imaginar como estou aborrecido! Pois então isso é maneira de se passar um serão? Não seria muito mais acertado por a casa em ordem?   Vamos ! Que cada um vá para o seu lugar, e eu dirigirei o jogo. E vão ver como vai se diferente!
  - Sim, Sim! - gritaram todos. - Vamos fazer uma fila! 
     Naquele instante abriu-se a porta e entrou a criada; ficaram todos quietos : ninguém piou! Naquele silêncio, não havia uma só panela que não estivesse certa de sua capacidade, e não se reconhecesse com apessoa de mais espírito entre todas as do grupo. E cada um pensava lá consigo:

                             


   - Se fosse por mim, teríamos tido uma reunião muito divertida!
   A criada riscou um fósforo: Misericórdia! Como estalava! Como ardeu a chama! E o fósforo pensava:
    - Ah! Agora todos estão vendo  que somos nós os primeiros! Como eu brilho! Que luz espalho!"...
   E apagou-se!"
    - Que história esplêndida! - disse a sultana.- Eu me senti transportada para a cozinha, para junto dos fósforos! Agora tu casarás com a nossa filha!
   - Certamente! - disse o sultão. - Tu casarás com ela na segunda -feira!
   Já lhe diziam tu, porque ele ia pertencer à família.
   Ficou assim resolvido ali o casamento, e  na véspera a cidade foi toda iluminada: atiravam à rua, para que o povo os apanhasse, biscoutos e bolos; os moleques punha-se nas pontas dos pés, e gritavam: " Viva! Viva!" e assobiavam nos dedos. Foi um esplendor fora do comum.
  - Acho que também devo fazer alguma coisa - pensou o filho do mercador.
   Comprou uma boa porção de foguetes, busca-pés, e toda a espécie de fogos de artifício, meteu tudo na mala e saiu voando pelos ares.
  " Crrraaac!" Como voava tudo aquilo! E como se acabava depressa!
  Os turcos davam saltos, àquela visão, e suas chinelas voavam a grande altura. Nunca tinham visto uma nuvem de meteoros assim! Viam agora, sem sombra de de dúvida, que era mesmo um profeta o que ia casar com a princesa!
    Assim que o filho do mercador se achou de novo no mato com a sua mala, pensou:
   - Vou até a cidade, para ouvir o que lá dizem do espetáculo.
     Era um desejo muito razoável, aquele. Mas que histórias o povo contava! Cada uma das pessoas com quem falou tinha ideia diferente, mas todos eram, em um ponto, de um só parecer: o espetáculo fora esplêndido!
    - Eu vi o próprio profeta - dizia um. - Seus olhos brilhavam como estrelas, e a barba parecia um nevoeiro!
   - Ele estava envolto em um manto de chamas - dizia outro. - Entre as dobras do seu manto espiavam cabecinhas de anjos, o que há de mais lindo no mundo!
     Assim foi que o filho do mercador só ouviu louvores e coisas agradáveis; e no dia seguinte ia casar. Voltou para a mata, com a ideia de descansar dentro da mala; mas - que fora feito dela? Uma faísca dos fogos de artifício a incendiara, e mala ficou reduzida a cinzas. e agora ele não podia mais voar, nem mesmo para ir buscar a noiva!
    E lá ficou a princesa o dia inteiro, sentada no teto, esperando. E ainda lá está, à espera do noivo, que anda a esta hora correndo mundo, a contar histórias de fadas.
  Mas nenhum dessas histórias é tão divertida como aquela dos fósforos.
    FIM

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

10 DE NOVEMBRO, MEU ANIVERSÁRIO! SILVANA RC

BOM DIA, HOJE É 10 DE NOVEMBRO ,UM DIA MUITO ESPECIAL PARA MIM, ESTOU DE ANIVERSÁRIO COMPLETANDO 51 ANOS DE VIDA. AMIGOS ESTOU ME SENTINDO TÃO GRATA, POR PODER VIVER. A VIDA É TÃO INEXPLICÁVEL, MISTERIOSA E MARAVILHOSA. A CADA DIA QUE ACORDAMOS E TOMAMOS CONSCIÊNCIA DE QUE PERTENCEMOS AO MUNDO, É MUITO LEGAL! SOU GRATA PELO MEU TRABALHO QUE FAÇO COM MUITA PAIXÃO, ESCREVER E POSTAR NOS MEUS BLOGS. POR ISSO SENTI A NECESSIDADE DE AGRADECER A TODOS DE TODO MUNDO QUE COM UM CLIQUE ME DEIXA MUITO FELIZ! AS VISUALIZAÇÕES REPRESENTAM MUITO PRA MIM, É MEU PRESENTE DIÁRIO, DOS MEUS AMIGOS VIRTUAIS , PARA QUEM EU MANDO UM BEIJO E UM ABRAÇO BEM APERTADO DE GRATIDÃO!

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O TESOURO DE OURO - CONTOS DE ANDERSEN

    A mulher do tambor entrou na igreja. Viu o novo altar, com as imagens pintada e os anjos esculpidos em madeira. Os anjos representados na tela, de cores variadas e cercados de glória, eram tão belos como os esculpidos na madeira, e coloridos e dourados. O cabelo resplandecia de ouro, cheio de luz; era um encantamento! Mas a luz do sol de Deus era ainda mais bela, quando penetrava , mais, mais clara e mais vermelha, através das árvores sombrias, quando o sol se punha. É uma coisa grandiosa, olhar para o rosto de Deus? A mulher fitou o sol vermelho, e pôs-se a meditar profundamente: pensava na criancinha que a cegonha ia trazer. Alegrou-se a essa ideia, e continuou a contemplar o sol, desejando que a criança tivesse aquele esplendor, e se parecesse ao menos com algum dos anjos brilhantes do altar.
   E quando ela segurou nos braços a criancinha e a ergueu para o pai, dir-se-ia que o menino era um dos anjos da igreja. Os cabelos pareciam de ouro, e luzia neles o esplendor do sol poente.
  - Meu tesouro de ouro, minha riqueza, minha luz do sol! - disse a mãe, beijando os caracóis resplandecentes.
   E ouviu-se no quarto um som de música e de canto, um som que simbolizava alegria, vida e movimento.O tambor rufava, o tambor de incêndio:
  - Cabelos ruivos! O menino tem cabelos ruivos! Acredita na pele do tambor, e não no que diz a mãe! Ca-be-los-rui-vos!...Tu-ru-tu-tu! Tu-ru-tu-tu!
   E a cidade repetiu o que o tambor de incêndio contava.

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      O menino foi batizado na igreja. Deram-lhe um nome simples: chamava-se Pedro. A cidade inteira, também o tambor de incêndio assim o chamaram: Pedro, filho do tambor, o menino dos cabelos ruivos. Mas a mãe beijou-lhe a cabeleira ruiva, chamando-lhe:
  - Meu tesouro de ouro.
   Muita gente gravava o nome na rampa argilosa do desfiladeiro, para deixar nele uma lembrança. E o tambor disso consigo:
   - A celebridade vale alguma coisa!
   E lá gravou também o seu nome, e o do filhinho.
   Vieram as andorinhas, que nas suas viagens tinham visto inscrições mais duradouras nas rochas e nas paredes do templo indiano: grandes feitos de reis poderosos, nomes imortais, tão antigos que hoje já ninguém pode decifrá-los, nem citá-los.
   As andorinhas fizeram ninho no desfiladeiro, abrindo covas na encosta íngreme. As chuvas e a poeira, foram gastando e apagando os nomes, e assim se sumiram também os do tambor e de seu filhinho.
   - Creio que o nome de Pedro ficará ali talvez ano e meio - dissera o pai.
   Mas o tambor de incêndio pensou lá consigo:
   - Tolo!
    Contudo, limitou-se a dizer em voz alta apenas:
   - Ra-ta-plan! ...Pa-ta-ra-tão, pa-ta-ra-tão!
    Era um menino cheio de vida e de animação o filho do tambor, o menino dos cabelos ruivos.          Tinha uma voz agradável, e sabia cantar; e cantava, como um passarinho na mata. Cantava, e no seu canto havia expressão.
   - Pedro deve ser menino do coro - disse a mãe - e cantar na igreja, perto dos lindos anjos dourados, que se parecem com ele.
   Mas as mulheres da vizinhança contaram que os trocistas da cidade o chamavam:
   - Foguinho! Foguinho!
   E os moleques da rua gritaram-lhe um dia:
   - Não voltes para casa, Pedro! Se dormires na água-furtada, pegarás fogo no telhado, e o tambor de incêndio terá de rufar!
   - Tratem vocês de se livrar das baquetas! - disse o menino.
   E, mesmo assim pequeno como era, avançou valentemente, e deu um soco no ventre do que lhe ficava mais próximo.
  O moleque sentiu vergaram-lhe as pernas; mas os outros aproveitaram bem as suas, para correr em disparada.
   O músico da cidade era um homem fino e distinto: era filho do limpador da prataria do rei. Gostava muito de Pedro, e levava-o às vezes à sua casa, e, pondo-lhe um violino nas mãos, ensinava-lhe a maneira de tocar. Parecia que o menino tinha alguma coisa nos dedos! É que ele não queria chegar apenas a simples tambor: aspirava ser um dia músico da cidade.
   - Quero ser soldado! - disse ele certa vez, quando era ainda muito pequeno.
  Parecia-lhe a coisa mais linda do mundo carregar um fuzil e andar de farda e espada:
   - Um, dois! Um, dois!
   Mas o tambor de incêndio retrucou:
   - Aprender antes a bater na pele do tambor: Dem-dem, de-ren-dem-dem! Vem! Vem!
   - Ah! Se ele pudesse chegar a general, isso sim! - disse o pai. - Mas seria preciso que houvesse uma guerra.
   - Deus nos livre! -  exclamou a mãe.
  - Ora...nós não temos nada que perder.
  - Sim: temos o nosso menino!
   - Mas se for para ele voltar general...
   - Sem braços e sem pernas? - protestou ela. - Não, senhor! Prefiro guardar o meu tesouro de ouro são e salvo!
   - Trom! Trom! Trom! - rufou o tambor de incêndio, com todos os outros tambores.
   Rebentara a guerra. Partiram os soldados, e com eles o filho do tambor. E a mãe chorava:
   - Meu filho ruivo! Meu tesouro de ouro!
   Mas o pai, em imaginação, via-o coberto de fama.  E o músico da cidade pensava que era uma lástima a sua ida para a guerra: devia ficar, e continuar a estudar música.
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   - Foguinho! - diziam os soldados.
   E Pedro achava graça.
   Mas lá um ou outro dizia também:
   - Pelo de raposa!
   A isso o rapaz cerrava os dentes, e desviava os olhos: olhava para o vasto mundo, e desprezava o motejo.
   Era um rapaz destro, de gênio alegre e sempre de bom humor - e é isto o melhor cantil, segundo dizem os soldados velhos.
   Passou muitas noites deitado ao ar livre, no pó ou exposto à chuva, molhado até os ossos; contudo não perdia o bom humor, e as baquetas batiam:
   - Tá-rá-tá-tá, tá-rá-tá-tá! Levantar ! Levantar!
    Sim! Não havia dúvida: ele nascera para tambor!
    Chegou o dia da batalha. O sol ainda não aparecera, mas despontara já a madrugada. O ar estava frio, mas a luta ardente! Aquilo não era cerração, não: era a fumaça da pólvora. Balas e granadas voavam, por cima das cabeças - e também para dentro da cabeças, e dos ventres e dos membros. Mas o avanço continuava. Um após outro iam caindo de joelhos, com a fronte ensanguentada e as faces brancas como a cal.  Mas o pequeno tambor tinha ainda a tez corada e saudável. Com alegre fisionomia olhava para o cão do regimento, que ia pulando, tão contente como se estivesse ali para distrair todo o mundo, e as balas que caíam à sua frente lhe servissem de brinquedo.
   - Marcha! Avante! Marcha!
   Eram essas as palavras de comando para ao tambor. Não havia a palavra "recuar!"
   Mas talvez chegasse a haver uma retirada, e quem sabe se não seria uma coisa sensata?
   Pois veio a ordem:
   " Recuar!"
   Mas o pequeno tambor bateu:
   "Avante! Marcha!"
    Assim compreendera ele a ordem. Obedeceram os soldados à pele do tambor. Foi um bom rufo, aquele, que deu a vitória aos que já estavam a ponto de ceder.
  Perderam-se na batalha corpos e membros. Granadas arrancaram pedaços de carne sanguinolenta. Outras foram acender labaredas na medas de palha, para onde tinham arrastado os feridos, que ali ficariam abandonado durante horas - quem sabe se por toda a vida!
                                                        
