Este é o TUK. Não que se chame Tuck, mas quando ainda não sabia falar chamava-se a si mesmo por esse nome, porque não podia dizer Carlos. E é claro que, depois que a gente sabe disso, acha mesmo que aquele nome servia para o que ele queria dizer.
Pois bem, queriam que o menino cuidasse da irmãzinha, a pequena Gustava, menor ainda que ele, e ao mesmo tempo estudasse a lição - duas coisas que, por sinal, não combinam lá muito bem. E o pobre do Tuck estava sentado ali, com a irmãzinha ao colo, cantando para ela todas as canções que sabia, e enquanto cantava ia deitando olhares de esguelha para a geografia, aberta diante de seus olhos.
É que no outro dia, de manhã, devia saber de cor os nomes de todas as cidades da Ilha de Seeland e tudo mais que pudesse saber a respeito delas.
Quando a mãe voltou - porque ela havia saído- tomou nos braços a menina; e então Tuk foi imediatamente para junto da janela, e pôs-se a ler com tanto empenho que podia ter estragado a vista: ia ficando escuro, escuro, e a mãe não tinha dinheiro para comprar velas.
- Olha, lá vai a velha lavadeira ali da travessa- disse a mãe, olhando pela janela. - Coitada! mal pode consigo, e tem de carregar lá do poço o balde cheio...Tuk, sê um bom menino: dá um pulo até lá e ajuda a velhinha sim?
Tuk correu, e ajudou a velha.
Mas quando voltou à sala já era noite. Não se enxergava mais para ler. E tinha de ir para a cama - um catre velho. Sim, ele se deitou, mas ficou a pensar na lição de geografia, na Ilha de Seeland e em tudo quanto o professor dissera dela. Sim, devia ler mais alguma coisa, e não era possível. Meteu o livro debaixo do travesseiro, porque ouvira dizer uma vez que isso dá bom resultado, quando a gente tem de aprender uma lição: mas ninguém deve fiar-se nisso...E, deitado, continuava a pensar.
De repente pareceu-lhe que alguém lhe beijava os olhos e a boca. Dormia, sim, dormia, mas...não, não dormia. Pareceu-lhe que a velha lavadeira o olhava com seu olhar suave, e dizia-lhe:
- Seria uma lástima se não soubesse tua lição amanhã. Tu me ajudaste, por isso te ajudarei também agora; e Deus sempre te há de ajudar!
Nisto o livro mexeu-se debaixo do travesseiro, de Tuk. E ele viu uma galinha, que ia se aproximando devagarinho. Por fim ela cantou:
Venho de Kioge!
Co-co-ri-có!
Vou te erguer pela cabeça,
Para veres a vovó"! ( Na Dinamarca chama-se a essa brincadeira"ver galinhas de Kioge").
E a galinha disse ao menino quantos habitantes havia naquela cidade, e falou na batalha que lá houvera quando os ingleses assaltaram a Dinamarca, em 1807, mas afinal foi uma escaramuça, em que nem valia a pena falar...
- Catrapus!
Caiu alguém. Quem seria? Ora, foi uma ave de madeira, foi o papagaio do Torneio de Tiro aos Pássaros, em Prastoe. E o papagaio afirmou que naquela cidade viviam tantos habitantes quantos pregos ele tinha no corpo. Era um papagaio muito orgulhoso, e continuou a falar:
- Ora essa! Thorwaldsen morou bem pertinho de mim! E agora, pum! Aqui estou eu comodamente deitado no chão!
Dizia isso porque perto da cidadezinha de Prastoe fica a propriedade de Nyseoe, onde o escultor Thorwaldsen residia quando estava na Dinamarca, e onde executou muitas de suas melhores esculturas.
Agora, porém, já o menino não se achava mais na cama. Vira-se de repente no dorso de um cavalo!
- Upa! Upa! A galope! A galope!
Um cavaleiro esplendidamente vestido, ostentando um penacho brilhante, levava-o no cavalo à sua frente, e assim atravessaram a floresta, até a velha Cidade de Vordingborg, uma cidade grande e animada. No castelo do rei as altas torres tinham todas as janelas festivamente iluminadas; lá dentro, cantava-se e dançava-se. Sim, dançavam e cantavam: era o Rei Waldemar, eram as jovens damas da Corte, suntuosamente trajadas, porque naquele tempo a cidade tinha na verdade considerável importância. Mais tarde entrou em decadência. Mas nos tempos do Rei Waldemar, ela era cidade importante, isso era.
Surgiu, porém, a madrugada, e ao nascer do sol, num instante desmoronou a cidade inteira e desabou o castelo real, torre por torre, até que por fim ficou apenas uma, que se ergue na colina solitária. A cidade era pequena e muito pobre, e as crianças da escola, com seus livrinhos debaixo do braço diziam que ela possuía dois mil habitantes.Mas isso não era verdade: ali não morava tanta gente assim.
Agora estava Tuk de novo deitado na cama. Parecia-lhe que sonhava, no entanto não era mesmo como são os sonhos; alguém estava ali ao seu lado. E ouviu que o chamavam:
- Tuk! Ó Tuk!
Era um marinheiro baixinho; parecia um grumete.
- Trago-te muitas lembranças de Corsor, aquela cidade Grande Belt, onde outrora, antes dos navios a vapor, os viajantes tinham de ficar à espera de vento favorável...A cidade vai prosperando, possui hoje diligências e vapores. Antigamente, achavam-na feia, mas hoje todos mudaram de opinião. Ouve o que ela mesma diz. Tuk:
" - Estou situada à beira- mar, tenho parques e estrada real. Sou o berço de um poeta engenhoso e divertido. Baggesen; e nem todo o mundo é poeta, não! Um dia quis equipar um navio que iria dar volta ao mundo; mas afinal não levei a cabo o projeto, embora não me faltassem os meio. Além disso tudo, ainda sou uma cidade cheia de perfume, pois, logo defronte ao porto, há rosas magníficas."
O menino olhou para e aquele lado e viu manchas verdes e vermelhas, que lhe dançavam diante dos olhos. Depois que cessou essa confusão de cores, avistou de repente uma ladeira arborizada, que ia dar à baía, e acima dela erguia-se uma imponente igreja; era uma igreja antiga, com duas torres agudas e altas. Na ladeira havia uma fonte, jorrando água continuamente, e junto dela estava sentado um velho rei; pousava-lhe a coroa de ouro sobre a cabeleira branca. Era o Rei Hroar. A cidade é hoje chamada Roeskilde, do nome do rei, e na sua bela catedral estão os túmulos de muitos reis e rainhas da Dinamarca.
E Tuk viu que pela ladeira que ia dar à velha igreja, iam andando, de mãos dadas, todos os reis e rainhas da Dinamarca, todos de coroa de ouro. Da igreja vinha o som do órgão; as fontes murmuravam, e Tuk via e ouvia tudo aquilo. E ouviu também quando o Rei Hroar disse:
- Não te esqueças das cidades!
Mas num instante tudo aquilo sumiu-se. Para onde foram todas aquelas belas coisas? Parecia que se tinha voltado a página de um livro...Agora aparecia uma camponesa velha; vinha de Soroe, a cidadezinha tranquila, situada entre lagos e bosques, e em cujo mercado cresce a grama. A velha trazia à cabeça um avental de linho cinzento, todo milhado: parecia que tinha andando na chuva. É, sem dúvida chovera.
- E chovei mesmo - disse ela.
A velha sabia contar muita coisa interessante; falava de Holberg, o maior comediógrafo da Dinamarca, que fundara uma academia naquela cidade; e de Waldemar e Absalon. Mas de repente começou a se encolher, esticando a cabeça, comos e fosse dar um pulo.
- Coaxe! Como está úmido aqui! - disse ela. -Está úmido, úmido, úmido... e muito sossegado tudo em Soroe! Coaxe!
A velha era agora uma rã! Mas de repente - Coaxe! - virou velha outra vez, e disse:
- A gente deve vestir-se conforme o tempo que faz. Está úmido, muito úmido! E a minha cidade parece uma garrafa: a gente tem de entrar e sair pelo gargalo. Antigamente eu possuía os peixes mais raros e hoje em dia, tenho no fundo da garrafa rapazinhos sadios, de faces coradas, que estão se enchendo de sabedoria: o grego, o hebreu...Coaxe!
Aquilo parecia coaxar, de rãs; era um ruído como o que fazemos quando andamos de botinhas por dentro de um pântano: sempre o mesmo, e tão monótono, tão fatigante, que o menino adormeceu. mas isso até lhe fez bem.
Pois mesmo durante esse outro sono ele teve uma visão, ou coisa semelhante; sua irmãzinha Gustava, de olhos azuis e cabelo crespo, transformara-se subitamente em uma mocinha, alta e esbelta, que voava sem ter asas. E saíram ambos voando por sobre a Ilha De Seeland, com seus bosques verdes e lagos azuis.
- Ouves o canto do galo. Tuk? Os galos esvoaçavam em Kioge. E tu vais ganhar um galinheiro, um galinheiro muito, muito grande! Não padecerás fome nem necessidade! Tua casa há de se erguer como o tronco do Rei Waldemar, toda ornada de estátuas de mármore, como aquelas da Cidade de Prastoe. Estás ouvindo? Teu nome, coberto de glória, percorrerá a terra inteira, como aquele navio que devia partir de Corsor, e de Roeskilde: " Não te esqueças das cidades!" disse o Rei Hroar. Farás um discurso cheio de inteligência, pequeno Tuk. E quando afinal desceres ao túmulo, dormirás tranquilamente...
- ...como se estivesse em Soroe! - disse Tuk, acordando.
Era uma manhã radiante, e o menino já não se lembrava do sonho. Isso não importa; agente não deve mesmo saber o que está para acontecer.
Saltou da cama e pegou no livro. Num instante ficou sabendo toda a lição.
Mas de repente a velha lavadeira meteu a cabeça pela porta entreaberta e disse-lhe, com um gesto cheio de simpatia:
- Muito obrigada, meu filho, pelo teu adjutório. Que Deus realize o teu belo sonho!
A verdade é que o pequeno Tuk não sabia com que havia sonhado; mas Deus, ah! Deus Nosso Senhor o sabia!
Fim
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
quarta-feira, 30 de agosto de 2017
segunda-feira, 21 de agosto de 2017
O PRÍNCIPE DISFARÇADO - CONTOS DE ANDERSEN
Era uma vez um príncipe não muito rico, dono de um reino não muito grande. Não era, contudo, o reino tão pequeno que ele não pudesse pensar em casar bem; e, de fato, andava com essa ideia na cabeça.
Em semelhantes condições, era preciso ser um tanto audacioso para ir dizer à filha do imperador. " Queres casar comigo?" Mas o príncipe atreveu-se a fazer o pedido, porque a fama do seu nome era grande; e mais de cem princesas teriam logo respondido: " Sim, Sim! Obrigada!"
Mas...e ela respondeu sim? É o que vamos ver.
No túmulo do pai do príncipe crescia uma roseira; era uma linda roseira, que só florescia de cinco em cinco anos, e além disso, só dava uma rosa. Mas que rosa, aquela! Tinha um aroma tão suave que, só de aspirá-lo, a gente esquecia imediatamente tristezas e cuidados. E o príncipe tinha também um rouxinol que cantava, como se na sua garganta vivessem todas as melodias que há na terra, e as que ainda estão por haver. Considerou ele, pois, que o rouxinol e a rosa eram os melhores presentes que podia oferecer à princesa, e enviou-lhos, dentro de dois belos cofres de prata.
O imperador recebeu os mensageiros no grande salão, onde a princesa brincava de "visitas" com as suas damas - pois nada mais sabiam fazer Quando ela viu os cofres de prata, bateu palmas de contente, exclamando:
- Tomara que seja um lindo gatinho!
Mas era apenas uma rosa recendente.
- Que linda! - Comentaram todas as damas da Corte. - Que bem-feita! Como é bela!
- É mais que bela- disse o imperador. - É encantadora!
Mas, quando a princesa a tocou, quase rebentou em pranto. E bradou:
- Ora, papai! Não é artificial! É uma rosa natural!...
- Ora ! - repetiu toda a Corte. - É uma rosa natural!...
- Vamos ver o que há na outra arca - disse o imperador.
E eis que do outro cofre sai o rouxinol. Cantou tão admiravelmente, que de momento ninguém achou nada que dizer contra ele.
E só se ouvia de todos os lados:
- Superbe! Charmant!
Porque todas as damas de honor queriam falar francês, e cada qual estropiava mais aquela língua.
- Este passarinho me vem lembrar a caixa de música de nossa imperatriz, que Deus haja! - disse um velho cortesão. - Sim! É o mesmo timbre, a mesma suavidade! - É isso mesmo! - confirmou o imperador, chorando como uma criança.
- Mas este parece um passarinho de verdade! - disse a princesa.
- Sim, é um passinho de verdade - disseram os mensageiros.
- Então, deixem-no sair! - exclamou ela. - Que se vá embora!
E declarou que não receberia a visita do príncipe: não queira vê-lo, de modo algum!
Mas o príncipe nem por isso desanimou. Tisnou o rosto enterrou o chápeu na cabeça e apresentou-e no palácio.
- Bom dia, Majestade! Não poderiam dar-me algum emprego no palácio?
- Sim, emprego há - disse o imperador - mas são tantos os pretendentes...Vamos ver; preciso de quem trate dos meu porcos, que são muitos.
Foi pois o príncipe nomeado porqueiro imperial. Deram-lhe um miserável quartilho ao lado do chiqueiro, e ali teria ele de viver. Trabalhou o dia inteiro, e ao escurecer, tinha feito uma linda panelinha, toda rodeada de campainhas. Quando a água fervia, as campainhas tocavam uma ária antiga.
Oh! Agostinho querido,
Tudo está perdido!
Tudo está perdido!
Mas o maior encanto daquela obra de arte consistia em que, pondo um dedo no vapor que saía da marmita, se sentia logo o cheiro de tudo quanto se cozinhava em cada fogão da cidade. Ora aquilo sim, era coisa muito diferente da rosa" Se era!
Andava a princesa a passear com todas as suas damas de honor; ouvindo aquela melodia parou, encantada, porque também sabia tocar "Agostinho querido", e era até a única coisa que tocava ao piano, e isso mesmo com uma só dedo.
- Mas isto é o que eu sei tocar! É a minha ária! Este porqueiro deve ser então muito bem-educado! Escutem, meninas! Entrem no seu quarto e perguntem-lhe quanto quer por aquele instrumento.
Uma das moças teve de entrar ali; mas a verdade é que antes tratou de calçar tamancos.
- Quanto queres por essa panela? - perguntou a moça.
- Dez beijinhos da princesa - respondeu o porqueiro.
- Deus nos acuda! - exclamou a dama de honor.
- Pois não a cederei por menos.
- Que disse ele? - indagou a princesa.
- Eu nem posso repetir-lhe: é ofensivo!
- Pois dize-me ao ouvido.
Assim fez a dama de honor. Ao ouvi-la, a princesa bradou, afastando-se:
- Que sujeito descarado!
Mal tinha dado alguns passos quando ouviu as campainhas a tinir, numa melodia linda:
Oh! Agostinho querido,
Tudo esta perdido!
Tudo está perdido!
- Escutem! - disse ela. - Ofereçam-lhe dez beijos de minhas damas de honor.
- Não, obrigada! Dez beijos da princesa, ou fico com a panela.
- Que aborrecimento! - disse a princesa. - Pois bem: vocês me rodeiam, de modo que ninguém me veja.
E as moças fizeram uma roda e ergueram as saías para cercar a princesa; o porcariço recebeu os dez beijos e a panela passou para as mãos da princesa
Grande regozijo no castelo! A panelinha fervia dia e noite, sem parar; e sabia-se o que se cozinhava em todas as cozinhas da cidade. Não havia um só fogão que elas não esmerilhassem, desde o do sapateiro até o do conselheiro. As moças dançavam em roda do caldeirãozinho, e batiam palmas de contentes.
