segunda-feira, 26 de julho de 2021

AVENTURA DE PEDRO MALAZARTE - LINDOLFO GOMES

 Para terminar este passeio  através do Conto Brasileiro, nada mais indicado que um conto que represente bem o espírito popular brasileiro. E, para isso, nada mais apropriado que a seguinte versão das aventuras de Pedro  Malazarte, de autoria de Lindolfo Gomes, escritor que é uma das maiores autoridades no assunto.

   Pedro Malazarte é um dos poucos personagens de ficção conhecidos em quase os recantos do Brasil. Mais do que o Saci-Pererê, mais do que  Iara, mais do que o Negrinho do Pastoreio, ele exprime bem, um certo ângulo da psicologia popular brasileiro: - ingênuos, arteira e irônica.



   AVENTURAS DE PEDRO MALAZARTE


          Quando o pai de Pedro Malazarte entregou a alma a Deus, fêz-se a partilha dos bens, uma casinha velha, entre os filhos e tocou a Pedro uma das bandeiras da porta da casa, com o que ele ficou muito contente.

    Pôs a porta no ombro e saiu pelo mundo. Em caminho viu um bando de urubus sobre um burro morto. Atirou a porta sobre eles e caçou um urubu que ficou com a perna quebrada.

   Apanhou-o, pôs a porta à costas e continuou viagem.

 Obra de uma légua ou mais, avistou uma casa de onde saía fumaça. o que queria dizer que se estava preparando o jantar. Pedro Malazarte, que sentia fome, bateu à porta e pediu de comer.

   Veio atendê-lo uma  lambisgóia que foi logo dizer à patroa que ali estava um vagabundo, com um urubu e uma porta, a pedir de jantar.

   A mulher mandou que o despachasse - que a sua casa não era coito de malandros.

   O marido estava de viagem e a mulher no seu bem-bom a preparar um banquete para que bem ela muito bem o destinava. Neste mundo h´coisas.

  Pedro Malazarte, tão mal recebido que foi, resolveu subir para o telhado, valendo-se da porta que trazia e lhe serviria de escada, Subiu e ficou espreitando o que se passava naquela casa, tanto mais que sentia o cheiro de bons petiscos.

   Espiando pelos vãos das telhas viu os preparativos e tomou nota das iguarias, e ouviu as conversas e confidências da patroa e da empregada.

   Justamente na hora do jantar chegou o dono da casa que resolvera voltar inesperado da viagem que fazia.

   Quando a mulher percebeu que ele se aproximava mandou esconder os pratos do banquete e veio recebê-lo e abraçá-lo muito fingida, muito risonha, mas por dentro queimando de raiva.

   Vai daí mandou por na mesa a janta que constava de feijão aguado, paçoca de carne seca e cobu, dizendo:

    - Por que não me avisou, marido? Sempre se havia de aprontar mais alguma coisa....

   Sentaram-se à mesa.

   Pedro Malazarte desceu de seu posto e bateu na porta, trazendo o urubu.

  O dono da casa levantou-se e foi ver  quem era.

   O rapaz pediu-lhe um prato de comida e ele chamou-o para a mesa a servir-se do pouco que havia.

   A mulher estava desesperada, desconfiando com a volta do Malazarte.

   Pedro tomou assento, puxou o urubu para debaixo da mesa, preso pelo pé num pedaço de corda de pita.

   Estavam os dois homens conversado, quando de repente o Malazarte pisou no pé quebrado do bicho e este se pôs a gritar; uh!uh1 uh1

   O dono da casa levou um susto e perguntou que diabo teria o bicho.

   Pedro, respondeu muito sério:

  - Nada! São coisas. está falando comigo.

   - Falando! Pois o seu bicho fala?!

  - Sim, senhor, nós nos entendemos. Não vê como o trago sempre comigo? É um bicho mágico, mas muito intrometido.

   - Como assim?

   - Agora, por exemplo, está dizendo que a patroa teve aviso oculto da volta do senhor e por isso lhe preparou uma boa surpresa.

   - Uma surpresa! Conta lá isso como é.

  - É deveras! uma excelente leitoa assada que está ali naquele armário...

   -Pois é possível! Ó mulher, é verdade o que diz o urubu deste moço?

   Ela com receio de ser apanhada com todo o banquete e certa já de que Pedro sabia da marosca, apressou-se em responder:

   - Pois então? pura verdade. O bicho adivinhou. Queria fazer-te a surpresa no fim do jantar.

   E gritou pela empregada.

 - Maria, traz a leitoa.

   A empregada veio logo correndo, mas de má cara, coma leitoa assada na travessa.

Daí a pouco Pedro Malazarte pisou outra vez no pé do Urubu quesoltou novo grito.

  O dono da casa perguntou;

  - O que é que ele está dizendo?

   - Bicho intrometido! Está candogando outra vez.

Cala a boca, bicho!

 - O que é?

  - Outras surpresas.

  -Outras!

  - Sim, senhor; um peru recheado...

  - É verdade, mulher?

  - Uma surpresa, maradinho do coração. Maria, traz o peru recheado que preparei para tu amo.

  Veio o peru. E pelo mesmo expediente conseguiu Pedro Malazarte que viessem para a mesa todas as iguarias, doces e bebidas que haviam em casa.

   Ao fim  do jantar, o dono da casa vendo que o urubu de Pedro Malazarte era encantando e sabia descobrir todos os segredos, propôs-lhe comprá-lo. 

  Malazarte  pescando que estava em véspera de fazer um bom negócio, encareceu ainda mais as virtudes do urubu e pediu este mundo e o outro.

   O homem vacilou em fechar o negócio, e Pedro, justamente quando a empregada veio trazer o café na sala, disse ao dono da casa de modo que a mucamba ouvisse:

   - Este bicho é deveras  encantado, patrão. E e é capaz de descobrir outras  coisas que se passam em sua casa sem o senhor saber.

  - Não me diga isto!

   - É o que lhe digo. Mas, para que ele não emudeça e possa contar tudo que tenha visto, é preciso que haja o maior cuidado para que nenhuma mulher lhe verta água na cabeça. E se quiser experimentar deixe-o esta noite ficar no corredor que amanhã teremos que saber muitas novidades. O homem aplaudiu a proposta e prometeu comprar o urubu, se saísse certo o que dizia o Malazarte.

    Mas a empregada que tinha visto a combinação mal saiu da sala foi contar tudo à senhora, que ficou muito assustada, pois que, naquela noite, havia de receber a visita do sacristão da vila, e não sabia com arranjar para que o urubu candongueiro não pusesse tudo a perder.

    A empregada teve uma luz, e disse que não havia perigo, pois ela se encarregaria de verter água na cabeça do urubu para que ele perdesse o encanto.

 Às tantas da noite todos se foram acomodar, tendo Malazarte cuidado de deixar o bicho no corredor, fazendo de sentinela.

     Vai senão quando, lá para a virada da noite, a dona da casa, pé que pé, veio abrir a janela, por onde saltou para dentro o sacristão, enquanto a empregada estava fazendo o que prometera na cabeça do urubu.

   Quando o bicho se viu com a cabeça toda molhada, não teve mais conversa- tico! e deu uma bicada na governanta lá onde quis e ela ficou segura, e vai então a empregada soltou um grito.

   A senhora, temendo que o marido despertasse, correu para arrancar a sua mucamba do bico do bicho. Agarrou-a pelo braço, mas não houve meio. A rapariga, então, no auge do aperto, apegou-se no braço da senhora que se pôs também a gritar. o sacristão acudiu para ver se podia ajudar as duas a desvencilharem-se. mas já a este tempo. Pedro Malazarte havia despertado o dono da casa, E os dois correram a ver o que era e encontraram aqueles três assim como estavam.

  E vai então o dono da casa descobriu tudo, desancou o sacristão a pau, moeu os ossos tanto da senhora como da escrava e resolveu comprar o urubu.

  Ma aí é que foi a história. Pedro Malazarte pediu pelo bicho cinco contos de réis. Abate que não abate, o homem teve mesmo de escorropichar o cobre, vintenzinho por vintenzinho, e Pedro Malazarte , deixando ficar o urubu, de quem se despediu chorando, pôs-se a caminho, mas vendo no pátio da fazenda uma carneirada, resolveu levá-la também e foi tocando a carneirada como se fosse dono dela.

   Vendo que a vítima vinha em sua perseguição, " deu tudo quanto tinha" e ao aproximar-se de um riacho encontrou uma mulher a lavar roupa. Estava perdido,porque a lavadeira diria ao perseguidor a sua direção.

  Mais que depressa tocou a carneirada a travessar o riacho, e tomando um dos carneiros, tirou-lhe as tripas e meteu-as debaixo da camisa. Quando a manada passou, ele arrancou da faca, fingiu que  abriu o ventre e deixou cair na água as tripas do carneiro que ali levou ocultas.

   A lavadeira deu um grito, caiu desmaiada ao presencial tal cena e Malazarte desapareceu.

   Quando o perseguidor chegou a toda, e perguntou à lavadeira se tinha visto passar um homem com uma carneirada, ela respondeu, quase sem poder falar, que Pedro Malazarte havia feito o que ficou dito.

  E porque Pedro já estava longe com o rebanho, o homem voltou soltando um milhão de pragas.