    De nada serve pensar nessas coisas, mas é impossível deixar de pensar nelas; mesmo longe da luta, na cidade tranquila, há quem nelas pense. É assim era com o tambor e sua mulher, porque Pedro estava na guerra.
  - Também, já estou farto de lamentos! - disse o tambor de incêndio.
   Outro dia de batalha começou. O sol ainda não nascera, mas já chegara a madrugada. O tambor e sua mulher dormiam. Tinham falado no filho, como todas as noites: o filho, que estava lá longe, na mão de Deus. E o pai sonhou que a guerra estava acabada, e os soldados de volta; e entre eles vinha Pedro, com uma cruz de prata no peito. Mas a mãe sonhou que entrava na igreja, e via os anjos esculpidos e os pintados nos quadros, de cabelos cor de ouro; e  seu querido filhinho, o tesouro de ouro do seu coração, lá estava também no meio dos anjos vestidos de branco, cantando tão magnificamente como só os anjos sabem cantar. E, à luz do sol, ele acenou carinhosamente para a mãe.
  - Meu tesouro de ouro! - gritou ela - Agora Deus o levou!
    E, unindo as mãos, deitou a cabeça no travesseiro e rebentou em pranto.
   - Onde jaz ele agora, entre tantos outros, na vala comum que abriram para os mortos? Ou talvez no fundo do banhado? Ninguém sabe onde é o seu túmulo: ninguém rezou uma oração junto dele!
   E, silenciosamente, passou-lhe o padre-nosso pelos lábios. Ela curvou a cabeça, profundamente fatigada: e adormeceu assim.
   Passaram-se dias, tanto na vida como nos sonhos.
   Era noite. Sobre o campo de batalha erguia-se um arco-iris, que tocava a mata e o pântano profundo.
   Diz a lenda - e o povo conserva a crença - que no ponto em que o arco-íris toca a terra, há um tesouro enterrado. E ali jazia mesmo um tesouro. Ninguém, a não ser sua mãe, pensava no pequeno tambor, e foi por isso que ela sonhou com ele.
   Passaram-se dias, tanto na vida como nos sonhos.
   Não lhe haviam tocado nem na ponta de um cabelo, de um daqueles cabelos dourados.
  - Drum, drum, drem! Drum, drum, drem! Ele aí vem! Ele aí vem!
   Assim teriam dito, assim teriam cantado o tambor de incêndio e a mãe, se o tivessem visto, ou se tivessem sonhado com ele!
  Com vivas e cantos, adornados das cores verdes da vitória, regressavam os soldados. Terminara a guerra, assinara-se a paz. O cão do regimento vinha pulando na frente, fazendo círculo enormes, para tornar o caminho três vezes mais comprido.
  Passaram-se dias, e semanas. E Pedro entrou em casa dos pais. Vinha trigueiro, como um selvagem; o rosto resplandecia, como a luz do sol, e os olhos claros olhavam em redor. A mãe estreitou-o nos braços; beijou-lhe a boca, os olhos, o cabelo ruivo. Tinha de novo o seu menino, que não ostentava no peito a cruz de prata com que sonhara o pai, mas conservava intatos os membros - o que a mãe não vira nos sonhos.
   Era grande a alegria; riam e choravam ao mesmo tempo. E Pedro abraçou o velho tambor de incêndio, dizendo-lhe:
   - Pois ainda estás aqui, esqueleto velho?
  Mas o pai fez o tambor rufar:
   - Parece até um incêndio! Dia claro! Alegria nos corações! Ra-ta-plã, plã, plã!

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   E então?
   Então...Ora! Pergunta-o ao músico da cidade!
  - Pedro vai muito acima de tambor! - dissera ele. - Pedro irá muito mais alto do que eu.
   E ele era filho do homem que areava a prataria do rei! Mas tudo quanto ele gastara a metade da vida em aprender, aprendera-o Pedro em meio ano.
   Havia nele uma alegria, uma bondade íntima; luziam-lhe os olhos, tanto como o cabelo - não era possível negar.
   - Ele que mande tingir o cabelo - disse a vizinha. - A filha do chefe de polícia fez isso e teve muita sorte: encontrou logo um noivo.
    - Mas o cabelo ficou logo, logo, verde como lentilha-d'água, e tem de ser retingido de vez em quando.
    - Ora, ela sabe dar um jeito- replicou a vizinha.- E Pedro também poderia arranjá-lo. Ele entra nas  casas mais importantes, até na burgomestre; e dá lições de piano à senhorita Lotte.
    E como ele sabia tocar! Ah! Sim! Tocava do fundo do coração, e as peças mais lindas, que ainda ão existiam escritas em papel pautado! Tocava nas noites claras - e também nas escuras. E a vizinha, e também o tambor de incêndio diziam:
   - Que coisa insuportável!
    Tocava de tal maneira, que as ideias se elevavam, e brotavam grandes planos de futuro:
    A celebridade!
   A Lotte, a filha do burgomestre, estava sentada diante do piano. Seus dedos finos dançavam sobre o teclado, de tal modo que o som ia ecoar no coração de Pedro. Aquilo parecia superior  às suas forças, e contudo, era sempre assim - sempre que ela tocava. Um dia ele segurou os dedos finos e a mão bem feita, e beijou-os, fitando os grandes olhos castanhos da moça. Só Deus sabe o que lhe disse, mas nós temos plena liberdade de adivinhá-lo. Lotte corou, corou, até a raiz dos cabelos mas nada disse. Nesse instante entrou gente estranha na sala; era o filho do conselheiro de Estado, um moço de testa branca, e alta, que se estendia tanto para trás, que ia quase até a nuca. E Pedro ficou muito tempo ao pé de Lotte, que o olhava com olhares suaves.
                                                  
    À noite, em casa, ele falou do vasto mundo, e do tesouro de ouro que estava escondido para ele, no seu violino.
   A celebridade!
   - Ra-ta-plã! Par-la-pa-tão, par-la-pa-tão!-  disse o tambor de incêndio. - Os negócios de Pedro não vão bem! Acho que há fogo na casa...
   No dia seguinte a mãe foi ao mercado; de volta, perguntou ao filho:
   - Já sabes da novidade, Pedro? É uma novidade esplêndida! Pois a Lotte do burgomestre contratou casamento com o filho do conselheiro de Estado. Foi ontem à noite!
   - Não - brandou Pedro, levantando-se de um salto.
   Mas a mãe disse:
   - Sim! Foi ! Soube-o da mulher do barbeiro: e ele mesmo ouviu a notícia da boca do próprio burgomestre.
   E Pedro, pálido como um cadáver, tornou a sentar-se.
   - Que tens, meu filho? Que tens? Meu Deus!
   - Nada, nada...Deixa-me em paz! - disse ele, com as lágrimas a lhe correrem pelas faces.
  - Meu filho querido, meu tesouro de ouro! - dizia a mãe, chorando também.
   Mas o tambor de incêndio cantou, embora só lá no seu íntimo:
   - Lotte morreu, Lotte morreu! Acabou-se a canção!

                                  ---------:-----------------------

            Mas a canção não se acabara, não! Pelo contrário, teve ainda muitos versos - os mais belos, o tesouro de ouro da vida.
   - Ela está que parece doida, dizia a vizinha. - Todo o mundo tem de ler as cartas que recebe do seu tesouro de ouro, e ainda ouvir o que dizem os jornais a respeito dele e do seu violino. Ele lhe manda dinheiro, e a mãe bem precisa disso, desde que enviuvou!
    - Pedro toca diante de imperadores e reis, dizia o músico da cidade. - A mim é que não tocou tal sorte! Mas ele é meu discípulo, e não esquece o velho professor.
   E a mãe dizia:
   - Deus sabe que seu pai sonhou que ele voltaria da guerra com a cruz de prata no peito...Não foi na guerra que a ganhou, mas de outra maneira muito mais difícil de obter! Agora tem a cruz de cavalheiro. Que pena que o pai não esteja aqui para vê-lo!
  - Célebre! - disse o tambor de incêndio.
   E a cidade natal repetiu-o:
   - O filho do tambor, Pedro, o ruivo, que todos vimos- menino de tamancos, depois tambor, e depois, músico tocando nos bailes - Pedro é célebre!
   - Ele tocou na nossa casa, antes de tocar para reis - disse a mulher do burgomestre. - Naquele tempo  andava louco pela Lotte...Sempre teve ambições elevadas. Era presunçoso, naquele tempo, e imaginava tanta coisa...Meu marido riu-se, ao ouvir aquelas tolices, Hoje, Lotte é conselheira de estado!
   Sim: um tesouro de ouro fora depositado no coração, na alma da criança pobre que, quando era tamborzinho, rufou: " Avante! Marcha!" - dando o toque de vitória àqueles que estavam a pique de ceder. Havia um tesouro de ouro em seu peito; o vigor dos sons. Seu violino bramava, como se houvesse nele todo um órgão, como se sobre as suas cordas dançassem todos os duendes das noites de verão. Ouvia-se nele o canto do tordo, e a voz humana, clara e cheia. E passou pelos corações um encantamento; e o eco levou para longe, para os países estrangeiros, o nome de Pedro. Foi uma grande fogueira - a fogueira do entusiamo.
   - Além de tudo, ele está tão bem parecido! - diziam as moças, de todas as idades.
   A mais velha até comprou um álbum para anéis de cabelo de celebridades, só para pedir um da rica, da esplêndida cabeleira daquele tesouro, daquele tesouro de ouro.
   O filho entrou na casa humilde do tambor - distinto como um príncipe, mais feliz que um rei. Tinha os olhos claros, o rosto radiante como o sol. Estreitou a mãe nos braços. Ela beijou-lhe a boca ardente, chorando de alegria, como a gente só pode chorar quando é feliz...E ele acenou para todos os velhos móveis da sala - para o armário que guardava as chícaras de chá, para o vaso de flores; para o catre em que dormira quando era menino. Mas foi buscar o velho  tambor de incêndio, colocou-o no meio da sala, e disse, ao tambor e á mãe:
   - Num momento destes, meu pai teria rufado o tambor. Vou eu fazê-lo agora.
   E rufou o tambor. Foi um verdadeiro trovão dentro do tambor, que , de tão honrado que se sentiu, rasgou a própria pele. e dizia:
   - Que magnífico pulso tem ele! agora fico com uma lembrança dele para ao resto da vida! E espero que sua mãe também estoure de alegria, da alegria que lhe dá o seu tesouro de ouro!
   E é esta a história de ouro.

