domingo, 14 de agosto de 2016

O GARGALO- CONTOS DE ANDERSEN

         Na viela estreita e tortuosa, entre outras casas pobres, havia uma casinha de taipa, estreitinha e de considerável altura; maltratara-a tanto o tempo, que já estava se desconjuntando por todos os lados. Abrigava gente pobre, e certamente era a água-furtada (Sotao que abra a janelas para as águas do telhado)parte mais miserável. Ali, mesmo debaixo do telhado, junto da única janelinha, pendia uma gaiola velha e também desconjuntada; e apanhava os raios do sol um passarinho que nem sequer possuía um bebedouro: serviam-lhe a água num gargalo de garrafa, voltado com a boca para baixo, e fechado com uma rolha.
    A solteirona que estava ao pé da janela pusera alpiste na gaiola, e o pequenino pintarroxo saltitava de um poleiro para o para o outro, cantando alegremente.
    - Sim- disse o gargalo- tu, sim podes cantar...
    Cumpre notar que o gargalo não se exprimia como nós: um gargalo não pode falar. Ele pensava lá de si consigo, no seu íntimo, como nós, homens, falamos com os nossos botões. Mas continuou:
    - É, tu podes cantar, tens intatos todos os teu membros...Queria que visses o que é a gente perder a parte inferior, e ficar somente com pescoço e boca, e ainda assim com ela fechada por uma rolha, como eu! Isso sim, que não cantarias! E, contudo, é bom que haja gente alegre no mundo. Eu cá não tenho motivos para cantar, e nem  posso cantar, mesmo. Mas quando era uma garrafa sã, costumava cantar, quando me esfregavam com uma rolha. Então chamava-se "calhandra(cotovia), uma verdadeira calhandra", e "grande calhandra". Foi quando fiz o piquenique no mato com a família do curtidor, e a filha contratou casamento. Lembro-me como se fosse hoje! Já passei muitos trabalhos na vida; já estive no fogo e na água, no fundo escuro da terra e em lugares mais altos do que a maioria das pessoas pode alcançar...E agora aqui estou, no canto desta gaiola, exposto ao ar e à luz do sol. Sim: acho que valeria a pena ouvir a minha história.
    E o gargalo começou a contar a sua história, que era bastante estranha, na verdade. Contava-a para si mesmo, recordando-a silenciosamente lá no seu íntimo. O passarinho cantava alegremente a sua canção, e lá embaixo, na rua, era grande o tráfego e a correria. É que lá cada um pensava nas coisas que lhe diziam respeito- ou em coisa nenhuma. Só o gargalo não deixava de meditar. Lembrou-se da fábrica, do cadinho em brasa onde, com um sopro, o tinham chamado à vida. Lembrava-se  ainda que sentira então muito calor, e que deitara olhares para o grande fogão sibilante, que era o seu berço, e sentira um grande desejo de voltar para ali em um pulo. Mas, ao passo que ia resfriando, ia-se sentindo mais à vontade, no sítio onde o tinham deixado. Via-se alinhado em uma fila, com um regimento inteiro de irmãos e irmãs, todos saídos do mesmo fogão; é certo que algumas tinham a forma de garrafas de champanha, outras de cerveja- e isso traz sempre alguma diferença. Mais tarde, lá no mundo, pode acontecer que uma garrafa de cerveja venha a conter o mais delicioso Lacrima Christi, e a champanha se veja cheia de graxa de sapatos; mas ao menos se verá, pelo feitio, para o que a gente nasceu. Nobreza é sempre nobreza, ainda que só contenha graxa no bojo.
     Todas as garrafas foram encaixotadas, e com elas a nossa conhecida. Naquela época não lhe passara pela cabeça que havia de terminar a sua carreira reduzida a um gargalo, elevado pelo esforço próprio à categoria de bebedouro, o que é , afinal, uma existência honrosa, pois que sempre a gente representa alguma coisa.