- Sabemos agora quem come boas sopas e panquecas, e quem janta massas e costelas! Que divertido!
- Divertidíssimo! - exclamou a dama do guarda-roupa.
- É mesmo! - disse a princesa. - Mas cuidado com a língua, porque eu sou a filha do imperador! Não o contem a ninguém!
- Deus nos livre! - disseram todas.
O porqueiro - isto é, o príncipe, ainda que ninguém suspeitasse que não era porcariço de verdade - cada dia inventava alguma coisa; e fabricou uma matraca que ao girara tocava todas as valsas, polcas e mazurcas conhecidas desde que o mundo é mundo.
- Mas isto é superbe! - disse a princesa, quando e ouviu aquilo. - Nunca ouvi nada tão bonito! Escutem! Entrem e perguntem-lhe quanto vale esse instrumento. Mas - nada de beijos!
- Quer cem beijos da princesa - disse a dama de honor.
- Sem dúvida está louco! - exclamou a princesa, afastando-se dali.
Mas deteve-se logo, reconsiderando, e disse:
- É nosso dever proteger a arte! E sou a filha do imperador! Digam-lhe que lhe darei dez, como da outra vez, e que receberá os restantes das minhas damas de honor.
- Mas nós é que não estamos por isso! - declararam elas.
- Não sejam tolas! Pois se eu posso beijá-lo, vocês também podem ora essa! Não se esqueçam de que eu lhes pago e as alojo e sustento!
E as jovens não tiveram remédio senão se submeter.
- Um cento de beijos da princesa! Senão, cada um que fique com o que é seu.
- Façam roda! - exclamou ela.
E todas as damas de honor formaram um círculo, enquanto ele a beijava.
- Mas que significa aquilo! Uma roda de moças ao pé do chiqueiro? - perguntou o imperador, que ia chegando à janela.
Esfregou os olhos e pôs os óculos.
- Mas...são as damas de honor! Que brincadeira será aquela? Tenha de ir ver o que é aquilo!
E puxou para cima os talões dos sapatos, que sempre andavam dobrados, feitos chinelas, e...que corrida!
Chegou ao pátio e adiantou-se sem fazer ruído. As damas de honor estavam tão tão atarefadas, contando os beijos, para que não fossem de mais nem de menos, que não deram tino da chegada do imperador. Pôs-se ele na ponta dos pés, viu quem era que beijava, e brandou:
- Mas que é isto?
E deu-lhes uma chinelada na cabeça no momento justo em que o porqueiro recebia o beijo número oitenta e seis.
- Fora daqui! - gritou o imperador, enfurecido.
E foram ambos expulsos do reino - princesa e guarda-porcos. E ela chorava e ele resmungava, enquanto a chuva torrencial os encharcava.
- Como sou infeliz! - choramingava a princesa.- Antes tivesse querido casar com aquele príncipe, tão belo! Agora não passo de uma criatura miserável...
O porqueiro escondeu-se atrás de uma árvore, lavou a fuligem do rosto, despiu os farrapos, e apareceu-lhe nos seus trajes de Corte. Tão belo e tão distinto era então, que a princesa lhe fez insensivelmente uma reverência.
- Venho aqui para te dizer que te desprezo - disse ele. - Não quiseste o príncipe honesto, nem soubeste dar apreço à rosa e ao rouxinol; no entanto, por amor de uma bagatela, beijaste o porqueiro. Tens a recompensa que mereces!
Voltou então para o seu pequeno reino e fechou a porta à princesa, que podia agora cantar com acento de sinceridade:
Oh! Agostinho querido,
Tudo está perdido!
Tudo está perdido!
FIM
Em semelhantes condições, era preciso ser um tanto audacioso para ir dizer à filha do imperador. " Queres casar comigo?" Mas o príncipe atreveu-se a fazer o pedido, porque a fama do seu nome era grande; e mais de cem princesas teriam logo respondido: " Sim, Sim! Obrigada!"
Mas...e ela respondeu sim? É o que vamos ver.
No túmulo do pai do príncipe crescia uma roseira; era uma linda roseira, que só florescia de cinco em cinco anos, e além disso, só dava uma rosa. Mas que rosa, aquela! Tinha um aroma tão suave que, só de aspirá-lo, a gente esquecia imediatamente tristezas e cuidados. E o príncipe tinha também um rouxinol que cantava, como se na sua garganta vivessem todas as melodias que há na terra, e as que ainda estão por haver. Considerou ele, pois, que o rouxinol e a rosa eram os melhores presentes que podia oferecer à princesa, e enviou-lhos, dentro de dois belos cofres de prata.
O imperador recebeu os mensageiros no grande salão, onde a princesa brincava de "visitas" com as suas damas - pois nada mais sabiam fazer Quando ela viu os cofres de prata, bateu palmas de contente, exclamando:
- Tomara que seja um lindo gatinho!
Mas era apenas uma rosa recendente.
- Que linda! - Comentaram todas as damas da Corte. - Que bem-feita! Como é bela!
- É mais que bela- disse o imperador. - É encantadora!
Mas, quando a princesa a tocou, quase rebentou em pranto. E bradou:
- Ora, papai! Não é artificial! É uma rosa natural!...
- Ora ! - repetiu toda a Corte. - É uma rosa natural!...
- Vamos ver o que há na outra arca - disse o imperador.
E eis que do outro cofre sai o rouxinol. Cantou tão admiravelmente, que de momento ninguém achou nada que dizer contra ele.
E só se ouvia de todos os lados:
- Superbe! Charmant!
Porque todas as damas de honor queriam falar francês, e cada qual estropiava mais aquela língua.
- Este passarinho me vem lembrar a caixa de música de nossa imperatriz, que Deus haja! - disse um velho cortesão. - Sim! É o mesmo timbre, a mesma suavidade! - É isso mesmo! - confirmou o imperador, chorando como uma criança.
- Mas este parece um passarinho de verdade! - disse a princesa.
- Sim, é um passinho de verdade - disseram os mensageiros.
- Então, deixem-no sair! - exclamou ela. - Que se vá embora!
E declarou que não receberia a visita do príncipe: não queira vê-lo, de modo algum!
Mas o príncipe nem por isso desanimou. Tisnou o rosto enterrou o chápeu na cabeça e apresentou-e no palácio.
- Bom dia, Majestade! Não poderiam dar-me algum emprego no palácio?
- Sim, emprego há - disse o imperador - mas são tantos os pretendentes...Vamos ver; preciso de quem trate dos meu porcos, que são muitos.
Foi pois o príncipe nomeado porqueiro imperial. Deram-lhe um miserável quartilho ao lado do chiqueiro, e ali teria ele de viver. Trabalhou o dia inteiro, e ao escurecer, tinha feito uma linda panelinha, toda rodeada de campainhas. Quando a água fervia, as campainhas tocavam uma ária antiga.
Oh! Agostinho querido,
Tudo está perdido!
Tudo está perdido!
Mas o maior encanto daquela obra de arte consistia em que, pondo um dedo no vapor que saía da marmita, se sentia logo o cheiro de tudo quanto se cozinhava em cada fogão da cidade. Ora aquilo sim, era coisa muito diferente da rosa" Se era!
Andava a princesa a passear com todas as suas damas de honor; ouvindo aquela melodia parou, encantada, porque também sabia tocar "Agostinho querido", e era até a única coisa que tocava ao piano, e isso mesmo com uma só dedo.
- Mas isto é o que eu sei tocar! É a minha ária! Este porqueiro deve ser então muito bem-educado! Escutem, meninas! Entrem no seu quarto e perguntem-lhe quanto quer por aquele instrumento.
Uma das moças teve de entrar ali; mas a verdade é que antes tratou de calçar tamancos.
- Quanto queres por essa panela? - perguntou a moça.
- Dez beijinhos da princesa - respondeu o porqueiro.
- Deus nos acuda! - exclamou a dama de honor.
- Pois não a cederei por menos.
- Que disse ele? - indagou a princesa.
- Eu nem posso repetir-lhe: é ofensivo!
- Pois dize-me ao ouvido.
Assim fez a dama de honor. Ao ouvi-la, a princesa bradou, afastando-se:
- Que sujeito descarado!
Mal tinha dado alguns passos quando ouviu as campainhas a tinir, numa melodia linda:
Oh! Agostinho querido,
Tudo esta perdido!
Tudo está perdido!
- Escutem! - disse ela. - Ofereçam-lhe dez beijos de minhas damas de honor.
- Não, obrigada! Dez beijos da princesa, ou fico com a panela.
- Que aborrecimento! - disse a princesa. - Pois bem: vocês me rodeiam, de modo que ninguém me veja.
E as moças fizeram uma roda e ergueram as saías para cercar a princesa; o porcariço recebeu os dez beijos e a panela passou para as mãos da princesa
Grande regozijo no castelo! A panelinha fervia dia e noite, sem parar; e sabia-se o que se cozinhava em todas as cozinhas da cidade. Não havia um só fogão que elas não esmerilhassem, desde o do sapateiro até o do conselheiro. As moças dançavam em roda do caldeirãozinho, e batiam palmas de contentes.
- Sabemos agora quem come boas sopas e panquecas, e quem janta massas e costelas! Que divertido!
- Divertidíssimo! - exclamou a dama do guarda-roupa.
- É mesmo! - disse a princesa. - Mas cuidado com a língua, porque eu sou a filha do imperador! Não o contem a ninguém!
- Deus nos livre! - disseram todas.
O porqueiro - isto é, o príncipe, ainda que ninguém suspeitasse que não era porcariço de verdade - cada dia inventava alguma coisa; e fabricou uma matraca que ao girara tocava todas as valsas, polcas e mazurcas conhecidas desde que o mundo é mundo.
- Mas isto é superbe! - disse a princesa, quando e ouviu aquilo. - Nunca ouvi nada tão bonito! Escutem! Entrem e perguntem-lhe quanto vale esse instrumento. Mas - nada de beijos!
- Quer cem beijos da princesa - disse a dama de honor.
- Sem dúvida está louco! - exclamou a princesa, afastando-se dali.
Mas deteve-se logo, reconsiderando, e disse:
- É nosso dever proteger a arte! E sou a filha do imperador! Digam-lhe que lhe darei dez, como da outra vez, e que receberá os restantes das minhas damas de honor.
- Mas nós é que não estamos por isso! - declararam elas.
- Não sejam tolas! Pois se eu posso beijá-lo, vocês também podem ora essa! Não se esqueçam de que eu lhes pago e as alojo e sustento!
E as jovens não tiveram remédio senão se submeter.
- Um cento de beijos da princesa! Senão, cada um que fique com o que é seu.
- Façam roda! - exclamou ela.
E todas as damas de honor formaram um círculo, enquanto ele a beijava.
- Mas que significa aquilo! Uma roda de moças ao pé do chiqueiro? - perguntou o imperador, que ia chegando à janela.
Esfregou os olhos e pôs os óculos.
- Mas...são as damas de honor! Que brincadeira será aquela? Tenha de ir ver o que é aquilo!
E puxou para cima os talões dos sapatos, que sempre andavam dobrados, feitos chinelas, e...que corrida!
Chegou ao pátio e adiantou-se sem fazer ruído. As damas de honor estavam tão tão atarefadas, contando os beijos, para que não fossem de mais nem de menos, que não deram tino da chegada do imperador. Pôs-se ele na ponta dos pés, viu quem era que beijava, e brandou:
- Mas que é isto?
E deu-lhes uma chinelada na cabeça no momento justo em que o porqueiro recebia o beijo número oitenta e seis.
- Fora daqui! - gritou o imperador, enfurecido.
E foram ambos expulsos do reino - princesa e guarda-porcos. E ela chorava e ele resmungava, enquanto a chuva torrencial os encharcava.
- Como sou infeliz! - choramingava a princesa.- Antes tivesse querido casar com aquele príncipe, tão belo! Agora não passo de uma criatura miserável...
O porqueiro escondeu-se atrás de uma árvore, lavou a fuligem do rosto, despiu os farrapos, e apareceu-lhe nos seus trajes de Corte. Tão belo e tão distinto era então, que a princesa lhe fez insensivelmente uma reverência.
- Venho aqui para te dizer que te desprezo - disse ele. - Não quiseste o príncipe honesto, nem soubeste dar apreço à rosa e ao rouxinol; no entanto, por amor de uma bagatela, beijaste o porqueiro. Tens a recompensa que mereces!
Voltou então para o seu pequeno reino e fechou a porta à princesa, que podia agora cantar com acento de sinceridade:
Oh! Agostinho querido,
Tudo está perdido!
Tudo está perdido!
FIM
segunda-feira, 14 de agosto de 2017
ALGUMA COISA - CONTOS DE ANDERSEN
Quero ser alguma coisa! - disse o velho .- Quero ter alguma utilidade no mundo, por mais humilde que seja a minha posição. Basta que o que eu produzir - seja o que for! - basta que seja alguma coisa boa, para que seja " alguma coisa". Vou fabricar tijolos; são indispensáveis, e eu terei feito assim alguma coisa.
- Mas " alguma coisa" é muito pouco- tornou o segundo irmão. - O que pretendes fazer é pouco menos que nada; é trabalho de operário, e uma máquina poderá fazê-lo. Não! Nesse caso, prefiro ser pedreiro. Isso sim, é alguma coisa que me tenta... é uma profissão que leva a gente ao grêmio dos operários; temos bandeira própria, e uma sede. E, se as coisas correrem bem, virei a ser mestre, terei oficiais; e minha mulher será então a mulher do "mestre"! Isso sim, é alguma coisa!
- Ora, isso não é nada! - acudiu o terceiro. - Não significa posição elevada. Em uma cidade há muitas ocupações bem acima dessa, de mestre-pedreiro. Podes ser um homem muito direito, mas como " mestre" não passarás jamais de gente do povo. Não! desejo coisa muito melhor. Quero ser arquiteto e entrar assim no terreno da arte, da imaginação. Quero estar entre os eleitos no domínio do espirito. Terei de começar, é certo, por uma ocupação muito humilde; para falar com franqueza - terei de começar como aprendiz de carpinteiro. Usarei a boina de aprendiz, embora esteja habituado a andar de chapéu de seda. Ver-me-ei obrigado a ir comprar cerveja e a aguardente para os oficias inferiores, e eles até me tratarão por tu, o que acho insultuoso! Mas procederei como se tudo isso não passasse de brincadeira de disfarce carnavalesco. Amanhã - quero dizer, quando por minha vez chegar a oficial - seguirei o meu caminho, sem me importar com os outros. Hei de cursar a Academia, aprenderei desenho. Chamar-me-ão de arquiteto. Isso sim, é alguma coisa: é até muita coisa. Posso chegar a ser " Vossa Mercê", e até "Vossa Excelência". E ainda poderei obter outros títulos, títulos de toda a espécie. E hei de construir, construir, como outros tem construído antes de mim. Isso sempre é alguma coisa, é uma base sobre a qual se pode edificar alguma coisa. É, o conjunto é alguma coisa!
- Pois é " alguma coisa" que absolutamente não me agrada - disse o quarto irmão. - Eu não vou seguir no rastro de ninguém, não quero copiar nada. Quero ser um gênio, e hei de mostrar que tenho mais capacidade que vocês todos. Serei o criador de um estilo novo; darei a ideia para um edifício adaptado ao clima e ao material do país, e que se harmoniza também com a índole do povo, que tenha um cunho nacional. Há de também estar em relação com o desenvolvimento da época, e além disso acrescentarei um andar para o meu próprio gênio.
Mas o quinto acudiu:
- E se afinal nem o clima nem o material se prestassem ao teu intento? Seria muito desagradável, pois que tanto um como outro exerce certa influência. E quanto ao caráter nacional...poderia ser tão exagerado que não parecesse natural. O progresso da época pode também deslumbrar-te, como acontece não raras vezes com a mocidade. Enfim, prevejo que nenhum de vocês será coisa nenhuma, por mais confiança que tenham em si. Mas procedam como entenderem - eu é que não quero ser como vocês: hei de me manter fora de todas as coisas, ocupando-me somente em meditar sobre os resultados que vocês obtiverem. Em tudo neste mundo se encontra sempre alguma coisa que não está certa, que está enfim fora dos eixos, como se diz: é isso que eu me proponho a descobrir a criticar. Isso sim, é alguma coisa!
- Este moço é na verdade alguma coisa! Tem boa cabeça, sim: mas ele não faz nada...
Ora, justamente por isso é que ele era alguma coisa...
Isso não passa de uma historieta; e contudo ainda não terminou, apesar de se repetir desde que o mundo é mundo.
E que acontece depois aos cinco irmãos? acabou aqui a história? Não; ela continua: é um conto de fadas.
O mais velho, aquele que fabricava tijolos, verificou logo que cada tijolo que saía da suas mãos lhe deixava de sobra uma moeda pequenina; era uma moeda pequenina, e era de cobre, mas era uma moeda. E alguns centavos de cobre, empilhados uns sobre os outros, vem a se transformar em um belo cruzeiro. E quando alguém bate com um cruzeiro à porta do padeiro, ou do açougueiro, seja lá onde for, enfim, essa porta se abre rapidamente, e a pessoa obtém aquilo de que precisa. Vê-se, pois, que lucro dão os tijolos! É verdade que alguns deles se partem, outros até se esmigalham; mas mesmo esses, assim partidos, tem sua utilidade.
Sobre o dique que protegia a costa marítima, uma mulher muito pobre, chamada Margarida, queria construir uma casinha. E ela obteve todos os tijolos quebrados, e até alguns inteiros, pois o mais velho dos irmãos, ainda que não passasse de um tijoleiro, tinha bom coração. A mulher pobre fez a sua casinha com suas próprias mãos; era uma casinha acanhada; a janela saíra torta, a porta demasiado baixa e o teto, de palha, ficara também malfeito - mas era uma abrigo.
Da casinha avistava-se o mar, que se debatia e se lançava contra o dique. As ondas salgadas salpicavam de espuma a casinha; mas já o que fabricara os tijolos estava há muito morto e sepultado, e ela ainda lá estava, firme, sobre o dique.
O segundo irmão entendia bem do ofício de pedreiro, pois que o aprendeu. Depois de se ter submetido ao exame oficial, fez a sua trouxa e entoou a canção do pedreiro:
Sou moço, hei de viajar, e fazer casas;
Construirei morada e mais morada.
E quando enfim voltar ao meu cantinho,
E casar com a minha bem- amada,
Hei de ser mestre! Hei de fazer caminho!
Oh! Viva o bom ofício de pedreiro,
Que outro não há melhor no mundo inteiro!
E chegou, na verdade, a mestre.
Tornando à sua cidade, edificou uma rua inteira, uma casa ao lado da outra, uma ao lado da outra. E quando estava a rua toda edificada, uma bela rua que enfeitava a cidade, aquelas casas construídas edificaram outra, que seria a morada do pedreiro. Ora, se perguntarmos às casas se elas podem edificar outra por si mesmas, elas nem nos darão resposta; mas as pessoas que ouvirem a pergunta se encarregarão de responder:
- Sim. é verdade: a rua construiu uma casa para ele.
A casinha era pequena, "de chão", isto é, de terra batida. Mas quando dançava com a noiva sobre aquele chão batido, este parecia encerado, de tão liso, e de cada tijolo da parede brotava uma flor, de sorte que a salinha parecia revestida de preciosa tapeçaria. A casa era bonita e o casal foi feliz. À frente da casa tremulava a bandeira do grêmio dos operários, e oficiais e aprendizes gritavam:
- Viva! Viva!
Sim: o pedreiro era alguma coisa. Depois morreu - o que também é alguma coisa.
Vejamos agora o arquiteto, o terceiro da irmandade, o que fora aprendiz de carpinteiro, e usara a boina, e andara feito mandadeiro, ou recadista. Mas frequentara a Academia, e subira à categoria de arquiteto; tratavam-no agora por "Excelência". Pois bem: as casas da rua tinham edificado uma casa para o irmão pedreiro, mas a rua recebeu o nome do arquiteto, e dele era a residência mais linda que nela havia; isso era alguma coisa, mas ele mesmo era também alguma coisa - tinha um longo título, que se estendia para diante e para trás. Seus filhos eram crianças " distintas"; quando ele morreu, sua viúva era uma " dama da sociedade" - o que é alguma coisa. E o seu nome ficou para sempre gravado nas esquinas da rua, e, como nome de rua, vivia na boca de todos. E isso é alguma coisa"
Chegou agora a vez do gênio, do quarto irmão, aquele que queria inventar alguma coisa nova, estranha, uma edificação com um andar a mais. O quarto irmão caiu lá de cima e quebrou o pescoço. Fizeram-lhe um belo enterro, ao qual não faltaram e nem as bandeiras do grêmio, nem a banda de música. O jornal dedicou-lhe belas flores de retórica, e havia também flores espalhadas na calçada. Nada menos de três necrólogos foram escritos, cada qual mais extenso, e isso deve ter-lhe causado grande prazer, porque gostava que falassem de si. Erigiram-lhe um monumento no cemitério - só de uma andar, é certo, mas isso mesmo já é alguma coisa.
Vemos pois que o quarto irmão morreu, como tinham morrido os outros três; mas o último, aquele que criticava tudo, esse sobreviveu-lhes. Ora isso foi uma coisa justa, afinal, porque assim lhe tocou o epílogo, e, tendo uma boa cabeça, como diziam, era para ele muito importante que fosse o último a falar.
Mas afinal lá chegou um dia em que soou também a sua hora; morreu, e foi ter à porta do céu. Era praxe que se acercassem da entrada duas pessoas ao mesmo tempo, de modo que ali chegou aquela velha Margarida, a da casinha do dique.
E o resmungão disse lá consigo:
- Há de ser certamente para formar contraste que eu tenha de me apresentar aqui com essa mesquinha alma...
E, dirigindo-se à outra, perguntou-lhe:
- Olá, quem és tu, mulherzinha? Também pretendes entrar?
A velha, pensando que era São Pedro em pessoa que lhe falava, desfez-se em mesuras, e foi dizendo:
- Sou uma pobre velha sem ninguém; sou a velha Margarida, a casa do dique.
- Ah! E que fizeste lá embaixo? Que obra realizaste na terra?
- Eu, a bem dizer, não fiz obra alguma no mundo!Não fiz nada, pelo menos para merecer que me abram esta porta. E é somente por favor que espero passar por ela.
E, como se aborrecia de ficar ali à espera, sem nada dizer, o homem continuou a interrogar a velha:
- E como foi que saíste do mundo?
- Como foi que saí? Isso não sei. Andava doente, e nos últimos anos me sentia muito fraca, e creio que não pude, por isso, suportar o esforço de me arrastar para fora da cama; e o frio, que era muito intenso, também não me fez bem. O inverno foi muito rigoroso - mas agora, para mim, tudo isso acabou! Ora, naqueles dias de tempo muito frio, sim, mas serenos, a capa de gelo se estendia mar a dentro, a té uma grande extensão, e toda a gente da cidade saiu a passear no gelo. Planejaram até patinação e bailados. E veio a banda de música, e merendas, e tudo. O ruído que faziam era tanto, que chegou até o meu pobre quartilho, onde me achava deitada. Era à tardinha. A lua já tinha surgido, mas ainda não mostrava todo o seu brilho. Da minha cama eu olhava para o mar, que avistava em toda extensão; e de repente vi que lá longe, mesmo no ponto onde ele encosta no céu, surgia uma linda nuvem branca. Fiquei a olhar para a nuvem, e observei que no centro dela havia um ponto escuro, que ia ficando cada vez maior. Ora, eu sabia bem o que aquilo queria dizer: sou velha, tenho experiência, e, embora queles sinais sejam raros, eu já os tinha visto duas vezes na vida. Senti-me tomada de horror, pois sabia agora que estava iminente uma formidável tempestade, daquelas que trazem repentinamente uma maré alta. E esta se abateria sobre aquela pobre gente que andava lá fora, e que se regalava, comendo, bebendo e dançando. A cidade inteira lá estava - velhos e moços! Quem poderia adverti-los , se ninguém visse o sinal, se ninguém pudesse explicar as suas consequências, que eu tão bem pudesse explicar as suas consequências, que eu tão bem conhecia? O pavor que se apossou de mim foi tamanho, que me senti de repente cheia de vigor, um vigor como há muito tempo não sentia. Consegui sair da cama e chegar à janela, mas a fraqueza não permitiu ir mais adiante. Contudo, abri a janela e vi a multidão patinando no gelo, correndo e saltando. Vi também as lindas bandeiras, que tremularam ao vento. Ouvi a criançada gritar "Viva" Viva!" enquanto as criadas cantavam. Era muita a gente, e muito alegre. Mas...e a nuvem branca como o ponto negro? Gritei com toda a força, mas ninguém me ouviu, porque estava muito longe deles. E dentro em pouco a tempestade andaria por ali à solta, o gelo estalaria, e todos os que lá estavam estariam perdidos, sem salvação possível! Eles não podiam ouvir os meus gritos. Eu não podia chegar onde estavam...Ah! Quem me der trazê-los para terra! Foi então que Deus me deu a ideia de atear fogo à minha cama. Antes queimar a casa do que ver tanta gente morrer daquele jeito! E consegui o que queria; as chamas vermelhas subiram alto...Pude escapar e saí, mas fiquei deitada em frente à porta, porque estava exausta. As chamas iam se alastrando por todos os lados; dançavam nas janelas, erguiam-se acima do teto. Os homens que estavam sobre o gelo viram o incêndio, e correram todos, rapidamente, para socorrer uma pobre mulher que, supunham, estava sendo queimada viva, Não ficou um só gelo - correram todos. Vi-os chegar; notei ao mesmo tempo que havia um uivo no ar, e ouvi estrondo que pareciam tiros de enormes canhões. A maré levantou a coberta de gelo, que se despedaçou em estilhas. Mas toda a gente alcançou o dique, onde as faíscas voavam por cima de mim. Sim salvei-os a todos! Mas parece que o frio não me fez muito bem, e também o grande susto, e foi assim que cheguei até à porta do céu. Ouvi dizer que abrem esta porta até para uma pobre criatura como eu...E agora já não tenho a casinha do dique...Mas isso certamente não me dá o direito de entrar, não é?
Abre-se nesse momento a porta do céu, e um anjo conduziu a velha para dentro. Ao entrar, ela deixou cair uma palha, daquelas que forravam a cama que incendiara para salvar o povo. E essa palha transformou-se em ouro puro, e ia aumentando sempre, e subindo, cheio de folhas e flores muito lindas.
- Estás vendo o que trouxe a pobre velha? - perguntou o anjo. - E tu, que trouxeste? Ah! Bem sei que nada executaste no mundo, nada. Não produziste nem sequer um único tijolo. Oxalá pudesse voltar, para ver se podias fazer ao menos isso. ..Um tijolo feito por ti, é claro, não havia de valer lá grande coisa, mas executado com boa vontade, sempre seria alguma coisa...Infelizmente não podes voltar; e nada posso fazer por ti.
Nesse instante, a pobre alma da velhinha da casa do dique intercedeu por ele:
- Seu irmão deu-me de presente os tijolos e os cacos com que edifiquei a minha pobre casinha. Para mim, aquilo era muita coisa. Não poderiam aqueles tijolos e aqueles cacos valer por um tijolo feito por ele? Seria uma ação misericordiosa. Ele precisa tanto dela, e aqui...aqui jorra a fonte da misericórdia...
- Teu irmão - disse então o anjo - aquele irmão, a quem consideravas como o mais humilde, aquele cuja atividade honesta te parecia desprezível, é quem te oferece um presente celestial. Não serás recusado. Tens licença de ficar aqui fora, para meditar, para melhorar a vida que levaste lá embaixo. Contudo não entrarás sem que tenhas realizado alguma coisa, alguma boa ação.
- Ora, esse discurso eu poderia ter formulação muito melhor do que ele - pensou consigo o resmungão.
Não o disse, porém, em voz alta. E isso já era alguma coisa!
FIM
- Mas " alguma coisa" é muito pouco- tornou o segundo irmão. - O que pretendes fazer é pouco menos que nada; é trabalho de operário, e uma máquina poderá fazê-lo. Não! Nesse caso, prefiro ser pedreiro. Isso sim, é alguma coisa que me tenta... é uma profissão que leva a gente ao grêmio dos operários; temos bandeira própria, e uma sede. E, se as coisas correrem bem, virei a ser mestre, terei oficiais; e minha mulher será então a mulher do "mestre"! Isso sim, é alguma coisa!
- Ora, isso não é nada! - acudiu o terceiro. - Não significa posição elevada. Em uma cidade há muitas ocupações bem acima dessa, de mestre-pedreiro. Podes ser um homem muito direito, mas como " mestre" não passarás jamais de gente do povo. Não! desejo coisa muito melhor. Quero ser arquiteto e entrar assim no terreno da arte, da imaginação. Quero estar entre os eleitos no domínio do espirito. Terei de começar, é certo, por uma ocupação muito humilde; para falar com franqueza - terei de começar como aprendiz de carpinteiro. Usarei a boina de aprendiz, embora esteja habituado a andar de chapéu de seda. Ver-me-ei obrigado a ir comprar cerveja e a aguardente para os oficias inferiores, e eles até me tratarão por tu, o que acho insultuoso! Mas procederei como se tudo isso não passasse de brincadeira de disfarce carnavalesco. Amanhã - quero dizer, quando por minha vez chegar a oficial - seguirei o meu caminho, sem me importar com os outros. Hei de cursar a Academia, aprenderei desenho. Chamar-me-ão de arquiteto. Isso sim, é alguma coisa: é até muita coisa. Posso chegar a ser " Vossa Mercê", e até "Vossa Excelência". E ainda poderei obter outros títulos, títulos de toda a espécie. E hei de construir, construir, como outros tem construído antes de mim. Isso sempre é alguma coisa, é uma base sobre a qual se pode edificar alguma coisa. É, o conjunto é alguma coisa!
- Pois é " alguma coisa" que absolutamente não me agrada - disse o quarto irmão. - Eu não vou seguir no rastro de ninguém, não quero copiar nada. Quero ser um gênio, e hei de mostrar que tenho mais capacidade que vocês todos. Serei o criador de um estilo novo; darei a ideia para um edifício adaptado ao clima e ao material do país, e que se harmoniza também com a índole do povo, que tenha um cunho nacional. Há de também estar em relação com o desenvolvimento da época, e além disso acrescentarei um andar para o meu próprio gênio.
Mas o quinto acudiu:
- E se afinal nem o clima nem o material se prestassem ao teu intento? Seria muito desagradável, pois que tanto um como outro exerce certa influência. E quanto ao caráter nacional...poderia ser tão exagerado que não parecesse natural. O progresso da época pode também deslumbrar-te, como acontece não raras vezes com a mocidade. Enfim, prevejo que nenhum de vocês será coisa nenhuma, por mais confiança que tenham em si. Mas procedam como entenderem - eu é que não quero ser como vocês: hei de me manter fora de todas as coisas, ocupando-me somente em meditar sobre os resultados que vocês obtiverem. Em tudo neste mundo se encontra sempre alguma coisa que não está certa, que está enfim fora dos eixos, como se diz: é isso que eu me proponho a descobrir a criticar. Isso sim, é alguma coisa!
- Este moço é na verdade alguma coisa! Tem boa cabeça, sim: mas ele não faz nada...
Ora, justamente por isso é que ele era alguma coisa...
Isso não passa de uma historieta; e contudo ainda não terminou, apesar de se repetir desde que o mundo é mundo.
E que acontece depois aos cinco irmãos? acabou aqui a história? Não; ela continua: é um conto de fadas.
O mais velho, aquele que fabricava tijolos, verificou logo que cada tijolo que saía da suas mãos lhe deixava de sobra uma moeda pequenina; era uma moeda pequenina, e era de cobre, mas era uma moeda. E alguns centavos de cobre, empilhados uns sobre os outros, vem a se transformar em um belo cruzeiro. E quando alguém bate com um cruzeiro à porta do padeiro, ou do açougueiro, seja lá onde for, enfim, essa porta se abre rapidamente, e a pessoa obtém aquilo de que precisa. Vê-se, pois, que lucro dão os tijolos! É verdade que alguns deles se partem, outros até se esmigalham; mas mesmo esses, assim partidos, tem sua utilidade.
Sobre o dique que protegia a costa marítima, uma mulher muito pobre, chamada Margarida, queria construir uma casinha. E ela obteve todos os tijolos quebrados, e até alguns inteiros, pois o mais velho dos irmãos, ainda que não passasse de um tijoleiro, tinha bom coração. A mulher pobre fez a sua casinha com suas próprias mãos; era uma casinha acanhada; a janela saíra torta, a porta demasiado baixa e o teto, de palha, ficara também malfeito - mas era uma abrigo.
Da casinha avistava-se o mar, que se debatia e se lançava contra o dique. As ondas salgadas salpicavam de espuma a casinha; mas já o que fabricara os tijolos estava há muito morto e sepultado, e ela ainda lá estava, firme, sobre o dique.
O segundo irmão entendia bem do ofício de pedreiro, pois que o aprendeu. Depois de se ter submetido ao exame oficial, fez a sua trouxa e entoou a canção do pedreiro:
Sou moço, hei de viajar, e fazer casas;
Construirei morada e mais morada.
E quando enfim voltar ao meu cantinho,
E casar com a minha bem- amada,
Hei de ser mestre! Hei de fazer caminho!
Oh! Viva o bom ofício de pedreiro,
Que outro não há melhor no mundo inteiro!
E chegou, na verdade, a mestre.
Tornando à sua cidade, edificou uma rua inteira, uma casa ao lado da outra, uma ao lado da outra. E quando estava a rua toda edificada, uma bela rua que enfeitava a cidade, aquelas casas construídas edificaram outra, que seria a morada do pedreiro. Ora, se perguntarmos às casas se elas podem edificar outra por si mesmas, elas nem nos darão resposta; mas as pessoas que ouvirem a pergunta se encarregarão de responder:
- Sim. é verdade: a rua construiu uma casa para ele.
A casinha era pequena, "de chão", isto é, de terra batida. Mas quando dançava com a noiva sobre aquele chão batido, este parecia encerado, de tão liso, e de cada tijolo da parede brotava uma flor, de sorte que a salinha parecia revestida de preciosa tapeçaria. A casa era bonita e o casal foi feliz. À frente da casa tremulava a bandeira do grêmio dos operários, e oficiais e aprendizes gritavam:
- Viva! Viva!
Sim: o pedreiro era alguma coisa. Depois morreu - o que também é alguma coisa.
Vejamos agora o arquiteto, o terceiro da irmandade, o que fora aprendiz de carpinteiro, e usara a boina, e andara feito mandadeiro, ou recadista. Mas frequentara a Academia, e subira à categoria de arquiteto; tratavam-no agora por "Excelência". Pois bem: as casas da rua tinham edificado uma casa para o irmão pedreiro, mas a rua recebeu o nome do arquiteto, e dele era a residência mais linda que nela havia; isso era alguma coisa, mas ele mesmo era também alguma coisa - tinha um longo título, que se estendia para diante e para trás. Seus filhos eram crianças " distintas"; quando ele morreu, sua viúva era uma " dama da sociedade" - o que é alguma coisa. E o seu nome ficou para sempre gravado nas esquinas da rua, e, como nome de rua, vivia na boca de todos. E isso é alguma coisa"
Chegou agora a vez do gênio, do quarto irmão, aquele que queria inventar alguma coisa nova, estranha, uma edificação com um andar a mais. O quarto irmão caiu lá de cima e quebrou o pescoço. Fizeram-lhe um belo enterro, ao qual não faltaram e nem as bandeiras do grêmio, nem a banda de música. O jornal dedicou-lhe belas flores de retórica, e havia também flores espalhadas na calçada. Nada menos de três necrólogos foram escritos, cada qual mais extenso, e isso deve ter-lhe causado grande prazer, porque gostava que falassem de si. Erigiram-lhe um monumento no cemitério - só de uma andar, é certo, mas isso mesmo já é alguma coisa.
Vemos pois que o quarto irmão morreu, como tinham morrido os outros três; mas o último, aquele que criticava tudo, esse sobreviveu-lhes. Ora isso foi uma coisa justa, afinal, porque assim lhe tocou o epílogo, e, tendo uma boa cabeça, como diziam, era para ele muito importante que fosse o último a falar.
Mas afinal lá chegou um dia em que soou também a sua hora; morreu, e foi ter à porta do céu. Era praxe que se acercassem da entrada duas pessoas ao mesmo tempo, de modo que ali chegou aquela velha Margarida, a da casinha do dique.
E o resmungão disse lá consigo:
- Há de ser certamente para formar contraste que eu tenha de me apresentar aqui com essa mesquinha alma...
E, dirigindo-se à outra, perguntou-lhe:
- Olá, quem és tu, mulherzinha? Também pretendes entrar?
A velha, pensando que era São Pedro em pessoa que lhe falava, desfez-se em mesuras, e foi dizendo:
- Sou uma pobre velha sem ninguém; sou a velha Margarida, a casa do dique.
- Ah! E que fizeste lá embaixo? Que obra realizaste na terra?
- Eu, a bem dizer, não fiz obra alguma no mundo!Não fiz nada, pelo menos para merecer que me abram esta porta. E é somente por favor que espero passar por ela.
E, como se aborrecia de ficar ali à espera, sem nada dizer, o homem continuou a interrogar a velha:
- E como foi que saíste do mundo?
- Como foi que saí? Isso não sei. Andava doente, e nos últimos anos me sentia muito fraca, e creio que não pude, por isso, suportar o esforço de me arrastar para fora da cama; e o frio, que era muito intenso, também não me fez bem. O inverno foi muito rigoroso - mas agora, para mim, tudo isso acabou! Ora, naqueles dias de tempo muito frio, sim, mas serenos, a capa de gelo se estendia mar a dentro, a té uma grande extensão, e toda a gente da cidade saiu a passear no gelo. Planejaram até patinação e bailados. E veio a banda de música, e merendas, e tudo. O ruído que faziam era tanto, que chegou até o meu pobre quartilho, onde me achava deitada. Era à tardinha. A lua já tinha surgido, mas ainda não mostrava todo o seu brilho. Da minha cama eu olhava para o mar, que avistava em toda extensão; e de repente vi que lá longe, mesmo no ponto onde ele encosta no céu, surgia uma linda nuvem branca. Fiquei a olhar para a nuvem, e observei que no centro dela havia um ponto escuro, que ia ficando cada vez maior. Ora, eu sabia bem o que aquilo queria dizer: sou velha, tenho experiência, e, embora queles sinais sejam raros, eu já os tinha visto duas vezes na vida. Senti-me tomada de horror, pois sabia agora que estava iminente uma formidável tempestade, daquelas que trazem repentinamente uma maré alta. E esta se abateria sobre aquela pobre gente que andava lá fora, e que se regalava, comendo, bebendo e dançando. A cidade inteira lá estava - velhos e moços! Quem poderia adverti-los , se ninguém visse o sinal, se ninguém pudesse explicar as suas consequências, que eu tão bem pudesse explicar as suas consequências, que eu tão bem conhecia? O pavor que se apossou de mim foi tamanho, que me senti de repente cheia de vigor, um vigor como há muito tempo não sentia. Consegui sair da cama e chegar à janela, mas a fraqueza não permitiu ir mais adiante. Contudo, abri a janela e vi a multidão patinando no gelo, correndo e saltando. Vi também as lindas bandeiras, que tremularam ao vento. Ouvi a criançada gritar "Viva" Viva!" enquanto as criadas cantavam. Era muita a gente, e muito alegre. Mas...e a nuvem branca como o ponto negro? Gritei com toda a força, mas ninguém me ouviu, porque estava muito longe deles. E dentro em pouco a tempestade andaria por ali à solta, o gelo estalaria, e todos os que lá estavam estariam perdidos, sem salvação possível! Eles não podiam ouvir os meus gritos. Eu não podia chegar onde estavam...Ah! Quem me der trazê-los para terra! Foi então que Deus me deu a ideia de atear fogo à minha cama. Antes queimar a casa do que ver tanta gente morrer daquele jeito! E consegui o que queria; as chamas vermelhas subiram alto...Pude escapar e saí, mas fiquei deitada em frente à porta, porque estava exausta. As chamas iam se alastrando por todos os lados; dançavam nas janelas, erguiam-se acima do teto. Os homens que estavam sobre o gelo viram o incêndio, e correram todos, rapidamente, para socorrer uma pobre mulher que, supunham, estava sendo queimada viva, Não ficou um só gelo - correram todos. Vi-os chegar; notei ao mesmo tempo que havia um uivo no ar, e ouvi estrondo que pareciam tiros de enormes canhões. A maré levantou a coberta de gelo, que se despedaçou em estilhas. Mas toda a gente alcançou o dique, onde as faíscas voavam por cima de mim. Sim salvei-os a todos! Mas parece que o frio não me fez muito bem, e também o grande susto, e foi assim que cheguei até à porta do céu. Ouvi dizer que abrem esta porta até para uma pobre criatura como eu...E agora já não tenho a casinha do dique...Mas isso certamente não me dá o direito de entrar, não é?
Abre-se nesse momento a porta do céu, e um anjo conduziu a velha para dentro. Ao entrar, ela deixou cair uma palha, daquelas que forravam a cama que incendiara para salvar o povo. E essa palha transformou-se em ouro puro, e ia aumentando sempre, e subindo, cheio de folhas e flores muito lindas.
- Estás vendo o que trouxe a pobre velha? - perguntou o anjo. - E tu, que trouxeste? Ah! Bem sei que nada executaste no mundo, nada. Não produziste nem sequer um único tijolo. Oxalá pudesse voltar, para ver se podias fazer ao menos isso. ..Um tijolo feito por ti, é claro, não havia de valer lá grande coisa, mas executado com boa vontade, sempre seria alguma coisa...Infelizmente não podes voltar; e nada posso fazer por ti.
Nesse instante, a pobre alma da velhinha da casa do dique intercedeu por ele:
- Seu irmão deu-me de presente os tijolos e os cacos com que edifiquei a minha pobre casinha. Para mim, aquilo era muita coisa. Não poderiam aqueles tijolos e aqueles cacos valer por um tijolo feito por ele? Seria uma ação misericordiosa. Ele precisa tanto dela, e aqui...aqui jorra a fonte da misericórdia...
- Teu irmão - disse então o anjo - aquele irmão, a quem consideravas como o mais humilde, aquele cuja atividade honesta te parecia desprezível, é quem te oferece um presente celestial. Não serás recusado. Tens licença de ficar aqui fora, para meditar, para melhorar a vida que levaste lá embaixo. Contudo não entrarás sem que tenhas realizado alguma coisa, alguma boa ação.
- Ora, esse discurso eu poderia ter formulação muito melhor do que ele - pensou consigo o resmungão.
Não o disse, porém, em voz alta. E isso já era alguma coisa!
FIM
domingo, 6 de agosto de 2017
A GOTA D'AGUA - CONTOS DE ANDERSEN
Saber certamente o que é uma lupa, uma lente que aumenta o volume dos objetos, mostrando-os cem vezes maiores do que são.
Quando examinamos através dela uma gota d'água tirada do lago, vemos mais de mil bichinhos maravilhosos, cuja presença não notávamos antes. Mas eles existem, não é ilusão. Dir-se-ia que aquilo é um prato cheio de aranhas marinhas, que pululam em confusão. E parecem furiosas! Arrancam braços e pernas uma das outras, os membros anteriores e posteriores; e todavia estão lá, a seu modo, alegres e bem-humoradas.
Pois era uma vez um velho, a quem todos chamavam Vira-e-Mexe, porque era este, na verdade, o seu nome. Queria sempre obter o que havia de melhor em todas as coisas, e quando não conseguia seus fins por outros meios, recorria à magia.
Lá está ele sentado, com a lupa diante dos olhos, examinando uma gota d'água que acaba de tirar do charco, na valeta. E como fervilhava aquilo! Que formigueiro! Milhares de animálculos saltavam e pulavam, empurrando-se e se entredevorando.
- Que coisa horrorosa! - disse o velho Vira-e-Mexe. - Não poderiam aprender a viver em paz, sossegadamente, ocupando-se cada um só consigo?
Meditou profundamente, e, como não encontrasse uma solução, teve de recorrer à magia.
- É preciso que fiquem mais visíveis - disse ele. - Para isso tenho de lhes dar uma cor.
E deitou na gota d'água alguma coisa semelhante a uma gotícula de vinho tinto. Era sangue do lobo da orelha de uma bruxa - sangue da melhor qualidade, ao preço de um centavo. E todos os bichinhos se tingiram de cor-de-rosa. Agora parecia aquilo tudo uma cidade cheia de selvagens nus.
- Que é isso? - perguntou outro feiticeiro velho, que não tinha nome. ( E era exatamente isso o que o tornava mais distinto.)
- Se fores capaz de adivinhar o que é - retrucou Vira-e-mexe - dou-te isto de presente. Mas fica sabendo que não é fácil resolver um problema quando a gente não tem a solução.
E o feiticeiro que não tinha nome, olhou através da lente. realmente aquilo se parecia com uma cidade de gente sem roupa. Era medonho! Porém mais medonho ainda era ver como uns empurravam e surravam os outros e entre si davam-se bicadas e se agarravam e se mordiam. O que estava embaixo queria vir para cima; e o que estava em cima entendia que devia passar para baixo. E diziam:
- Vejam, vejam! Aquele sujeito tem a perna mais comprida do que a minha! Vou arrancá-la!
Olhem aquele lá, que tem um galo dolorido: vamos fazê-lo doer mais ainda!
E lançaram-se ao outro e deram-lhe puxões e o devoraram, por causa do pequeno galo.
Lá estava uma bichinha, sentada, tão quietinha como uma mocinha; nada mais queria a não ser paz e sossego. Mas era preciso tirá-la dali! e arrastaram-na, fazendo-a em pedaços, devorando-a depois.
- Que divertido! - disse o feiticeiro sem nome.
- É sim; mas que achas que será isso? - perguntou Vira-e-Mexe. - Não achaste a solução?
- Sim! Vê-se bem que é Paris, ou alguma outra grande cidade: são todas iguais...É uma grande cidade.
- É água do charco - respondeu Vira-e-Mexe.
FIM
Pois era uma vez um velho, a quem todos chamavam Vira-e-Mexe, porque era este, na verdade, o seu nome. Queria sempre obter o que havia de melhor em todas as coisas, e quando não conseguia seus fins por outros meios, recorria à magia.
Lá está ele sentado, com a lupa diante dos olhos, examinando uma gota d'água que acaba de tirar do charco, na valeta. E como fervilhava aquilo! Que formigueiro! Milhares de animálculos saltavam e pulavam, empurrando-se e se entredevorando.
- Que coisa horrorosa! - disse o velho Vira-e-Mexe. - Não poderiam aprender a viver em paz, sossegadamente, ocupando-se cada um só consigo?