FIM


DIÁLOGO COM O LEITOR:
Queridos leitores, esse conto tem bastante letrinhas, e como vocês já sabem eu digito do meu livro velhinho para o blog, então vou dar um tempinho para descansar os dedinhos>

domingo, 6 de novembro de 2016

AS FLORES DA IDINHA - CONTOS DE ANDERSEN

  Pobrezinhas da minhas flores! - exclamou Idinha. - Morreram...Tão lindas que estavam ontem! E agora, com todas as pétalas caídas! Por que ficaram assim?
   Indagava isto do estudante, que estava sentado no sofá. Estimava-o muiTo, porque ele sabia contar as histórias mais bonitas do mundo, e também recortar bonecas de papel, tão graciosas: corações, com dançarinas dentro; flores, castelos com portas que a gente podia abrir e fechar. Era um estudante muito alegre, aquele. E ela tornou a perguntar, mostrando-lhe o ramo, já murcho:
   - Por que estão hoje as minhas flores assim desmaiadas?
  - Não sabes, o que aconteceu? As flores foram ao baile esta noite, por isso estão abatidas.
    - Mas as flores não podem dançar! - gritou a menina.
   - Não pouco! Quando escurece, e nós estamos dormindo, elas se põem a pular alegremente; quase todas as noites as flores vão ao baile.
   - E as crianças também podem ir ao baile delas?
  - Podem, sim; as margaridinhas pequeninas, e os lírios do vale, todas dançam.
  - Mas onde é que elas dançam?
     - Ora, quando sais das portas da cidade não vês aquele enorme castelo onde o rei passa o verão, e em cujo jardim há toda a casta de flores? Não tens visto os cisnes, que se aproximam nadando, quando a gente lhes atira migalhas de pão? Pois ali, organizam-se bailes esplêndidos!
   - Ontem ainda estive com a mamãe - disse Idinha - mas não há uma única folha nas árvores, nem uma só flor no jardim. Que fim levaram? Havia tantas, no verão...
   - Estão dentro do castelo. Assim que o rei e a rainha voltam para a cidade, as flores abandonam imediatamente o jardim e vão divertir-se no castelo. Queria que a visses! As duas rosas mais viçosas sentam-se no trono: são o rei e a rainha. Os amaranto vermelhos enfileiram-se aos lados, e saúdam com toda a reverência: são os camaristas. Vão chegando todas as outras flores, e começa o baile. As violetas azuis representam os guardas- marinha, e dançam com jacintos e açafrões, aos quais tratam de " senhoritas". As tulipas e os lírios de alto talo são damas respeitáveis, que vigiam para que todos dancem á vontade, e todas as coisa estejam em ordem.
  - Mas ninguém ralha com as flores, por dançarem assim no palácio do rei? - indagou Idinha.
   - A verdade é que ninguém o sabe. É certo que lá uma ou outra vez o mordomo do castelo, que lá fica de guarda, entra durante a noite; mas no que as flores ouvem o tinido das chaves que ele carrega, calam-se e tratam de se esconder por detrás das cortinhas, e só ficam de fora as cabeças. O velho diz lá consigo: " Estou sentindo perfume de flores por aqui!" Contudo não as pode ver em, parte alguma.
  - Mas isto é uma coisa magnífica! - disse Idinha, batendo palmas. - E eu também posso ver as flores?
  - Podes, sim. Quando fores lá outra vez, lembra-te de espiar pelas janelas, que hás de vê-las. Hoje andei por lá e olhei para dentro; vi um grande lírio amarelo, recostado no sofá, espreguiçando-se todo; era uma dama da corte.
  - E as flores do Jardim botânico também vão ao baile? Elas podem ir tão longe?
  - Sim, sim! Elas podem voar, quando querem ir. Não vês essas lindas borboletas - branca, amarelas e vermelhas? Não parecem flores? Pois é o que ela eram mesmo. Agitaram tanto as pétalas no ar, como se fossem asas pequeninas, que se desprenderam do caule e saíram voando. Depois que já sabem voar bem, elas obtêm licença para esvoaçar durante o dia, e não voltam a ficar espetadas nas hastes, e assim as pétalas acabam por se virar em asas verdadeiras. Tu mesma já o tens visto. Mas é possível que as flores do Jardim Botânico não tenham estado nunca no castelo do rei, e nem saibam mesmo que lá se celebram essas festas noturnas. E vou dizer-te agora uma coisa: podes causar uma grande surpresa ao professor de botânica que mora aqui ao lado. Tu o conheces, não é? Pois bem; quando fores ao seu jardim, conta a uma das flores de lá que todas as noites há uma grande festa no castelo; a flor dirá logo o segredo às outras, e todas voarão para lá, de modo que quando o professor voltar ao jardim não encontrará nenhuma! E nunca poderá saber o que aconteceu!
   - Mas como há de a flor contar à outras, se as flores não falam?
  - Sim: falar não falam mesmo; mas entendem-se por sinais. Nunca notaste que, por mais leve que seja a brisa, as flores se voltam umas para as outras, e movem as pétalas? Pois entendem-se tão bem por esse meio como nós com as palavras.
  - E o professor entende os sinais delas?
  - Sim, entende. Uma manhã ele desceu ao jardim e surpreendeu uma urtiga a fazer sinais com as folhas para um cravo vermelho. Dizia-lhe que era tão encantador, que ela, a urtiga, estava apaixonada por ele. Mas o professor não gostou daquilo e bateu-lhe nos dedos - isto é, nas folhas da urtiga. Ora, os dedos dele é que ficaram ardendo, porque a urtiga queima; e desde esse dia nunca mais ele chegou perto dela.
   - Que coisa engraçada! - dizia Idinha, rindo de contentamento.
   - Mas como podes meter semelhantes asneiras na cabeça de uma criança? - perguntou então o Conselheiro, que estava de visita, e também sentado no sofá.
   Já se vê que era um homem prosaico, e não podia suportar o estudante; e sempre resmungava, quando o via recortar suas figuras tão divertidas e grotescas; ora um homem pendurado na forca, com um coração na  mão - porque era um ladrão de corações - ora uma bruxa montada em uma vassoura, e com o marido espetado na ponta do nariz. E, sem poder conter-se, de tão zangado, o sisudo cavalheiro saía sempre com o mesmo argumento:
   - Mas como é possível meter semelhantes tolices na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas, nada mais!
   Sem embargo, Idinha achou muito divertido tudo o que lhe contou o estudante a respeito das flores, e meditou muito no caso.
   As flores baixavam a cabeça porque estavam exaustas, de dançar a noite inteira; sentiam-se, talvez, até doentes. Levou-as, pois, para junto dos outros brinquedos, que guardava em cima de uma linda mesinha, cuja gaveta estava cheia de coisas bonitas. Dormia a boneca Sofia em uma caminha, e Ida disse-lhe:
   - Anda, Sofia, levanta-te imediatamente; terás de dormir esta noite na gaveta. As coitadas das flores estão doentes, e precisam da tua cama; talvez isso lhes faça bem.
    E, sem maiores considerações, tirou-a da caminha; a boneca aborreceu-se tanto que não disse uma palavra: não lhe agradava nada ter de ceder seu leito!
   Ida deitou então as flores na caminha da boneca cobriu-as bem com o cobertor, recomendando-lhes que não se mexessem; que ia trazer-lhes chá, e no dia seguinte já estariam curadas, e poderiam levantar-se. Correu o cortinado, para que o sol não lhes desse nos olhos.
   Durante o dia não pode deixar de pensar no que lhe contara o estudante, e antes de se deitar foi olhar, através das cortinas da janela, para as flores preciosas da mamãe - narcisos e tulipas; e disse-lhes baixinho:
   - Agora já sei onde vão vocês: ao baile!
   As flores fingiram que não e entendiam, mas a Idinha sabia bem de tudo.
  Já deitada, ficou a pensar no baile das lindas flores, no castelo do rei: seria lindo, se pudesse presenciá-lo! E perguntava consigo:
   - Será possível que minhas flores tivessem estado lá?
    Adormeceu, e mais tarde despertou, justamente quando sonhava com as flores e com o estudante, que o homem respeitável havia repreendido. E dizia:
   - Minhas flores ainda estarão dormindo na cama da Sofia? Quem me dera sabê-lo!
    Soergueu o corpo, olhando para aporta, que ficara entreaberta. Lá do outro lado estava as flores e os brinquedos. Escutou um momento, e apareceu-lhe que tocavam piano na outra peça, mas o som que ouvira era muito baixinho, e tão suave, como jamais ouvira.

                                                


                                                     