   A garrafa só tornou a ver a luz do dia quando, na adega do negociante de vinhos, foi desencaixotada com as companheiras, e lavada pela primeira vez. E que coisa  curiosa! Ali estava ela, vazia e sem tampa, com a estranha sensação de que lhe faltava alguma coisa, embora não soubesse o que era. Afinal encheram-na de vinho, e de um vinho excelente. Deram-lhe também uma rolha, e selaram-na. Colaram-lhe no bojo um rótulo que dizia: "Primeira qualidade"; e ela se sentia como se tivesse tirado o primeiro lugar em um exame, Mas o vinho era na verdade bom, e a garrafa também era boa. A gente moça tem queda para a poesia, e ela sentia vibrarem e ressoarem dentro de si coisas que nem sequer conhecia, e que falavam de verdes colinas iluminadas pelo sol, onde cantam e se namoram alegres vinhateiros e vinhateiras. Ah! Como é bela a vida! Pois tudo isso ressoava e cantava dentro da garrafa, tal e qual como se passa com os jovens poetas, que muita vez nem compreendem o que é que canta dentro deles.
    Um dia foi comprada. o aprendiz de curtidor viera buscar uma garrafa de vinho, " do melhor". Meteram-na no cesto do farnel, ao lado do presunto, do queijo e do salame. E com ela iam também a manteiga mais fina, o pão mais fofo. A própria filha do curtidor arranjava a merenda no cesto. Era moça e bela, e brincava-lhe o sorriso nos olhos e nos lábios. tinha as mãos macias e brancas- não tão brancas como o pescoço e o peito. Via-se logo que era uma das moças mais lindas da cidade, e, ainda assim, não tinha noivo.
    Achava-se o cesto de provisões no colo da moça, quando o carro que levava a família partiu para o mato. O gargalo da garrafa espiava por entre as pontas do guardanapo branco. Na rolha havia um verniz vermelho. A garrafa olhou bem para o rosto da moça; encarou também o jovem marinheiro que ia sentando ao lado dela. Era um  amigo de infância, filho de um retratista. Saíra-se muito bem, ainda há pouco tempo, no exame que fizera para primeiro piloto, e no dia seguinte devia partir em um navio que ia para longe, para um país exótico. Enquanto arrumavam o cesto, falavam nisso, e a alegria parecia então desaparecer dos olhos e da boca da bela filha do curtidor.
    Passeava os jovens pela floresta verde, e conversavam. O que diriam não o ouvira a garrafa, que ficara no cesto da merenda. Só depois de muito tempo é que ela foi retirada dali, mas já então tinha havido muita alegria. Riam todos, e também a filha do curtidor; mas a moça falava menos que antes, e nas faces brilhavam-lhe duas rosas vermelhas.
   O pai pegou na garrafa cheia e no saca-rolhas. Sim, é coisa esquisita, quando desarrolham uma garrafa pela primeira vez, e o gargalo nunca pode esquecer aquele momento solene. Alguma coisa, lá no seu peito, dissera "poc! quando saltou a rolha. E que estranho glu-glu-glu fazia o vinho, ao ser deitado nas taças!
   - Vivam! Vivam os noivos! - disse o velho pai.
    E os copos foram esvaziados, e o jovem piloto beijou sua bela noiva.
   - Sejam muito felizes! - disseram os pais.
   O moço encheu de novo, as taças, dizendo:
    - Regresso e casamento daqui a um ano!
    Esvaziados os copos, apanhou a garrafa, ergueu-a bem alto, e disse:
    - Tu, que estiveste presente no dia mais belo da minha vida, não tornarás a servir a mais ninguém!
    E atirou-a para o ar.
    Naquele instante ,mal poderia a filha do curtidor imaginar que havia de ver outra vez voar aquela garrafa. E contudo, havia de ser assim!