Meditou profundamente, e, como não encontrasse uma solução, teve de recorrer à magia.
- É preciso que fiquem mais visíveis - disse ele. - Para isso tenho de lhes dar uma cor.
E deitou na gota d'água alguma coisa semelhante a uma gotícula de vinho tinto. Era sangue do lobo da orelha de uma bruxa - sangue da melhor qualidade, ao preço de um centavo. E todos os bichinhos se tingiram de cor-de-rosa. Agora parecia aquilo tudo uma cidade cheia de selvagens nus.
- Que é isso? - perguntou outro feiticeiro velho, que não tinha nome. ( E era exatamente isso o que o tornava mais distinto.)
- Se fores capaz de adivinhar o que é - retrucou Vira-e-mexe - dou-te isto de presente. Mas fica sabendo que não é fácil resolver um problema quando a gente não tem a solução.
E o feiticeiro que não tinha nome, olhou através da lente. realmente aquilo se parecia com uma cidade de gente sem roupa. Era medonho! Porém mais medonho ainda era ver como uns empurravam e surravam os outros e entre si davam-se bicadas e se agarravam e se mordiam. O que estava embaixo queria vir para cima; e o que estava em cima entendia que devia passar para baixo. E diziam:
- Vejam, vejam! Aquele sujeito tem a perna mais comprida do que a minha! Vou arrancá-la!
Olhem aquele lá, que tem um galo dolorido: vamos fazê-lo doer mais ainda!
E lançaram-se ao outro e deram-lhe puxões e o devoraram, por causa do pequeno galo.
Lá estava uma bichinha, sentada, tão quietinha como uma mocinha; nada mais queria a não ser paz e sossego. Mas era preciso tirá-la dali! e arrastaram-na, fazendo-a em pedaços, devorando-a depois.
- Que divertido! - disse o feiticeiro sem nome.
- É sim; mas que achas que será isso? - perguntou Vira-e-Mexe. - Não achaste a solução?
- Sim! Vê-se bem que é Paris, ou alguma outra grande cidade: são todas iguais...É uma grande cidade.
- É água do charco - respondeu Vira-e-Mexe.
FIM
quinta-feira, 3 de agosto de 2017
O VENTO TROCA AS TABULETAS - CONTOS DE ANDERSEN
Dantes, no tempo em que o avô era um meninozinho, e andava de calção e jaqueta vermelha, ajustada por um cinto, e usava pluma na boina - pois era esse, naquela época, o trajo domingueiro dos meninos - dantes havia muita coisa diferente do que se vê agora. Era frequente, por exemplo, sair à rua um cortejo suntuoso coisa que já não se vê hoje em dia, porque foi abolida; era antiquada. Mas é tão divertido ouvir o vovô contar essas coisas!
E deve ter sido na verdade um dia importante aquele em que o sapateiro fez o transporte da tabuleta de uma para outra casa, quando foi da mudança do tribunal. Drapejava ao vento a bandeira de seda. Na tabuleta figurava pintadas uma grande bota e uma águia de duas cabeças.
Os rapazes mais novos levavam o painel das "Boas Vindas", e a arca do grêmio dos artesões. Levavam no braço, tremulando ao vento, fitas brancas e vermelhas. Os mais velhos empunhavam espadas desembainhadas, com um limão na ponta. A banda tocava a toda a força, mas o instrumento mais brilhante era o "passarinho", como o avô chamava a grande vara com a meia-lua, e toda a espécie de quinquilharia: uma verdadeira música turca.
Erguiam bem alto a vara, agitando-a para que tilintasse; e, ao passo que ela retinia, ia também ofuscando os olhos do povo, quando a luz do sol refletia nos ouropéis, na prata e no latão.
À frente do cortejo vinha uma arlequim - com a roupa feita de retalhos de todas as cores. Tinha o rosto pintado de preto, e trazia guizos na cabeça, como os cavalos de trenó. Batia na gente com a sua vareta barulhenta, mas sem machucar ninguém. E a multidão recuavam para logo avançar de novo. Crianças caíam na sarjeta, aos tropeções; velhotas cutucavam-se, de cara azeda, e tomavam pintadas de rapé. Riam uns, tagarelavam outros. O povo aglomerava-se nas escadas, nas janelas, e até sobre os telhados. A princípio o sol estava radiante; mas depois apanharam seu pouco de chuva; mas, como a chuva é útil para a agricultura, era uma verdadeira benção para o país que aquela gente ficasse molhada até os ossos.
E como o vovô sabia contar! Em criança, tinha visto o país no auge do esplendor.
O mais velho dos beleguis fez um discurso, lá do coreto onde estava suspensa a tabuleta. Eram um discurso em verso, e parecia poesia; e era mesmo poesia, pois fora escrito por três homens, que tinham esvaziado um grande jarro de ponche, porque assim teriam mais inspiração.
E o povo aplaudiu o discurso com um viva; mas diga-se a verdade - deu mais vivas ao arlequim quando ele apareceu no estrado, fazendo gaifonas para o público.
É que o bobo fez mesmo um excelente "bôbo"; e tomou cerveja em copinhos, que depois atirava ao povo. O avô tinha um, presente de um oficial de pedreiros, que o apanhara. Era realmente divertida uma festa assim! A tabuleta, suspensa diante do novo tribunal, estava ornada com uma grinalda de flores e folhagem.
- A gente nunca esquece tamanho esplendor - dizia o avô -nem que fique bem velhinho!
E ele, de fato, não o esquecera, embora tivesse visto, muitos outros cortejos magníficos, de cuja pompa também se recordava. Nada era, porém, tão divertida, de quanta festa contava, como a da tabuleta que foi transportada do velho tribunal para o novo.
Tinha ele, apesar de ser ainda tão pequeno, viajando como os pais para assistir aquela solenidade, e foi essa primeira vez que visitou a maior cidade do país. Era tanta a gente nas ruas, que julgou que já estavam mudando a tabuleta. Mas havia tantas na cidade! Dariam para encher de quadros as paredes de cem salas, pendurando-as por dentro e por fora.
Na do alfaiate tinham pintado toda a espécie de vestimenta humana, de sorte que ele assim provava que sabia executar qualquer peça de roupa, da mais fina à mais modesta. Havia as tabuletas dos negociantes de fumo, que apresentavam gurizinhos encantadores a fumar charutos, tal e qual a realidade. E as que anunciavam arenques e manteiga, colarinhos clericais e caixões de defunto; e também se viam inscrições e cartazes. A gente poderia andar um dia inteiro pelas ruas, só examinando aquelas figuras. Ficaria então sabendo tudo - até que espécie de pessoas habitavam aquelas casas, visto que cada uma tinha a sua tabuleta à porta. E o avô dizia que era muito bom, e também instrutivo, a gente saber quem habitava uma cidade grande.
Foi assim o caso da tabuleta, o caso que aconteceu quando meu avô foi à cidade grande. Contou-me ele mesmo, então me pareceu que estivesse a caçoar comigo, como dizia a mãe quando ele queria divertir-se à minha custa, não: naquele dia tinha o avô um ar que inspirava confiança.
Naquela primeira noite que ele passou na cidade caiu um temporal, o temporal mais espantoso de que já falaram os jornais - um temporal como igual ninguém se lembrava de ter visto jamais. o ar ficou coalhado de telhas. O que era madeiramento velho, desmoronou. Um carrinho de mão subiu a rua sozinho, para escapar à tromba dagua. Ouviu-se um som de buzina, constante, solto no ar; e uivos e chiados por toda parte. enfim, foi uma tempestade horrorosa. A água do canal passou por cima do dique, porque não sabia onde havia de ficar. A ventania que se abateu sobre a cidade deitou abaixo as chaminés. E velhas flechas de igrejas, com toda a sua soberba, tiveram de se curvar; e o caso é que nunca mais se endireitaram!
Nos subúrbios ficava uma casa de guarda, onde morava o velho e honrado chefe dos bombeiros, o que chegava sempre ao local do incêndio em último lugar. Parece que a tempestade lhe invejava a casinha, pois que a arrancou do chão; elá se foi ela a rolar rua abaixo. Só foi parara em frente da casa do humilde oficial de carpinteiros, que no último incêndio salvara três vidas. Mas a casinha fez aquilo sem intenção.
A tabuleta do barbeiro - um grande prato de metal - foi arrancada e entrou pela janela do conselheiro de justiça. Aquilo até parecia malícia, na opinião de todos os vizinhos, que - como as melhores amigas da senhora conselheira - a chamavam, de "navalha". Era uma senhora tão inteligente que sabia mais a respeito das pessoas do que ela próprias.
Certa tabuleta, em que havia um bacalhau seco, foi também arrancada, e voou para cima da porta de casa onde morava um homem que escrevia para os jornais. Foi certamente uma brincadeira sem grança da tempestade, que não se lembrou de que o jornalista não serve de divertimento para ninguém: não é ele então rei no seu jornal - e também na sua própria opinião?
O galo do cata-vento voou para o telhado da casa fronteira, e lá ficou pousado, dissera os vizinhos, como a personificação da malícia.
O barril do tanoeiro ficou pendurado diante de uma casa de modas.
O cardápio do restaurante com moldura e tudo - e era bem pesada! - foi parar diante da entrada de um teatro onde nunca entrava ninguém . Era uma cartaz ridículo, naquele lugar:" Sopa de rábano e repolho recheado. " E, por causa do cartaz, lá entrou muita gente.
O Curtidor tinha por emblema uma pele de raposa; pois foi ficar segura no cordão da campainha de um moço que ia sempre à missa das seis, era tão reservado como um guarda-chuva fechado, andava em busca da verdade, e no dizer da tia, era " um modelo".
A inscrição" Instituto Superior de Educação" foi parar na casa de jogo, e no Instituto apareceu esta: " Aqui se amamentam crianças. " Ora, isso não tinha nada de espirituoso; não passava de grande falta de educação. Mas foi obra da tempestade, que a ninguém obedece.
Foi uma noite horrível! Quando amanheceu, estavam trocadas quase todas as tabuletas da cidade. Em alguns casos a troca parecia feita mesmo com tamanha malícia, que o avô nem queria falar; mas notei bem que ele ria por dentro - o que bem pode se sinal de que se divertia à custa de alguém.
As pessoas da cidade, e sobretudo os forasteiros - coitados! enganavam-se constantemente, quando procuravam alguém. Isso era natural, visto que se guiavam pela tabuletas, Sucedeu assim que pessoas que pretendiam tomar parte em uma reunião muto séria, onde deviam ser tratados os assuntos mais importantes, entraram em uma escola barulhenta, e foram encontrar os meninos pulando por cima das mesas e bancos.
E - coisa mais desconcertante ainda - houve quem confundisse igreja com teatro!
No nosso tempo ninguém viu ainda uma tempestade assim isso foi no tempo do avô. Talvez nós mesmos nunca cheguemos a ver um temporal como aquele; os nosso netos, esses, sim.
E, se assim for, aconselhamos a todos que fiquem em casa, quando o vento trocar as tabuletas.
FIM
E deve ter sido na verdade um dia importante aquele em que o sapateiro fez o transporte da tabuleta de uma para outra casa, quando foi da mudança do tribunal. Drapejava ao vento a bandeira de seda. Na tabuleta figurava pintadas uma grande bota e uma águia de duas cabeças.
Os rapazes mais novos levavam o painel das "Boas Vindas", e a arca do grêmio dos artesões. Levavam no braço, tremulando ao vento, fitas brancas e vermelhas. Os mais velhos empunhavam espadas desembainhadas, com um limão na ponta. A banda tocava a toda a força, mas o instrumento mais brilhante era o "passarinho", como o avô chamava a grande vara com a meia-lua, e toda a espécie de quinquilharia: uma verdadeira música turca.
Erguiam bem alto a vara, agitando-a para que tilintasse; e, ao passo que ela retinia, ia também ofuscando os olhos do povo, quando a luz do sol refletia nos ouropéis, na prata e no latão.
À frente do cortejo vinha uma arlequim - com a roupa feita de retalhos de todas as cores. Tinha o rosto pintado de preto, e trazia guizos na cabeça, como os cavalos de trenó. Batia na gente com a sua vareta barulhenta, mas sem machucar ninguém. E a multidão recuavam para logo avançar de novo. Crianças caíam na sarjeta, aos tropeções; velhotas cutucavam-se, de cara azeda, e tomavam pintadas de rapé. Riam uns, tagarelavam outros. O povo aglomerava-se nas escadas, nas janelas, e até sobre os telhados. A princípio o sol estava radiante; mas depois apanharam seu pouco de chuva; mas, como a chuva é útil para a agricultura, era uma verdadeira benção para o país que aquela gente ficasse molhada até os ossos.
E como o vovô sabia contar! Em criança, tinha visto o país no auge do esplendor.
O mais velho dos beleguis fez um discurso, lá do coreto onde estava suspensa a tabuleta. Eram um discurso em verso, e parecia poesia; e era mesmo poesia, pois fora escrito por três homens, que tinham esvaziado um grande jarro de ponche, porque assim teriam mais inspiração.
E o povo aplaudiu o discurso com um viva; mas diga-se a verdade - deu mais vivas ao arlequim quando ele apareceu no estrado, fazendo gaifonas para o público.
É que o bobo fez mesmo um excelente "bôbo"; e tomou cerveja em copinhos, que depois atirava ao povo. O avô tinha um, presente de um oficial de pedreiros, que o apanhara. Era realmente divertida uma festa assim! A tabuleta, suspensa diante do novo tribunal, estava ornada com uma grinalda de flores e folhagem.
- A gente nunca esquece tamanho esplendor - dizia o avô -nem que fique bem velhinho!
E ele, de fato, não o esquecera, embora tivesse visto, muitos outros cortejos magníficos, de cuja pompa também se recordava. Nada era, porém, tão divertida, de quanta festa contava, como a da tabuleta que foi transportada do velho tribunal para o novo.
Tinha ele, apesar de ser ainda tão pequeno, viajando como os pais para assistir aquela solenidade, e foi essa primeira vez que visitou a maior cidade do país. Era tanta a gente nas ruas, que julgou que já estavam mudando a tabuleta. Mas havia tantas na cidade! Dariam para encher de quadros as paredes de cem salas, pendurando-as por dentro e por fora.
Na do alfaiate tinham pintado toda a espécie de vestimenta humana, de sorte que ele assim provava que sabia executar qualquer peça de roupa, da mais fina à mais modesta. Havia as tabuletas dos negociantes de fumo, que apresentavam gurizinhos encantadores a fumar charutos, tal e qual a realidade. E as que anunciavam arenques e manteiga, colarinhos clericais e caixões de defunto; e também se viam inscrições e cartazes. A gente poderia andar um dia inteiro pelas ruas, só examinando aquelas figuras. Ficaria então sabendo tudo - até que espécie de pessoas habitavam aquelas casas, visto que cada uma tinha a sua tabuleta à porta. E o avô dizia que era muito bom, e também instrutivo, a gente saber quem habitava uma cidade grande.
Foi assim o caso da tabuleta, o caso que aconteceu quando meu avô foi à cidade grande. Contou-me ele mesmo, então me pareceu que estivesse a caçoar comigo, como dizia a mãe quando ele queria divertir-se à minha custa, não: naquele dia tinha o avô um ar que inspirava confiança.
Naquela primeira noite que ele passou na cidade caiu um temporal, o temporal mais espantoso de que já falaram os jornais - um temporal como igual ninguém se lembrava de ter visto jamais. o ar ficou coalhado de telhas. O que era madeiramento velho, desmoronou. Um carrinho de mão subiu a rua sozinho, para escapar à tromba dagua. Ouviu-se um som de buzina, constante, solto no ar; e uivos e chiados por toda parte. enfim, foi uma tempestade horrorosa. A água do canal passou por cima do dique, porque não sabia onde havia de ficar. A ventania que se abateu sobre a cidade deitou abaixo as chaminés. E velhas flechas de igrejas, com toda a sua soberba, tiveram de se curvar; e o caso é que nunca mais se endireitaram!
