segunda-feira, 28 de junho de 2021

Truque - Valdormiro Silveira

   A candeia lançava sobre os jogadores uma luz amarelada muito trêmula, e fumaça, levada para todos os lados pelo vento agudo que passava, tinha um cheiro atordoador de mamono ainda verde. Ao redor da mesa de jacanrandá, que a velhice deixara bamba e toda negra, viam-se Antonio Cuba e o Venceslau, o Craro e o Chico Prequeté, cada qual mais tupina e mais prosa no truque. O Antônio Cuba, dono da casa, dizia, a cada passo, que até sentia vexame de dar sova tão grande, como ia dar, no Prequeté e no Craro, mas que, enfim, quem entra na chuva é para se molhar. E o Prequeté, seco na paçoca para um falseio, roncador que nem coi-coi, respondia-lhe, muito sério. que quem vai dar leva saco.

     Antes de começar a primeira mão, o Cuba, gritou à filha, a Ismena( aquilo é que era caboclinha linda!)

   - Traga uma luz aqui, minha filha, aquela da garrafa branca! Sinão esta gente desconfia duma vez comigo, que nunca mais me deixa estribar!

  Veio a pinga, uma pinga zangada, de trazer água aos olhos e um pigarro teimoso à garganta. E, enquanto a Ismane acendia o fogo para o café e a queimada, correu-se a primeira mão. Não houve coisa de maior: O Craro e o Petrequé ganharam ao empate, com jeito frio, sem uma palavra ao menos.

   Mas já na segunda mão principiou o calor, dizendo o Venceslau:

  - Ora, o premeiro milho é dos pinto....

   - É dos pinto? - perguntou o Prequeté. Pode ser também dos galo!

   A vaza foi do Cuba, que matou um três com a sete-ouros.

  - Eu sou pé, e não sou qualquer! Agora, aguente o repuxo, parceiro!

   Na outra vaza, apareceu logo um dois do Prequeté:

- Eu sou todo seu: " tou-lhe ajudando já, seu Cravo!

Mas o Venceslau cortou o dois de golpe:

 - Aqui não passa cachorro magro!

   O Craro bradou entusiasmado para o Cuba:

   - Componha a sua casa. pra mim dar uma diligência!

   O Cuba, entretanto, prudenciou:

    - Bamos, embora, Venceslau? Trucar de falso, chamar com elas!

   O Cuba foi mão. E enchouriçou o pescoço:

 -   Vocês já tenham a primeira e a segunda, e tão ganjentos, não é? Pois eu vou acabar com seu gaz de repente! Lá vou eu, seu Chico, e vou tinindo! Reboco de igreja velha! Esteiro de bexiguento! Espirro de lambari! Já tá c'a pacuera batendo?

   O Prequeté afastou o banco:

  - Ué! "tou esperando o baque! Si você tiver corage" e não quiser topar c'a ronda, fale! Bamo ver quem é que tem mais peito!

  - Pois antão truco mesmo!

  - Caia!

  A carta do Cuba era a espadilha. E o Prequeté ergueu-se, bateu o chapéu na testa, arrastou os pés no assoalho, fez um barulhão:

   - Você já sai de coiração-de-negra, e bufa de mão, só p'ra abichornar a gente? Antão é tudo ou nada: "tava seca  amanilha, seo poaia? Ora, vá com seis!

   - Agora é lá p'ra diante - disse o Cuba. Eu fui adonde vão os bom, p'r'além não psoso! Como é, companheiro, você quer ver os home' inda mais de perto?

   O Venceslau afiançou que o Chico era baixo oara estourar a espadilha:

   - Home, quer saber o que mais? Eu, por mim, chamava.

   - Se o meu parceiro chama, eu não deschamo - concluiu o Cuba: derrube essa frieza de carta!