     Mas naquele momento a garrafa foi cair no denso caniçal que havia à beira do lago do bosque. O gargalo ainda tinha bem viva recordação do tempo que ali passara, pensando:
   - Dei-lhes vinho, e eles me dão água do pantanal. Mas a intenção era boa, isso era....
     Agora já não via os noivos, nem os alegre velhos, mas durante muito tempo ainda ouvira seus cantos de regojizo. Finalmente apareceram ali dois filhos de um camponês, que espiaram pelo juncal; descobriram a garrafa e levaram-na. Agora, estava ela bem guardada.
     Em casa do camponês, na mata, o filho mais velho, que era marinheiro, estava preparando-se apra uma longa viajem, e tinha vindo passar o dia com a família, em despedida. Naquele momento a mãe empacotava algumas coisas que ele devia levar; e o pai iria levar-lhe, à noite, o pequeno fardo, quando fosse vê-lo pela última vez, na cidade. Já fora embrulhada uma garrafinha de aguardente, infuso de ervas, quando entraram os meninos com a outra garrafa, maior e mais resistente, que acabavam de achar. Disseram à mãe que naquela  caberia mais infusão, e que "aguardente era coisa muito boa para o  estômago, porque continha ervas". Achavam pois que era a garrafa grande, e não a pequena, que devia ir.
    E foi assim que ela recomeçou a peregrinação. Foi para bordo com Peter Jensen, foi para bordo do mesmo navio em que navegava o jovem piloto. Mas este não viu a garrafa, nem a teria reconhecido, se a visse, e nem sequer imaginar que era a mesma com que tinham celebrado o noivado, e dado vivas ao regresso.
   É verdade que ela já não oferecia vinho; mas abrigava agora no bojo uma coisa igualmente boa. Quando Peter Jensen a tirava da mala, os companheiros a chamavam de "farmácia", porque ela sempre lhes oferecia um excelente remédio, o remédio que curava o estômago. Fôra uma quadra cheia de alegria, e a garrafa cantava, quando a acariciavam com a rolha: chamavam-na então a grande calhandra, a calhandra de Peter Jensen.
    Passaram-se longos dias, e meses. A garrafa já se achava vazia, em um canto. Aconteceu então - se foi na ida ou na volta, não sabia dizer a garrafa, porque nunca desembarcara - aconteceu, porém, que se levantou uma tempestade. enormes vagalhões se acercavam, pesados e sombrios, e erguiam e sacudiam o navio. Partiu-se o masto grande. Uma vaga rebentou uma da tábuas do costado. As bombas não davam vencimento. E a altas horas da noite o navio afundou. No ultimo instante o jovem piloto escreveu em uma folha de papel:" Em nome de Cristo, estamos naufragando!" Escreveu o nome da noiva, o seu, e o do navio; pôs a folha em uma garrafa que havia enchido, outrora, para ele e para noiva, a taça da alegria e da esperança. E agora anda aquela a garrafa balouçando nas ondas, carregando no bojo a mensagem de despedida e a notícia fatal.
   Afundou-se o navio, e com ele a tripulação, enquanto a garrafa voava como uma ave; afinal ela escondia em si um coração, uma carta de amor. O sol nasceu e tornou a se esconder. A garrafa sentia aquele mesmo anseio que experimentava quando nasceu nas brasas do fogão; sentia desejos de voar outra vez para o lugar de onde saíra - tinha saudades.
   Passou por calmarias e sofreu novas tempestades. Contudo não bateu em nenhum recife, nem foi devorada por nenhum tubarão. Andou boiando, dias  e anos, ora para o lado do Norte, ora para o Sul, ao sabor da corrente. Afinal, ela era livre, senhora de seus atos; mas o certo é que até disso a gente pode sentir-se farta.