   Já muito longe encontrou um porqueiro que vinha tocando também uma capaderia superior para vendê-la na vila.

  Pedro Malazarte que já previa que o fazendeiro havia de vir no seu rastro, propôs troca  dos carneiros que valiam menos pelos porcos que valiam mais.

 Fecharam o negócio, tendo o porqueiro feito uma volta em dinheiro.

  Malazarte seguiu com a porcada e o outro com os carneiros, em direção oposta.

    O porqueiro foi pousar em casa do dono dos carneiros.

   Ao ver o seu rebanho, o homem avançou para o porqueiro, e exigiu entraga do que era seu. O porqueiro quis resistir, mas vendo que o homem estava armado até os dentes e tinha muitos capanga, não teve outro, remédio senão fazer a restituição, ficando no prejuízo, e tocou pra trás a ver se encontrava o Malazarte que já estava longe, tendo tomado por um atalho que foi dar numa fazenda. E vai então vendeu a porcada, por um precinho barato, mas com a condição de o comprador deixar que ele cortasse a ponta do rabo de cada porco.

   Fecharam o negócio e Pedro Malazarte meteu no embornal os rabinhos dos porcos e bateu o pé na estrada.

   E foi dar no castelo de um ricaço que era casado e tinha uma filha, e, ofereceu-se para empregado. e foi aceito.

    Como era tempo de chuva, o chiqueiro estava que era mesmo um lameiro. E Malazarte teve logo uma ideia.

   De noite tocou para longe a porcada do ricaço e, voltando espetou no lameiro as caudas dos porcos.

  E quando de manhã o dono da casa veio ver o porcada, Malazarte lhe apontou o lameiro e disse-lhe que os porcos estavam atolados, apenas com os rabos de fora.

   O dono da casa mandou-o logo que fosse à casa buscar duas enxadas a ver se podiam desenterrar os animais.

  Pedro, Malazarte foi numa corrida e, lá chegando, viu a dona e a filha passeando no jardim e lhes disse:

    - O patrão mandou que as senhoras me acompanhem.

   Elas duvidaram, mas Malazarte gritou, perguntando ao patrão que estava lá, embaixo:

      -  As duas, patrão?

   - Sim, as duas, e sem demora! As duas, pateta! 

     E então as senhoras não puseram mais diferença e acompanharam Pedro que tomou com elas outra direção.

  Já longe o velhaco amarrou-as numa árvore, tirou-lhes todas as jóias que eram de grande preço, fugiu e foi tocar a porcada que tinha ocultado no dito retiro.

   E quando o ricaço cansado de esperar foi à casa e não encontrou a mulher e a filha, bateu a procurá-las até que as achou amarradas onde Malazarte as havia deixado.

  E quando voltou é que viu que dos porcos só havia os rabinhos , e que ele é que era um pateta de marca.

  A muitas léguas dali o Malazarte negociou a porcada, recebeu o cobre, comprou um bom terno de roupa e foi parar em certa cidade, onde, logo na entrada, havia uma bonita chácara que era do doutor juiz de direito, 

    Era já por umas dez da noite.

   O Malazarte bateu à porta e pediu pousada dando o nome do doutro fulano que vinha visitar aquela terra.

  O Juiz costumava entrar tarde, pois ficava até meia-noite fora de casa, jogando marimbo com um seu compadre.

  E vai então o filho do juiz, na sua simplicidade, mandou entrar o hóspede e, depois de um bom chá, deu -lhe pousada, no quarto da sala, onde o juiz costumava se vestir.

   E quando o juiz chegou, o filho lhe contou o que se tinha passado e o tolo ficou muito satisfeito daquela hospedagem.

  E vai então lá pela madrugada o Malazarte começou a sentir umas coisa na barriga...

  Procurou o vaso e, não o encontrando, abriu a janela.... mas lá fora havia uma cachorrada, que foi um barulho de latidos que nunca se viu.

  O Malazarte estava suando frio. Mas nisto avistou na prateleira uma caixa. abriu, havia dentro uma cartola de pelo. estava salvo! Tirou a cartola, fez o que quis, pôs outra vez na caixa e esta no lugar onde antes estava.

   De  manhã, quando ouviu tropel dos criados saiu e...este mundo é meu!...

  Quando vieram chamar o Malazarte para o café, não o acharam mais.

  A hora do almoço, o juiz saiu do quarto e foi par ao cômodo em que se costumava vestir.

  Era dia de júri. Vestiu a sobrecasaca, e distraído, tirou a cartola que enterrou, de um golpe, na cabeça. Para que tal fizeste! Ficou com a cara enlameada e sentiu um cheiro que quase o afogou.

   Começou então a gritar. A família veio toda, pensando que tinha acontecido alguma desgraça.

   Ao vê-lo naquele estado, correram todos a buscar socorro. O filho trouxe-lhe um banho, a filha água-florida, a mulher sabonete de cheiro.

   E depois houve risada que não foi brinquedo, enquanto o juiz bufava de raiva. e os jurados já estavam cansados d eesperar porele...

  Mas o malazarte já estav alonge, Até parecia que tinah parte com Belzebu.

  Nisto ele soube no caminho que sua mãe tinha  morrido, e, como era muito extremoso, foi logo ter em casa.

   Lá encontrou os irmãos que se fingiam chorosos. Ele também derramou muitas lágrimas e resolveram logo a fazer a partilha, pois que cada um queria cuidar de sua vida.  

   A herança não era grande, mas sempre havia um sítio, umas colheitas, umas terras uma casinha...

  Os irmãos começaram a escolher o que havia de melhor. Mas, Pedro Malazarte disse:

   - Lá por isso não seja a dúvida. Eu quero somente três coisas: uma folha da porta da casa, o corpo de minha mãe e o cavalo matungo.

   Os outros estranharam aquilo, mas como era fácil de contentar, combinaram na partilha.

   Pedro amarrou o corpo da velha no selim do matungo e em posição de cavaleiro, e saiu puxando o cavalo, prometendo voltar , depois, em procura da porta.

   Foi dar numa fazenda, já tarde da noite e pediu pousada. A gente da casa, já estava acomodada, mas a pessoa que veio abrir consentiu na hospedagem, porque Pedro alegou o cansaço da velha, a doença dela coitadinha!

   Mostraram-lhe um quarto na entrada, onde os dois ficaram.

  A certa hora, Pedro Malazarte pegou no cadáver, enveredou com ele pelo corredor e foi colocá-lo à porta do quarto do dono da casa.

  Este, quando, pela manhã, abriu a porta, levou um grande susto ao ver um corpo pesado caiu dentro do quarto.

  E havia no chão muito sangue, pois a cabeça da defunta, quando caiu se tinha quebrado.

  O homem fez um grande alarme, vindo logo Pedro, esfregando os olhos fingindo ter-se acordado naquele momento.

  Ao ver aquele quadro, lançou-se sobre o cadáver da velha e fez um grande choro, acusou o fazendeiro de haver sido o assassino de sua mãe e pediu grossa gratificação, sob pena de ir queixar-se à justiça.

   O fazendeiro não teve remédio senão cair com o cobre e ainda fazer o enterro do corpo.

  Pedro Malazarte voltou para casa em procura da porta, tendo ainda no caminho vendido o punga que logo, logo, cansado da viagem, arriou na estrada e morreu. Pedro Malazarte quando chegou com a porta onde ficara o cavalo, viu que sobre este estava um bando de urubus, atirou a porta sobre o bando, apanhou um urubu que ficou com a perna quebrada e seguiu viagem.

   Este dito urubu, foi o mesmo que ele vendeu por cinco contos; estão lembrados?

   Em certa altura deu-lhe  vontade de verter água. Encostou-se a um grande paredão pertencente a uma bonita quinta. E, quando estava no melhor, apareceu o dono da chácara muito zangado a pergunta-lhe quem lhe tinha dado ordem para fazer aquilo ali.

    Pedro disfarçou e respondeu:

    - Ah! meu senhor, desde manhã que estou aqui encostado, sem comer, nem beber só por causa dos outros.

  - Por causa dos outros? Então como é lá isso?

  - Estou escorando o muro.

  - Você está doido!

  - Pois é verdade, patrão, vinha eu caminhando no meu quieto, mas, quando cheguei neste lugar, me apareceu a figura de um anjo  que veio descendo do céu e que me disse estas palavra:

   - Por ordem do senhor Deus o mundo vai acabar à meia-noite de hoje.

  Imagine o susto que não levei! Mas o anjo me aquietou:

   - Há remédio para se evitar isto: é encontrar alguém que escore este muro, desde este momento.

  - Só por isso não seja a dúvida, respondi, vou já cortar uma estaca...

 - Não, não há tempo. Antes de um minuto o muro deve estar escorado. E me empurrou para aqui onde me acho, sem poder arredar pé, se saio, o mundo vem  abaixo.

  - Deveras?!

  - Ah! se o patrão me fizesse o favor de tomar o meu lugar enquanto eu vou ali no mato cortar uma escora, tudo estava arranjado, mesmo porque, se eu ficar por mais tempo, não resistirei e com a minha morte o mundo virá abaixo e ninguém escapará.

  O homem pensou e resolveu tomar o lugar de Pedro que prometeu voltar logo com a escora, e até hoje está sendo esperado.