   Era uma sota! Mas o Cuba e o Venceslau ficaram meio murchos, porque a sota do Craro era guia de sete-copas no corte passado. E não houve picança, tudo foi na ordem: só se tivesse acontecido algum extravio não se achariam mais juntos aqueles dois perigos. O Venceslau pôs na mesa uma carta branca, a do Prequeté foi um às vermelho, e entrou precedida de licença. Cuba voltou com um seis, o Venceslau apertou o Prequeté com um dois, o Prequeté desceu um três, o Cuba cortou de rápete.

    Houve  uma flauta por parte dos contrários: - Aquele três " rancou tudo, não seo Cuba? E com que dor de coiração! Lá se foi tudo quanto Marta fiou! E o zápe" rompeu sem brado de arma!

   O Venceslau, entretanto, afirmou de cabeça, levantada:

  - Antão? Mostraram uma cara deste tamanho, não mostraram?

   O primeiro jogo foi do Craro e do Prequeté. E o Cuba fez zombaria:

   - Sri pinto come premeiro ire pode comer também o premeiro prato! Depois é que vocês vão ver que birimbau não é gaita!

   O baralho estava com o Venceslau. que trançou as cartas e o entregou ao Craro. O Craro cortou se soco, mas uma carta desprendeu-se, virou de costas, apresentou à companha a cata barbuda do rei de paus. E o doador de cartas galhofou às direitas:

   - Pingou, perdeu! Inda mais que você buliu certinho nas veneneira' toda  Pode ajuntar a trouxa, que ali vem chuva! Eu inté nem quero ver as minhas; a mó' que já tou passando amão no rápe, e na ste-ouro', e o parceiro na sete-copa' e na espadilha!

   O Chico Prequeté bateu um três com força, e ainda andou esfregando pelas mãos do Cuba, que pegou a rir-se;

   - Ora venha onte! Isso não é chuva ´p'ra quem tem ponche!

Arrecolha esse três e jogue coisa que sirva!

   - Você não pode co'ele; "tá fazendo grandeza à toa. Agora!  Si você for gente, pise adiante desse três!

   - Olhe que ue piso e piso bem!

   - No fringir dos ovos é que se vê a manteiga que sobra.

   - À vista dos autos truco! Adiante e atrás! Diga por que não quer! 

   O Craro disse de golpe:

   - É bom.

   E o Cuba apresentou a espadilha. Mas Craro ficou desaconchado, bem se lhe percebeu o encalistramento no modo por que falou ao Venceslau:

   Seis adiaante!

   O Venceslau arrastou um surrão danado:

   - Seu Craro, não se atreva a ponhar cuca num home' sacudido que nem eu. Repare que eu sou pé e não sou de capim! P'r' amor de o desforo, quero mais três milho; vá com nove.

   Mas os tentos eram de olho-de-cabra. O Prequeté mostrou coração alegre:

   - Si fosse milho menso, eu chamava de tôpo, poque p'ra vocês dosi abasta o peito, não precisa carta. mas p'ra fazer pouco caudo ansim de nove sementes bonitas como esta, isso eu não faço.

   O Venceslau convidou então o Cuba:

  - Jorge p'ra mim, parceiro, que essa gentinha não presta.

 E apontaram todas manilhas entre os dois, coisa que fez o Craro andar pelas turilhas e armar um perequê medonho:

   - Otam caiçarada ruim! que p'ra jogar com dois são' e sarado'ver eu e o seu Chico tem que fazer potrinho, sinão perde na certeza! Vocês não tenham sangue na cara, taperada?

   Tudo se acalmou em poucos instantes. O Craro deu as cartas, e o Venceslau não quis cortar o baralho, mandou apenas queimar três. O Cuba deu de cantar entredentes a moda do truque:  


Zape matou sete-copa.

menina, falsi comigo na horta;

sete-copa' matou espadilha.

menina, falai comigo de dia;

espadilha matou sete-ouro;

menina,  seus olhos parece' besouro;

sete-ouro' que mata um três; um três que mata um dois,

menina, falai comigo depois; 

um dois que mata um às,

menina, comigo não fala mais.

   


O Craro zangou-se por em cheio:

- Quando acabar a cantoria, diga, que é p'ra entrar em lenha como boi ladrão!