    A folha escrita, o último adeus do noivo à noiva, levaria somente pesar, se um dia caísse nas mãos da destinatária; mas onde estavam aquelas mãos tão brancas e tão macias, que naquele dia do noivado tinham estendido sobre a fresca relva da mata verde a toalha tão branca? Onde estava a filha  do curtidor? Sim, onde estava o país, e qual era, dentre os outros países, o que lhe ficava ao lado? Não o sabia a garrafa; boiava, e continuava boiando, até sentir-se farta daquelas andanças, que não eram afinal, do seu ofício. E, ainda assim, prosseguiu vagando, até que um dia alcançou terra, num país estranho. Não entendia uma palavra do que ali diziam; não era aquele  o idioma que ouvira falar outrora. E,quando a gente não entende a língua, muita coisa se perde!
     A garrafa foi pescada e examinada por todos os lados. retiraram o bilhete que trazia, e também este foi examinado e virado de todos os lados; mas as pessoas daquele lugar não entendiam o que estava escrito naquele papel. Compreenderam, é claro , que a garrafa tinha sido arrojada ao mar, e que o papel dizia alguma coisa a esse respeito, mas que diria ele? Isso ninguém podia saber. Tornaram pois a colocar o bilhete dentro da garrafa e puseram-na em cima de um grande armário. E ali ficou ela, na vasta sala de um casarão.
   Cada vez que aparecia algum forasteiro o bilhete era retirado da garrafa; viravam-no e reviravam-no, e o texto, escrito a lápis, ai ficando de dia a dia menos legível. Afinal já não se via letra alguma no papel. E por mais um ano viveu a garrafa sobre o armário; dali a levaram para o sótão; e foi-se cobrindo de poeira e de teias de aranha.
     Como se lembrava agora de dias melhores, do tempo em que, na fresca mata verde, oferecera vinho tinto; e dos anos que levara, dançando nas ondas do mar, guardando no seio um segredo, uma carta, um suspiro de adeus! E lá ficou naquele sótão vinte anos bem contados. Poderia ter ficado mais tempo, se não fora a reforma da casa. Demolindo o telhado, viram a garrafa. Falaram a seu respeito, é verdade; ela, porém, não entendia a língua - isso não se aprende, nem em vinte anos, só pelo fato de ficar lá no sótão.
    - Se me tivessem deixado na sala- pensava ela- provavelmente saberia agora o idioma daqui.
    Foi então lavada e enxaguada, o que era bem necessário. Viu-se clara e transparente, remoçada, apesar da idade; mas o bilhete que conservara fielmente, perdeu-se na lavagem.
    Encheram-na de sementes. Ela não compreendia o que aquilo representava. Foi tampada e embrulhada com cuidado; tanto, que não via mais luz de vela nem da lanterna, e menos ainda o sol ou a lua. Ora, quando se viaja, é preciso ver alguma coisa; mas a garrafa nada viu; contudo, fez o que era mais importante; partiu e chegou ao lugar do seu destino, e lá foi enfim desembrulhada.
     - Quanto trabalho tiveram eles, lá no estrangeiro, com esta garrafa! - ouviu ela que alguém dizia. - E agora, hão de ver que está quebrada!...
   Não não estava, não. E a garrafa entendia o que diziam: era a língua que ouvira ao pé do fogão, e em casa do negociante de vinhos, e na mata e no navio; a única língua velha e boa, que a gente podia entender! Regressara à sua terra, e aquele idioma era para ela uma saudação de boas-vindas. De tanta alegria, quase saltou das mãos que a desenrolavam. Nem notou que lhe tiravam a rolha, e despejavam o conteúdo; transportaram-na depois para o porão, onde ficou guardada e esquecida. Mas a terra da gente é sempre o melhor lugar do mundo, ainda que seja para viver em um porão!
    Nunca lhe passaria pela mente a ideia de verificar quanto tempo passou ali. Ficou bem acomodada, e isso durante anos e anos. Finalmente um dia desceu alguém, que levou todas as garrafas que havia no porão, e ela lá se foi com as outras.
   Lá fora, no jardim, havia uma grande festa. Tinham feito fieiras de lâmpadas acesas, suspensas nos galhos; lanternas de papel, postas sobre colunas, pareciam grandes tulipas brilhantes. A noite estava esplêndida, clara e serena. As estrelas cintilavam. Era lua nova, mas avistava-se no céu o disco inteiro, azul-acinzentado, dourado na beira - um belo espetáculo para os que tinham boa vista.
    Até os caminhos mais distantes do jardim tinham sido iluminados, de modo que as pessoas podiam andar por toda a parte. Entre a folhagem das sebes havia garrafa com velas acesas, e entre elas estava também aquela que já conhecemos, e que havia de acabar a carreira feito bebedouro. Ela achava tudo aquilo maravilhosamente belo: encontrava-se de novo ao ar livre, via-se outra vez no meio da alegria e da festa, ouvia cantos e música, e a  algazarra e o murmúrio de muitas pessoas que passavam, vindo principalmente da parte do jardim onde ardiam as lâmpadas, e as lanterna de papel ostentavam a pompa de suas cores. É verdade que estava em um caminho solitário, mas isso também tinha certo encanto, todo contemplativo: sustentava no gargalo sua vela, pois estava ali para utilidade e prazer dos outros, como é nosso dever. E num momento assim a gente até chega a esquecer os vinte anos passados no sótão, e esquecer também faz bem.
    Passou junto dela um casal de namorados, como outrora aqueles noivos na floresta, o piloto e a filha do curtidor. Pareceu-lhe que viva tudo aquilo pela segunda vez. passeavam no jardim não somente os convidados, mas também outras pessoas, às quais fora permitindo olhar para aqueles, e admirar toda aquela pompa. Entre estas andava uma solteirona, que vivia só no mundo, pois não tinha parentes. E passavam-lhe pela cabeça os mesmos pensamentos que acudiam à garrafa; lembrou-se da mata verde, e de um jovem casal de noivos que lhe era muito caro, e cuja sorte muito lhe interessava: tomara parte no passeio, naquela hora - a mais feliz da sua vida. Uma hora assim nunca se esquece, nem mesmo depois da velha solteirona! Contudo , ela não reconheceu a garrafa, e nem esta lhe notou a presença. E é assim que neste mundo vamos passando uns pelos outros - até que um dia se dê o reencontro. E que tornara a se encontrar é certo, pois viviam ambas na mesma cidade.
     Do jardim foi mais uma vez a garrafa levada à casa do negociante de vinhos; e venderam-na ao aeronauta que no domingo seguinte pretendia subir em um balão.
    Grande era multidão que se reunira para "ver aquilo". Muitos preparativos tinham sido feitos, até uma banda de música fora contratada. Do cesto, onde se achava ao lado de um coelho vivo, a garrafa via tudo. o coelho estava pasmado, pois bem sabia que ia subir com o aeronauta, para ser lançado em um pára-quedas. A garrafa, essa nada sabia de subidas nem descidas. Via apenas o balão, que se enchia, e ia ficando cada vez maior, maior, e quando não podia já aumentar de volume, ergue-se do chão, ficando cada vez mais inquieto. Foram cortados os cabos que o prendiam, e, levando consigo o aeronauta, o cesto, o coelho e a garrafa, lá subiu o balão, enquanto tocava a música e a multidão gritava:
   - Viva! Viva!
   - Que viagem esquisita, assim pelos ares! - pensava a garrafa.- É uma nova espécie de viagem à vela...Aqui em cima a gente ao menos não pode esbarrar em nada!
