sexta-feira, 30 de junho de 2017

A MENINA JUDIA - CONTOS DE ANDERSENN


Na escola das crianças pobre, entre os outros alunos, achava-se sentada uma menina judia.
   Era uma criança boa e viva, e a mais atilada de toda a classe. Mas tinha de ser excluída de uma aula: não podia tomar parte na lição de religião, porque a escola era cristã.
   Durante aquela aula podia ela abrir o seu compêndio de geografia, ou resolver o problema do dia seguinte. Mas terminado este, e sabida também a lição de geografia, deixava o livro aberto e punha-se a escutar. Ouvia, silenciosa, as palavras do professor cristão; e ele não tardou em notar que ela prestava mais atenção do que as outras crianças.
  - lê o teu livro, Sara - disse um dia o professor com voz branda, mas firme.
   Contudo os olhos da menina, aqueles olhos pretos, tão brilhantes, continuavam fixos nele. e quando um dia lhe fez uma pergunta, viu que Sara sabia responder, e gravara profundamente no coração tudo quanto ele dissera.
   Seu pai era um homem pobre e honesto; ao matricular a menina, impusera a condição de que ficaria excluída do ensino religião cristã. Contudo, para evitar que surgisse alguma perturbação ou alguma dificuldade entre as outras crianças, não a afastavam da classe durante essas lições, permitindo-lhe que ficasse na sala. Agora porém, aquilo não podia continuar assim.
   O professor foi falar com o pai e explicou-lhe que devia retirar a menina daquela escola, senão corria ela o risco de se tornar cristã. E declarou:
   - Já não posso contar como espectadores indiferentes aqueles olhos radiantes da menina; ela demostra grande fervor, e uma alma sedenta das palavras do Evangelho.
   Derramando lágrima, o pai respondeu:
  - Eu mesmo seu muito pouco acerca dos preceitos dos meus antepassados. Mas a mãe de Sara era uma filha de Israel, jurei-lhe que nossa filha nunca se batizaria. Tenho de cumprir o meu juramente, que para mim vale uma união com Deus!
   E a menina judia saiu da escola dos cristão
     Correra anos.
   Em uma cidade pequenina da província, servia numa casa humilde uma pobre moça israelita. Tinha cabelo preto como o ébano e olhos escuros como a noite; mas eram tão cheios de brilho e de luz como costumam ser os olhos da filhas do Oriente. Era Sara. Conservava no rosto aquela mesma expressão da criança que sentava na carteira da classe a escutar, pensativa, as palavras do professor cristão.
   Todos os domingos o som do órgão da igreja e do canto da congregação atravessava a rua e inundava a casa onde a moça judia, em tudo diligente e fiel, se entregava aos seus trabalhos. Uma voz interior dizia-lhe: " Guardarás o sábado." Era a voz da Lei. Mas o seu sábado era para os cristãos um dia útil, e aprecia-lhe que aquilo não bastava. E do íntimo da alma subia uma pergunta:
   - Deus também contará os dias e as horas?
    E depois que essa ideia lhe ocorrera, consolava-se ao pensar que a hora da oração era menos perturbada no domingo dos cristão. E então, quando  entravam pela cozinha onde trabalhava os sons do órgão e dos hinos, até aquele lugar se tornava sagrado para ela. E punha-se a ler naqueles instantes o Velho Testamento, tesouro e esteio de seu povo - mas lia somente o Antigo. O que lhe haviam dito o pai e o professor, quando ela deixou a escola, o juramento que o pai fizera à mãe agonizante - que a filha jamais receberia o batismo cristão, que ela nunca renegaria a fé dos antepassados - tudo isso permanecia gravado no íntimo da alma. O Novo testamento devia ser para ela um livro selado; e contudo sabia tanta coisa daquele livro! O Evangelho ecoava-lhe na alma, justamente com as lembranças da infância.
   Uma noite estava sentada a um canto da sala; o patrão lia em voz alta, e ela podia escutar tranquilamente, pois ele não lia o Evangelho, mas um velho livro de histórias. Tinha pois o direito de ouvir a leitura.
   Contava o livro, a história de um cavalheiro húngaro que fora feito prisioneiro por um paxá turco. O paxá mandou jungir o prisioneiro ao arado, juntamente com os bois, e ordenou que o açoitassem e torturassem, em meio de zombarias, até que caísse de inanição. A esposa leal do cavalheiro vendeu sua joias, penhorou o castelo e as terra; os amigos do cavalheiro reuniram grande somas - pois o resgate exigido era uma quantia quase astronômica. Conseguiram, porém, reuni-la e o cavalheiro foi resgatado da escravidão e da ignomínia. Enfermo e combalido chegou à pátria; mas logo atroou os ares um chamado geral, para o luta contra o inimigo da cristandade. O cavalheiro ouviu o chamado, e nada pode retê-lo. Não descansou um só dia. Ordenou que o montassem no seu cavalo de batalha. Voltou-lhe a cor às faces; parecia que recuperara as forças perdidas, quando partiu para o combate, para a vitória.
    E aquele mesmo paxá que mandara atrelá-lo à charrua caiu-lhe nas mãos, prisioneiro, e foi encarcerado nas masmorras do castelo. Mas menos de uma hora depois, lá ia o cavalheiro falar-lhe:
   - Sabes o que te espera?
  - Sim, a tua vingança.
   - É verdade, mas é a vingança de um cristão. A doutrina do Cristo manda-nos perdoar io inimigo, pois Deus é amor. Vai-te em paz! Parte para a tua terra! Devolvo-te aos teus. Mas daqui em diante procede com humanidade e brandura com os que padecem!
   Ouvindo aquelas palavra, o prisioneiro rompeu em pranto e exclamações:
   - Como poderia eu imaginar que havia no mundo tamanha brandura? Estava certo de que me esperavam tormentos ignominiosos, por isso tomei o veneno que trouxe escondido. Dentro de poucas horas sucumbirei ao seu efeito. Tenho de morrer, não há salvação. Mas antes de morrer desejo que me comuniques a doutrina de que dimana tamanha abundância de amor e de clemência, porque deve ser grande e divina! Deixa-me morrer nessa doutrina, como um cristão!
    E foi feita a sua vontade.

