terça-feira, 1 de novembro de 2016

A SOPA DE ESPETO - CONTOS DE ANDERSEN

  Tivemos ontem um excelente jantar - dizia uma ratazana velha a outra, que não havia tomado parte no banquete. - Eu ocupava o assento número vinte e um, a contar da cadeira do nosso velho rei. Não era um mau lugar, não achas? Queres saber qual foi a lista de pratos? Estava muito bem combinada: pão mofado, peles de toucinho, vela de cebo e salsicha; e depois os mesmos pratos repetidos, do princípio ao fim de modo que, a dizer verdade, foram dois banquetes. Reinou na sala, enquanto durou a festa, tanta alegria e bom humor, que parecia uma reunião familiar. Também, não sobrou migalha, a não ser a lasquinha que ficou pegada ao espeto. Falou-se então  nesses instrumentos de pau, e veio logo à baila a " sopa de espeto". Todos tinham ouvido falar nela, mas ninguém a havia provado, e menos ainda preparado. Bebemos à saúde do inventor desconhecido, que, ao que se disse, bem merecia ser nomeado diretor do asilo de mendigos. Não foi lindo, isso? Então, levantou-se o velho rei dos ratos e prometeu que a ratinha que soubesse fazer a tal sopa seria rainha. E concedeu  o prazo de um ano não e um dia para que elas aprendessem a prepará-la.
    - Foi uma boa ideia - disse a outra ratazana. - Mas como se prepara essa sopa?
     - Ah! ...como se prepara a sopa? ...Ora, é exatamente isso o que estão perguntando a esta hora todas as ratas solteiras - moças e velhas. Todas elas, da primeira à última, querem casar com o rei - quem não deseja ser rainha! - mas nenhuma quer ter o trabalho de ir por este vasto mundo a fora, para aprender como se faz a sopa! E é isso que precisam fazer. Nenhuma tem a coragem de deixar a família e o seu cantinho abrigado, e ir sofrer privações pelo mundo, onde não é tão fácil achar raspas de queijo, nem se farisca toucinho todos os dias. Não! Arrisca-se a gente a passar fome, e até ser engolida viva pelo gato!
    E certamente esses motivos impediram que a maior parte delas saíssem a viajar em busca de informações. Só quatro se declararam prontas a partir. Eram jovens e espertas, mas pobre. Iria cada uma para um dos quatro cantos do mundo, entregando-se ao acaso. Levaria cada uma um espetinho de salsicha, que lhe traria sempre presente à memoria o fim daquela viagem. Seria como um bordão de peregrino.
    Partiram em princípios de maio, e só voltaram em maio do ano seguinte. De fato voltaram apenas três: a quarta não deu notícia alguma de si, até o dia aprazado para a apresentação dos relatórios
    - É sempre assim - observou o rei dos ratos. - Nem tudo sai sempre à medida dos nossos desejos.
   Determinou, contudo, que fossem convidados todos os ratos e ratões, no raio de muitas léguas.
  A reunião foi na cozinha, e as três viajantes enfileiraram-se a um lado, à parte das outras pessoas. No lugar que devia competir à quarta, a que não voltara, puseram um espeto envolto em crepe. E ninguém ousou fazer qualquer comentário, senão depois que as viajantes apresentaram seu relatório, e o rei pronunciou o julgamento.
  Ouçamos agora o que disseram elas.

II.  O QUE VIRA E OUVIRA A PRIMEIRA RATINHA

    " - Quando sai a correr mundo - disse a primeira ratinha - pensava, como pensam quase todos na minha idade; que sabia tudo. Mas ah! como me enganava! Leva dias, leva anos, para a gente aprender tudo! Fui para o lado do mar, e embarquei em um vapor que ia partir para o norte. Ouvira dizer sempre que um cozinheiro de bordo deve saber como se há de arranjar. Mas na verdade não é lá coisa muito difícil, afinal, a gente agir no mar, quando tem à mão fartura de presuntos, barricas de carne seca e farinha mofada. Passa-se até um vidão; mas a tal sopa de espeto é que não se aprende a fazer ali. Navegávamos noite e dia, e levamos muitos dias e muitas noites a navegar. O barco arfava convulsivamente, e muitas vezes nos vimos encharcados com a bátegas d'água que nos cobriam. E quando afinal alcançamos um porto, tratei de desembarcar. era muito, muito longe daqui, em uma região do norte.
    " E que coisa estranha, a sensação que nos invade, quando deixamos a nossa toca, embarcamos em um navio, que também não passa de uma toca, e achamo-nos de repente em uma terra estrangeira, a mais de cem léguas de distância! Estendiam-se ali imensas florestas impenetráveis, de bétulas e de pinheiros; exalavam tanto aroma que me senti enjoada! E o perfume das ervas silvestres muito parecido com o cheiro de especiarias! era tão carregado que me fez espirrar: lembrava o gosto de salsichas.
   "Havia também vastos lagos, cuja água de perto, se via que era perfeitamente cristalina, e que de longe dava ideia de charcos de tinta. repousavam na superfície muitos cisnes de alvura deslumbrante, mas tão quietos que pareciam flocos de espuma. Quando, porém, começaram a andar e voar, reconheci logo que eram da família dos patos: vê-se isso, pela maneira de mover-se, gingando. É que ninguém pode negar a parentela! Eu procurei a gente da minha espécie. Travei relações com ratos do mato e do campo, que por sinal são muito ignorantes: sabem muito pouco de cozinha, razão única de minha viagem tão longa. Só a ideia de que alguém achasse possível fazer sopa de espeto causou-lhe tamanho espanto, que a notícia se espalhou em um momento, e corria de boca em boca por toda a mata. Mas que semelhante problema pudesse ter solução algum dia, era, coisa que lhes parecia absolutamente impossível. E mal podia eu imaginar que ali mesmo, antes do amanhecer, seria iniciada no grande segredo.
   "Era no pino do verão. Disseram os ratos que por isso os matos e campos recendiam tanto, e as águas estavam tão cristalinas, e de um azul tão profundo, em contraste com a brancura dos cisnes. Na orla da mata, entre três ou quatro casas, elevava-se um poste, alto como o mastro grande de um navio, coroado de flores e de fitas: era a Árvore de Maio. Ao som de um violino moças e rapazes cantavam e dançavam em roda do mastro. Essa festa prolongou-se pela noite a dentro, e todos estavam tão alegres ao pôr do sol com  à luz do luar. Eu não tomei parte nela; que iria fazer um ratinho no baile  da floresta, não é? Sentei-me no musgo, sempre segura ao meu cajado. O luar dava em cheio, e até parecia mais brilhante, no sítio onde havia uma árvore; o chão ali estava forrado de musgo, tão macio que não hesito em compará-lo à peliça do nosso rei.