  - Com certeza minhas flores estão a esta hora dançando - pensou ela. - Quem me dera vê-las!
  Contudo não ousava levantar-se, receando despertar os pais.
   - Ah! Que bom se e elas entrassem aqui!
   Mas as flores não entraram no quarto, e a música continuava; era deliciosa. Oh! Era muito bonito...Não podia resistir àquela tentação! Saltou do leito, foi até a porta, na ponta dos pés e espiou pela fresta. E que quadro engraçado o que viu! Não havia luz, mas via-se tudo muito nitidamente; a luz,  que iluminava o quarto, brilhava quase tanto como luz do dia. Os jacintos e os narcisos formavam duas grandes filas; tinham todos abandonado o peitoril da janela, deixando lá somente os canteiros vazios. As flores, aos pares, executavam danças graciosas formavam figuras, segurando-se mutuamente pelas grandes folhas verdes, enquanto giravam agilmente. Ao piano estava sentado um grande lírio amarelo, que Ida julgava já ter visto naquele verão. Sim, lembrava-se bem de ouvir o estudante dizer:
   - Que lírio parecido com a dona Lina!
  Todos tinham rido deste dito; mas agora Ida via que de fato havia grande semelhança entre a flor e a moça: tocava da mesma maneira, sorrindo e voltando o rosto dourado ora para um lado ora para outro, e acompanhando o compasso com a cabeça. Ninguém olhava para a Idinha, mas a menina bem viu um grande açafrão subir de um salto para a mesa, onde estavam os brinquedos; chegou-se à cama da boneca e puxou o cortinado. As flores doentes ergueram-se imediatamente, fazendo sinais para as outras, indicando que também queriam tomar parte no baile. O velho quebra-nozes, em forma de boneco, cujo queixo estava partido, levantou-se para cumprimentar, com a maior cortesia, as belas flores, que já não pareciam nada doentes; sentiam-se tão animadas que saltaram para o chão, para se divertirem com a outras.
  Ouviu-se então um ruído, como se alguma coisa tivesse caído da mesa. Ida olhou para aquele lado e viu que era o cetro da Folia, que recebera no carnaval, e que saltara para o chão, como se também fosse flor; e estava muito elegante: tinha na ponta uma bonequinha de cera, com um chapéu de aba larga, como do Conselheiro rabugento. e dava saltos entre as flores, batendo ruidosamente com seus três tamanquinhos vermelhos, pois dançava a mazurca, uma dança que as flores não executavam, porque eram muito delicadas: não poderiam produzir aquele barulho do sapateado.
   Mas de repente a bonequinha de cera, que rematava o cetro, começou a crescer, e, erguendo-se acima das flores de papel que o adornavam disse:
   - Mas como é possível meter semelhante tolices na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas, e nada mais!
   E a boneca de cera parecia-se naquele momento com o Conselheiro, com  seu chapéu de aba larga - tão rabugenta e tão amarela como ele. Mas as flores de papel bateram-lhe nas perninhas delgadas e ele tornou a encolher-se , e ficou de novo a bonequinha de cera. Diante de espetáculo tão divertido, não pode Idinha conter o riso. O cedro continuava dançando, e o Conselheiro viu-se obrigado a fazer a mesma coisa, sem poder livrar-se daquilo: ora crescia e  engordava, ora se reduzia à forma da bonequinha de cera amarelente, com um chapéu preto, de abas largas. Afinal as outras flores, principalmente as que tinham descansado na cama da boneca, intercederam em favor dele, e o cedro cedeu. Nesse momento ouviu-se uma forte pancada dentro da gaveta onde estava deitada Sofia, a boneca de Ida. O quebra-nozes correu, deitou-se na beira da mesa, abriu bem o queixo, e assim foi puxando a gaveta devagarinho. Sofia ergueu a cabeça, olhou, muito admirada, para a sala, e disse:
   - Parece que há baile aqui hoje! Como não me disseram nada?
    - Queres dançar comigo? - perguntou o quebre-nozes.
  - Olha só que par, para dançar comigo! - disse a boneca, virando-lhe as costas.
  E o sentou-se na beira da gaveta, esperando que alguma flor fosse convidá-la para dançar. Não a convidavam, e ela pôs-se a tossir:
   - Quef! Quef! Quef!
   Nem assim apareceu flor alguma. Enquanto isso o quebra-nozes dançava sozinho; e não era mau dançarino, por sinal.
    Como as flores não lhe davam atenção. Sofia deixou-se cair no soalho, fazendo grande barulho; então todas elas correram, rodeando-a, e indagavam, solícitas, se não estava machucada. Mostraram-se todas muito atenciosas, especialmente as flores da Idinha, que tinham dormido na sua cama. Não estava machucada, não; e as flores agradeceram-lhe a cama que ela lhes emprestara. Levaram-na para o meio da sala, que o luar iluminava, e dançaram com ela, enquanto as outras flores formavam círculo. Sofia, muito satisfeita, declarou que as flores podiam continuar a dormir na sua cama, pois ela se acomodava muito bem na gaveta. Mas as flores responderam:
  - É muita bondade tua; mas nós não teremos muito tempo para nos aproveitar do oferecimento, que agradecemos cordialmente: amanhá estaremos mortas. Deves pedir à Idinha que nos enterre perto  da sepultura do canário: assim tornaremos a despertar no verão que vem, e mais belas do que agora.
   - Não, vocês não hão de morrer! - exclamou Sofia com calor, beijando as flores.
  Nesse momento abriu-se a porta e entraram na sala, dançando, muitas outras flores. Ida não sabia de onde vinham, e supôs que tinham saído do palácio do rei. Abriam a marcha duas rosas magníficas, coroadas de outo - eram os soberanos. Vinham depois os cravos mais lindos, os mais belos goivos de ouro, cumprimentando a todos os presentes. Traziam uma banda de música. Grandes papoulas e peônias sopravam em cascas de ervilhas, até ficara rubras. Os jacintos silvestres e os alvos lírios do vale repicavam, como se fossem pequeninos sinos. Era na verdade uma orquestra extraordinária! Chegaram muitas outras flores, e todas dançavam: violetas azuis e primaveras vermelhas, margaridas e lírios silvestres. E beijavam-se carinhosamente, as flores. Era lindo de ver! Afinal despediram-se umas das outras, e a Idinha também foi para a cama, sem que ninguém a visse, e sonhou com tudo o que presenciara.
   Assim que se levantou, no dia seguinte, foi ver se as flores ainda estavam na cama da boneca. puxou o cortinado e viu-as ali - mais murchas, mais abatidas do que na véspera. Sofia também estava deitada na gaveta, profundamente adormecida.
  - Não te lembras do que tens para me dizer? - perguntou a menina.
  Mas Sofia parecia muda: não disse uma palavra.
   - Ah! És muito má! E todas elas dançaram contigo!
   Foi buscar então uma linda caixinha de papelão, com passarinhos pintados na tampa, e pôs dentro dela as flores murchas dizendo:
   - É uma esquife muito bonitinho. Quando vierem meus primos da Noruega, eles me ajudarão a enterrá-las no jardim; e na primavera as minhas flores vão ressuscitar, mais lindas e mais frescas do que este ano.
   Eram os primos dois alegres meninos: Gustavo e Adolfo. O pai lhes tinha dado dois arcos novos, que levaram para mostrar à priminha; ela lhes contou a história das pobre flores mortas, e pediu-lhes que a ajudassem a enterrá-las.
   E lá se foram eles, os meninos adiante, de arco ao ombro; e a Idinha os seguia, levando a linda caixinha com a flores mortas. Beijou-as e colocou-as depois, com caixa e tudo, na pequena cova que tinham aberto. E Adolfo e Gustavo dispararam duas setas por cima do túmulo - pois que não tinham espingardas nem canhão.
FIM

Um conto longo requer tempo e dedicação. então peço, que compreendam que postarei aos poucos!

terça-feira, 1 de novembro de 2016

A SOPA DE ESPETO - CONTOS DE ANDERSEN

  Tivemos ontem um excelente jantar - dizia uma ratazana velha a outra, que não havia tomado parte no banquete. - Eu ocupava o assento número vinte e um, a contar da cadeira do nosso velho rei. Não era um mau lugar, não achas? Queres saber qual foi a lista de pratos? Estava muito bem combinada: pão mofado, peles de toucinho, vela de cebo e salsicha; e depois os mesmos pratos repetidos, do princípio ao fim de modo que, a dizer verdade, foram dois banquetes. Reinou na sala, enquanto durou a festa, tanta alegria e bom humor, que parecia uma reunião familiar. Também, não sobrou migalha, a não ser a lasquinha que ficou pegada ao espeto. Falou-se então  nesses instrumentos de pau, e veio logo à baila a " sopa de espeto". Todos tinham ouvido falar nela, mas ninguém a havia provado, e menos ainda preparado. Bebemos à saúde do inventor desconhecido, que, ao que se disse, bem merecia ser nomeado diretor do asilo de mendigos. Não foi lindo, isso? Então, levantou-se o velho rei dos ratos e prometeu que a ratinha que soubesse fazer a tal sopa seria rainha. E concedeu  o prazo de um ano não e um dia para que elas aprendessem a prepará-la.
    - Foi uma boa ideia - disse a outra ratazana. - Mas como se prepara essa sopa?
     - Ah! ...como se prepara a sopa? ...Ora, é exatamente isso o que estão perguntando a esta hora todas as ratas solteiras - moças e velhas. Todas elas, da primeira à última, querem casar com o rei - quem não deseja ser rainha! - mas nenhuma quer ter o trabalho de ir por este vasto mundo a fora, para aprender como se faz a sopa! E é isso que precisam fazer. Nenhuma tem a coragem de deixar a família e o seu cantinho abrigado, e ir sofrer privações pelo mundo, onde não é tão fácil achar raspas de queijo, nem se farisca toucinho todos os dias. Não! Arrisca-se a gente a passar fome, e até ser engolida viva pelo gato!
    E certamente esses motivos impediram que a maior parte delas saíssem a viajar em busca de informações. Só quatro se declararam prontas a partir. Eram jovens e espertas, mas pobre. Iria cada uma para um dos quatro cantos do mundo, entregando-se ao acaso. Levaria cada uma um espetinho de salsicha, que lhe traria sempre presente à memoria o fim daquela viagem. Seria como um bordão de peregrino.
    Partiram em princípios de maio, e só voltaram em maio do ano seguinte. De fato voltaram apenas três: a quarta não deu notícia alguma de si, até o dia aprazado para a apresentação dos relatórios
    - É sempre assim - observou o rei dos ratos. - Nem tudo sai sempre à medida dos nossos desejos.
   Determinou, contudo, que fossem convidados todos os ratos e ratões, no raio de muitas léguas.
  A reunião foi na cozinha, e as três viajantes enfileiraram-se a um lado, à parte das outras pessoas. No lugar que devia competir à quarta, a que não voltara, puseram um espeto envolto em crepe. E ninguém ousou fazer qualquer comentário, senão depois que as viajantes apresentaram seu relatório, e o rei pronunciou o julgamento.
  Ouçamos agora o que disseram elas.

II.  O QUE VIRA E OUVIRA A PRIMEIRA RATINHA

    " - Quando sai a correr mundo - disse a primeira ratinha - pensava, como pensam quase todos na minha idade; que sabia tudo. Mas ah! como me enganava! Leva dias, leva anos, para a gente aprender tudo! Fui para o lado do mar, e embarquei em um vapor que ia partir para o norte. Ouvira dizer sempre que um cozinheiro de bordo deve saber como se há de arranjar. Mas na verdade não é lá coisa muito difícil, afinal, a gente agir no mar, quando tem à mão fartura de presuntos, barricas de carne seca e farinha mofada. Passa-se até um vidão; mas a tal sopa de espeto é que não se aprende a fazer ali. Navegávamos noite e dia, e levamos muitos dias e muitas noites a navegar. O barco arfava convulsivamente, e muitas vezes nos vimos encharcados com a bátegas d'água que nos cobriam. E quando afinal alcançamos um porto, tratei de desembarcar. era muito, muito longe daqui, em uma região do norte.
    " E que coisa estranha, a sensação que nos invade, quando deixamos a nossa toca, embarcamos em um navio, que também não passa de uma toca, e achamo-nos de repente em uma terra estrangeira, a mais de cem léguas de distância! Estendiam-se ali imensas florestas impenetráveis, de bétulas e de pinheiros; exalavam tanto aroma que me senti enjoada! E o perfume das ervas silvestres muito parecido com o cheiro de especiarias! era tão carregado que me fez espirrar: lembrava o gosto de salsichas.
   "Havia também vastos lagos, cuja água de perto, se via que era perfeitamente cristalina, e que de longe dava ideia de charcos de tinta. repousavam na superfície muitos cisnes de alvura deslumbrante, mas tão quietos que pareciam flocos de espuma. Quando, porém, começaram a andar e voar, reconheci logo que eram da família dos patos: vê-se isso, pela maneira de mover-se, gingando. É que ninguém pode negar a parentela! Eu procurei a gente da minha espécie. Travei relações com ratos do mato e do campo, que por sinal são muito ignorantes: sabem muito pouco de cozinha, razão única de minha viagem tão longa. Só a ideia de que alguém achasse possível fazer sopa de espeto causou-lhe tamanho espanto, que a notícia se espalhou em um momento, e corria de boca em boca por toda a mata. Mas que semelhante problema pudesse ter solução algum dia, era, coisa que lhes parecia absolutamente impossível. E mal podia eu imaginar que ali mesmo, antes do amanhecer, seria iniciada no grande segredo.
   "Era no pino do verão. Disseram os ratos que por isso os matos e campos recendiam tanto, e as águas estavam tão cristalinas, e de um azul tão profundo, em contraste com a brancura dos cisnes. Na orla da mata, entre três ou quatro casas, elevava-se um poste, alto como o mastro grande de um navio, coroado de flores e de fitas: era a Árvore de Maio. Ao som de um violino moças e rapazes cantavam e dançavam em roda do mastro. Essa festa prolongou-se pela noite a dentro, e todos estavam tão alegres ao pôr do sol com  à luz do luar. Eu não tomei parte nela; que iria fazer um ratinho no baile  da floresta, não é? Sentei-me no musgo, sempre segura ao meu cajado. O luar dava em cheio, e até parecia mais brilhante, no sítio onde havia uma árvore; o chão ali estava forrado de musgo, tão macio que não hesito em compará-lo à peliça do nosso rei.