  Quando chegou na cidade Pedro meteu-se em divertimentos com os estudantes e gastou todo o dinheiro. E antes que ficasse de todo limpo comprou uma panelinha de trempe, uma matula e seguiu viagem.

  Já havia caminhado muito, quando avistou um rancho desocupado.

  Resolveu descansar ali. Fez fogo, pôs a panela de três pés com a matula a aquecer.

   Mas nisto, vem chegando uma tropa. Pedro Malazarte mais que depressa pôs um monte de terra sobre, o fogo e ficou muito quieto diante da panela que fumegava. os tropeiros, vendo aquilo, ficaram muito espantados e perguntaram:

   - Que moda é esta, patrício, de cozinhar sem fogo?

   Pedro respondeu logo:

  - Isto não é para todos.pois não vêem logo que a minha panela é mágica?

  - Então cozinha sem fogo?

   - É como estão vendo e a qualquer hora. Mas, como a fada me disse que estou por poucos dias, posso negociá-la.

   Os tropeiros viram naquilo um acahado; provaram da comida e acharam tudo muito bom.

  Comprara a panela, pagando por ela quanto lhes foi pedido.

  Quando à hora da ceia foram cozinhar sem fogo, deram com a marosca, mas, já era tarde, o Malazarte tinha-se posto a muita distância...

  Malazarte ia viajando quando lhe deu vontade de dar de corpo. Agachou-se no meio da estrada, e ali ficou.

   Nisto avistou um senhor que andava caçando.

  Malazarte tirou o chapéu e colocou-o sobre o que havia feito. O senhor quando se aproximou perguntou-lhe:

  - Que está fazendo aí a segurar este chapéu com tanto cuidado?

  - É um lindo passarinho que  apanhei debaixo do chapéu. canta que é um gosto. E eu não quero perde-lo. Estou à espera de alguém que queira tomar conta dele, enquanto vou buscar uma gaiola.

  O homem ficou muito curioso de ver o canário, pois era grande apreciador de pássaros cantadores.

  Propôs comprá-lo, mas com a condição de Malazarte ir buscar a gaiola.

   Pedro, depois de muitas negaças, fechou o negócio por um bom dinheiro, deixou o tolo a tomar conta,  e foi buscar a gaiola.

   O tempo ia passando e Malazarte não voltava. então o homem, já impaciente, tomou o partido de apanhar o pássaro com a mão e levá-lo para casa.

  Com toda a cautela, meteu a mão debaixo do chapéu e, quando pensou que pegavao canário, agarrou uma coisa muito diferente.

   Deu os pregos, soltou pragas, enquanto, Pedro já estava muito distante, e se divertindo à custa do trouxa...

   Foi então que Pedro se encontrou com um dos seus irmãos, com quem gastou em pândegas muito dinheiro.

   Esvaziada a bolsa, seguiram de viagem juntos.

   Depois de caminharem muitas léguas, varados de fome, chegaram em casa de um casal de velhinhos, gente de lavoura  e muito pobre.

   Pediram pousada. Mas os velhos não tinham cômodo nem nada - disseram- que lhes dar para matar a fome....

    - Só se quiserem dormir na salinha, no monte de palha...

   Pedro aceitou logo a oferta.

   Os velhos forma para os eu quarto, e os irmãos ficaram na palha.

  Mas, de madrugada, o Malazarte sentiu um cheirinho bom e ouvia o chiado de uma panela lá na cozinha, e perguntou ao irmão:

   - Manuel, você não está ouvindo um chiado?...

Quem sabe se na cozinha há alguma coisa que se coma?

   O outro respondeu:

  - É possível. Essa gente da lavoura costuma deixar a panela no fogo durante a noite, para comerem de manhã antes de irem para o trabalho.

   Pedro, andando na ponta dos pés, levou o irmão para a cozinha, onde encontraram no fogo uma panela de mingau de fubá, fumegante,

   Comeram quanto quiseram, até farta-se e, como Pedro era um grande pândego, não podia passar sem fazer das suas, disse que estava com muita pena da velha e que ia também dar um pouco de mingau.

     Foram para o quarto e enquanto o irmão segurava com muito medo a panela, o Malazarte ia pondo com a colher o mingau onde supunha que era a boca da velha.

   De vez em quando ouviam uns sopros e Pedro dizia baixinho:

   - Está quente, avózinha? sopra, minha velha!

  Depois de irem levar a panela à cozinha, os dois irmãos puseram-se ao fresco, logo ao amanhecer.

   Já estavam longe, quando o velho despertou furioso com a mulher, a quem acusava de ter desfeiteado a cama...

  - Eu? seu tratante! eu?

   - Não faça de tola, que não foi outra senão você mesmo!

   Mas então a velha sentiu alguma coisa lá nela mesma. E os dois que nunca tinham brigado agarram-se à unhadas, saltando fora da cama toda cheia de mingau!

  Correram para a cozinha e acharam a panela vazia, foram a sala e já lá não estavam os hospedes.

   Rogaram muitas pragas e juraram não dar mais pousada a ninguém, salvante a Nosso Senhor Jesus Cristo.

   Quando Malazarte morreu e chegou no céu, disse a São Pedro que queria entrar.

  O santo porteiro respondeu:

   - Está louco! Pois ainda tens coragem de querer entrar no céu, depois que tantas fizestes lá pelo mundo?

  - Quero, São Pedro, pois é o céu é dos arrependidos, e tudo quanto acontece é por vontade de Deus.

   - mas o teu nome não está no livro dos justos e portanto não entras.

  - Mas então eu desejava falar com o Padre Eterno.

    São Pedro zangou-se com aquela proposta. E disse:

    - Não, para falares a Nosso senhor, precisava entrar no céu, e quem entra no céu dele não pode mais sair.

   Malazarte se pòs a lamentar e pediu que o santo ao menos o deixasse espiar o céu, só pela frestinha da porta para que tivesse uma ideia do que fosse o céu, e lamentasse o que havia perdido por causa das más artes. 

   São Pedr. já amolado, abriu uma fresta da porta e Pedro meteu por ela a cabeça.

   mas de repente gritou:

   - Olha, São Pedro, Nosso Senhor que vem falar comigo. Eu mão te dizia!!!

    São Pedro voltou-se com todo o respeito para dentro do céu, a fim de render homenagens ao Padre Eterno que supunha ali vir.

 E Pedro Malazarte então pulou para dentro do céu.

   O Santo viu que tinha sido enganado. Quis por o Malazarte para fora, mas ele contrariou:

   - Agora é tarde! SãoPedro, lembre-se de que me disse que do céu, uma vez entrando, ninguém mais pode sair. É a eternidade!

   E São Pedro não teve outro remédio senão deixar o Malazarte lá ficar.

   FIM

  




Continua, querido leitor tenho muitos afazeres por isso não consigo digitar os contos no mesmo dia. Amanhã teremos mais.



Adicionais

Pedro Malazarte

figura era um exemplo da esperteza, da inteligência, da criatividade, mas não se sentia nenhum pouco culpado em usar a mentira e enganar as outras pessoas em proveito próprio.



segunda-feira, 28 de junho de 2021

Truque - Valdormiro Silveira

   A candeia lançava sobre os jogadores uma luz amarelada muito trêmula, e fumaça, levada para todos os lados pelo vento agudo que passava, tinha um cheiro atordoador de mamono ainda verde. Ao redor da mesa de jacanrandá, que a velhice deixara bamba e toda negra, viam-se Antonio Cuba e o Venceslau, o Craro e o Chico Prequeté, cada qual mais tupina e mais prosa no truque. O Antônio Cuba, dono da casa, dizia, a cada passo, que até sentia vexame de dar sova tão grande, como ia dar, no Prequeté e no Craro, mas que, enfim, quem entra na chuva é para se molhar. E o Prequeté, seco na paçoca para um falseio, roncador que nem coi-coi, respondia-lhe, muito sério. que quem vai dar leva saco.

     Antes de começar a primeira mão, o Cuba, gritou à filha, a Ismena( aquilo é que era caboclinha linda!)

   - Traga uma luz aqui, minha filha, aquela da garrafa branca! Sinão esta gente desconfia duma vez comigo, que nunca mais me deixa estribar!

  Veio a pinga, uma pinga zangada, de trazer água aos olhos e um pigarro teimoso à garganta. E, enquanto a Ismane acendia o fogo para o café e a queimada, correu-se a primeira mão. Não houve coisa de maior: O Craro e o Petrequé ganharam ao empate, com jeito frio, sem uma palavra ao menos.

   Mas já na segunda mão principiou o calor, dizendo o Venceslau:

  - Ora, o premeiro milho é dos pinto....

   - É dos pinto? - perguntou o Prequeté. Pode ser também dos galo!

   A vaza foi do Cuba, que matou um três com a sete-ouros.

  - Eu sou pé, e não sou qualquer! Agora, aguente o repuxo, parceiro!

   Na outra vaza, apareceu logo um dois do Prequeté:

- Eu sou todo seu: " tou-lhe ajudando já, seu Cravo!

Mas o Venceslau cortou o dois de golpe:

 - Aqui não passa cachorro magro!

   O Craro bradou entusiasmado para o Cuba:

   - Componha a sua casa. pra mim dar uma diligência!

   O Cuba, entretanto, prudenciou:

    - Bamos, embora, Venceslau? Trucar de falso, chamar com elas!