Nos subúrbios ficava uma casa de guarda, onde morava o velho e honrado chefe dos bombeiros, o que chegava sempre ao local do incêndio em último lugar. Parece que a tempestade lhe invejava a casinha, pois que a arrancou do chão; elá se foi ela a rolar rua abaixo. Só foi parara em frente da casa do humilde oficial de carpinteiros, que no último incêndio salvara três vidas. Mas a casinha fez aquilo sem intenção.
A tabuleta do barbeiro - um grande prato de metal - foi arrancada e entrou pela janela do conselheiro de justiça. Aquilo até parecia malícia, na opinião de todos os vizinhos, que - como as melhores amigas da senhora conselheira - a chamavam, de "navalha". Era uma senhora tão inteligente que sabia mais a respeito das pessoas do que ela próprias.
Certa tabuleta, em que havia um bacalhau seco, foi também arrancada, e voou para cima da porta de casa onde morava um homem que escrevia para os jornais. Foi certamente uma brincadeira sem grança da tempestade, que não se lembrou de que o jornalista não serve de divertimento para ninguém: não é ele então rei no seu jornal - e também na sua própria opinião?
O galo do cata-vento voou para o telhado da casa fronteira, e lá ficou pousado, dissera os vizinhos, como a personificação da malícia.
O barril do tanoeiro ficou pendurado diante de uma casa de modas.
O cardápio do restaurante com moldura e tudo - e era bem pesada! - foi parar diante da entrada de um teatro onde nunca entrava ninguém . Era uma cartaz ridículo, naquele lugar:" Sopa de rábano e repolho recheado. " E, por causa do cartaz, lá entrou muita gente.
O Curtidor tinha por emblema uma pele de raposa; pois foi ficar segura no cordão da campainha de um moço que ia sempre à missa das seis, era tão reservado como um guarda-chuva fechado, andava em busca da verdade, e no dizer da tia, era " um modelo".
A inscrição" Instituto Superior de Educação" foi parar na casa de jogo, e no Instituto apareceu esta: " Aqui se amamentam crianças. " Ora, isso não tinha nada de espirituoso; não passava de grande falta de educação. Mas foi obra da tempestade, que a ninguém obedece.
Foi uma noite horrível! Quando amanheceu, estavam trocadas quase todas as tabuletas da cidade. Em alguns casos a troca parecia feita mesmo com tamanha malícia, que o avô nem queria falar; mas notei bem que ele ria por dentro - o que bem pode se sinal de que se divertia à custa de alguém.
As pessoas da cidade, e sobretudo os forasteiros - coitados! enganavam-se constantemente, quando procuravam alguém. Isso era natural, visto que se guiavam pela tabuletas, Sucedeu assim que pessoas que pretendiam tomar parte em uma reunião muto séria, onde deviam ser tratados os assuntos mais importantes, entraram em uma escola barulhenta, e foram encontrar os meninos pulando por cima das mesas e bancos.
E - coisa mais desconcertante ainda - houve quem confundisse igreja com teatro!
No nosso tempo ninguém viu ainda uma tempestade assim isso foi no tempo do avô. Talvez nós mesmos nunca cheguemos a ver um temporal como aquele; os nosso netos, esses, sim.
E, se assim for, aconselhamos a todos que fiquem em casa, quando o vento trocar as tabuletas.
FIM
sexta-feira, 21 de julho de 2017
A OBRA-PRIMA - CONTOS DE ANDDERSEN
No ar rosado da alvorada brilha uma grande estrela, a mais clara da madrugada. Tremulam seus raios sobre a parede branca, como se quisessem escrever ali o que ela pode contar - o que observou durante milênios no nosso globo sempre em movimento.
Queres ouvir uma de suas histórias?
Há pouco tempo - nota que esse "pouco tempo" da estrela significa "séculos " para nós - há pouco tempo meus raios acompanhavam um moço artista. Era na cidade dos Papas, na metrópole romana.
Naquele tempo, como ainda hoje, o castelo imperial era uma ruína. Entre as colunas de mármore derribadas vicejavam figueiras e loureiros, que estendiam sua folhagem sobre as termas destruídas, em cujas paredes ainda hoje se vê o ouro dos ornatos. Também o Coliseu era apenas uma ruína. Repicavam os sinos das igrejas, o incenso exalava seu aroma, procissões passavam pelas ruas, com seus círios acesos, seus esplêndidos baldaquins. Reinava ali a santidade da igreja, e a arte era sublime e sagrada.
Era em Roma que vivia o maior pintor do mundo, Rafael; era lá que vivia o maior escultor da época, Miguel Ângelo. O próprio Papa rendia homenagem aos dois artistas, honrando-os com a sua visita. A arte era reconhecida, venerada, e também recompensada. E, mesmo assim, nem tudo o que era grande e tinha valor chegava a ser conhecido.
Numa estreita viela, em uma casa velha, que fora outrora um templo, morava um jovem artista, pobre e desconhecido. Tinha, é certo, amigos, moços como ele, como ele artistas, jovens nos ideais e nas esperanças. Diziam-lhe todos eles que tinha talento, e grande capacidade: mas que era um tolo porque não acreditava no próprio valor. Era um tolo, porque destruía as obras que formava no barro, sem nunca se dar por satisfeito, sem jamais terminar nenhuma delas. E, diziam, era aquilo um erro porque uma obra deve ser vista, apreciada - e paga.
- Não passas de um sonhador - diziam - e é nisso que está o teu mal: ainda não viveste, não viveste a vida como deve ser vivida. E é justamente na juventude que o Eu deve confundir-se com a vida para que forme um todo uno. Olha o grande mestre, Rafael, a quem o Papa honra e o mundo admira: Rafael não despreza o pão, nem o vinho!
Quanta coisa não diziam eles! Cada um aquilo que a idade e a imaginação lhe ditavam.
Queriam convencer o moço artista de que devia acompanhá-los, divertindo-se mais e trabalhando e sonhando menos. E o caso é que ele as vezes se sentia meio seduzido. Tinha uma imaginação robusta, e sabia partilhar também de uma palestra alegre, rir de boa vontade com os companheiros.
Mas aquilo a que eles chamavam" a vida divertida de Rafael" dissipava-se-lhe do espírito como orvalho da madrugada, quando via o esplendor divino que irradiava dos quadros do grande mestre.
E no Vaticano, quando se achava diante das estátuas de beleza que há milênios os mestres arrancaram do seio dos blocos de mármore, sentia o peito intumescer-se; e no íntimo do seu ser ouvia alguma coisa elevada, santa, sublime, verdadeiramente boa. Então sentia também o desejo de transformar o bloco de mármore em figuras semelhantes; queria criar a imagem daquilo que se elevava do seu coração, em busca do infinito. Mas...como? E que aspecto lhe daria? O barro dúctil ia-se plasmando ao contato dos seus dedos em belas formas; no dia seguinte, porém, o artista despedaçava, como sempre, o que acabara de criar.
Um dia, passou por um daqueles ricos palácios que abundam em Roma. Parou diante da ampla entrada. Viu arcadas, ornadas de pinturas, cercando um jardinzinho, em que floresciam as mais lindas rosas, da bacia de mármore, onde murmurava a água límpida, brotavam grandes copos-de-leita, entre as folhas viçosas e verdes. De repente passou um vulto; uma mocinha esbelta, maravilhosamente bela, e tão leve, que antes parecia adejar do que andar. Era a filha daquela casa principesca.
O artista jamais tinha visto aquela figura de mulher; e no entanto reconheceu-a: pintara-a Rafael, na figura de Psique, num dos palácios romanos. Sim! lá figurava a sua imagem; ela, porém, estava ali, cheia de vida!
Era aquela que vivia no seu pensamento, no seu coração.
O artista voltou ao seu humilde cubículo e plasmou a Psique em barro. E surgiu dele a nobre donzela que vira.
Pela primeira vez olhou satisfeito uma obra de suas mãos. Aquela obra significava muita coisa para o artista: era ela! E quando seus amigos a viram exultaram de contentamento, e disseram que era a manifestação do valor do artista, valor que eles já tinham reconhecido, e que agora seria reconhecido também pelo mundo.
Mas, diziam também eles, embora aquele barro tivesse vida, representasse a carne, não possuía a brancura e a durabilidade do mármore. Era preciso agora que a Psique adquirisse a vida no mármore, e o artista já dispunha de um bloco precioso que jazia no pátio já anos desde o tempo de seus pais. Estava coberto de cacos de vidro, ervas daninhas, talos de verduras, que lhe iam corroendo a superfície; no interior, porém, aquele bloco tinha a alvura das geleiras, e desse mármore devia surgir a Psique.
Ora, sucedeu um dia - não que a estrela clara o contasse: ela nada disse do caso, mas nós sabemos como se passou - sucedeu um dia que um grupo de nobres romanos se apresentou naquela pobre ruela estreita. Parou a carruagem à embocadura da viela e os passageiros foram a pé até a casa do jovem artista, para examinar o seu trabalho, pois tinham ouvido falar nele.
E - pobre do artista! Pobre? Não: Feliz, feliz jovem! Lá estava a nobre donzela. E que sorriso lhe abriu os lábios, quando o pai disse:
- Mas é tu! És tu, em carne e osso!
O sorriso não pode ser plasmado, o olhar - o maravilhoso olhar que ela fitou no jovem artista - esse olhar não pode ser fixado. Era um olhar que elevava a alma enobrecia-a...e esmagava-a, ao mesmo tempo.
- Esta Psique deve ser executada em mármore - disse o opulento aristocrata.
E essas palavras, que deviam animar o barro morto e o mármore pesado, foram palavras de vida para o moço. E o homem rico continuou:
- Comprarei o obra, quando estiver terminada.
Foi como se uma nova era tivesse surgido naquela oficina. A vida e a alegria, irradiavam ali, enquanto o artista trabalhava, num esforço febril. E a brilhante estrela-dalva via o trabalho progredir. O próprio barro parecia animado, desde que ela lá entrara; reproduziu-lhe, sublimada, a beleza das feições. E o artista exclamava, exultante:
- Agora sim, sei o que é viver! Viver é amar! É o abandono sublime de uma união encantadora com a beleza...O que meus colegas chamam vida é coisa efêmera, bolhas da matéria em fermentação: não é, não poderá ser jamais o puro, o celestial vinho do altar que nos consagra para a vida.
Foi posto de pé o bloco de mármore. O cinzel arrancou-lhe grandes lascas. Foi medido; marcas e sinais se cruzaram nele; a mão do artificie desbastou-o, até que, aos poucos, a pedra se foi transformando em um corpo, em um vulto formoso de Nossa Senhora. A pedra pesada tornou-se leve, graciosa, aérea - uma esbelta Psique, com um sorriso de inocência celestial a brincar-lhe nos lábios, tal como se gravara no coração do jovem escultor.
A rosada estrela da manhã via e entendia perfeitamente o que se agitava no íntimo do moço artista; sabia de luz que lhe brotava dos olhos, quando estava trabalhando - quando dava forma à inspiração que recebera de Deus.
E os amigos, encantados, diziam-lhe:
- Tu és um mestre! Um mestre, como o forma os antigos artistas gregos. Dentro em breve o mundo inteiro há de admirar a tua Psique!
- A minha Psique! Minha! ...Sim: ela deve ser minha. Sou um artista, como os grandes artistas do passado. Dando-me este dom milagroso, elevou-me Deus à altura da donzela nobre.
Ajoelhando, chorando, cheio de reconhecimento, orava a Deus; e depois tornava a esquecer-se do Criador por causa da moça, por causa da sua imagem de mármore, daquela Psique que se erguia, como se fosse plasmada na neve, corada pela luz da alvorada.
Mas ia enfim vê-la; ia vê-la na realidade cheia de vida e de graça; ia ver aquela cujas palavras soavam aos seus ouvidos como uma música. Podia finalmente ir levar ao luxuoso palácio a notícia de que estava terminada a Psique de mármore.
Entrou. Atravessou o pátio descoberto; e água, murmurando, jorrava da boca dos golfinhos para a bacia de mármore; onde os copos-de-leite estavam em for, e rosas frescas desabrochavam, exuberantes. Pisou no amplo vestíbulo, cujas paredes e teto ostentavam escudos e quadros. Criados cheios de ornamentos, arrogantes e afetados, iam e vinham; outros, ociosos e altivos, espreguiçavam-se nos bancos de madeira esculpida, como donos da casa.
Explicou-lhes o artista o motivo da visita e foi convidado a subir a escada de mármore polido, coberta de tapetes macios e flanqueada de estátuas. Atravessaram salas pavimentadas de moisaicos esplêndidos, e que guardava ricas telas. A princípio, sentiu-se oprimido diante de tanta pompa, de tanto esplendor; mas passou-lhe logo o assombro.
O acolhimento que lhe dispensou o velho príncipe foi não somente amável, senão que manifestamente cordial; e, ao despedir-se dele, pediu-lhe que entrasse no gabinete da signora, que teria também prazer em vê-lo. Conduziu-o o criado por suntuosas salas até aquelas em que a própria dona representava o esplendor e a magnificência.
E a moça falou-lhe. Nenhum misere, nenhum coral teria o poder de lhe comover assim o coração, de lhe elevar alma, como aquela voz! O artista tomou-lhe a mão e apetou-a nos lábios: não é mais macia uma rosa delicada, e contudo, daquela rosa saíam chamas!
Foi sublime a sensação que teve. E brotaram-lhe as palavras da boca...Que palavras? Nem ele próprio o sabia. Sabe acaso a cratera que vomita lavas em brasa? Confessou-lhe o seu amor eis o que disse.
Plasmada, ofendida, ali estava ela, com ar escarninho e arrogante, olhando para o artista. Pela expressão do rosto, dir-se-ia que tinha tocado, de inopino, em um sapo frio e viscoso. Corou, mas os lábios ficaram brancos. E aqueles olhos, negros como a treva da noite, despediam chamas.
- Estás louco? - brandou a moça. - Fora daqui! Some-te, some-te daqui!
E voltou-lhe as costas.
O rosto da bela moça apresentava agora a expressão daquela máscara petrificada e coroada de serpentes - a Medusa.
Descendo a escadaria a cambalear, como se fosse uma massa inerte, inanimada, o artista atravessou as ruas e assim chegou à sua morada. Somente lá despertou, tomando de dor e de fúria. pegou em um martelo e brandiu-o no ar, na intenção de despedaçar a bela imagem de mármore. Nem sequer notara que estava ao seu lado o seu amigo Ângelo, que lhe segurou firmemente o braço.
- Louco! Que ias fazer?
Lutaram, mas Ângelo era mais vigoroso; arfando de fadiga, o jovem artista atirou-se sobre uma cadeira.
- Que aconteceu? Acama-te e fala, afinal!
Mas que poderia ele dizer? Que tinha para contar? Compreendeu que Ângelo não poderia destrinçar a meada intrincada do seu caso; resolveu pois nada dizer. Mas o outro continuou:
- São os teus eternos devaneios, bem sei: eles é que te fazem perder a cabeça!
E de novo procurou desviar o amigo, agora desesperado, para a sua maneira de levar a vida - uma vida cheia de alegrias e sem preocupações. E tanto insistiu que conseguiu tirá-lo de casa.
De novo se achava o artista no seu quarto. Sentado em uma cadeira, procurava concentrar-se. De repente ouviu, saídas da própria boca, estas palavras:
- Miserável! Fora daqui! Some-te daqui!
E um suspiro, profundo e dolorido, escapou-lhe do peito.