                                                    
   " -Nisto vi que se aproximava uma multidão de criaturinhas encantadoras, tão pequeninas, que mal me chegavam aos joelhos; assemelhavam-se aos entes humanos, mas eram mais bem proporcionados. Chamavam-se elfos, e trajavam roupas muito lindas, entrelaçadas de asas de moscas e mosquitos. eram bem bonitinhos, na verdade. Notei que andavam à procura de alguma coisa. Afinal um grupo veio para o meu lado; o que parecia ser o chefe apontou para o meu espeto, dizendo:
    " - E isto justamente o que queremos. É pontudo. É perfeito!
   " E quanto mais examinava meu bastão, mais contente se mostrava.
    "- Podes levá-lo - disse eu - mas é somente emprestado: não para ficar com ele!
   " - Não ficar com ele! - exclamaram todos, levando o espeto.
   " Dançando de alegria foram colocá-lo no musgo macio: queriam ter também a sua Árvore de Maio, e meu bordão parecia talhado de propósito, para eles. E começaram a enfeitá-lo. Ficou lindo, lindo! Aranhas pequeninas fiaram fios de ouro em roda, envolvendo-o em flâmulas e bandeiras de alvura tão deslumbrante, que aquele fulgor, à luz do luar me fazia mal aos olhos. Com a tinta que tiraram da asa de uma borboleta borrifaram meu espeto de tal forma, que ele parecia cheio de flores e todo orvalhado, como se estivesse cravejado de diamantes. Eu mesma mal podia reconhecê-lo, porque não há no mundo inteiro Árvore de Maio semelhante à que os elfos fizeram dele.
   " Assim que terminaram estes preparativos chegou a comitiva toda. Nenhum fio de linha nas suas roupagens - e no entanto, não pode haver nada mais lindo! Convidaram-me para admirá-los- mas de certa distância, porque sou muito corpulenta.
    " Começou então a música, mas que música! Parecia que tocavam em mil campainhas de cristal. Era tanta a harmonia, e tão profunda, que cheguei a pensar que aquilo era o canto do cisne. Sim, parece-me ouvir o canto dos cucos e dos metros, e por fim o bosque inteiro ressoava, unindo-se ao coro. Vozes de crianças, tinindo de campainhas, cantos de pássaros, parecia que tudo se combinava numa melodia suave, e ainda assim, tudo aquilo vinha somente da Árvore de Maio dos elfos. Era um carrilhão completo - e, contudo, não passava do meu espeto de salsichas. Nunca imaginei que fosse possível tirar dele tanta harmonia! Mas é o fora de dúvida que tudo depende das mãos que o tangem. Sentia-me profundamente comovida. E tanto que chorei, chorei como uma ratinha sabe chorar, de pura alegria!
    " E com que rapidez correu aquela noite! É verdade que naquela época do ano as noites são curtas, mesmo. Quando rompeu a madrugada, e a brisa matutina frisou a superfície do lago, que era como um espelho, desvaneceram-se num instante as bandeiras e galhardetes, tecidos com tanta delicadeza. As guirlandas enfunadas de teia de aranha, as pontes suspensas entre a folhagem, as balaustradas, enfim, tudo o que enfeitara o mastro durante a noite, sumiu-se no nada. Seis elfos vieram restituir meu espeto, e indagaram, gentilmente, se me podiam ser úteis para alguma coisa. Pedi-lhes então que me ensinassem como se faz a sopa de espeto. E o chefe dos elfos adiantou-se, sorrindo:
   " - Como fazemos essa sopa? Mas acabas de vê-lo, com teus próprios olhos. Porque...aposto que nem reconheceste teu espeto!
   " - Sim, para os elfos isso não passa de brincadeira - retruquei.----
    " Contei-lhe então tudo; disse o que procurava na minha viagem pelo mundo e falei da importância que tinha o caso aqui no nosso reino. E perguntei-lhe depois:
    " - Que benefício trará para o rei dos ratos, ou para o seu imenso império, o magnífico espetáculo que presenciei? Não posso chegar lá e dizer, sacudindo meu cajado; " Olha este espeto! É isto a sopa!" É um prato  que servirá, quando muito, depois que todos os comensais estão de estômago satisfeito.
   " Então o chefe dos elfos introduziu o dedo mindinho no cálice de uma violeta e disse-me:
    " - Escuta! Vou untar teu bastão de peregrino. E quando estiveres de volta ao teu pais, e entrares no palácio do rei, é só tocar com ele o focinho quente do teu soberano, e a vara se cobrirá de violetas, nem que seja no rigor do inverno. Posso dizer, pois, que te ofereço uma coisa que podes levar para casa; e ainda te darei mais uma lembrancinha, de contrapeso".
   Não tinha ainda a ratinha acabado de pronunciar as últimas palavras, sem dizer em que consistia a  "lembrancinha", e já apontava o cajado em direção do focinho do rei. E o que é verdade, e bem verdade, é que a varinha se cobriu imediatamente de flores lindíssimas, de perfume tão intenso, que o rei ordenou os ratos que se aproximassem do fogo e chamuscassem o rabo.
   É que queria sentir um cheiro bem forte, que contrastasse com o perfume de violetas, que não lhe agradava nada. Depois perguntou:
   - E qual era a lembrancinha do contrapeso?
    - Sim...creio que é o que se chama uma surpresa - disse a ratinha.
   Fez girara a vara e - pronto! Sumiram-se as flores ficando ela com o espeto nu na mãos. Brandia-o como uma batuta. E continuou:
    - As violetas - disse-me o elfo - servem para recreio da vista, o do olfato, e do tato. Mas devemos também ter alguma coisa que agrade ao ouvido e desperte o paladar.
    Então a ratinha pôs-se a marcar o compasso, e imediatamente se ouviu o som de uma música. Não era a música elfina da floresta, não. Era a música que se podia ouvir na cozinha: o murmúrio da fervura e da carne que assa. Aquilo foi tão repentino, como se o vento tivesse soprado em todos os cantos da chaminé, avivando a chama, e fazendo ferver panelas e chaleiras. A pazinha deu uma pancada no caldeirão de cobre. e imediatamente tudo se calou. Ouviu-se então o canto em surdina da chaleira do chá. tão suave e tão doce, que mal se percebeu quando começou e quando acabou. A panelinha fervia, e o caldeirão levantava enormes bolhas, e ninguém atendia ao compasso. Parecia que todas as panelas tinham perdido o juízo. E cada vez a ratinha agitava a vara com mais brio. As panelas ferviam e espumavam, em borbotões, escorrendo por fora. Entrou pela chaminé uma rajada de vento, rugindo de modo tão espantoso, que - Paf! lá caiu a batuta das mãos da ratinha.
   - Que sopa encorpada! - exclamou o  rei. - Já está pronta para ser servida?
   - Mas é só isso - disse a ratinha.
   - Só isso? Ora então é melhor ouvir o que a outra tem a contar.

III. FALA A SEGUNDA RATINHA

   - Nasci na biblioteca de um palácio - começou ela. - Eu e meus parentes não conhecemos o luxo de entrar em uma sala de jantar, e menos ainda em uma despensa. Só vi uma cozinha uma única vez, nesta viagem que fiz, e agora vejo esta. É certo que na biblioteca sofremos muitas privações, e até fome passávamos de vez em quando; mas também adquirimos muitos conhecimentos. A notícia da recompensa real, oferecida a quem fizesse a sopa de espeto, chegou até lá. Minha avó foi logo examinar um manuscrito; ela não sabia ler, é claro, mas ouvira alguém ler nele esta passagem: "Um poeta é capaz de fazer sopa até de um espeto".
    " Perguntou-me se eu sabia fazer versos. Disse-lhe que era completamente ignorante nesse assunto; mas a avó insistiu, dizendo que eu devia procurar os meios de ficar poetisa. Perguntei-lhe como havia de consegui-lo, pois era tão difícil, para mim aprender a ser poetisa como a fazer a sopa. Mas minha avó tinha ouvido ler muitos livros, e explicou-me que três coisas eram imprescindíveis: inteligência, imaginação e sentimento. E terminou assim: " Se conseguires meter essas três coisas no bestunto, serás poetisa, e então essa história de sopa de espeto te virá naturalmente, por si mesma.
   " E assim foi que saí a correr mundo, para ser poetisa. E dirigi-me para o lado do oeste.
   " Sabia que dos três requisitos a inteligência era considerada como o mais importante. Sim, mas onde encontrá-la? "Dirige-te à formiga e aprenderás sabedoria" - disse o grande rei dos judeus. Aprendera isso na biblioteca. E não descansei enquanto não vi um grande formigueiro. Ali chegada, parei à espreita, para me apoderar da sabedoria..
    "Constituem as formigas uma raça muito respeitável. Compreendem as coisas  sem dificuldade nenhuma. Resolvem tudo com precisão matemática - e todas as questões ficam bem esclarecidas." Trabalhar e pôr ovos - dizem elas - é cuidar da vida presente e preparar o futuro". E o que dizem, executam. Dividem-se em categorias, conforme a aptidão de cada uma para trabalhos delicados ou grosseiros. São todas numeradas, de acordo com a importância na comunidade, e a rainha tem um número um. Só o que a rainha pensa é sensato, pois que resume em si toda a sabedoria - e era muito importante para mim aprender com ela. Mas a rainha falava com tamanha profundidade e acerto, que a mim me parecia tolice tudo quanto dizia.
   " Declarava, por exemplo, que o seu formigueiro era a coisa mais elevada do mundo - e , no entanto, ali perto havia uma árvore evidentemente mais alta. E tão mais alta que não era possível negá-lo - por consequência isso jamais se mencionava. Ora, um dia, já ao escurecer, uma formiga extraviou-se e subiu ainda assim aonde nenhuma outra chegara jamais. Quando voltou e contou que descobrira uma coisa mais alta do que o próprio formigueiro, as outras formigas consideraram essas palavra como insultuosas, e ela foi amordaçada e condenada a prisão perpétua. Alguns dias depois outra formiga subiu à mesma árvore e fez a mesma descoberta; mas essa falou do caso com muitas reticências prudentes, com certo receio mesmo. Era, além disso, uma formiga da aristocracia - uma das que se encarregavam de tarefas limpas. Deram-lhe, pois inteiro crédito, e quando ela morreu erigiram-lhe um monumento de casca de ovo, em sinal de admiração, e de apreço ao seu amor pela ciência.
   " Vi muitas vezes as formigas andando daqui para ali com seus ovos ás costas. Uma delas um dia deixou cair o que levava, e, por mais esforços que fizesse, não conseguia erguê-lo de novo. Acudiram então duas outras; mas quando viram que iam quase deixando cair os seus fardos naquela tentativa, desistiram de lhe prestar auxílio, porque a caridade bem entendida começa por casa. A rainha declarou que ambas, neste caso, tinham dado prova não só de coração, como de inteligência.
   " - Essas duas virtudes - explicou ela - colocam as formigas acima de todos os outros seres racionais. Mas a inteligência é e será sempre o mais importante atributo, e eu o possuo em maior grau que qualquer outra criatura.
   "Ao dizer isso, ergueu-se sobre as patas traseiras, para que todos vissem bem que era a rainha que estava falando. Sim, eu vi bem quem era ela e estirei a língua: comi-a. "Dirige-te à formiga e aprenderás a sabedoria". Pois bem: eu já tinha engolido a rainha.
   "Aproximei-me então da árvore que já me referi. Era um carvalho de tronco enorme e copa vastíssima e frondosa. sabia que ali devia albergar-se um desses espíritos viventes a que chamam dríades, que nascem com a árvore e com ela morrem. Ouvira dizer isso na biblioteca, e agora via diante de mim uma árvore dessas, com um desses espíritos. A ninfa estremeceu, apavorada, ao ver-me tão perto, porque, como outras mulheres tem um medo pavoroso de ratos. Contudo o seu receio tinha mais fundamento, pois sabia que eu podia roer a casca da árvore de que dependia sua vida. Falei-lhe em tom cordial e palavras amistosas, e disse-lhe que nada a tinha a recear.
  "Segurou-me então nas mãos delicadas, e, quando a inteirei do motivo de minha viagem pelo vasto mundo, disse-me que talvez naquela mesma noite me fosse dado encontrar uma ou duas das virtudes que procurava com tanto empenho. Contou-me que Fantásio era um de seus bons amigos, belo como o deus do amor, e que muitas vezes vinha repousar na copa da árvore, cujos galhos ciciava, então mais suavemente sobre as suas cabeças. Chamavam-lhe a sua dríade, e  à árvore também chamava sua, porque queria bem aquele esplêndido carvalho. Gostava de suas riquezas, que desciam tão profundamente, tão firmemente, terra dentro: e do tronco que se erguia tão alto que podia sentir a neve que cai, e o vento que sopra, e o sol ardente, como devem se sentidos - em toda a sua plenitude.
    " - Sim - continuou a dríade - os passarinhos que pousam na copa contam coisas de terras distantes. E a cegonha que fez ninho no único galho seco, dando assim à árvore um caráter pitoresco, fala-me da terra das pirâmides. Fantásio gosta de ouvir tudo isso, mas ainda não lhe basta, e eu tenho de lhe contar a minha vida na floresta, desde o tempo em que eu era pequenina, e a árvore tão delgadinha que uma urtiga bastava para lhe dar sombra - até os dias de agora, em que o carvalho alcançou esta robustez e força. Senta-te debaixo daquela moita de tomilho, e presta atenção. Quando arrancar uma pena, uma peninha pequenina. Apanha-a. Um poeta não pode receber maior dom. E é isso justamente que precisas.
   " Quando veio o Fantásio a pena lhe foi arrancada, e eu apanhei. mergulhei-a na água, para amolecê-la. Pois assim mesmo não me custou pouco engoli-la! Mas afinal conseguiu mordiscá-la e roê-la. Não! não á nada fácil a gente ficar poetisa, tendo de se empanturrar com tanta coisa!
   " Tinha eu pois agora inteligência e imaginação cá dentro; por elas soube que a terceira virtude se encontrava na biblioteca. Porque um grande homem disse e escreveu que há romances no mundo que tem o único propósito de aliviar as pessoas de suas lágrima supérfluas. Romances que fazem o papel de esponjas -absorvem as emoções. Vieram-me à memória alguns que vira, e que sempre me pareceram especialmente apetitosos de tão velhos, e tão manuseados, e estavam completamente engordurados. Deviam ter absolvido quantidade incalculável de lágrimas! Voltei à biblioteca e devorei uma novela inteira - quero dizer, aquela parte macia e substancial: a casaca, isto é, a encadernação, não comi. Digerida aquela novela, e mais outra que também engoli, senti uma agitação interior. Devorei ainda terceira novela, e então...sim! Era poetisa! Foi o que disse comigo mesma, e o que repeti a quem me quis ouvir. Tinha enxaqueca, sentia dores no estômago...nem me lembro mais de quanta dores diferentes senti então.

                                          
    " Fiquei-me apensar em todas as histórias que a gente pode fazer para aplicar a um espeto. Vieram-me à lembrança muitas espécies da varas - que afinal o espeto não passa de uma vara, seja de pau ou de ferro. Que magnífica inteligência do homem que engoliu um espeto. Daquele outro que tirava da boca uma varetinha branca e ficavam logo invisíveis - ele e a vareta. Lembrei-me também das varetas de guarda-sol; das espingardas; e também nos pergaminhos de sapateiro, que são, por sinal, de pau. E afinal me lembrei de que " em casa de ferreiro o espeto é de pau". Todas as minhas ideias iam sempre acabar num espeto. É que quando a gente é poetisa - como eu sou, porque trabalhei como louca para consegui-lo - pode virar tudo isso em assuntos de poemas. E assim cada dia poderei distrair Vossa Majestade com um espeto diferente, isto é, com uma história  diferente. Sim - esta é a minha sopa".
   - Vamos ouvir o que diz a terceira - ordenou o rei.
   Ouviu-se então um ruído, vindo da porta da cozinha.
  - Cuic, cuic!
   E a quarta ratinha - aquela que era dada por morta - entrou como uma flecha, chiando, e deitou ao chão o espeto coberto de crepe. Correra a noite e dia, e quando viu que se arriscava a chegar tarde, viajou até num trem de carga. Mesmo assim, quase que não chegou a tempo. Abriu caminho aos encontrões, e apresentou-se, sem muita esperança de ser bem sucedida. Perdera o espeto, mas a língua não perdera, pois tomou imediatamente a palavra, como se todos estivessem ali somente para ouvi-la - e ela e a mais ninguém - e como se nada mais tivesse importância na vida. Falou imediatamente, e disse tudo o que tinha para dizer. Tão repentina, fora a sua aparição, que ninguém teve tempo de detê-la, para que esperasse sua vez.

     IV. FALA A QUARTA RATINHA, ANTES DA TERCEIRA

     - Dirigi-me imediatamente para uma grande capital, cujo nome não me ocorre agora: minha memória é péssima para nomes. Levaram-me da estação, entre alguns gêneros confiscados, para o tribunal. Dali escapei, e fui ter à casa do carcereiro. Falando ele dos presos, referiu-se especialmente a um, que tinha dito palavras imprudentes. Palavra puxa palavra; e atrás daquelas outras vieram, que foram ditas, escritas e relatadas.
   " - Afinal - terminou ele - tudo isso não é mais que sopa de espeto; mas é uma sopa que lhe pode custar a cabeça!
   " Aquilo despertou em mim um grande  interesse pelo prisioneiro, e, aproveitando a primeira oportunidade, fui ter à sua cela. Porque há sempre um buraco de rato atrás de cada porta fechada. Era um homem muito pálido; tinha a barba crescida e os olhos grandes e brilhantes. A lâmpada que ardia na cela deitava muito fumo, mas as paredes eram já tão enegrecidas, que a fuligem não podia aumentar aquele pretume. O prisioneiro matava o tempo traçando desenhos e versos em branco naquele fundo negro. Não os li, mas creio que ele se aborrecia na cela, porque me recebeu muito bem. Atraiu-me com migalhas, e assobios, e palavras amáveis. Mostrou-se muito contente com a minha companhia, e acabou por me inspirar confiança: tornamo-nos amigos. Repartia comigo seu pão e sua ração de água, tratava-me a queijo e salsicha, de sorte que eu tinha vida farta. Devo dizer, contudo, que foi principalmente a sua boa companhia que me reteve. Consentia que eu lhe passeasse pelas mãos, pelos braços, entrasse dentro de suas mangas, e me escondesse na sua barba. Chamava-me sua amiguinha, e eu gostava realmente dele, pois a amizade é uma coisa que deve ser recíproca. Esqueci-me inteiramente da missão que me levara a correr o vasto mundo, e cheguei a esquecer o meu espeto, que deve estar ainda lá, cravado em uma fenda do chão. Queria ficar com o prisioneiro, porque, se me retirasse, o pobre ficaria sem um único amigo no mundo. E como isso não me parecia direito, fiquei. Fiquei, mas quem partiu foi ele. Estava muito triste a última vez que me falou. Deu-me o dobro do pão e do queijo costumado, e ao retirar-se atirou-me um beijo. Depois saiu e não mais voltou. Não sei o que foi feito dele.
    " Sopa de espeto, dissera o carcereiro; pois fui procurá-lo. Mas aquele não era homem em quem a gente se fie. Tomou-me nas mãos, com muita gentileza, sim, mas para me meter em uma gaiola giratória, máquina infernal, em que a gente corre, corre, sempre, e quanto mais corre menos avança. E, além de tudo, ainda fica sendo a risota de todo o mundo.
    " A neta do carcereiro era uma menina encantadora; tinha o cabelo feito cachos de ouro, os olhos brilhantes de alegria, e uma boquinha risonha. Quando me viu naquela horrenda prisão, disso logo: " Coitadinho do ratinho" ! e torceu o trinco da gaiola. Saltei para o peitoril da janela, e dali para a goteira. Livre! Livre! Não pensava me mais nada, e até esqueci do objetivo da minha viagem.
   "Já ia escurecendo. Instalei-me em uma velha torre de uma sentinela e de uma coruja. Não confiava em  nenhum deles, e menos ainda na coruja que no outro. É que as corujas  são como os gatos: tem o péssimo vício de comer ratos. Mas é verdade que a gente às vezes se engana; e foi o que me aconteceu, nesse caso; aquela coruja era uma senhora muito bondosa e muito instruída também. Sabia mais que o guarda, e tanto como eu mesma. Os filhos armavam um grande escarcéu por qualquer ninharia; então a mãe dizia: " Ora vejam lá se já vão fazer disto uma sopa de espeto!" E era tão extremosa com a ninhada, que nunca dizia palavras mais ásperas do que essas, nos seus ralhos.
   " Esses modos me tranquilizaram a tal ponto, que da fresta onde me ocultara lhe dirigi um cumprimento " Cuic, cuic!" Agradou-lhe essa prova de confiança, e prometeu tomar-me sob a sua proteção: não permitiria que animal algum me fizesse mal, e me pouparia alguma coisa para o inverno, tempo em que escasseiam os mantimentos.
   'Era dama entendida em tudo. Disse-me que o guarda não sabia mais nada senão tocar a buzina que lhe pendia do cinturão. Mas que estava tão cheio de si com aquela habilidade, que se julgava uma coruja de torre. É rematou, dizendo:
   '"- Quer dar-se muita importância, mas não tem nenhuma, é o que é. Aquilo não passa de sopa de espeto.
                                           

   " Pedi-lhe, então que me desse a receita dessa sopa, e ela me explicou:
   " - Sopa de espeto é uma expressão que os humanos usam, como " água de barrela", e outras muitas. Cada um lhe dá a interpretação que bem entende. Cada um imagina também que a sua é a melhor, a exata; mas no fundo essa locução nada significa.
   " - Nada? - guinchei eu. - Que pena! Nem sempre a verdade é agradável, não! Mas " a verdade acima de tudo!"
   " Ora, a velha coruja também era dessa opinião. E, pensando no caso, vi claramente que se eu voltasse trazendo aquilo que " está acima de tudo", traria alguma coisa muito melhor do que sopa de espeto. Dei-me pressa pois, em voltar, para chegar aqui a tempo, trazendo a melhor de todas as coisas, alguma coisa que está acima de tudo o mais, e que é a verdade. Nós, os ratos, somos uma raça muito ilustrada, e o nosso rei é o mais ilustrado de todos nós. Ele é capaz de me fazer rainha, por amor da verdade".
   Mas nesse momento a ratinha que ainda não tinha dito o que sabia, brandou:
   - Tua verdade é mentira! Eu sei preparar a sopa e vou prová-lo!
 