   O Cuba foi mão. E enchouriçou o pescoço:

 -   Vocês já tenham a primeira e a segunda, e tão ganjentos, não é? Pois eu vou acabar com seu gaz de repente! Lá vou eu, seu Chico, e vou tinindo! Reboco de igreja velha! Esteiro de bexiguento! Espirro de lambari! Já tá c'a pacuera batendo?

   O Prequeté afastou o banco:

  - Ué! "tou esperando o baque! Si você tiver corage" e não quiser topar c'a ronda, fale! Bamo ver quem é que tem mais peito!

  - Pois antão truco mesmo!

  - Caia!

  A carta do Cuba era a espadilha. E o Prequeté ergueu-se, bateu o chapéu na testa, arrastou os pés no assoalho, fez um barulhão:

   - Você já sai de coiração-de-negra, e bufa de mão, só p'ra abichornar a gente? Antão é tudo ou nada: "tava seca  amanilha, seo poaia? Ora, vá com seis!

   - Agora é lá p'ra diante - disse o Cuba. Eu fui adonde vão os bom, p'r'além não psoso! Como é, companheiro, você quer ver os home' inda mais de perto?

   O Venceslau afiançou que o Chico era baixo oara estourar a espadilha:

   - Home, quer saber o que mais? Eu, por mim, chamava.

   - Se o meu parceiro chama, eu não deschamo - concluiu o Cuba: derrube essa frieza de carta!

   Era uma sota! Mas o Cuba e o Venceslau ficaram meio murchos, porque a sota do Craro era guia de sete-copas no corte passado. E não houve picança, tudo foi na ordem: só se tivesse acontecido algum extravio não se achariam mais juntos aqueles dois perigos. O Venceslau pôs na mesa uma carta branca, a do Prequeté foi um às vermelho, e entrou precedida de licença. Cuba voltou com um seis, o Venceslau apertou o Prequeté com um dois, o Prequeté desceu um três, o Cuba cortou de rápete.

    Houve  uma flauta por parte dos contrários: - Aquele três " rancou tudo, não seo Cuba? E com que dor de coiração! Lá se foi tudo quanto Marta fiou! E o zápe" rompeu sem brado de arma!

   O Venceslau, entretanto, afirmou de cabeça, levantada:

  - Antão? Mostraram uma cara deste tamanho, não mostraram?

   O primeiro jogo foi do Craro e do Prequeté. E o Cuba fez zombaria:

   - Sri pinto come premeiro ire pode comer também o premeiro prato! Depois é que vocês vão ver que birimbau não é gaita!

   O baralho estava com o Venceslau. que trançou as cartas e o entregou ao Craro. O Craro cortou se soco, mas uma carta desprendeu-se, virou de costas, apresentou à companha a cata barbuda do rei de paus. E o doador de cartas galhofou às direitas:

   - Pingou, perdeu! Inda mais que você buliu certinho nas veneneira' toda  Pode ajuntar a trouxa, que ali vem chuva! Eu inté nem quero ver as minhas; a mó' que já tou passando amão no rápe, e na ste-ouro', e o parceiro na sete-copa' e na espadilha!

   O Chico Prequeté bateu um três com força, e ainda andou esfregando pelas mãos do Cuba, que pegou a rir-se;

   - Ora venha onte! Isso não é chuva ´p'ra quem tem ponche!

Arrecolha esse três e jogue coisa que sirva!

   - Você não pode co'ele; "tá fazendo grandeza à toa. Agora!  Si você for gente, pise adiante desse três!

   - Olhe que ue piso e piso bem!

   - No fringir dos ovos é que se vê a manteiga que sobra.

   - À vista dos autos truco! Adiante e atrás! Diga por que não quer! 

   O Craro disse de golpe:

   - É bom.

   E o Cuba apresentou a espadilha. Mas Craro ficou desaconchado, bem se lhe percebeu o encalistramento no modo por que falou ao Venceslau:

   Seis adiaante!

   O Venceslau arrastou um surrão danado:

   - Seu Craro, não se atreva a ponhar cuca num home' sacudido que nem eu. Repare que eu sou pé e não sou de capim! P'r' amor de o desforo, quero mais três milho; vá com nove.

   Mas os tentos eram de olho-de-cabra. O Prequeté mostrou coração alegre:

   - Si fosse milho menso, eu chamava de tôpo, poque p'ra vocês dosi abasta o peito, não precisa carta. mas p'ra fazer pouco caudo ansim de nove sementes bonitas como esta, isso eu não faço.

   O Venceslau convidou então o Cuba:

  - Jorge p'ra mim, parceiro, que essa gentinha não presta.

 E apontaram todas manilhas entre os dois, coisa que fez o Craro andar pelas turilhas e armar um perequê medonho:

   - Otam caiçarada ruim! que p'ra jogar com dois são' e sarado'ver eu e o seu Chico tem que fazer potrinho, sinão perde na certeza! Vocês não tenham sangue na cara, taperada?

   Tudo se acalmou em poucos instantes. O Craro deu as cartas, e o Venceslau não quis cortar o baralho, mandou apenas queimar três. O Cuba deu de cantar entredentes a moda do truque:  


Zape matou sete-copa.

menina, falsi comigo na horta;

sete-copa' matou espadilha.

menina, falai comigo de dia;

espadilha matou sete-ouro;

menina,  seus olhos parece' besouro;

sete-ouro' que mata um três; um três que mata um dois,

menina, falai comigo depois; 

um dois que mata um às,

menina, comigo não fala mais.

   


O Craro zangou-se por em cheio:

- Quando acabar a cantoria, diga, que é p'ra entrar em lenha como boi ladrão!

  Contraveio-lhe, porém, o Venceslau, casquinando uma risada de machucar.

 - Apanhar? Quem? Qual é o caborjudo que bate em home's como eu e o Cuba? Na terra! Vocês podem falar, o fazer é que é nove! Eu inté nem quero outra vez olhar as carta; não olho mesmo. Saracura é bicho feio, tem cabelo até o joelho....

   E o Truco de flor, o Venceslau.

  Mas o Prequeté não esteve pelos autos, achou que era demais:

   Só si você fez algum maço! Quando não, tá frito. Ora bamo, ver c'o que foi que você trucou!

  O Venceslau ergueu as cartas da mesa, mostrou-as uma por uma; cinco, sete à toa, valete

  - Parceiro dum anjo! desta vez eu 'tou que de louça nem um piré! Sou a sua vergonha, destavez.

   O Cuba, entretanto, não quis entregar a rapadura com a palha e tudo:

  - Agora deixe correr, que você não tá sozinho no mundo! Jogue a pior!

  Preparou um pé de três e de zápete, fez o corpo mole, aceitou a chamada de seis, ganhou o jogo.

   Mas, no desempate de queda, a sorte principiou a declarar-se pelo Prequeté e pelo Craro. Chamavam com qualquer carta, pouco trucavam, iam fazendo um jogo manso e razoável. E a cachaça passeava de um lado para outro, num toada. Quando já tinham nove tentos, o Venceslau fez um escacéu temeroso:

   - Eu gosto que me esquentem premeiro, depois ou destemido mesmo, sou um teba sem rival; vou trucar nos tentos desses pamonhas. Truco, tapera, quem foge não espera! Eu corro atrás  de quem corre!

   O Prequeté pôs-lhe medo:

   - Não vem não, laranja azeda, que eu te chupo!

   E o Craro segundou a ameaça:

   -Não chega não, cachaça braba, que eu te bebo!

   Decidiram, porém, fugir:

  - Nada! Nós 'tamo alto'!

   Correu em silêncio a outra mão, e a décima inda.

   Quando o Cuba, já meio tomado, perguntou:

   - Home', em que mão estamo'?

   O Craro respondeu-lhe, pegando no baralho:

   - Nas onze, e o baralho na mão do bronze:

   Deu cartas, consultou o parceiro, não mandaram. Os outros apenas tinham quatro tentos. E afinal ganharam a queda.

   Ao romper da segunda queda, que também ganharam, o Antonio Cuba exclamou um tanto passado:

   - Eu 'tou sentindo que você ' tá c'ua meia catinga de água, parceiro. ou sou eu que 'tou? Isto é a falta da queimada. Ismena, traga aqui a do gengibre, bem quente!

   Não lhe deram resposta. Pediu segunda vez a queimada, quando ia jogar a terceira queda, e o mesmo silêncio continuou no interior da casa. Só então veio um compadre, dizer, meio choroso:

    - Você não viu a hora, em que houve um tropel de cavalo aqui mesmo na porta? Foi o Maré Roxo que roubou a Ismana.

   Todos ficaram assustados, porque Cuba era um caboclo brigão e sacudido: acercaram-se dele. Mas o Cuba tinha entrado por demais na branca, estava bem afiançado: levantou-se com os olhos muito arregalados e vermelhos, jogando o corpo, encanou as cartas, puxou-as até a um lado do peito e gritou furiosos:

   - Pois já que 'tá tudo perdido mesmo, truco!