"Fora! Some-te daqui"! Aquelas palavras, que ela a Psique, a Psique viva, lhe dissera, ecoavam-lhe no coração, ressoavam-lhe nos lábios. Afundou a cabeça no travesseiro; pouco a pouco foram-se-lhe enevoando as ideias, e por fim adormeceu.
Acordou de madrugada, sobressaltado. Procurou mais uma vez concentrara as ideias. Que lhe acontecera? Sonhara tudo aquilo? Ou estivera mesmo no palácio do nobre?
Não! Era tudo realidade, realidade!
No ar rosado da madrugada tremia a clara estrela, iluminado-o, a ele e à Psique de mármore. O artista estremeceu ao dar com a imagem da beleza eterna. Já não queira contemplá-la: lançou um pano sobre a estátua. Depois tentou retirá-lo, para descobri-la de novo, mas sentiu-se incapaz de olhar para a própria obra.
E durante o dia permaneceu taciturno, sombrio de tudo alheado, sem se aperceber de nada do que se passava ao redor si.
Ninguém, entretanto, sabia o que se passava dentro daquele peito humano!
Correram os dias e a semanas. As noites pareciam-lhe intermináveis. Uma manhã viu a estrela cintilante o artista, pálido, agitado pelos calafrios da febre, aproximar-se da imagem de mármore, afastar o pano que a cobria e deitar-lhe um demorado, um doloroso olhar. Depois, mal podendo com aquele peso, arrastou a estátua para o jardim.
Havia lá um poço, então seco, do qual apenas restava a cova.
Lançou nessa cova a Psique. Depois deitou terra sobre a estátua, cobrindo enfim tudo com galhos e urtigas.
- Fora! Fora!...somete-te!
Foi o breve necrólogo que concedeu à sua obra.
No ar rosado da manhã a estrela via tudo. Seus raios refletiam-se, trêmulos, em duas lágrimas, duas grandes lágrimas que deslizavam pelas faces exangues(sem forças) do moço artista, agitado pela febre, mortalmente enfermo. Pelo menos assim disseram, quando ele entrou no hospital.
Foi visitá-lo, como amigo e como médico, o monge Inácio, que lhe levava o consolo da religião, falando-lhes da paz e da beatitude da Igreja, falando-lhe do pecado dos homens, e da misericórdia e da paz de Deus.
- Essas palavras caíram como quentes raios de sol sobre um solo em fermentação. Por entre o nevoeiro, o vapor que se erguia do chão brotavam quandros imaginários, imagens que tinham um fundo de realidade. Foi dali, dessas ilhas flutuantes, que ele lançou um olhar sobre a vida humana. Descobriu nela erros e ilusões, tal e qual como se dera consigo.
É que a Arte é uma bruxa, que nos arrasta para a vaidade, para os desejos terrenos. Somos então falsos - falsos para com nós mesmos, para com os amigos, para com Deus. É a serpente, que está sempre a nos dizer:
- Come, e serás igual a Deus!
Só então lhe pareceu que se compreendia a si próprio, que encontrara enfim, o caminho que conduz à verdade e à paz. Sim, é na Igreja que estão a luz e a claridade de Deus; na cela monacal e que existe a quietação, que permite à arvore da vida humana crescer para a eternidade.
O irmão Inácio fortaleceu-lhe a alma, e firmou-se nele a decisão. E o homem do mundo tornou-se servidor da Igreja; o jovem artista renunciou ao mundo e entrou para o convento.
Acolheram-no os Irmãos carinhosamente; o sacramento da Ordem foi-lhe conferido em um belo ofício divino de domingo. Parecia-lhe que Deus estava presente, no brilho do sol que se refletia nele, nas santas imagens e na cruz rutilante.
E quando, ao pôr-do-sol, se achou na sua cela estreita, abriu a janela e lançou um olhar sobre a velha Roma: viu os templos destruídos, o Coliseu, imenso, mas inanimado, e tudo aquilo trajando as roupagens da primavera - as acácias em flor, as sempre-vivas frescas, as rosas brotando por toda a parte; limoeiros e laranjeiras em pompa, palmeiras abrindo os leques...Sentiu-se comovido; sentiu que sua alma se elevava, como jamais o sentira. Aberta e tranquila, estendia-se a campanha até as montanhas azuis, cobertas de neve, e que pareciam pintadas no espaço. Tudo se confundia, tudo respirava paz e beleza, e flutuava, desvanecendo-se - tudo era sonho!
Sim, naquele lugar o mundo era mesmo um sonho; e esse sonho dura horas, e pode tornar a voltar, horas depois. Mas a vida no convento é uma vida de anos - longos e numerosos anos.
Mas ele se sentia entregue à misericórdia, por ela elevado; pois então não tinha lançado para longe de si a vaidade deste mundo? Não era um filho da Igreja?
E os pensamentos, que o assaltavam em um turbilhão, eram como uma bola de neve que rolava, crescia, esmagava-o, apagava-o.
Mas a força divina que nele vivia não deixava de lutar e de padecer.
E ele pensava no dom maravilhoso que de Deus recebera, e que deitara fora, deixando inacabada a sua missão. Porque lhe faltara a força necessária para levá-la a termo. E a imortalidade, a Psique que vivia no seu peito devia ser sepultada, com aquela outra Psique, o melhor raio de luz da sua vida, que jamais havia de ressurgir do seu túmulo!
A estrela cintilava no ar rosado, a estrela, que há de se extinguir, que há de parecer, enquanto a alma há de viver e brilhar eternamente. Seus raios trêmulos caíram sobre a parede caiada, mas eles não escreveram ali nada que falasse da magnificência de Deus, nem da sua misericórdia, nem do amor universal, que canta no peito dos crentes.
- A Psique que vive dentro de mim não morrerá nunca! Pode acontecer o inconcebível. Inconcebível sois Vós, ó Senhor! Todo o Vosso mundo é inconcebível: uma obra miraculosa de poder, de grandeza, de amor!
Brilhavam os olhos do monge...
E vidraram-se-lhe os olhos.
Os sinos da igreja repicavam acima da sua cela, e foi este, o último som que ouviu. Está morto.
Sepultaram-no em terra trazida de Jerusalém, misturado com os restos de piedosos defuntos.
Século depois continuava a estrela clara a luzir, imutável, cintilante, como luzia há milênios. O ar fulgia fresco como as rosas, purpurino como o sangue.
Lá, onde outrora serpeava uma estreita ruela, e se viam os restos de um templo, esguia-se agora um convento de freiras. Abria-se no jardim do convento uma sepultura para uma jovem religiosa, quando a pá bateu em uma pedra, de alvura ofuscante. Era mármore. E ia apresentando uma forma arredondada; um ombro ia surgindo da terra. Cavando agora com mais cuidado, descobriram uma cabeça feminina, depois umas asas de borboleta. Aberta a cova, em que pretendiam sepultar a jovem freira, revelou-se à luz deslumbrante da manhã uma esplêndida estátua de Psique, esculpida em mármore branco.
- Que bela e que perfeita! Uma obra de arte, da melhor época! diziam todos.
Quem seria o seu autor? Ninguém o sabia. Ninguém, a nãos ser a brilhante estrela que fulgurava há séculos e séculos. Essa sim, sabia a história do artista, conhecia-lhe a vida toda, as provações e as fraquezas. E sabia que fora apenas um ser humano.
Mas ele morreu e se desfizera em pó. O resultado do seu melhor esforço, porém, o que houvera nele de mais grandioso para dar testemunho da centelha divina que seu ser ocultava - esse ficou e foi visto, reconhecido, admirado e transmitido aqui na terra.
A brilhante estrela-dalva, no ar rosado, iluminou com seus raios cintilantes a estátua, e também os lábios e os olhos dos admiradores, que sorriam contemplativos, ao ver esculpida em um bloco de mármore - uma alma.
Titarc Amigos, esta é mais um conto longo, preciso de tempo para digitar. lembra da minha paixão pelos meus livros, para glorifica-los estou digitando letra por letra , lendo e relendo, para resgatar o tempo que não os li,.
É um trabalho com sentimento, gosto muito de copiar os contos no meu blog, para eternizá-los.
Queres ouvir uma de suas histórias?
Há pouco tempo - nota que esse "pouco tempo" da estrela significa "séculos " para nós - há pouco tempo meus raios acompanhavam um moço artista. Era na cidade dos Papas, na metrópole romana.
Naquele tempo, como ainda hoje, o castelo imperial era uma ruína. Entre as colunas de mármore derribadas vicejavam figueiras e loureiros, que estendiam sua folhagem sobre as termas destruídas, em cujas paredes ainda hoje se vê o ouro dos ornatos. Também o Coliseu era apenas uma ruína. Repicavam os sinos das igrejas, o incenso exalava seu aroma, procissões passavam pelas ruas, com seus círios acesos, seus esplêndidos baldaquins. Reinava ali a santidade da igreja, e a arte era sublime e sagrada.
Era em Roma que vivia o maior pintor do mundo, Rafael; era lá que vivia o maior escultor da época, Miguel Ângelo. O próprio Papa rendia homenagem aos dois artistas, honrando-os com a sua visita. A arte era reconhecida, venerada, e também recompensada. E, mesmo assim, nem tudo o que era grande e tinha valor chegava a ser conhecido.
Numa estreita viela, em uma casa velha, que fora outrora um templo, morava um jovem artista, pobre e desconhecido. Tinha, é certo, amigos, moços como ele, como ele artistas, jovens nos ideais e nas esperanças. Diziam-lhe todos eles que tinha talento, e grande capacidade: mas que era um tolo porque não acreditava no próprio valor. Era um tolo, porque destruía as obras que formava no barro, sem nunca se dar por satisfeito, sem jamais terminar nenhuma delas. E, diziam, era aquilo um erro porque uma obra deve ser vista, apreciada - e paga.
- Não passas de um sonhador - diziam - e é nisso que está o teu mal: ainda não viveste, não viveste a vida como deve ser vivida. E é justamente na juventude que o Eu deve confundir-se com a vida para que forme um todo uno. Olha o grande mestre, Rafael, a quem o Papa honra e o mundo admira: Rafael não despreza o pão, nem o vinho!
Quanta coisa não diziam eles! Cada um aquilo que a idade e a imaginação lhe ditavam.
Queriam convencer o moço artista de que devia acompanhá-los, divertindo-se mais e trabalhando e sonhando menos. E o caso é que ele as vezes se sentia meio seduzido. Tinha uma imaginação robusta, e sabia partilhar também de uma palestra alegre, rir de boa vontade com os companheiros.
Mas aquilo a que eles chamavam" a vida divertida de Rafael" dissipava-se-lhe do espírito como orvalho da madrugada, quando via o esplendor divino que irradiava dos quadros do grande mestre.
E no Vaticano, quando se achava diante das estátuas de beleza que há milênios os mestres arrancaram do seio dos blocos de mármore, sentia o peito intumescer-se; e no íntimo do seu ser ouvia alguma coisa elevada, santa, sublime, verdadeiramente boa. Então sentia também o desejo de transformar o bloco de mármore em figuras semelhantes; queria criar a imagem daquilo que se elevava do seu coração, em busca do infinito. Mas...como? E que aspecto lhe daria? O barro dúctil ia-se plasmando ao contato dos seus dedos em belas formas; no dia seguinte, porém, o artista despedaçava, como sempre, o que acabara de criar.
Um dia, passou por um daqueles ricos palácios que abundam em Roma. Parou diante da ampla entrada. Viu arcadas, ornadas de pinturas, cercando um jardinzinho, em que floresciam as mais lindas rosas, da bacia de mármore, onde murmurava a água límpida, brotavam grandes copos-de-leita, entre as folhas viçosas e verdes. De repente passou um vulto; uma mocinha esbelta, maravilhosamente bela, e tão leve, que antes parecia adejar do que andar. Era a filha daquela casa principesca.
O artista jamais tinha visto aquela figura de mulher; e no entanto reconheceu-a: pintara-a Rafael, na figura de Psique, num dos palácios romanos. Sim! lá figurava a sua imagem; ela, porém, estava ali, cheia de vida!
Era aquela que vivia no seu pensamento, no seu coração.
O artista voltou ao seu humilde cubículo e plasmou a Psique em barro. E surgiu dele a nobre donzela que vira.
Pela primeira vez olhou satisfeito uma obra de suas mãos. Aquela obra significava muita coisa para o artista: era ela! E quando seus amigos a viram exultaram de contentamento, e disseram que era a manifestação do valor do artista, valor que eles já tinham reconhecido, e que agora seria reconhecido também pelo mundo.
Mas, diziam também eles, embora aquele barro tivesse vida, representasse a carne, não possuía a brancura e a durabilidade do mármore. Era preciso agora que a Psique adquirisse a vida no mármore, e o artista já dispunha de um bloco precioso que jazia no pátio já anos desde o tempo de seus pais. Estava coberto de cacos de vidro, ervas daninhas, talos de verduras, que lhe iam corroendo a superfície; no interior, porém, aquele bloco tinha a alvura das geleiras, e desse mármore devia surgir a Psique.
Ora, sucedeu um dia - não que a estrela clara o contasse: ela nada disse do caso, mas nós sabemos como se passou - sucedeu um dia que um grupo de nobres romanos se apresentou naquela pobre ruela estreita. Parou a carruagem à embocadura da viela e os passageiros foram a pé até a casa do jovem artista, para examinar o seu trabalho, pois tinham ouvido falar nele.
E - pobre do artista! Pobre? Não: Feliz, feliz jovem! Lá estava a nobre donzela. E que sorriso lhe abriu os lábios, quando o pai disse:
- Mas é tu! És tu, em carne e osso!
O sorriso não pode ser plasmado, o olhar - o maravilhoso olhar que ela fitou no jovem artista - esse olhar não pode ser fixado. Era um olhar que elevava a alma enobrecia-a...e esmagava-a, ao mesmo tempo.
- Esta Psique deve ser executada em mármore - disse o opulento aristocrata.
E essas palavras, que deviam animar o barro morto e o mármore pesado, foram palavras de vida para o moço. E o homem rico continuou:
- Comprarei o obra, quando estiver terminada.
Foi como se uma nova era tivesse surgido naquela oficina. A vida e a alegria, irradiavam ali, enquanto o artista trabalhava, num esforço febril. E a brilhante estrela-dalva via o trabalho progredir. O próprio barro parecia animado, desde que ela lá entrara; reproduziu-lhe, sublimada, a beleza das feições. E o artista exclamava, exultante:
- Agora sim, sei o que é viver! Viver é amar! É o abandono sublime de uma união encantadora com a beleza...O que meus colegas chamam vida é coisa efêmera, bolhas da matéria em fermentação: não é, não poderá ser jamais o puro, o celestial vinho do altar que nos consagra para a vida.
Foi posto de pé o bloco de mármore. O cinzel arrancou-lhe grandes lascas. Foi medido; marcas e sinais se cruzaram nele; a mão do artificie desbastou-o, até que, aos poucos, a pedra se foi transformando em um corpo, em um vulto formoso de Nossa Senhora. A pedra pesada tornou-se leve, graciosa, aérea - uma esbelta Psique, com um sorriso de inocência celestial a brincar-lhe nos lábios, tal como se gravara no coração do jovem escultor.
A rosada estrela da manhã via e entendia perfeitamente o que se agitava no íntimo do moço artista; sabia de luz que lhe brotava dos olhos, quando estava trabalhando - quando dava forma à inspiração que recebera de Deus.
E os amigos, encantados, diziam-lhe:
- Tu és um mestre! Um mestre, como o forma os antigos artistas gregos. Dentro em breve o mundo inteiro há de admirar a tua Psique!
- A minha Psique! Minha! ...Sim: ela deve ser minha. Sou um artista, como os grandes artistas do passado. Dando-me este dom milagroso, elevou-me Deus à altura da donzela nobre.