    Milhares de pessoas acompanhavam o balão com os olhos, e a velha solteirona também olhou para ele. Estava à janela do seu sótão, sob a qual se via pendurada a gaiola do pintarroxo, que então ainda não possuía bebedouro: tinha de se contentar com uma chícara. No peitoril da janela havia também um vaso com um pé de murta; não fora posto no centro, para que não o deitasse abaixo a solteirona, quando se debruçasse a ver o que se passava na rua. E ela viu nitidamente o aeronauta e o balão, e viu-o descer o coelho no pára-quedas; viu-o, finalmente, atirar a garrafa para o ar. Mas nem um instante lhe veio à lembrança que já tinha visto aquela mesma garrafa a voar assim, e em honra de si própria e do seu noivo, naquele alegre dia, na mata verdejante, no tempo da mocidade.
    A garrafa não teve tempo de meditar. Viera-lhe subitamente, da maneira mais inesperada, a sensação de que se achava no apogeu da existência. As torres e telhados ficavam muito distantes, lá embaixo ; e os homens pareciam uns pigmeus.
    Mas agora ia caindo, caindo, e com uma velocidade muito diferente da do coelho! Ela dava cambalhotas no ar; sentia-se tão moça, e tão completamente livre!
   Ainda continha vinho, até pelo meio, talvez; mas isso não durou muito. Que viagem! O sol fazia luzir, os homens olhavam par ela; o balão já estava longe, e em poucos minutos também a garrafa se sumia; caíra sobre um telhado e despedaçou-se, mas os cacos traziam tamanho impulso que não puderam ficar ali deitados: continuaram a saltar, e assim chegaram ao pátio, onde ficaram enfim parados, mas reduzidos a caquinhos ainda menores. Apenas o gargalo ficou inteiro: parecia cortado a diamante.
   - Este dá um excelente bebedouro -disse alguém lá no porão.
    Ora eles não possuíam gaiola, nem passarinho, e comprar uma coisa dessas, só porque agora tinham um gargalo que poderia servir de bebedouro, era exigir muito! Mas...e a solteirona, lá do sótão? Quem sabe se ela poderia aproveitá-lo?
    E foi assim que o gargalo foi ter às suas mãos. Fecharam-no com uma rolha, e aparte que dantes ficava para cima foi parar embaixo, como acontece muitas vezes, nas revoluções. Deitaram-lhe água fresca, e suspenderam-no na gaiola do passarinho. que gorjeava alegremente.
        - É, tu sim, podes cantar! - disse o gargalo.
    E é de notar que era um gargalo notável, pois viajara em um balão. Não  se sabia mais nada da sua história. mas agora servia de bebedouro, ouvia de lá o zunzum da rua, e a voz da solteirona no quarto.
    Fora visitá-la uma velha amiga, e conversaram- não a respeito do gargalo, não: falavam da  murta da janela:
      - É isso: não precisas gastar um vintém com a grinalda de noiva de tua filha. Eu quero oferecer-lhe um belo ramalhete, bem cheio de flores. Vês como a planta se desenvolveu? Pois ela provém de um raminho que me deste no dia  em que contratei casamento: dessa muda eu devia tirar a minha grinalda de noiva, um ano depois. Mas...esse dia nunca chegou! Fecharam-se os olhos que estavam escolhidos para me iluminar a vida, para me trazerem bençãos e alegria. E o meu leal amigo dorme no fundo do oceano...A murta cresceu, era já uma árvore, envelheceu, mas eu envelheci mais ainda, e quando a árvore estava já muito velha tirei o seu último raminho verde e plantei-o. Esse ramo chegou a ser uma grande árvore também; e a murta poderá afinal servir num casamento: será a coroa de noiva de tua filha.
   A velha solteirona tinha os olhos cheios de lágrimas. Falou do amigo da infância, do noivado no bosque; vieram-lhe muitos pensamentos, mas nunca teve a menor ideia de que bem perto dela, mesmo ao pé da janela, estava outra recordação daqueles tempos: o gargalo da garrafa que dera um grito de júbilo quando a rolha estourara, na hora do noivado.
     Mas o gargalo tampouco a reconheceu: não ouvia o que ela contava, porque só pensava em si próprio.
FIM
 


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