                                                         (Mixuangos)



casquinar

verbo
  1. 1.
    transitivo direto
    dar, soltar (risada trocista).
    "casquinou uns risinhos de zombaria"
  2. 2.
    intransitivo
    disparar uma série de risadas.
    "casquina sem parar quando ouve aquela piada

     

  

   

continua






Candeia -substantivo feminino Vaso suspenso por um gacho fixado à parede. Candeeiro de óleo ou de cera ou vela de cera. Lâmpada formada 

sábado, 12 de junho de 2021

Simões Lopes Neto - Contrabandista

 Natural de Pelotas, RGS,escritor regionalista que melhor soube imprimir"cor local! à suas obras. Tanto espelhando os traços mais característicos do gaúcho, como revelando seu folclore ou dando forma definida a algumas das mais belas lendas, conseguiu sempre e m todos os casos manter-se num elevado nível artístico, 









                    CONTRABANDISTA

   Batia nos noventa anos, o corpo magro mas sempre têso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandista que fez cancha nos banhados do Ibirocaí.

    Esse gaúcho desabotinado levou a existência a cruzar os campos da fronteira; à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!....

   Conhecia as querências, pelo faro; aqui o cheiro  do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui cancha de grachains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo/ adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areião. Até pelo gosto ele sizia a parada, porque sabia onde  estavam águas salobras e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.

   Tinha vindo das guerra do outro tempo; foi um dos que pelearam na  batalha de Ituzaingó; foi do esquadrão do General José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa  braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.

       Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas.

      Se numa mesas de primeira ganhava uma ponchada de basastracas,(  Antiga moeda de 400 réis. Patacão argentino ou uruguaio. )...reunia a gurizada da casa, fazia- pi!pi!pi! - como pra galinha e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro.

   Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas deses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num -caim! caim! caim! - de desespero. outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado( Ficar tonto; desnortear-se. Envergonhar-se. ), puxava por uma ponta da toalha e lá vinha de tirão seco, toda a traquitana dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!....

    Depois garganteava a chuspa(Rio Grande do Sul] Bolsinha feita com a pele do papo da avestruz, ou de outro couro, ou de pano, ... e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento .

   Era um pagodista!

   Aqui há poucos anos - coitado! - pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito estava afamiliado. Não nos víamos desde muito tempo.

   A dona da casa  era uma mulher mocetona ainda, bem-parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três malotes já emplumados e uma mocinha - pró caso, uma moça - que era o Santo-Antoninho-onde-te-porei! - daquela gente toda.

    E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.

     E a noiva, casadeira, já era.   

     E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.

   O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos,  e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.

   O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o enxoval da filha.

    Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga,mas como cada um manda no que é seu....

   Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro.

    Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões. Naqueles tempo o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar( desassossegar(-se), inquietar(-se), incomodar(-se).as guardas do inimigo; uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços.. 1. Que ou aquele que trata de cavalgaduras. 2. Diz-se do muar que procede de égua e burro.) abanava o poncho e vinha à  meia-rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; o resto; os de lá faziam conosco a mesma coisa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.

    Isto se fazia por despique dos espanhóis e  eles se  pagavam desquitando-se do mesmo jeito. só se cuidava de  negacear as guardas do Serro Largo, em Santa-Tecla, do Haedo...O mais era várzea!

    Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias* e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...

  Foi o tempo do manda quem pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!...

   Quem governa aqui o continente era um chefe que se chamava o Capitão-General; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...

   Vancê tome tenência e vá vendo como as coisas, por si mesmas, se explicam.

  Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...

   Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!

   Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos renóis...

     Agora imagine vancê si a gente lá dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!...O tal rei nosso senhor não se enxergava, mesmo!...

   E logo com quem...! Com a gauchada!...

   Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e ninguém pagava dízimos dessas coisas.

     Às vezes, lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da pólvora; doutras, uma partida de milicianos saía de atravessado e tomava conta de todo, a coice da arma; isso foi ensinando a escaramuçar com as golas de couro.

   Nesse serviço foram-se aficcionando alguns gaúchos; recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.

   Os paisanos das duas terras brigavam, mas os  mercadores sempre se entendiiam.

   Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.

  Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados.

   A coisa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a  mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato; bastava ser campeiro e destrocido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo...

   Não se lidava com papéis nem contas de coisas; era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!...

   Quanta fauchagem leviana aparecia, encontrava-se.

  Rompeu a guerra do Paraguai.

  O dinheiro do Brasil ficou muito caro; uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil-reis!...Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!....

   Começou-se a cargueirar de um tudo; panos, água de cheiro, armas,

minigâncias, remédios, o diabo a quatro! ... Era só por boca!

   Apareceram também as mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui....

  Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletorias uma  papeladas cheias de Benzeduras e rabiscas....

   Ora...ora... Passar bem, paisano!....A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que você sabe, do contrabando de hoje.

   O jango Jorge foi maioral nesses estrupícios. Desde moço, até a hora da morte. Eu vi.

   Como disse, na madrugada, véspera  do casamento,o Jango Jorge saiu para buscar o enxoval da filha.

  Passou o dia; passou a noite.

  No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.

   Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá.

   Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala.

   Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados.

  A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.

  As vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.

  Surdiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.

  Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seu sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeiras, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.

  As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.

   Entardeceu.

  Nisto correu voz que a noiva estava chorando;; fizeram uma algazarra e ela- tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, epôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.

  A rir, sim rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos prestanudos...

   E rindo e chorando estava, sem saber por que... sem saber por que, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:

    - Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...

   Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber por que...pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva....

   Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.

E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.

E o mesmo silêncio foi fechado todas as bocas e abrindo todos os olhos.

  Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado...

  Ninguém perguntou nada, ninguém informou nada; todos entenderam tudo... que a festa estava acabada e a tristeza começada...

  Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:

   - A guarda nos deu em cima...tomou os cargueiros...E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha  solto...e ainda o amarrou no corpo. Aí foi que o crivaram de balas...parado. Os ordinários!...Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!

  A sia dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-a.

   Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, e seu véu branco, as flores de laranjeira...

   Tudo numa plastada de sangue...tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas coisas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambóticos como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...

   Então rompeu o choro na casa toda.


FIM

    

    

  


Sesmaria era um lote de terras distribuído a um beneficiário, em nome do rei de Portugal, com o objetivo de cultivar terras virgens. Originada como medida administrativa nos períodos finais da Idade Média em Portugal, a concessão de sesmarias foi largamente utilizada no período colonial brasileiro.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

UMA NOITE DE CHUVA, OU SIMÃO DILETANTE DE AMBIENTES - RIBEIRO COUTO

  Má experiência. Eu descera as escadas do Clube dos Aliados, onde perdera duzentos mil-reis na roleta, e olhava, aborrecido, a chuva cair na rua deserta, negra. Dera-me assim um desejo súbito de passar um quarto de hora numa baiú; então procurava aquele clubezinho reles da Lapa. Agora um arrependimento enraivecedor me fazia subir o sangue à cabeça, em mil projetos de reivindicação honesta daqueles duzentos mil-reis.

     A última vez que eu visitara minha mãe, em Iguape - porque eu sou de Iguape - ainda ela me dissera, com um sorriso magoado:

   - Não trouxe nenhum presentinho para sua mãe...Deixe estar...

   E fora perder duzentos mil-reis para os capadócios do Clube dos Aliados! Eis aí no que dava minha mania de ambientes.

   Táxis, na porta do clube, esperavam fregueses. Vendo-me parado a escolher destino, com um ar de lorde perdulário( o ar com que todo pobre diabo saí de um clube). os choferes me acenavam, oferecendo as máquinas. 

  Deu-me vontade, então, de passar pela rua Morais e Vale. Uma rua de mulheres perdidas, numa noite de chuva, é triste, infinitamente. Poças d'água refletem os lampiões. Trechos de cantigas saem pela gretas das venezianas cerradas. Não se vê ninguém. Apenas, vago, o vulto do guarda rondante, representante sonolento da lei.

   - Ora, vamos, Simão!

   Assim falei a mim mesmo, vencendo a última hesitação da virtude. Eu não ia comprometer a virtude, entretanto. Era apenas a satisfação de um capricho da sensibilidade. O ambiente, queria o ambiente.

  - Boa noite!

   - Boa noite.

  Um conhecido. Exatamente quando menos se espera, numa noite de chuva, ao virar uma esquina de rua viciosa, surge o contratempo fatal; o conhecido, o conhecido que nos vê, nos cumprimenta, faz um ar camarada e passa. Quem? Um sujeito com que temos relações apenas de vista e cuja função na vida parece ser essa; aparecer assim. Um sujeito que existe somente para aborrecer-nos.

  - Sssssiu...

  - Ó beleza!

  As primeiras portas misteriosas. Principiei a sofrer. O amor...Dentro de mim começou a estranha sensação pungente. Ninguém podia adivinhar, na minha sombra, uma dor ambulante, a dor especial e saborosa de sentir o ambiente.

   A rua estendeu-se, dobrada a esquina. Deserta, naquela noite. Passava de duas da manhã e poucas mulheres ainda havia disponíveis, atrás da janelas, à espera. Pela calçada, nem mesmo um marinheiro japonês. Será que muitos homens pensam às vezes, como eu, nos marinheiros japoneses que desembarcam cheirando a suor e a óleo, e vêm por aqui, em grupos, metendo o nariz nas casas, procurando, escolhendo? Oh, que desgraça imensa a destas mulheres!