Essa era a lenda que o patrão leu no velho livro de histórias. Todos a escutavam com grande interesse. Mas a que lá estava sentada, em silêncio no seu canto, essa sentia-se inflamada. Grossas lágrimas inundavam-lhe os negros e brilhante olhos. E ali ficou, piedosa e simples, como outrora na carteira da classe, sentido e magnitude do Evangelho, enquanto as lágrimas lhe iam correndo pelas faces.
  Contudo, as últimas palavras da mãe agonizante tornaram a lhe soar dentro do coração:
   "Não permitas que minha filha se torne cristã!"
    E com elas soava também o mandamento:
  "Honrarás pai e mãe!"
    - Não, eu não sou admitida na comunidade dos cristãos - disse ela consigo. - Chamam-me"judia suja". Os meninos do vizinho assim disseram no domingo, quando fiquei parada diante da porta aberta da igreja, vendo os círios chamejarem e ouvindo o canto da congregação. Desde os tempos da escola experimento o poder do Cristianismo, um poder que se assemelha a um raio de sol; por mais que eu cerre os olhos, ele me ilumina o coração! Contudo, não te magoarei no teu túmulo, minha mãe. Não faltarei ao juramento que meu pai fez: não lerei a Bíblia cristã. tenho o Deus dos meu antepassados e ficarei com Ele..
              ***
   Mais uma vez correram anos.
   Morreu o patrão. A viúva fico sem recurso. Queriam despedir a criada, mas Sara não abandonou a casa. Foi um esteio, na miséria; mantinha tudo em ordem, trabalhava até altas horas da noite, ganhando com o seu esforço o pão de cada dia. Não apareceu nenhum parente para ajudar a família, e a viúva ia ficando cada vez mais fraca, e passou na cama meses inteiros. Sara trabalhava e também ia sentar-se ao pé do leito da enferma, dela cuidando, e velando por tudo. Era boa e piedosa - era um anjo de benção, naquela pobre casa.
   Um dia a doente disse-lhe:
    - Ali está a Bíblia, sobre a mesa, Sara. Lê-me um pouco...A noite me parece tão longa, tão longa...e meu coração tem sede da palavra de Deus.
   E Sara, curvando a cabeça, pegou no livro. Uniu as mãos em torno da Bíblia dos cristão, abriu-a e leu para a doente. A cada passo sentia os olhos rasos de lágrima; mas eles luziam e                 cintilavam, enquanto no seu coração ia fazendo-se a luz.
   - Mãe! - disse ela baixinho. - Tua filha não deve receber o batismo dos cristãos; não deve ser recebida na comunhão dele. Assim o determinaste, eu hei de honrar a tua vontade. Quanto à vida neste mundo, estou de acordo contigo. Mas para além desta terra, mais além, existe uma união mais sublime, em Deus, que nos conduz e guia para além da morte. Assim o compreendo. Não sei mensmo como foi que aprendi a compreender, mas foi por intermédio de Cristo.
   Estremeceu ao pronunciar  o nome sagrado, e desceu sobre ela um batismo, como se fossem labaredas de fogo, que se  apoderava de todo o corpo. Ela torcia-se em convulsões; os membros perdiam a força. Caiu desmaiada, mas fraca do que a enferma que estava cuidando.
   - Pobre da Sara! - diziam todos. - Está exausta pelo trabalho e pelas vigílias.
    Levaram-na para o hospital dos pobres. Lá morreu, e foi levada, para o túmulo - não no cemitério dos cristãos, onde não havia lugar para a moça judia. Foi enterrada fora do muro.
   Mas o sol de Deus, que brilha sobre os jazidos dos cristãos, lança sua luz também sobre o túmulo da judia, lá fora, junto do muro. E quando ressoam os salmos no cemitério cristão, vão eles ecoar também por sobre o túmulo solitário.
   Também àquela morta destina-se o chamado da ressurreição, em nome de Cristo, Nosso Senhor, que disse aos seus discípulos:
   " João certamente batizou com água: mas vós sereis batizados com o Espírito Santo." FIM

   

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