            V. A PREPARAÇÃO DA SOPA
                                                    

   - Pois eu cá não andei viajando - informou a terceira ratinha. - Fiquei em casa, que era o que mais convinha. Não havia necessidade de viajar, visto que temos aqui tudo quanto é preciso. Portanto, fiquei aqui mesmo. Não fui aprender o que sei de criaturas fabulosas, nem as engoli; tão pouco não pedi lições à coruja. Descobri tudo em minhas próprias meditações. Vamos ! Ponham sobre o fogão um caldeirão bem cheio d'água...Isso! Agora, mais lenha!  Aticem o fogo, até que a água ferva...É preciso que esteja fervendo! Agora - o espeto para dentro do caldeirão! Pronto! E agora - quer o nosso rei de ter a bondade de se dignar meter a cauda na água fervendo, e agitá-la com toda a força? Quanto mais agitar o rabo, mais saborosa ficará a sopa. Não se gasta nada... não é preciso mais ingrediente algum: é só mexer, e mexer.
   - E não pode essa sopa ser mexida por outra pessoa? - indagou o rei.
   - Não: só o rabo do rei tem a virtude de dar o toque necessário.
   Fervia a água em borbotões. O rei dos ratos foi-se chegando para o tacho, com muito medo, porque aquilo lhe parecia perigoso; estendeu o rabo, como fazem os ratos na queijeira, para desnatar uma tigela de leite, lambendo depois com delícia a nata que ficou pegada á cauda. Mas assim que sentiu o queimor do bafo, deu um salto e foi parar longe. E declarou:
   -É claro que serás a rainha. Quanto á sopa...pode ficar para oferecemos aos convivas nas nossas bodas de ouro. Assim meus vassalos terão um prazer duradouro, com essa expectativa.
   E o casamento celebrou-se, no mesmo dia.
FIM

 
o:       Bestunto :Cérebro; cabeça; entendimento de pouco alcance;
Uma história longa requer bastante dedicação para transcrever, primeiro escrevo depois leio para ver se está tudo de acordo com o livro, mas podem ter certeza aprendo muito, quero muito aprender a escrever bem, ter ideias para contos , histórias tudo que possa ser escrito.
Então mais uma história postada aos poucos , com licença vou fazer o jantar.

domingo, 30 de outubro de 2016

O BESOURO- CONTOS DE ANDERSEN



                                                    


Acabavam de ajustar ferraduras de ouro às quatro patas do cavalo do imperador. De ouro, como eram as esporas do seu dono.
   Mas por que ferraduras de ouro?
   Era um animal magnífico, de pernas esbeltas, olhos suaves e inteligente e uma crina flutuava como  uma juba. Tinha carregado o amo por entre o fumo dos canhões e a chuva de balas que silvavam de todos os lados. Tomara parte na batalha, resistindo com singular denodo à acometida do inimigo, e salvara não só a coroa imperial como a vida do próprio imperador, saltando por cima do cavalo prostrado do mais pertinaz inimigo. Isto, por certo, valia mais que todas as riquezas. Merecera, pois, as ferraduras de ouro.
   Mas eis que um besouro se adianta, dizendo:
   - Primeiro foram os grandes; agora chegou a vez dos pequenos - ainda que o tamanho nada signifique.
   E espichou as patinhas secas.
  - Que queres aqui? - perguntou o ferrador.
   - Ferraduras de ouro!
   - Estás louco? - gritou o homem. - Também queres calçado de ouro?
   - E por que não? Acaso não valho tanto como esse aí? E ele precisa que o sirvam, o escovem e lhe ponham diante do focinho a comida e a bebida, para que pareça bem, Não pertenço tanto como ele aos estábulos imperiais?
   - Não sejas maluco! - replicou o ferreiro. - Então não compreendes por que ferramos de ouro este cavalo?
   - O que eu compreendo muito bem é que isto é um insulto pessoal que me fazem! - retrucou o besouro. - Não suporto semelhante humilhação, e vou sair a correr mundo!
    - Pois boa viagem!
   - Insolente! - disse o besouro.
  E, alcançando as asas, saiu do estábulo e foi parar em um jardim muito lindo, cheio do perfume das rosas e das alfazemas.
   Esvoaçava por ali uma joaninha, de asas vermelhas, mosqueadas de negro, que logo lhe foi dizendo:
   _ Que lugar delicioso, não achas? Como cheira bem, e que lindo é tudo aqui!
   - Estou habituado a coisas melhores - disse o besouro. - É a isto que chamas deliciosos? Mas se aqui não há sequer uma esterqueira!
   E lá se foi embora, para a sombra de uma moita de goivos. Uma lagarta subia por um talo acima, e dizia:
  - Que belo é o mundo! O sol é tão agradável e tão quente! E tudo sorri de felicidade! Afinal hei de acabar por adormecer e morrer, como dizem; mas depois despertarei convertida em uma borboleta!
   - Mas que ideia! Tu, voando como uma borboleta! Pois olha: venho das cavalariças do imperador, e lá ninguém, nem mesmo o cavalo favorito de Sua Majestade, que calçou os meu sapatos de ouro,  nem esse tem ideias tão idiotas! Criar asas! Voar! Ora essa! Agora vais ver na verdade o que é voar!
   E, desdobrando as asas, saiu voando, e murmurando pelos ares:
     - Quero fugir dos insultos, e é só o que ouço!
   Foi cair em um gramado e fingiu-se adormecido; mas dali a pouco estava dormindo de verdade.
   Não dormiu por muito tempo: começou logo a cair uma chuva copiosa, e o ruído da água batendo no chão despertou-o. Procurou esconder-se dentro da terra, e não o conseguiu, porque a água o arrastava; lá foi indo, primeiro de bruços, depois nadando de lado: não podia sequer pensar em voar, e daria graças se saísse daquela torrente com vida. Resolveu resignar-se, entregando-se à sorte; e quando cessou a chuva e, de tanto esfregar os olhos, conseguiu tirar deles toda água, viu que ali perto brilhava uma coisa branca: um camisa, que enxugava ao ar , estendida na grama. Manejou de modo a alcança-la e escondeu-se entre as dobras. Não era tão quentinho como no meio do esterco da cavalariça, é claro: contudo, não havia coisa melhor por enquanto, e ali ficou o besouro, o dia inteiro, e ainda toda a noite. A chuva continuava a cair por intervalos. Ao amanhecer saiu dali, indignado e amaldiçoando o clima.
  Sobre o linho alvo descansavam duas rãs, em cujos olhos brilhava a alegria. E uma dizia:
   - Que tempo magnífico! Tão fresquinho! E esta camisa junta água que é um gosto! Tenho cócegas nas patas, de vontade de nadar!
   - Eu gostaria de saber - disse a outra - se a andorinha, que voa tão alto e tão longe, já achou nas suas viagens pelo estrangeiro outro clima melhor que o nosso. Que agradável, que úmido! Eu me sinto tão bem aqui, como se estivesse em um charco! Quem não está contente e não se sente feliz assim é que certamente não tem patriotismo!
    - Bem se vê que vocês nunca estiveram nos estábulos do imperador! - interveio o besouro. - Aquela umidade, sim, é morninha e cheirosa- o melhor clima para meu gosto! É isso que estou habituado, mas é claro que quando a gente viaja não pode levar essas coisas...Não haverá neste jardim alguma esterqueira, onde uma pessoa de alta linhagem como eu possa fixar residência e viver à vontade?
    Mas as rãs não o entenderam - ou fingiram não o entender.
   Depois de repetir três vezes a pergunta, sem obter resposta alguma, exclamou o besouro, indignado:
    -Eu nunca pergunto uma coisa duas vezes!
   Afastou-se, irritado, e chegou a um sítio onde encontrou um bom abrigo contra a chuva e a ventania: era uma tampa da vasilha de barro, já quebrada. Seu lugar não era ali, certamente; mas era
um  abrigo providencial, e debaixo dela moravam algumas famílias de rapelhas - um bichinho que também se chama fura-orelhas; era gente pobre, mas viviam contentes. As fêmeas era todas um modelo de amor maternal: cada mãe exaltava o seu filho, que considerava o mais belo e o mais inteligente de todos.
    - O nosso rapazinho - dizia uma - já tem noiva, e não tardará muito em casar. É um inocentinho! Sua maior ambição neste mundo, é chegar algum dia a entrar na orelha de alguém. É tão bonzinho, tão amável! E com o casamento certamente há de assentar o juízo, não é? É o maior prazer que pode ter uma mãe!
   - Pois o nosso - acudia outra - mal saiu do ovo e já queira viajar pelo mundo! É a vivacidade e a destreza em pessoa! Já sabe retorcer as antenas. É o maior prazer que pode ter uma mãe, não acha, senhor Escaravelho?
   Tinham reconhecido logo a sua espécie pelo corte das asas.
   - Ambas tem razão - respondeu o besouro.

                                                 
   Convidaram-no a entrar: podia passear até onde quisesse - debaixo da tampa quebrada. Mas já outras mães lhe gritavam:
   - Olhe aqui! Veja o meu filho!
   - E o meu!
   - E o meu! Já viu crianças melhores, ou mais alegres? Os nossos nunca desobedecem a não ser quando sentem alguma cólica - coisa frequente, aliás, nas crianças, não é?
  E assim cada mãe falava no seu filho. As crianças foram se aproximando sem se intrometer na conversa. Mas, com as pinças da cauda, iam puxando as barbas do besouro.
  - Estão sempre a fazer diabruras, estes marotinhos! - diziam as mamães.
  Mas a repreensão vinha em uma voz que mais parecia uma carícia animadora de novas estrepolias. O besouro não gostou da brincadeira: sentiu-se ofendido, e indagou se o esterqueiro ficava muito longe.
   - Fica, sim! Muito longe: do outro lado do valo - disse uma das mães. - É tão longe, que se um de meus filhos fosse até lá eu morreria. Espero, porém, que jamais aconteça semelhante coisa!
   - Não é a mim que as distâncias metem medo! - retrucou o besouro.
   E saiu sem se despedir: era esta, na sua opinião, a maior prova de cortesia.
  Junto ao valo encontrou muita gente: todos besouros, como ele. E, disseram-lhe:
   - Pois moramos aqui. E vivemos magníficamente! Não queres espojar-te um pouco, no lodo macio? Trazes cara de cansado! Há de ser da viagem...
  - Estou mesmo, disse o besouro. Apanhei uma chuva grossa, e tive de me refugiar em uma camisa lavada; e já sabes que a limpeza não é bom para a minha saúde. Além disso, dói-me uma asa, desde que fiquei desabrigado debaixo de um caco de barro. Mas é um consolo encontrar-se a gente entre os seus semelhantes!
   - Vens, talvez, do monte de esterco? - perguntou o mais velho.
    - Não! Venho de lugar muito mais alto! Venho da cavalariça do imperador, onde nasci já com sapatos de ouro. Viajo em uma missão secreta, e está claro que não posso dizer o que é.
   Desceu então para se reunir aos outros na lama. Achavam-se ali três mocinhas, que riam à socapa, por que não sabiam o que haviam de dizer.
   - As três são solteiras, e não estão ainda noivas - disse a mãe.
  - E as três donzelas tornaram a rir às escondidas, mas desta vez foi de envergonhadas.
   - Não vi nenhuma tão linda nos estábulos do imperador - disse o viajante - sentando-se.
    - Não gabe assim minhas filhas para me lisonjear - observou a mãe. - E não lhes dirija a palavra, a não ser com intenções sérias. Vejo, porém, que assim é, e desde já os abençoo.
   - Viva! - gritaram todos os outros besouros.
  E desse modo ele ficou noivo.
   Seguiu-se imediatamente o casamento, pois não havia razão para demoras.
  O dia seguinte passou-se perfeitamente: era a lua de mel; o segundo quase não fez diferença - mas no terceiro já é preciso pensar em ganhar com que sustentar a mulher, e quem sabe se algum filho. E o besouro pensou:
    - Uma vez que me deixei enganar assim por esta gente, não tenho outra coisa a fazer, senão enganá-la também.
   E dito e feito! Foi embora, deixando ali a esposa sozinha todo o dia e a noite toda: era agora uma viúva!
   - Esta foi boa! - diziam todos os besouros. Aquele sujeito que recebemos na nossa família não passa de um grandessíssimo vagabundo! Lá se foi embora, e ainda por cima deixa-nos este fardo: temos de lhe sustentar a mulher!
        - Paciência! - disse a mãe besoura. - Ela voltará  a usar o nome de solteira, e viverá aqui conosco. Aquele canalha! Abandonar assim a minha filha!
  Enquanto isso lá se ia o besouro, viajando muito  descansado. Embarcou em uma folha de couve, que a corrente de um canal ia levando à deriva. Passaram dois cavalheiros, apanharam-no e ficaram a dar-lhe voltas e mais voltas, falando como eruditos, principalmente o mais jovem.
   - Alá vê o besouro negro na escosta negra da montanha negra - disse ele. - Pois não está escrito isso no alcorão?
   E disse o nome do besouro, mas em latim. O outro, que era estudante, queria levá-lo, mas o companheiro dissuadiu-o, dizendo-lhe que possuía exemplares iguais àquele. Achou o besouro que aquilo era uma grande impertinência,e, alçando o voo, escapou da mão do moço grosseiro. Como já tinha as asas bem secas, pode voar muito longe: foi até uma estufa, entrou pela fresta da vidraça entreaberta, e procurou enterrar-se, com o maior prazer, num monte de adubo que viu a um canto.
  - Que lugar delicioso! - pensava ele.
  Adormeceu logo e sonhou que o cavalo favorito do imperador tinha adoecido, e antes de morrer o nomeara herdeiro de sua ferraduras de ouro, deixando ainda determinado que lhe fabricassem mais um par, na mesma medida. E era uma coisa muito razoável.
    Quando acordou resolveu sair, para dar uma vista de olhos. Era magnífica aquela casa de cristal! Altas palmeiras formavam uma abóboda, deixando penetrar a luz do sol; aos seus pés vicejavam maciços de flores de cores variadas - vermelhas como fogo, amarelas como o âmbar e alvas como a neve recém-calda.
   - Que folhagem esplêndida! E estas folhas serão uma riqueza, quando caírem e apodrecerem - dizia o besouro. - Que rica despensa achei! Certamente hão de viver por aqui parentes meus. Vou dar uma volta a ver se encontro gente com quem me possa associar. Estou orgulhoso do que sou, na verdade!
   E pôs-se a passear pela estufa, pensando na morte do cavalo e nas ferraduras de ouro que acabava de herdar.
  Mas nisto uma mão o colheu, e começou logo a virá-lo de todos os lados.
   Era o filhinho do jardineiro que, brincando com uma menina da sua idade, vira o besouro e resolvera divertir-se com ele. Embrulharam-no em uma folha de parreira e o menino meteu-o no bolso da calça, que era muito quente. O besouro mexia-se e remexia-se, para ver se libertava daquela prisão, mas um soco do rapazinho indicou-lhe que era melhor ficar quieto. As duas crianças correram para o grande lago que havia no extremo do jardim; meteram o besouro em um tamanco velho que estava atirado à margem, amarraram uma varinha ao tamanco, feito mastro, e prenderam nele o pobre besouro, segurando-o bem com um fio de linha. Agora ele era um capitão de navio, e ia navegar.
   O lago não era muito extenso, mas ao pobre do besouro pareceu o oceano; e ficou tão assustado que caiu de costas, e ali ficou, agitando as perninhas.
  O barquinho afastava-se da margem, impelindo pelo vento, mas o menino arregaçou as calças e foi apanhá-lo, empurrando-o para que navegasse a todo o pano. Quando o tamanco já ia longe, uma voz imperiosa chamou as crianças, e o besouro ficou abandonado à sua sorte. A embarcação ia afastando-se, afastando-se da margem, aproximando-se cada vez mais do alto mar, e a perspectiva que se apresentava ao bichinho era horrível; não podia voar porque estava todo amarrado ao mastro. Nisto apareceu uma mosca, que ia visitá-lo.
   - Que tempo esplêndido! - disse ela. - Dás licença que te acompanhe um pouco, para me aquecer ao sol? Como és feliz! Que vida agradável a tua!
   - Tu não sabes o que dizes! Não vês, estúpida, que estou amarrado?
   - Mas eu não! - respondeu a mosca, erguendo o voo.
   - Agora é que vou conhecendo o mundo! - disse consigo o besouro. E como é baixo, este mundo! A única pessoa decente e digna que nele vive sou eu! Pois a primeira coisa que fazem contra mim é usurparem-me os sapatos de ouro; depois, obrigam-me a procurar abrigo em uma casa limpa, ou debaixo de uma tampa quebrada; e, para cúmulo de males, impigem-me uma esposa! Por fim, quando dou com um lugar onde se pode viver, e saio a ver onde posso instalar com toda a comodidade, eis que vem um rapazinho, amarra-me aqui e me deixa à mercê das ondas enfurecidas - enquanto o cavalo do imperador da cabriolas, com suas ferraduras de ouro! E isto é o que mais me dói! Não ! De um mundo assim nada se pode esperar de bom. É certo que minha carreira tem sido brilhante; mas de que serve, se ninguém a conhece? Nem o mundo merece mesmo conhecê-la, a minha história: pois não se recusaram a calçar-me sapatos de ouro na cavalariça do imperador, quando ferraram o cavalo favorito? Debalde estendi as patas! Se me tivessem calçado de ouro, seria eu uma glória, um ornamente brilhante para cocheira. Agora, ela me perdeu, e o mundo também não me obterá. Tudo acabado!
   Não estava tudo acabado, não. Aproximou-se um bote, cheio de moças que remavam.
    - Olha aquele tamanco, que navega como um barco! - disse uma.
   - E dentro vai um bichinho amarrado! - exclamou outra.
   Chegaram-se mais. A mais nova das moças pegou o minúsculo barquinho, e tirou-o da água. Outra moça tomou uma tesourinha e cortou o fio de linha, sem ferir o besouro, e quando chegaram à praia ela o depôs na grama, dizendo:
  - Trepa, trepa! Voa! Voa! Abre as asas, que a liberdade é uma coisa esplêndida!
    E o besouro voou, voou...No seu vasto voo passou pela janela de um grande edifício e foi cair, meio morto de fadiga, sobre a fina e macia crina do cavalo do imperador, naquele mesmo estábulo em que sempre tinham morado juntos. Segurou-se à crina, descansando ali um momento para se recobrar.
  - Eis-me agora montado no cavalo favorito do imperador! É como se eu fosse um cavaleiro! E na verdade, sou tão guapo como o dono! Mas...que ia eu dizer? Ah! Sim, já me recordo. Agora vejo tudo claro. E é esta uma ideia acertada, sim! Por que calçaram o cavalo com sapatos de ouro? Pois não foi isso mesmo o que ele me perguntou, o ferrador? Agora percebo claramente qual é a resposta...O cavalo foi calçado de ouro em minha intenção! Para que eu o monte!
  Agora o besouro recobrara o antigo bom humor. E dizia:
  - Não há  nada como as viagens, para abrir a inteligência!
   Os raios do sol, entrando na cocheira, banharam de luz o besouro, que via agora todas as coisa com otimismo.
  - Apesar de tudo - refletia ele - o mundo não é tão mau como parece. O que é preciso é que a gente saiba tomar as coisas como elas são.
   Sim: o mundo era belo agora porque tinham posto ferraduras de ouro nas patas do cavalo do imperador, só para que o besouro pudesse montá-lo.
   - Irei agora visitar meus companheiros, os outros besouros, para que saibam tudo quanto foi feito em minha intenção. Quero contar-lhes todas as aventuras agradáveis que me sucederam em minha viagem ao estrangeiro. FIM

Denodo -.
ousadia, bravura diante do perigo; intrepidez, coragem.
Goivos. Muito usada em paisagismo e jardinagem, a flor também pode decorar ambientes e até dar um sabor exótico a receitas culinárias.



Amigos cada vez que dou uma parada, registro um sentimento: Desculpa a interferência, eu sei que esses contos valiosos que transcrevo, são únicos. Mas necessito me sentir mais próxima dos amigos!
-Estou digitando aos poucos pois é muito longa esta linda história! Obrigada pela paciência! Hoje é domingo , dia de eleições aqui no Brasil, estamos ansiosos pelo resultado!Eleições municipais , para -Eleição de Prefeitos. Muitas pessoas aqui votaram nulo.

-UM abraço. Boa Noite ! Que anjo da noite proteja nosso descanso , que durante nosso sono possamos equilibrar nossas energias, para durante todo dia , podermos fazer diferença neste mundão.

-Bom dia, segunda-feira, esta semana temos o Enem e por favor queridos torçam por mim, pois minha filha vai fazer o Enem. Boa Sorte Júlia, tu mereces é uma pessoa muito do bem, ama os animais respeito o próximo , quer o melhor pro mundo! Que venha a Arquitetura! Beijos