   Plaf, enfiei os pés num buraco cheio d'água. Bonito! É o resultado de andar distraído, a fazer reflexões piegas. Ia apanhar um resfriado. Não, não: havia um recurso: o botequim da rua Joaquim Silva estava aberto, graças a Deus. Tomaria um cálice de conhaque. Apressei o passo para reagir contra a friagem.

   - Simão!

   Simão? uma mulher chamara Simão?

   - Sssssiu! Venha cá, Simão, não se faça de besta. Não havia dúvida: tinham chamado por mim. Voltei, procurando ver de que janela partira a voz desafinada. (Nossa Senhora, como é possível que alguém me conhecesse naquela rua?)

   - Ó seu coisinha, entra aqui.

    Uma porta abriu-se para mim. Do escuro uma cabeça me acenava, com ar de mando. "Coisinha"? Era extraordinário.

    Parei, indeciso.

   - Já se esqueceu, hein? Entre aqui.

   Entrei. A mulher trancou a porta atrás de mim. 

  -Suba, Simão.

  Subi a escada meio às escuras. Parecia-me um sonho.

   - Como vai D. Candoca?

  D. Candoca! O nome de minha mãe às duas horas de manhã numa casa da rua Morais e vale! Ah, Simão, diletante de ambientes!

   Ela subira atrás. No patamar, voltei-me. A luz do quarto, com a porta escancarada, incidiu sobre um rosto bexigoso de mulata: Maricota!

    - Você aqui, meu Deus?

   - Não, ali na esquina - escarneceu ela.

   Uma comoção profunda me pungiu. Tive vontade de chorar, Maricota....

  -Todo elegante, Simão. Hum, hum!

   ....que dormia no meu quarto, junto à minha cama porque eu tinha medo do invisível e da escuridão...

   - Não fala nada? Está mudo?

   ....do tempo de meu avô, que me mandava com ela à venda do seu Hilário, para impor certo respeito aos homens...

   - Bom se você está disposto a não conversar, então vá-se embora. Perdeu a língua? - Fiz gesto de recuar Maricota agarrou-me pelo braço e empurrou-me pra o quarto. Deu uma ordem; - Sente aí.

   Apontava a cama, A colcha estava amarfanhada. Manchas de terra acusavam contatos de botas. No criado-mudo, uma nota de cinco mil-réis atirada, pontas de cigarro espalhavam-se pelo chão.

   - Sente! Está com luxo? Bom.

   Preferi sentar em cima da mala, que um pano de crochê cobria.

  -Maricota, sinto-me abalado com a surpresa.

  - Estou vendo.

    - Que é feito de você, neste tempo?

   - Ora, se eu fosse contar?

   - Há quantos anos, sim senhora? Quantos mesmos?

   - Ué, conta pelos dedos.

  Contei pelos dedos, como ela aconselhava por ironia: um, dois, três, quatro...doze.

  - Doze anos! Como e que você me reconheceu?

    - Ora, eu criei você, Simão. Me dá um cigarro na minha carteira:

   - Você passou, olhou do lado da minha porta e eu pela fresta reconheci logo. Mas fiquei pensando: será? Não podia deixar de ser:o mesmo focinho! Está'i. 

   Pedi a Maricota que me abrisse um pouco a janela. O quarto estava abafado. Um cheiro de roupa suja e de água-de-colônia de turco impregnava-me as narinas.

   Maricota sentou-se na cama e ficou me olhando, a fumar.

   - Você não envelheceu, Maricota.

  - Não pouco!

   - Não mesmo.

   Não envelhecera. è verdade que perdera a frescura da primeira mocidade, quando, com a sua carne dura e flexível de mulatinha nova, ao passar  vincava um silêncio intencional nos grupos da porta  da venda. Só o que sempre a enfeara um bocado era aquelas marcas de bexiga. Porém, não envelhecera: encorpara. Ficara madura, com adiposidades fofas de vida ociosa.

  - Você casou, Maricota?

  - Qual casar! Com aquele porqueira?

  Ela fugira da nossa casa com um barbeiro chamado Malaquias. Malaquias tocava violão, cantava modinhas e possuía um cacho grosso na testa. Quando Malaquias fazia serenata em nossa rua. Maricota saía do quarto pé ante pé e ia para o muro do jardim. Uma vez desapareceram. Meu avô ficou três dias com uma veia querendo rebentar na testa, latejando forte,, O Major Rabelo, que era o delegado de polícia, desenvolveu toda a sua atividade para descobrir os fugitivos. Porém, o sargento do destacamento era primo de Malaquias e desconfiou-se de que estivessem conluiados. E nunca mais se soube de Maricota, nem de Malaquias.

   - Nós pensávamos que o Malaquias tivesse casado com você....

     -UM vagabundo daquele? Deus me livre.

   - Então você se arrependeu do passo....

   - Fez um muxôxo, com o beiço grosso.

 - E há quanto tempo você anda nesta vida?

   Maricotas sacudiu os ombros, as pernas esticadas, os olhos fitos na ponta das chinelinhas.

  Começou a fazer perguntas por minha mãe, por todos de casa. Teve tristeza quando soube que meu avô morrera.

  - Coitado! De quê?

   - Coração.

   Deu outro muxôxo. Abanou a cabeça com filosofia:

   - De uma coisa ou de outra a gente tem de ir mesmo.

  Mudou o curso das ideias e perguntou de golpe:

  - Você está empregado aqui no Rio?

    - Estou estudando.

  - O que?

   - Medicina.

  - De muito estudar é que os burros morrem.

  Riu-se. Houve uma pausa.

   - Por que não se emprega? Há tanto médico!

   - Não faz mal! 

  - Hum, hum!Está adiantado? quando se forma?

   - No ano que vem.

  - Já?

   Depois, mudando de tom:

    - D. Candoca está muito velha?

   Insistia no nome da minha mãe. E eu tinha sempre a impressão, ao escutá-lo. dito por aquela boca e naquele quarto, de ver uma flor arrastada por um esgoto.

   - Responda, simão! Ficou mudo outra vez!? Porqueira!

   - Está moça ainda, Maricota. Está moça.

   Levantei-me. No meu coração aquele cinismo, aquelas maneiras obscenas, aquela definitiva decadência doíam como uma machucadura.

    - Espere mais um pouco, Simão.

   - Tenho pressa.

   - Quer dizer que a francesa está te esperando.

   - Qual!

   - Se passar da hora, leva tabefes. Gigolô!

   - Opa! Não tenho francesa nenhuma. Vou dormir, é que é.

   Eu estava numa impaciência atroz. Agarrei o chapéu. Que nojo! E que angústia!

   - Conte mais alguma coisa do povo lá em Iguape. Vocês ainda moram na mesma casa? Às vezes tenho saudades.

   - Moramos.

   As paredes estavam cheias de cartões postais e retratos, como escudos numa sala de armas. No espelho do lavatório, na fenda entra a moldura e o vidro, Maricota enfiara mais retratos, mais cartões. Aproximei-me para ver: um sargento da Brigada Policial, mulato, de bigodes agressivos; um instantâneo de piquenique, numa praia, com mulheres e homens exibindo garrafas, em triunfo; um "Boas- Festas e Feliz Ano Novo", em letras doiradas, cercando um par de noivos a beijar-se; uma negra de vestido curto, de braço com uma sujeita branca, esta de cabelos cortados muito gorda, monstruosa, como uma sapa; uma criança de colo espantadinha, sentada sobre uma almofada, olhando a objetiva, sem compreender; e outras lembranças de amigos, de capadócios, de domingos de festa, de coisas tristemente banais.

     Um pedaço de sabonete de côco jazia no mármore do lavatório, atirado. Uma abotuadura  de homem ficara esquecida.As peças de louças estavam arrumadas sobre paninhos de crochê com fitas vermelhas.

      - Maricota, adeus.

    - Tá bom, adeus. Apareça pra conversar..

   - Está direito.

   - Eu quase nunca paro aqui. Passo uns meses no Rio e moro o resto do ano em Taubaté. Sabe, Taubaté. Tenho lá um português. Ainda não ficou faz três semanas que cheguei e ele já me escreveu.

   -Paixão é uma coisa sério, Maricota.

    Meu desencanto era tão doloroso que me pus a dar conselhos figidos, mascaradndo o sarcasmo com um tom de prudência:

   - É, Maricota, paixão é uma coisa séria. Tome cuidado com esse português. A gente lê sempre tantos crimes nos jornais!

   - Adeus...

   - Adeus, Simão.

   Pôs-se a rir.

   - De que é que você se ri?

   Sacudia-se toda, numa violenta expansão. parecia que estava sob a obsessão de uma ideia comicíssima.

   - Vá, Maricota, explique o que é isso.

    Ela pode falar, afinal:

   - Você se lembra daquelas nossas maluqices de noite?

   Senti-me envergonhado pela evocação.

   - Você era danadinho,Simão....