                                                    
   " -Nisto vi que se aproximava uma multidão de criaturinhas encantadoras, tão pequeninas, que mal me chegavam aos joelhos; assemelhavam-se aos entes humanos, mas eram mais bem proporcionados. Chamavam-se elfos, e trajavam roupas muito lindas, entrelaçadas de asas de moscas e mosquitos. eram bem bonitinhos, na verdade. Notei que andavam à procura de alguma coisa. Afinal um grupo veio para o meu lado; o que parecia ser o chefe apontou para o meu espeto, dizendo:
    " - E isto justamente o que queremos. É pontudo. É perfeito!
   " E quanto mais examinava meu bastão, mais contente se mostrava.
    "- Podes levá-lo - disse eu - mas é somente emprestado: não para ficar com ele!
   " - Não ficar com ele! - exclamaram todos, levando o espeto.
   " Dançando de alegria foram colocá-lo no musgo macio: queriam ter também a sua Árvore de Maio, e meu bordão parecia talhado de propósito, para eles. E começaram a enfeitá-lo. Ficou lindo, lindo! Aranhas pequeninas fiaram fios de ouro em roda, envolvendo-o em flâmulas e bandeiras de alvura tão deslumbrante, que aquele fulgor, à luz do luar me fazia mal aos olhos. Com a tinta que tiraram da asa de uma borboleta borrifaram meu espeto de tal forma, que ele parecia cheio de flores e todo orvalhado, como se estivesse cravejado de diamantes. Eu mesma mal podia reconhecê-lo, porque não há no mundo inteiro Árvore de Maio semelhante à que os elfos fizeram dele.
   " Assim que terminaram estes preparativos chegou a comitiva toda. Nenhum fio de linha nas suas roupagens - e no entanto, não pode haver nada mais lindo! Convidaram-me para admirá-los- mas de certa distância, porque sou muito corpulenta.
    " Começou então a música, mas que música! Parecia que tocavam em mil campainhas de cristal. Era tanta a harmonia, e tão profunda, que cheguei a pensar que aquilo era o canto do cisne. Sim, parece-me ouvir o canto dos cucos e dos metros, e por fim o bosque inteiro ressoava, unindo-se ao coro. Vozes de crianças, tinindo de campainhas, cantos de pássaros, parecia que tudo se combinava numa melodia suave, e ainda assim, tudo aquilo vinha somente da Árvore de Maio dos elfos. Era um carrilhão completo - e, contudo, não passava do meu espeto de salsichas. Nunca imaginei que fosse possível tirar dele tanta harmonia! Mas é o fora de dúvida que tudo depende das mãos que o tangem. Sentia-me profundamente comovida. E tanto que chorei, chorei como uma ratinha sabe chorar, de pura alegria!
    " E com que rapidez correu aquela noite! É verdade que naquela época do ano as noites são curtas, mesmo. Quando rompeu a madrugada, e a brisa matutina frisou a superfície do lago, que era como um espelho, desvaneceram-se num instante as bandeiras e galhardetes, tecidos com tanta delicadeza. As guirlandas enfunadas de teia de aranha, as pontes suspensas entre a folhagem, as balaustradas, enfim, tudo o que enfeitara o mastro durante a noite, sumiu-se no nada. Seis elfos vieram restituir meu espeto, e indagaram, gentilmente, se me podiam ser úteis para alguma coisa. Pedi-lhes então que me ensinassem como se faz a sopa de espeto. E o chefe dos elfos adiantou-se, sorrindo:
   " - Como fazemos essa sopa? Mas acabas de vê-lo, com teus próprios olhos. Porque...aposto que nem reconheceste teu espeto!
   " - Sim, para os elfos isso não passa de brincadeira - retruquei.----
    " Contei-lhe então tudo; disse o que procurava na minha viagem pelo mundo e falei da importância que tinha o caso aqui no nosso reino. E perguntei-lhe depois:
    " - Que benefício trará para o rei dos ratos, ou para o seu imenso império, o magnífico espetáculo que presenciei? Não posso chegar lá e dizer, sacudindo meu cajado; " Olha este espeto! É isto a sopa!" É um prato  que servirá, quando muito, depois que todos os comensais estão de estômago satisfeito.
   " Então o chefe dos elfos introduziu o dedo mindinho no cálice de uma violeta e disse-me:
    " - Escuta! Vou untar teu bastão de peregrino. E quando estiveres de volta ao teu pais, e entrares no palácio do rei, é só tocar com ele o focinho quente do teu soberano, e a vara se cobrirá de violetas, nem que seja no rigor do inverno. Posso dizer, pois, que te ofereço uma coisa que podes levar para casa; e ainda te darei mais uma lembrancinha, de contrapeso".
   Não tinha ainda a ratinha acabado de pronunciar as últimas palavras, sem dizer em que consistia a  "lembrancinha", e já apontava o cajado em direção do focinho do rei. E o que é verdade, e bem verdade, é que a varinha se cobriu imediatamente de flores lindíssimas, de perfume tão intenso, que o rei ordenou os ratos que se aproximassem do fogo e chamuscassem o rabo.
   É que queria sentir um cheiro bem forte, que contrastasse com o perfume de violetas, que não lhe agradava nada. Depois perguntou:
   - E qual era a lembrancinha do contrapeso?
    - Sim...creio que é o que se chama uma surpresa - disse a ratinha.
   Fez girara a vara e - pronto! Sumiram-se as flores ficando ela com o espeto nu na mãos. Brandia-o como uma batuta. E continuou:
    - As violetas - disse-me o elfo - servem para recreio da vista, o do olfato, e do tato. Mas devemos também ter alguma coisa que agrade ao ouvido e desperte o paladar.
    Então a ratinha pôs-se a marcar o compasso, e imediatamente se ouviu o som de uma música. Não era a música elfina da floresta, não. Era a música que se podia ouvir na cozinha: o murmúrio da fervura e da carne que assa. Aquilo foi tão repentino, como se o vento tivesse soprado em todos os cantos da chaminé, avivando a chama, e fazendo ferver panelas e chaleiras. A pazinha deu uma pancada no caldeirão de cobre. e imediatamente tudo se calou. Ouviu-se então o canto em surdina da chaleira do chá. tão suave e tão doce, que mal se percebeu quando começou e quando acabou. A panelinha fervia, e o caldeirão levantava enormes bolhas, e ninguém atendia ao compasso. Parecia que todas as panelas tinham perdido o juízo. E cada vez a ratinha agitava a vara com mais brio. As panelas ferviam e espumavam, em borbotões, escorrendo por fora. Entrou pela chaminé uma rajada de vento, rugindo de modo tão espantoso, que - Paf! lá caiu a batuta das mãos da ratinha.
   - Que sopa encorpada! - exclamou o  rei. - Já está pronta para ser servida?
   - Mas é só isso - disse a ratinha.
   - Só isso? Ora então é melhor ouvir o que a outra tem a contar.

III. FALA A SEGUNDA RATINHA

   - Nasci na biblioteca de um palácio - começou ela. - Eu e meus parentes não conhecemos o luxo de entrar em uma sala de jantar, e menos ainda em uma despensa. Só vi uma cozinha uma única vez, nesta viagem que fiz, e agora vejo esta. É certo que na biblioteca sofremos muitas privações, e até fome passávamos de vez em quando; mas também adquirimos muitos conhecimentos. A notícia da recompensa real, oferecida a quem fizesse a sopa de espeto, chegou até lá. Minha avó foi logo examinar um manuscrito; ela não sabia ler, é claro, mas ouvira alguém ler nele esta passagem: "Um poeta é capaz de fazer sopa até de um espeto".
    " Perguntou-me se eu sabia fazer versos. Disse-lhe que era completamente ignorante nesse assunto; mas a avó insistiu, dizendo que eu devia procurar os meios de ficar poetisa. Perguntei-lhe como havia de consegui-lo, pois era tão difícil, para mim aprender a ser poetisa como a fazer a sopa. Mas minha avó tinha ouvido ler muitos livros, e explicou-me que três coisas eram imprescindíveis: inteligência, imaginação e sentimento. E terminou assim: " Se conseguires meter essas três coisas no bestunto, serás poetisa, e então essa história de sopa de espeto te virá naturalmente, por si mesma.
   " E assim foi que saí a correr mundo, para ser poetisa. E dirigi-me para o lado do oeste.
   " Sabia que dos três requisitos a inteligência era considerada como o mais importante. Sim, mas onde encontrá-la? "Dirige-te à formiga e aprenderás sabedoria" - disse o grande rei dos judeus. Aprendera isso na biblioteca. E não descansei enquanto não vi um grande formigueiro. Ali chegada, parei à espreita, para me apoderar da sabedoria..
    "Constituem as formigas uma raça muito respeitável. Compreendem as coisas  sem dificuldade nenhuma. Resolvem tudo com precisão matemática - e todas as questões ficam bem esclarecidas." Trabalhar e pôr ovos - dizem elas - é cuidar da vida presente e preparar o futuro". E o que dizem, executam. Dividem-se em categorias, conforme a aptidão de cada uma para trabalhos delicados ou grosseiros. São todas numeradas, de acordo com a importância na comunidade, e a rainha tem um número um. Só o que a rainha pensa é sensato, pois que resume em si toda a sabedoria - e era muito importante para mim aprender com ela. Mas a rainha falava com tamanha profundidade e acerto, que a mim me parecia tolice tudo quanto dizia.
   " Declarava, por exemplo, que o seu formigueiro era a coisa mais elevada do mundo - e , no entanto, ali perto havia uma árvore evidentemente mais alta. E tão mais alta que não era possível negá-lo - por consequência isso jamais se mencionava. Ora, um dia, já ao escurecer, uma formiga extraviou-se e subiu ainda assim aonde nenhuma outra chegara jamais. Quando voltou e contou que descobrira uma coisa mais alta do que o próprio formigueiro, as outras formigas consideraram essas palavra como insultuosas, e ela foi amordaçada e condenada a prisão perpétua. Alguns dias depois outra formiga subiu à mesma árvore e fez a mesma descoberta; mas essa falou do caso com muitas reticências prudentes, com certo receio mesmo. Era, além disso, uma formiga da aristocracia - uma das que se encarregavam de tarefas limpas. Deram-lhe, pois inteiro crédito, e quando ela morreu erigiram-lhe um monumento de casca de ovo, em sinal de admiração, e de apreço ao seu amor pela ciência.
   " Vi muitas vezes as formigas andando daqui para ali com seus ovos ás costas. Uma delas um dia deixou cair o que levava, e, por mais esforços que fizesse, não conseguia erguê-lo de novo. Acudiram então duas outras; mas quando viram que iam quase deixando cair os seus fardos naquela tentativa, desistiram de lhe prestar auxílio, porque a caridade bem entendida começa por casa. A rainha declarou que ambas, neste caso, tinham dado prova não só de coração, como de inteligência.
   " - Essas duas virtudes - explicou ela - colocam as formigas acima de todos os outros seres racionais. Mas a inteligência é e será sempre o mais importante atributo, e eu o possuo em maior grau que qualquer outra criatura.
   "Ao dizer isso, ergueu-se sobre as patas traseiras, para que todos vissem bem que era a rainha que estava falando. Sim, eu vi bem quem era ela e estirei a língua: comi-a. "Dirige-te à formiga e aprenderás a sabedoria". Pois bem: eu já tinha engolido a rainha.
   "Aproximei-me então da árvore que já me referi. Era um carvalho de tronco enorme e copa vastíssima e frondosa. sabia que ali devia albergar-se um desses espíritos viventes a que chamam dríades, que nascem com a árvore e com ela morrem. Ouvira dizer isso na biblioteca, e agora via diante de mim uma árvore dessas, com um desses espíritos. A ninfa estremeceu, apavorada, ao ver-me tão perto, porque, como outras mulheres tem um medo pavoroso de ratos. Contudo o seu receio tinha mais fundamento, pois sabia que eu podia roer a casca da árvore de que dependia sua vida. Falei-lhe em tom cordial e palavras amistosas, e disse-lhe que nada a tinha a recear.
  "Segurou-me então nas mãos delicadas, e, quando a inteirei do motivo de minha viagem pelo vasto mundo, disse-me que talvez naquela mesma noite me fosse dado encontrar uma ou duas das virtudes que procurava com tanto empenho. Contou-me que Fantásio era um de seus bons amigos, belo como o deus do amor, e que muitas vezes vinha repousar na copa da árvore, cujos galhos ciciava, então mais suavemente sobre as suas cabeças. Chamavam-lhe a sua dríade, e  à árvore também chamava sua, porque queria bem aquele esplêndido carvalho. Gostava de suas riquezas, que desciam tão profundamente, tão firmemente, terra dentro: e do tronco que se erguia tão alto que podia sentir a neve que cai, e o vento que sopra, e o sol ardente, como devem se sentidos - em toda a sua plenitude.
    " - Sim - continuou a dríade - os passarinhos que pousam na copa contam coisas de terras distantes. E a cegonha que fez ninho no único galho seco, dando assim à árvore um caráter pitoresco, fala-me da terra das pirâmides. Fantásio gosta de ouvir tudo isso, mas ainda não lhe basta, e eu tenho de lhe contar a minha vida na floresta, desde o tempo em que eu era pequenina, e a árvore tão delgadinha que uma urtiga bastava para lhe dar sombra - até os dias de agora, em que o carvalho alcançou esta robustez e força. Senta-te debaixo daquela moita de tomilho, e presta atenção. Quando arrancar uma pena, uma peninha pequenina. Apanha-a. Um poeta não pode receber maior dom. E é isso justamente que precisas.
   " Quando veio o Fantásio a pena lhe foi arrancada, e eu apanhei. mergulhei-a na água, para amolecê-la. Pois assim mesmo não me custou pouco engoli-la! Mas afinal conseguiu mordiscá-la e roê-la. Não! não á nada fácil a gente ficar poetisa, tendo de se empanturrar com tanta coisa!
   " Tinha eu pois agora inteligência e imaginação cá dentro; por elas soube que a terceira virtude se encontrava na biblioteca. Porque um grande homem disse e escreveu que há romances no mundo que tem o único propósito de aliviar as pessoas de suas lágrima supérfluas. Romances que fazem o papel de esponjas -absorvem as emoções. Vieram-me à memória alguns que vira, e que sempre me pareceram especialmente apetitosos de tão velhos, e tão manuseados, e estavam completamente engordurados. Deviam ter absolvido quantidade incalculável de lágrimas! Voltei à biblioteca e devorei uma novela inteira - quero dizer, aquela parte macia e substancial: a casaca, isto é, a encadernação, não comi. Digerida aquela novela, e mais outra que também engoli, senti uma agitação interior. Devorei ainda terceira novela, e então...sim! Era poetisa! Foi o que disse comigo mesma, e o que repeti a quem me quis ouvir. Tinha enxaqueca, sentia dores no estômago...nem me lembro mais de quanta dores diferentes senti então.