  Contraveio-lhe, porém, o Venceslau, casquinando uma risada de machucar.

 - Apanhar? Quem? Qual é o caborjudo que bate em home's como eu e o Cuba? Na terra! Vocês podem falar, o fazer é que é nove! Eu inté nem quero outra vez olhar as carta; não olho mesmo. Saracura é bicho feio, tem cabelo até o joelho....

   E o Truco de flor, o Venceslau.

  Mas o Prequeté não esteve pelos autos, achou que era demais:

   Só si você fez algum maço! Quando não, tá frito. Ora bamo, ver c'o que foi que você trucou!

  O Venceslau ergueu as cartas da mesa, mostrou-as uma por uma; cinco, sete à toa, valete

  - Parceiro dum anjo! desta vez eu 'tou que de louça nem um piré! Sou a sua vergonha, destavez.

   O Cuba, entretanto, não quis entregar a rapadura com a palha e tudo:

  - Agora deixe correr, que você não tá sozinho no mundo! Jogue a pior!

  Preparou um pé de três e de zápete, fez o corpo mole, aceitou a chamada de seis, ganhou o jogo.

   Mas, no desempate de queda, a sorte principiou a declarar-se pelo Prequeté e pelo Craro. Chamavam com qualquer carta, pouco trucavam, iam fazendo um jogo manso e razoável. E a cachaça passeava de um lado para outro, num toada. Quando já tinham nove tentos, o Venceslau fez um escacéu temeroso:

   - Eu gosto que me esquentem premeiro, depois ou destemido mesmo, sou um teba sem rival; vou trucar nos tentos desses pamonhas. Truco, tapera, quem foge não espera! Eu corro atrás  de quem corre!

   O Prequeté pôs-lhe medo:

   - Não vem não, laranja azeda, que eu te chupo!

   E o Craro segundou a ameaça:

   -Não chega não, cachaça braba, que eu te bebo!

   Decidiram, porém, fugir:

  - Nada! Nós 'tamo alto'!

   Correu em silêncio a outra mão, e a décima inda.

   Quando o Cuba, já meio tomado, perguntou:

   - Home', em que mão estamo'?

   O Craro respondeu-lhe, pegando no baralho:

   - Nas onze, e o baralho na mão do bronze:

   Deu cartas, consultou o parceiro, não mandaram. Os outros apenas tinham quatro tentos. E afinal ganharam a queda.

   Ao romper da segunda queda, que também ganharam, o Antonio Cuba exclamou um tanto passado:

   - Eu 'tou sentindo que você ' tá c'ua meia catinga de água, parceiro. ou sou eu que 'tou? Isto é a falta da queimada. Ismena, traga aqui a do gengibre, bem quente!

   Não lhe deram resposta. Pediu segunda vez a queimada, quando ia jogar a terceira queda, e o mesmo silêncio continuou no interior da casa. Só então veio um compadre, dizer, meio choroso:

    - Você não viu a hora, em que houve um tropel de cavalo aqui mesmo na porta? Foi o Maré Roxo que roubou a Ismana.

   Todos ficaram assustados, porque Cuba era um caboclo brigão e sacudido: acercaram-se dele. Mas o Cuba tinha entrado por demais na branca, estava bem afiançado: levantou-se com os olhos muito arregalados e vermelhos, jogando o corpo, encanou as cartas, puxou-as até a um lado do peito e gritou furiosos:

   - Pois já que 'tá tudo perdido mesmo, truco!

                                                         (Mixuangos)



casquinar

verbo
  1. 1.
    transitivo direto
    dar, soltar (risada trocista).
    "casquinou uns risinhos de zombaria"
  2. 2.
    intransitivo
    disparar uma série de risadas.
    "casquina sem parar quando ouve aquela piada

     

  

   

continua






Candeia -substantivo feminino Vaso suspenso por um gacho fixado à parede. Candeeiro de óleo ou de cera ou vela de cera. Lâmpada formada 

Um comentário: