segunda-feira, 22 de agosto de 2016

PAROLICE DE CRIANÇAS - CONTOS DE ANDERSEN

    Em casa do comerciante mais rico da cidade reunira-se um grupo de crianças- crianças de famílias abastadas, filhas de gente de trato.
    O negociante era homem instruído; fizera exames. Assim o determinara seu pai, que começara a vida como tropeiro. Ativos e honestos, pai e filho prosperavam.
   O negociante não  era apenas inteligente e capaz: tinha também coração. Iam à sua casa pessoas bem-postas, pessoas de origem nobre, pessoas distintas pelo espirito. Umas tinham ao mesmo tempo o espirito e o nascimento; outras não possuíam por si nem uma nem outra coisa.
  Naquela tarde havia na casa do negociante uma reunião de crianças. Essas criaturinhas tagarelavam, tagarelavam o mais que podiam, e diziam com toda a franqueza o que pensavam.
    Entre elas estava uma meninazinha de beleza fora do comum. Mas como era presunçosa! A culpa cabia à criadagem, que a estragava com tanta lisonja. Os pais, ao contrário, eram pessoas de muito bom-senso, e não se orgulhavam da sua nobreza mais do que convinha. O pai era camareiro real. É uma alta posição, não há dúvida. Sabia-o a menina, que dizia às camaradinhas:
   - Sou filha da câmara do rei!
   Poderia também ter sido uma filha de adega: isso não dependia dela. Não cessava de repetir, contudo, às outras crianças, que era bem-nascida:
   - Quando a pessoa não é bem-nascida, não pode a coisa alguma. Nem que saiba ler e escrever, nem aprenda bem as lições - é tudo trabalho perdido: não há remédio nenhum! E os que tem um sen no nome?...*Esses então nunca podem ser nada, nada, nada! Quando essa gente se aproxima de nós, temos de firmar bem os punhos na cinta para afastá-la.
   E ela apoiava as lindas mãozinhas nas ancas, procurando fazer os cotovelos bem pontudos, para mostrar de que maneira era preciso afastar os plebeus. E que figurinha deliciosa era então aquela, com aqueles bracinhos tão pequeninos!
    Mas a filhinha do negociante irritou-se ao ouvir tais palavras. Seu pai chamava-se Petersen; ela não consentia que os sen fossem considerados daquela maneira. E, assumindo o tom mais altaneiro que pode, retrucou:
   - Sabes que meu pai é bastante rico para comprar cem cruzeiros de bombons e atirá-los às crianças da rua ? E o teu, pode fazer a mesma coisa?
   - Mas escuta! - acudiu a filha de um homem de letras. - O meu pai pode botar o teu e todos os outros no jornal. Todo o mundo tem medo dele...dele e do seu jornal! A mamãe diz que ele é uma potência!
    E as crianças todas se empertigavam, encarando-se uma às outras, com ares de superioridade.
  Lá fora, pela porta entreaberta, um rapazinho pobre espiava as maravilhas da festa. Valia tão pouco neste mundo, que nem sequer lhe era permitido entrar para ver mais de perto. Tinha dado uma demão à cozinheira, cuidando do espeto, e em recompensa teve licença de ir olhar a assembleia daquelas crianças vestidas com tanto esmero. Era já grande felicidade para ele.
    Ouvira o que diziam as meninas, e sentiu-se então acabrunhado de tristeza. Seus pais, muito pobres, não tinham nem título, nem tesouro, nem jornal, nem nada; e - o que era muito pior- o nome de seu pai, o seu nome, acabava em sen. Toda a esperança estava, portanto, perdida; nunca chegaria a nada no mundo!
   Entretanto, parecia-lhe impossível que não fosse bem-nascido, pois lhe tinham dito até qual fora o dia do seu nascimento. Mas isso, ao que parecia, não era bastante.
                       II
  Muitos anos se passaram. Todas aquelas crianças cresceram; são agora gente grande.
  Na cidade ergueu-se uma casa magnífica, ou antes, um palácio, cheio de objetos de arte. Todos os habitantes desejam visitar o palácio, e é uma honra ser admitido lá dentro. Vem de longe uma multidão de forasteiros para admirar todas aquelas maravilhas.
   Pois esse palácio é a morada de uma daquelas crianças de quem acabamos de falar.
   A qual delas pertencerá o palácio?
   Pertence ao rapazinho pobre, que outrora escutava atrás da porta. Aquele menino veio a ser alguma coisa, apesar de ter um nome terminado em sen. É Thorwaldsen, e célebre escultor.
  E as outras três crianças, aquelas meninazinhas tão orgulhosas do nascimento, da riqueza, da influência dos pais? Que foi feito delas? Que são hoje? Não sei muito bem. Estão aí, na multidão desconhecida. Sem dúvida não foram infelizes, pois que tinham sido bem dotadas pela natureza; mas já devem ter visto que tudo quanto disseram naquela tarde não passava de parolice de crianças.
FIM

Nenhum comentário:

Postar um comentário