                                          
    " Fiquei-me apensar em todas as histórias que a gente pode fazer para aplicar a um espeto. Vieram-me à lembrança muitas espécies da varas - que afinal o espeto não passa de uma vara, seja de pau ou de ferro. Que magnífica inteligência do homem que engoliu um espeto. Daquele outro que tirava da boca uma varetinha branca e ficavam logo invisíveis - ele e a vareta. Lembrei-me também das varetas de guarda-sol; das espingardas; e também nos pergaminhos de sapateiro, que são, por sinal, de pau. E afinal me lembrei de que " em casa de ferreiro o espeto é de pau". Todas as minhas ideias iam sempre acabar num espeto. É que quando a gente é poetisa - como eu sou, porque trabalhei como louca para consegui-lo - pode virar tudo isso em assuntos de poemas. E assim cada dia poderei distrair Vossa Majestade com um espeto diferente, isto é, com uma história  diferente. Sim - esta é a minha sopa".
   - Vamos ouvir o que diz a terceira - ordenou o rei.
   Ouviu-se então um ruído, vindo da porta da cozinha.
  - Cuic, cuic!
   E a quarta ratinha - aquela que era dada por morta - entrou como uma flecha, chiando, e deitou ao chão o espeto coberto de crepe. Correra a noite e dia, e quando viu que se arriscava a chegar tarde, viajou até num trem de carga. Mesmo assim, quase que não chegou a tempo. Abriu caminho aos encontrões, e apresentou-se, sem muita esperança de ser bem sucedida. Perdera o espeto, mas a língua não perdera, pois tomou imediatamente a palavra, como se todos estivessem ali somente para ouvi-la - e ela e a mais ninguém - e como se nada mais tivesse importância na vida. Falou imediatamente, e disse tudo o que tinha para dizer. Tão repentina, fora a sua aparição, que ninguém teve tempo de detê-la, para que esperasse sua vez.

     IV. FALA A QUARTA RATINHA, ANTES DA TERCEIRA

     - Dirigi-me imediatamente para uma grande capital, cujo nome não me ocorre agora: minha memória é péssima para nomes. Levaram-me da estação, entre alguns gêneros confiscados, para o tribunal. Dali escapei, e fui ter à casa do carcereiro. Falando ele dos presos, referiu-se especialmente a um, que tinha dito palavras imprudentes. Palavra puxa palavra; e atrás daquelas outras vieram, que foram ditas, escritas e relatadas.
   " - Afinal - terminou ele - tudo isso não é mais que sopa de espeto; mas é uma sopa que lhe pode custar a cabeça!
   " Aquilo despertou em mim um grande  interesse pelo prisioneiro, e, aproveitando a primeira oportunidade, fui ter à sua cela. Porque há sempre um buraco de rato atrás de cada porta fechada. Era um homem muito pálido; tinha a barba crescida e os olhos grandes e brilhantes. A lâmpada que ardia na cela deitava muito fumo, mas as paredes eram já tão enegrecidas, que a fuligem não podia aumentar aquele pretume. O prisioneiro matava o tempo traçando desenhos e versos em branco naquele fundo negro. Não os li, mas creio que ele se aborrecia na cela, porque me recebeu muito bem. Atraiu-me com migalhas, e assobios, e palavras amáveis. Mostrou-se muito contente com a minha companhia, e acabou por me inspirar confiança: tornamo-nos amigos. Repartia comigo seu pão e sua ração de água, tratava-me a queijo e salsicha, de sorte que eu tinha vida farta. Devo dizer, contudo, que foi principalmente a sua boa companhia que me reteve. Consentia que eu lhe passeasse pelas mãos, pelos braços, entrasse dentro de suas mangas, e me escondesse na sua barba. Chamava-me sua amiguinha, e eu gostava realmente dele, pois a amizade é uma coisa que deve ser recíproca. Esqueci-me inteiramente da missão que me levara a correr o vasto mundo, e cheguei a esquecer o meu espeto, que deve estar ainda lá, cravado em uma fenda do chão. Queria ficar com o prisioneiro, porque, se me retirasse, o pobre ficaria sem um único amigo no mundo. E como isso não me parecia direito, fiquei. Fiquei, mas quem partiu foi ele. Estava muito triste a última vez que me falou. Deu-me o dobro do pão e do queijo costumado, e ao retirar-se atirou-me um beijo. Depois saiu e não mais voltou. Não sei o que foi feito dele.
    " Sopa de espeto, dissera o carcereiro; pois fui procurá-lo. Mas aquele não era homem em quem a gente se fie. Tomou-me nas mãos, com muita gentileza, sim, mas para me meter em uma gaiola giratória, máquina infernal, em que a gente corre, corre, sempre, e quanto mais corre menos avança. E, além de tudo, ainda fica sendo a risota de todo o mundo.
    " A neta do carcereiro era uma menina encantadora; tinha o cabelo feito cachos de ouro, os olhos brilhantes de alegria, e uma boquinha risonha. Quando me viu naquela horrenda prisão, disso logo: " Coitadinho do ratinho" ! e torceu o trinco da gaiola. Saltei para o peitoril da janela, e dali para a goteira. Livre! Livre! Não pensava me mais nada, e até esqueci do objetivo da minha viagem.
   "Já ia escurecendo. Instalei-me em uma velha torre de uma sentinela e de uma coruja. Não confiava em  nenhum deles, e menos ainda na coruja que no outro. É que as corujas  são como os gatos: tem o péssimo vício de comer ratos. Mas é verdade que a gente às vezes se engana; e foi o que me aconteceu, nesse caso; aquela coruja era uma senhora muito bondosa e muito instruída também. Sabia mais que o guarda, e tanto como eu mesma. Os filhos armavam um grande escarcéu por qualquer ninharia; então a mãe dizia: " Ora vejam lá se já vão fazer disto uma sopa de espeto!" E era tão extremosa com a ninhada, que nunca dizia palavras mais ásperas do que essas, nos seus ralhos.
   " Esses modos me tranquilizaram a tal ponto, que da fresta onde me ocultara lhe dirigi um cumprimento " Cuic, cuic!" Agradou-lhe essa prova de confiança, e prometeu tomar-me sob a sua proteção: não permitiria que animal algum me fizesse mal, e me pouparia alguma coisa para o inverno, tempo em que escasseiam os mantimentos.
   'Era dama entendida em tudo. Disse-me que o guarda não sabia mais nada senão tocar a buzina que lhe pendia do cinturão. Mas que estava tão cheio de si com aquela habilidade, que se julgava uma coruja de torre. É rematou, dizendo:
   '"- Quer dar-se muita importância, mas não tem nenhuma, é o que é. Aquilo não passa de sopa de espeto.
                                           

   " Pedi-lhe, então que me desse a receita dessa sopa, e ela me explicou:
   " - Sopa de espeto é uma expressão que os humanos usam, como " água de barrela", e outras muitas. Cada um lhe dá a interpretação que bem entende. Cada um imagina também que a sua é a melhor, a exata; mas no fundo essa locução nada significa.
   " - Nada? - guinchei eu. - Que pena! Nem sempre a verdade é agradável, não! Mas " a verdade acima de tudo!"
   " Ora, a velha coruja também era dessa opinião. E, pensando no caso, vi claramente que se eu voltasse trazendo aquilo que " está acima de tudo", traria alguma coisa muito melhor do que sopa de espeto. Dei-me pressa pois, em voltar, para chegar aqui a tempo, trazendo a melhor de todas as coisas, alguma coisa que está acima de tudo o mais, e que é a verdade. Nós, os ratos, somos uma raça muito ilustrada, e o nosso rei é o mais ilustrado de todos nós. Ele é capaz de me fazer rainha, por amor da verdade".
   Mas nesse momento a ratinha que ainda não tinha dito o que sabia, brandou:
   - Tua verdade é mentira! Eu sei preparar a sopa e vou prová-lo!
 
            V. A PREPARAÇÃO DA SOPA
                                                    

   - Pois eu cá não andei viajando - informou a terceira ratinha. - Fiquei em casa, que era o que mais convinha. Não havia necessidade de viajar, visto que temos aqui tudo quanto é preciso. Portanto, fiquei aqui mesmo. Não fui aprender o que sei de criaturas fabulosas, nem as engoli; tão pouco não pedi lições à coruja. Descobri tudo em minhas próprias meditações. Vamos ! Ponham sobre o fogão um caldeirão bem cheio d'água...Isso! Agora, mais lenha!  Aticem o fogo, até que a água ferva...É preciso que esteja fervendo! Agora - o espeto para dentro do caldeirão! Pronto! E agora - quer o nosso rei de ter a bondade de se dignar meter a cauda na água fervendo, e agitá-la com toda a força? Quanto mais agitar o rabo, mais saborosa ficará a sopa. Não se gasta nada... não é preciso mais ingrediente algum: é só mexer, e mexer.
   - E não pode essa sopa ser mexida por outra pessoa? - indagou o rei.
   - Não: só o rabo do rei tem a virtude de dar o toque necessário.
   Fervia a água em borbotões. O rei dos ratos foi-se chegando para o tacho, com muito medo, porque aquilo lhe parecia perigoso; estendeu o rabo, como fazem os ratos na queijeira, para desnatar uma tigela de leite, lambendo depois com delícia a nata que ficou pegada á cauda. Mas assim que sentiu o queimor do bafo, deu um salto e foi parar longe. E declarou:
   -É claro que serás a rainha. Quanto á sopa...pode ficar para oferecemos aos convivas nas nossas bodas de ouro. Assim meus vassalos terão um prazer duradouro, com essa expectativa.
   E o casamento celebrou-se, no mesmo dia.
FIM

 
o:       Bestunto :Cérebro; cabeça; entendimento de pouco alcance;
Uma história longa requer bastante dedicação para transcrever, primeiro escrevo depois leio para ver se está tudo de acordo com o livro, mas podem ter certeza aprendo muito, quero muito aprender a escrever bem, ter ideias para contos , histórias tudo que possa ser escrito.
Então mais uma história postada aos poucos , com licença vou fazer o jantar.

Um comentário:

  1. Obrigada pela dedicação! Com certeza vamos ler muitas coisas que você escreverá!

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