Eu tinha apenas nove anos naquele tempo....Não sabia o que fazia. Despudorada, Maricota vinha reabrir agora o esquecido cofre das minhas lembranças de pequeno Stendhal iguapense. Oh! o balbuciar do instinto, as ansiedades vagas, os gestos vagos na meninice intuitiva!Todos os homens da cidade provocavam Maricota. Boliam com ela, quando passava. Era uma atmosfera, ardente em torno da minha pajem. Só eu, porém, conhecia a sua cálida nudez de chocolate, só eu conhecia a sua cálida nudez de chocolate, só eu conhecia o cheiro excitante, que vinha daquele coro. Como o escuro me fizesse medo, muitas noites eu descia da cama e pedia para dormir junto dela. Ficava acolhido, confortado, sob o peso dos braços grossos que me envolviam. Tinha uma sensação confusa, indistinta, de que aquele volume enorme de carne quente encerrava uma coisa desconhecida para mim, exercia uma função que escapava ao meu entendimento, mas que o meu sangue agitado queria adivinhar. Maricota, então apertava-me, beijava-me. Minhas pequeninas mãos apalpavam-na toda, agarravam-lhe carnes úmidas, no silêncio da casa adormecida.

   - Não vá cair na escada,

  - Não há perigo.

 - Então, boa-noite, Simão. Apareça.

 - Sim, Maricota.

   Abriu-me a porta.Saí para o ar gelado da noite.

  - Até outro dia, Maricota.

   - Quando escrever para D. Candoca, dê lembranças minhas.

        Ah, isto era o cúmulo! Segui tonto. Dei um esbarrão num preto que vinha pela calçada. Eu ia como que bêbedo. Dentro de mim havia mágoa, saudade, pena, revolta...A vida!

 Um  frio ganhava-me as pernas, endurecendo-as. Lembrei-me então de que tinha os sapatos encharcados. Bonito! Agora não escapava. Ia apanhar um resfriado! Belo negócio.

   Rápido, entrei no Botequim. Cheguei ao balcão e pedi um conhaque. O garção foia ao  armário e tirou a garrafa: ia já me servir quando, picado por um desejo novo, suspendi a ordem. Hesitei comigo....

   Não há um reservado aqui?

   - Ali no fundo, por aquela porta. Quer que o sirva lá?

   Hesitei mas....Enfim, aquela noite estava mesmo perdida para a retidão e a virtude. O ambiente do botequim( decerto havia bêbedos no reservado) ia fazer-me bem. O meu acabrunhamento pedia álcool, álcool....

        - Leve  lá a garrafa;

   E embarafustei pela porta do fundo.    

        FIM

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Peregrino Júnior - Gapuiador


























 O Brasil acabou lá atrás. O Brasil e o mundo . Ali é o inferno. Inferno verde? Qual o quê!  Literatura...Inferno de terra podre, de águas envenenadas, de espectros miseráveis e tristes.

   No ventre encharcado daquela terra empapada d'água onde o pelo hirsuto da floresta é povoado de bichos feios, os igapés lentos e turvos deslizam como negras jiboias de morno lombo oleoso.

  O  rebotalho humano que ali agoniza é a borra dos seringais abandonados, o resíduo imprestável da prosperidade que morreu com a borracha.

  Nasceram de um amor anônimo de acaso. São filhos da luxúria passiva das  caboclas errantes dos seringais e dos apetites recalcados dos seringueiros enfermos e dos  regatões sem pátria.

   Foi assim que arribou neste mundo Chico Domingos. Não conheceu os pais.   

             Não sabe donde veio nem para onde vai. Já depois que havia parado o corte do seringal. Seringueira pra ele é planta estéril e inútil.

    - Pra que cortá seringá? Borracha não vale  um vintém de mel coado....

   A terra, porém, não deixa ninguém morrer de fome naquele mundo de Deus; assaí, popunha, cacau não faltam no mato. E só subir o iguarapé e trepar nos paus... Na frente da barraca o peixe brinca contente no putirum das piracemas, ao alcance do anzol. O busto, porém, é amplo e rijo. E na cara linfática de empalemado, cor de tauá, onde a barba é uma penugem ridícula, os olhos miúdos são apagados e enespressivos: só servem mesmo para a função fisiológica de enxergar.

   Chico Domingos, abandonado na faiscação tropical daquele sol trepa na mata e espia da copa decotada das palmeira, fazendo caretas de luz na barriga oleosa do igarapé, não tem olhos para ver a surpresa espetacular da Natureza. 

  Indiferente a tudo, Chico Domingos, que só conhece  na vida a mais elementar das alegrias instintiva - a  alegria de comer - conseguiu no entanto um dia animar as sua pupilas opacas com uma visão de encantamento  Vicência.

  Descobriu a curiboca numa beiira de rio e engraçou-se dela.

  - Qué casá, cum eu, muié?

  - Se sinhô quisé, eu quero...

   Mas a curiboca não quis ie à cidade para casar ao padre.

   - Vá sozinho, seu Chico.

 - Mas assim o padre não casa nós...

  - Ora se casa, seu Chico!...Leve um paneiro de castanha  e uma pele de borracha, pro sacristão, seu Chico, e deixa está, que ele casa!

   A cabocla era ladina. E era simpática. Tinha vindo da cidade com um regatão, que, enjoado dela, a largara afinal  naquela beira do igarapé, onde Chico Domingos a encontrara por acaso e fortuna.

   Ela não queria ir à cidade com medo de encontrar o regatão, ou o pai, de cuja companhia o turco a tirara. Preferia ficar no sossego da mata.

   Chico Domingos desamarrou a montaria, botou dentro dela um paneiro de castanha e uma pele de borracha, e mupicou pra cidade.

  Mal chegou na igreja, o caboclo disse sem rodeios a que ia: queria se casar.

  - E a noiva?

- Ela não veio não...

  Mas foi logo mostrando ao sacristão os argumentos decisivos:

  - Eu trago aqui, mode pagá o casamento, este paneiro de castanha e esta pele de borracha, cunhado!

  O sacristão compreendei tudo - e não relutou; foi chama o vigário.

   - Ajoelhe-se, meu filho! E me diga como se chama você e sua noiva.

  - Eu me chamo Francisco Domingos de alcunha Chico; mas ela eu não sei como se chama não. È conhecida lá em riba por Vicência do Regatão.

   - E onde é que ela está? Preciso saber o rumo certo...

  - É na direitura do Igapé Grande.

   E indicou com um gesto largo a direção da sua barraca.

   O padre repetiu o nome dele e o da noiva, misturando-os com um grave palavreado de frases latinas, e tomando um ar concentrado de quem pretende varar as distâncias com o pensamento, abençoou com a mão generosa, no rumo indicado.

   O noivo, para que o casamento tivesse efeito mais seguro e o regatão não lhe pudesse mais disputar a mulher, corrigiu em tempo:

   - Seu vigário, pra via das duvidas, quebre a mão um bocado mais pra esquerda...

   E Chico Domingos e Vicência do Regatão, casados  pelo rumo, foram tranquilos na solidão verde da sua barraca.

 Tiveram um filho. O tejupar ficou mais alegre. E a miséria doméstica, que era repartida entre o casal, um cachorro e meia dúzia de xerimbabos, teve nesse dia mais um sócio: Elesbão.

   Elesbão cresceu, sapiranquento e pançudo, na mesma barraca triste daquele beiço de barranco. Aprendeu a nadar na porta da casa e na porta da casa aprendeu a remar, a pescar, a caçar  e a beber cachaça. Era o companheiro inseparável de Chico Domingos. E p ajudava que nem gente grande. Agarrado sempre com ele que só mucuim.

   A barraca escanchada na barranca desdentada do rio,  tinha todas as vantagens: água ao alcance da mão pra lavar os mulambos e as panelas; lameiro vasto para os xerimbabos; peixe farto para o anzol; e a montaria sempre amarrada à porta. Era só o trabalho de esticar o braço...

  Quando as águas baixam, que o rio no caixão, Chico chama o filho e o cachorro, pula pra dentro da montaria, rema para os aguaçús conhecidos, atira a linha  - e  tem o almoço certo. Enquanto espera que o peixe belisque a isca, toma chité e cachaça. Os mosquitos, dançando em volta dele e do curumim, azucrinam a solidão do rio com a sua canção de embalar...

   Quando o paneiro está cheio de tucumarés e aparaís, ele ruma a montaria pra barraca- chaco-chaco-chaco - em remadas rápidas, cantando com o filho, em cadência frouxa, uma canção mole e sem  sentido:


    Montaria deles é que nem asa de pássaro, ligeira e maneira. E quando um enterra o jacumã n'água, o outro  enterra também, sempre "mupicando" certo.

  A cocorada na beira do igarapé, os pés atolados no tijuco e as mãos imundas de sangue e lama. Vicência estrípa o pescado a golpes rápidos do quicé, atirando as gueiras e as víceras à fome paciente e resignada do cachorro Panema, que ao lado se coça melancolicamente, numa resignação silenciosa, sob a vaia incômoda da mosqueira importuna.

     Estirando na rede, o filho ao lado  num silêncio contemplativo de fatalismo, Chico Domingos espia pela porta aberta o igarapé que  corre manso lá fora, levando no lombo preto e luzidio a imagem decorativa das primeira estrelas... De quando em vez, passa de bubuia o garrancho florido de um matupá, onde as aves de plumagem pura navegavam tranquila rio abaixo.

   - Achí, até parece a boiúna!

 O peixe cozido na água e  sal, com um prato de pirão de farinha d'água, eis o banquete triste daquela família sem exigências e sem ambições. Só um gesto ágil tem eles na vida: é na mesa, quando atiram dentro da boca com as pontas dos dedos, os punhados gostosos de farinha d'água. Tem outro: quando amassam o " capitão" de mojica pro curumim engolir.

     Elesbão creceu tão pegado ao pai, que Chico Domingos não sabia arredar uam palha sem o filho. A montaria não se equilibrava n1água sem o peso deles dois. E o remo de Chico Domingos não tinha ritmo quando na popa de canoa não corta a água o jacumã de Elesbão.  Vicência às vezes tinha até ciúmes:

   - Chico mundiou o curumim de um jeito, chega deixou ele panema.

  Mas pai e filho só sabiam andar encangados; eram unha e carne. pareciam mais dois irmãos mangauas. Não se apartavam nunca. Onde um ia,levava o outro- fosse à pesca, fosse à caça, fosse no iguarapé, fosse na mata. È o curumim, apesar de pitorra e molongó, era um companheiro ágil, resistente e corajoso.

  O pessoal da vizinhança caçava:

   - O água-morna do Chico até pra comê precisa da ajuda do curumim!...

   Malgrado ter andado uns dias encarangado, Chico Domingos resolveu ir ao lago buscar qualquer coisas para comer. O Último repiquete do rio - arrastando na barriga inchada o lodo vermelho das 

"terras caídas" e os troncos feridos das árvores mortas - tangera o peixe pra longe. Não havia mais piracemas fervilhentas no perau do igarapé. E o terreiro da barraca não tinha mais pichhé dde peixe. A fomitura começava a apertar a barrriga da família.

   - Vamos gapuiar na mupeia lá de riba, curumim!

  Vicência espantou-se da coragem dele:

  - Você vai gapuiar, será?

  - E bem....

   Atirou no bucho vazio uma pussanga de pajauaru e cachaça, esqueceu a caruara que o botara molongó, pôs de banda  a mofineza que lhe quebrava a o corpo, chamou curumim, desamarrou a montaria  - e varou o igarapé,águas acima, em busca de peixe e castanha, que só podia encontrar nas mupeías e iguaçais das cabeceiras do rio.

    Agachado na proa da montaria, o traseiro apiado nos calcanhares, descarregando o peso todo do corpo nas pontas dos dedos dos pés, Chico Domingos vai espiando água, pra ver onde o peixe ciriringa. O curumim, na popa, de jacumã na mão, é o jacumaúba do barco, e não tem canso de lhe dar andamento e dir.

   De quando em vez, enjoado de tanto  bater água saru, Chico, arregaçando as calças, deixava a montaria e pulava e canarana, com água pelos joelhos, pra ver se mariscava alguma coisa. Perdido no meio dos matupás, só a cabeça  dele  aparecia, tesa  e calada ue nem uma imagem.

    Mas estava mesmo panema; nem o pari que eles botaram na boca da mupeúa não conseguiu dar nada que prestasse. A água estava saru: não batia nada...

   Após dois dias de luta estéril na mupeúa estorricada sem achar peixe, eles amarraram a montaria na barranca e vararam a mata em busca de alimento.Alguns cachos de assaí e uma cuia d'água lhes deram cabo da fome e da sede. Mas a bombeira era tamanha, que não tiveram  coragem de voltar pra casa. Chico domingos acamou umas folhas coma s mãos e deitou-se no chão, na sombra silenciosa da floresta, para descansar os ossos.

   - Estou tão panema, e malafento, filho, que não dou mais acordo de mim!

    - Estazinho doente , pai? Antão, vortemo pra trás!

   - É nada não, parente. Peresque lombeira da labuta.

   Mas vencido pela fadiga, derrreou o corpo no chão, pegando no sono de repente.

   Era à boca da noite. O sol se escondera por trás da mata espessa, e as estrelas que abençoavam o silêncio da solidão verde brincavam esconde-esconde no remanso das águas rasas da mupeúa.

    Elesbão, com a cara piririca de assaí, ficou vadiando perto do pai, até que a noite, coagulando sobre a mataria as sombras negras e compactas, apagou os olhos das pessoas e das coisas

   O curumim, vendo em volta de si apenas a iluminação intermitente dos caga -fogos, estremeceu num súbito calafrio e cutucou o pai, para acordá-lo.

   - Pai Chico, acorde que eu estou com, frio...

   Chico Domingos não respondeu. E Elesbão, agarrando-o pelo braço, para despertá-lo, sentiu-lhes as  carne geladas e imóveis. estava morto!

     O Curumim, engrolando na garganta seca os soluços de dor  de medo, acocorou-se ao lado do corpo, e velou-o a noite inteira.

   Mal riscou na mata a madrugada policrômica da Amazônia, sonora de pássaros e úmida de orvalho, Elesbão pulou pra dentro da montaria, tentando descer o igarapé, à procura de gente ou de socorro. Mas cedo se convenceu da inutilidade do seu esforço: não tinha mais talento pra remar e a sua inexperiência não lhe permitia navegar em rumo certo no labirinto difícil daqueles furos e igarapés, que ora se anastomosavam, ora se dicotomizavam, aqui aglutinando paranás, ali afogando florestas, numa desordem de caos.

   Receando perder-se, voltou ao lugar onde deixara o corpo do pai. Trouxe da montaria o terçado - e ali ficou, dia e noite, numa vigília macabra, velando o cadáver que apodrecia. O cheiro do corpo podre atraía urubus e bichos vorazes. Mas Elesbão, com o terçado em punho, lutava bravamente contra uns e outros, espantando-o com gritos sinistros de terror e de ódio:

   - Chô, bicho! Isto aqui não é carniça não...

   Os tapurus e as varejeiras iam desfibrando as carnes miseráveis de Chico Domingos, em cujas entranhas podres fervilhavam num alvoroço. E o menino, numa alucinação sem remédio, era o espectador único e forçado daquela cena dantesca. Devorado pelos vermes, decomposto pela podridão, o corpo de Chico Domingos, inchado e roxo, perdia a forma, estourava, desconjuntava-se, mutilava-se lentamente, com o arcabouço do esqueleto à mostra e as víscera túmidas a escorrer uma salmoura infecta.

  Os dia passavam, e o menino, no horror do espetáculo dramático, era um guarda silencioso, e resignado daqueles restos podres da sua carne e do seu sangue, que os bichos do mato incessantemente tentavam devorar e mutilar com uma voracidade aterradora. Quando a noite da mata engolia o sol, Elesbão tremia de terror, numa certeza de ver repetir-se a ameça brutal a que ja habituara os seus olhos pisados de espanto e fadiga: uma onça famélica, que uivava e ciscava furiosamente quebrando galhos no bambual com os pés ágeis e macios, que estalavam pisando os sacais.

   - Saí, condenada! - berrava, aterrado, o curumim, brandindo no ar a lâmina suja do  terçado. E o animal, acuado com os gritos desapoderados do caboclo, fugia sem fazer-lhe mal, não tocando no corpo decomposto que os vermes da putrefação iam liquidando sem pressa numa obra tenaz de destruição minuciosa e implacável.

   Estranhando a ausência prolongada do marido e do filho, que havia mais de duas semanas não davam sinal de vida. Vivência botou a boca no mundo e pediu socorro à vizinhança.

   Uma montaria partiu, com Vicência e os vizinhos, em busca do Chico Domingos e Elesbão, igarapé acima, sem rumo certo.

   Aqui, ali, numa forquilha de rio, eles paravam os remos, abicavam à beira d'água e gritava pro mato, com a mão em concha na boca:

   - Seu Chico! Oô seu Chico! ...Elesbão! Oô Elesbão!...

   E o apelo angustiado perdendo-se impotente na amplidão verde da mataria braba, fundia-se no quirir mal-assombrado e apagava-se sem eco na distância misteriosa e infinita.

  Depois de muito errarm assim à toa, varando igarapés e atravessando furos, penetrando igarapós e cortando mupeúas, ele dera d ecara inesperadamente com uma montria amrrada na ribanceira. Aproximaram-se: era a montaria de Chico Domingos e estava vzaia e abandonada.

  O grito dolçorido e trágico furou a mata com mais energia e confiança.

  - Seu chico!...Oô seu Chico! ...Elesbão!....Oô Elesbão....

   E, como um eco sinistro do outro mundo, de dentro da mata silenciosa veio como resposta apenas um soluço débil de desespero. Era Elesbão que já não tinha forças para gritar....


                FIM  ( Histórias da  Amazônia)




gapuiador
/ô/

adjetivo substantivo masculino
  1. AMAZONAS
    que ou aquele que pesca nos baixios, ao acaso.





LADINA

Significado de ladino. Esperto; que expressa muita inteligência, esperteza, agudeza de espírito. Espertalhão; diz-se da pessoa astuciosa que age desonestamente.   




adjetivo substantivo masculino
  1. 1.
    que ou aquele que regata ou regateia muito.
  2. 2.
    substantivo masculino
    aquele que compra por atacado e vende a retalho.



Paneiro de castanha




Sapiroquento
 e um adjetivo.
adjetivo é a palavra que acompanha o nome para determiná-lo ou qualificá-lo.

Os adjetivos "sapiranguento" e "sapiroquento" se aplicam aos olhos atacados de sapiranga ou sapiroca, isto é, aos olhos inflamados ou sem pestana .


substantivo masculino
BRASILEIRISMOBRASIL
  1. 1.
    animal de criação ou estimação; mumbavo.


 tejupar.

 Mucambo (cabana). Mucambo ou mocambo, palhoça ou tejupar são denominações dadas a moradias ...