Ajoelhando, chorando, cheio de reconhecimento, orava a Deus; e depois tornava a esquecer-se do Criador por causa da moça, por causa da sua imagem de mármore, daquela Psique que se erguia, como se fosse plasmada na neve, corada pela luz da alvorada.
Mas ia enfim vê-la; ia vê-la na realidade cheia de vida e de graça; ia ver aquela cujas palavras soavam aos seus ouvidos como uma música. Podia finalmente ir levar ao luxuoso palácio a notícia de que estava terminada a Psique de mármore.
Entrou. Atravessou o pátio descoberto; e água, murmurando, jorrava da boca dos golfinhos para a bacia de mármore; onde os copos-de-leite estavam em for, e rosas frescas desabrochavam, exuberantes. Pisou no amplo vestíbulo, cujas paredes e teto ostentavam escudos e quadros. Criados cheios de ornamentos, arrogantes e afetados, iam e vinham; outros, ociosos e altivos, espreguiçavam-se nos bancos de madeira esculpida, como donos da casa.
Explicou-lhes o artista o motivo da visita e foi convidado a subir a escada de mármore polido, coberta de tapetes macios e flanqueada de estátuas. Atravessaram salas pavimentadas de moisaicos esplêndidos, e que guardava ricas telas. A princípio, sentiu-se oprimido diante de tanta pompa, de tanto esplendor; mas passou-lhe logo o assombro.
O acolhimento que lhe dispensou o velho príncipe foi não somente amável, senão que manifestamente cordial; e, ao despedir-se dele, pediu-lhe que entrasse no gabinete da signora, que teria também prazer em vê-lo. Conduziu-o o criado por suntuosas salas até aquelas em que a própria dona representava o esplendor e a magnificência.
E a moça falou-lhe. Nenhum misere, nenhum coral teria o poder de lhe comover assim o coração, de lhe elevar alma, como aquela voz! O artista tomou-lhe a mão e apetou-a nos lábios: não é mais macia uma rosa delicada, e contudo, daquela rosa saíam chamas!
Foi sublime a sensação que teve. E brotaram-lhe as palavras da boca...Que palavras? Nem ele próprio o sabia. Sabe acaso a cratera que vomita lavas em brasa? Confessou-lhe o seu amor eis o que disse.
Plasmada, ofendida, ali estava ela, com ar escarninho e arrogante, olhando para o artista. Pela expressão do rosto, dir-se-ia que tinha tocado, de inopino, em um sapo frio e viscoso. Corou, mas os lábios ficaram brancos. E aqueles olhos, negros como a treva da noite, despediam chamas.
- Estás louco? - brandou a moça. - Fora daqui! Some-te, some-te daqui!
E voltou-lhe as costas.
O rosto da bela moça apresentava agora a expressão daquela máscara petrificada e coroada de serpentes - a Medusa.
Descendo a escadaria a cambalear, como se fosse uma massa inerte, inanimada, o artista atravessou as ruas e assim chegou à sua morada. Somente lá despertou, tomando de dor e de fúria. pegou em um martelo e brandiu-o no ar, na intenção de despedaçar a bela imagem de mármore. Nem sequer notara que estava ao seu lado o seu amigo Ângelo, que lhe segurou firmemente o braço.
- Louco! Que ias fazer?
Lutaram, mas Ângelo era mais vigoroso; arfando de fadiga, o jovem artista atirou-se sobre uma cadeira.
- Que aconteceu? Acama-te e fala, afinal!
Mas que poderia ele dizer? Que tinha para contar? Compreendeu que Ângelo não poderia destrinçar a meada intrincada do seu caso; resolveu pois nada dizer. Mas o outro continuou:
- São os teus eternos devaneios, bem sei: eles é que te fazem perder a cabeça!
E de novo procurou desviar o amigo, agora desesperado, para a sua maneira de levar a vida - uma vida cheia de alegrias e sem preocupações. E tanto insistiu que conseguiu tirá-lo de casa.
De novo se achava o artista no seu quarto. Sentado em uma cadeira, procurava concentrar-se. De repente ouviu, saídas da própria boca, estas palavras:
- Miserável! Fora daqui! Some-te daqui!
E um suspiro, profundo e dolorido, escapou-lhe do peito.
"Fora! Some-te daqui"! Aquelas palavras, que ela a Psique, a Psique viva, lhe dissera, ecoavam-lhe no coração, ressoavam-lhe nos lábios. Afundou a cabeça no travesseiro; pouco a pouco foram-se-lhe enevoando as ideias, e por fim adormeceu.
Acordou de madrugada, sobressaltado. Procurou mais uma vez concentrara as ideias. Que lhe acontecera? Sonhara tudo aquilo? Ou estivera mesmo no palácio do nobre?
Não! Era tudo realidade, realidade!
No ar rosado da madrugada tremia a clara estrela, iluminado-o, a ele e à Psique de mármore. O artista estremeceu ao dar com a imagem da beleza eterna. Já não queira contemplá-la: lançou um pano sobre a estátua. Depois tentou retirá-lo, para descobri-la de novo, mas sentiu-se incapaz de olhar para a própria obra.
E durante o dia permaneceu taciturno, sombrio de tudo alheado, sem se aperceber de nada do que se passava ao redor si.
Ninguém, entretanto, sabia o que se passava dentro daquele peito humano!
Correram os dias e a semanas. As noites pareciam-lhe intermináveis. Uma manhã viu a estrela cintilante o artista, pálido, agitado pelos calafrios da febre, aproximar-se da imagem de mármore, afastar o pano que a cobria e deitar-lhe um demorado, um doloroso olhar. Depois, mal podendo com aquele peso, arrastou a estátua para o jardim.
Havia lá um poço, então seco, do qual apenas restava a cova.
Lançou nessa cova a Psique. Depois deitou terra sobre a estátua, cobrindo enfim tudo com galhos e urtigas.
- Fora! Fora!...somete-te!
Foi o breve necrólogo que concedeu à sua obra.
No ar rosado da manhã a estrela via tudo. Seus raios refletiam-se, trêmulos, em duas lágrimas, duas grandes lágrimas que deslizavam pelas faces exangues(sem forças) do moço artista, agitado pela febre, mortalmente enfermo. Pelo menos assim disseram, quando ele entrou no hospital.
Foi visitá-lo, como amigo e como médico, o monge Inácio, que lhe levava o consolo da religião, falando-lhes da paz e da beatitude da Igreja, falando-lhe do pecado dos homens, e da misericórdia e da paz de Deus.
- Essas palavras caíram como quentes raios de sol sobre um solo em fermentação. Por entre o nevoeiro, o vapor que se erguia do chão brotavam quandros imaginários, imagens que tinham um fundo de realidade. Foi dali, dessas ilhas flutuantes, que ele lançou um olhar sobre a vida humana. Descobriu nela erros e ilusões, tal e qual como se dera consigo.
É que a Arte é uma bruxa, que nos arrasta para a vaidade, para os desejos terrenos. Somos então falsos - falsos para com nós mesmos, para com os amigos, para com Deus. É a serpente, que está sempre a nos dizer:
- Come, e serás igual a Deus!
Só então lhe pareceu que se compreendia a si próprio, que encontrara enfim, o caminho que conduz à verdade e à paz. Sim, é na Igreja que estão a luz e a claridade de Deus; na cela monacal e que existe a quietação, que permite à arvore da vida humana crescer para a eternidade.
O irmão Inácio fortaleceu-lhe a alma, e firmou-se nele a decisão. E o homem do mundo tornou-se servidor da Igreja; o jovem artista renunciou ao mundo e entrou para o convento.
Acolheram-no os Irmãos carinhosamente; o sacramento da Ordem foi-lhe conferido em um belo ofício divino de domingo. Parecia-lhe que Deus estava presente, no brilho do sol que se refletia nele, nas santas imagens e na cruz rutilante.
E quando, ao pôr-do-sol, se achou na sua cela estreita, abriu a janela e lançou um olhar sobre a velha Roma: viu os templos destruídos, o Coliseu, imenso, mas inanimado, e tudo aquilo trajando as roupagens da primavera - as acácias em flor, as sempre-vivas frescas, as rosas brotando por toda a parte; limoeiros e laranjeiras em pompa, palmeiras abrindo os leques...Sentiu-se comovido; sentiu que sua alma se elevava, como jamais o sentira. Aberta e tranquila, estendia-se a campanha até as montanhas azuis, cobertas de neve, e que pareciam pintadas no espaço. Tudo se confundia, tudo respirava paz e beleza, e flutuava, desvanecendo-se - tudo era sonho!
Sim, naquele lugar o mundo era mesmo um sonho; e esse sonho dura horas, e pode tornar a voltar, horas depois. Mas a vida no convento é uma vida de anos - longos e numerosos anos.
Mas ele se sentia entregue à misericórdia, por ela elevado; pois então não tinha lançado para longe de si a vaidade deste mundo? Não era um filho da Igreja?
E os pensamentos, que o assaltavam em um turbilhão, eram como uma bola de neve que rolava, crescia, esmagava-o, apagava-o.
Mas a força divina que nele vivia não deixava de lutar e de padecer.
E ele pensava no dom maravilhoso que de Deus recebera, e que deitara fora, deixando inacabada a sua missão. Porque lhe faltara a força necessária para levá-la a termo. E a imortalidade, a Psique que vivia no seu peito devia ser sepultada, com aquela outra Psique, o melhor raio de luz da sua vida, que jamais havia de ressurgir do seu túmulo!
A estrela cintilava no ar rosado, a estrela, que há de se extinguir, que há de parecer, enquanto a alma há de viver e brilhar eternamente. Seus raios trêmulos caíram sobre a parede caiada, mas eles não escreveram ali nada que falasse da magnificência de Deus, nem da sua misericórdia, nem do amor universal, que canta no peito dos crentes.
- A Psique que vive dentro de mim não morrerá nunca! Pode acontecer o inconcebível. Inconcebível sois Vós, ó Senhor! Todo o Vosso mundo é inconcebível: uma obra miraculosa de poder, de grandeza, de amor!
Brilhavam os olhos do monge...
E vidraram-se-lhe os olhos.
Os sinos da igreja repicavam acima da sua cela, e foi este, o último som que ouviu. Está morto.
Sepultaram-no em terra trazida de Jerusalém, misturado com os restos de piedosos defuntos.
Século depois continuava a estrela clara a luzir, imutável, cintilante, como luzia há milênios. O ar fulgia fresco como as rosas, purpurino como o sangue.
Lá, onde outrora serpeava uma estreita ruela, e se viam os restos de um templo, esguia-se agora um convento de freiras. Abria-se no jardim do convento uma sepultura para uma jovem religiosa, quando a pá bateu em uma pedra, de alvura ofuscante. Era mármore. E ia apresentando uma forma arredondada; um ombro ia surgindo da terra. Cavando agora com mais cuidado, descobriram uma cabeça feminina, depois umas asas de borboleta. Aberta a cova, em que pretendiam sepultar a jovem freira, revelou-se à luz deslumbrante da manhã uma esplêndida estátua de Psique, esculpida em mármore branco.
- Que bela e que perfeita! Uma obra de arte, da melhor época! diziam todos.
Quem seria o seu autor? Ninguém o sabia. Ninguém, a nãos ser a brilhante estrela que fulgurava há séculos e séculos. Essa sim, sabia a história do artista, conhecia-lhe a vida toda, as provações e as fraquezas. E sabia que fora apenas um ser humano.
Mas ele morreu e se desfizera em pó. O resultado do seu melhor esforço, porém, o que houvera nele de mais grandioso para dar testemunho da centelha divina que seu ser ocultava - esse ficou e foi visto, reconhecido, admirado e transmitido aqui na terra.
A brilhante estrela-dalva, no ar rosado, iluminou com seus raios cintilantes a estátua, e também os lábios e os olhos dos admiradores, que sorriam contemplativos, ao ver esculpida em um bloco de mármore - uma alma.
Titarc Amigos, esta é mais um conto longo, preciso de tempo para digitar. lembra da minha paixão pelos meus livros, para glorifica-los estou digitando letra por letra , lendo e relendo, para resgatar o tempo que não os li,.
É um trabalho com sentimento, gosto muito de copiar os contos no meu blog, para eternizá-los.
terça-feira, 18 de julho de 2017
A tradição oral gerou os Contos as fábulas os apólogos as parábolas, lendas e os mitos.
os textos de tradição oral são histórias contadas em voz alta por um narrador a um grupo de ouvintes. Essa é uma tradição que data da Pré-História. Até hoje, nas tribos primitivas da África, da Austrália ou mesmo do Brasil, escutar um narrador contando histórias ainda é um costume comum.... A importância social da narrativa oral, cujas finalidades variam de acordo com as circunstâncias, gerou muitas maneiras de contar uma história. Isso criou vários gêneros de narrativas como o conto (popular, maravilhoso, de fadas),... -as fábulas, os apólogos, as parábolas, as lendas e os mitos.... - Por meio dessa diversidade de narrativas, entra-se em contato com ideias que já fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. O advento da escrita ajudou a preservar as narrativas da tradição oral, desde as mais remotas, como ... as do Antigo Egito e da Mesopotâmia, até as mais recentes, como os contos de fadas. A importância de conhecer essa literatura é ampliar o nosso conhecimento de mundo e da história do homem. Abrir horizontes para o universo cultural da humanidade é um forma de crescer tanto pessoal quanto profissionalmente. Mas, além de conhecimentos, essas histórias - em especial por sua engenhosidade - também entretêm e proporcionam diversão....
Contos infantis
Alguns dos mais importantes pesquisadores dos contos da tradição oral universal foram o francês Charles Perrault (1628-1703), que recolheu várias histórias ainda muito conhecidas, como "Cinderela" e "O Pequeno Polegar", entre outras.Os alemães Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), que ficaram conhecidos como os Irmãos Grimm, dedicaram grande parte de suas vidas a recolher histórias contadas oralmente por pessoas comuns.
Além de escreverem as histórias, os dois estudiosos também registravam o modo como eram faladas, isto é, a linguagem popular de seu país. Finalmente, pode-se citar o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) que registrou muitas estórias da tradição oral de seu país. Seus contos, como "A Menina dos Fósforos" ou "A Pequena Sereia" também continuam a fazer sucesso ainda nos dias de hoje. No Brasil, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) foi um dos mais importantes pesquisadores da nossa cultura popular brasileira. Autor do "Dicionário do Folclore Brasileiro" registrou diversas narrativas populares, imortalizando personagens como o Saci, a Mula-sem-cabeça e o Curupira.
Histórias que o povo conta O adjetivo "popular" significa, segundo o dicionário Houaiss, "relativo ou pertencente ao povo, especialmente à gente comum ". O conto popular, portanto, é uma narrativa de tradição oral que não possui um autor específico, é anônimo, criado em local e época ignorados, e passado através de gerações Por ser constantemente recontado, sofre modificações ao longo do tempo. É comum nessas narrativas a criação de personagens típicos da região na qual a história se originou. É um dos mais antigos gêneros da tradição oral, uma manifestação cultural que surge de modo espontâneo e não tem um compromisso com a cultura formal. O conto popular possui uma riqueza expressiva e imagética e tende a ser universal, isto é, possui simbolismo e uma estrutura narrativa que é facilmente reconhecida e admirada pela maioria das pessoas, sejam adultas ou crianças, pessoas alfabetizadas ou não-alfabetizadas, gente instruída ou pessoas sem acesso à cultura formal, isto é, à escola. Apesar de nascer do imaginário do homem simples e não ter uma vinculação com regras e normas, o conto popular possui particularidades em sua forma de composição. Por exemplo, em geral, os personagens são pessoas simples que, após muitas aventuras,conseguem vencer na vida, por assim dizer. Nestes contos, em geral apresentam-se muitos enigmas e desafios que exigem dos personagens inteligência e esperteza. É fantástico "Maravilhoso" é algo que sobrenatural, que nos surpreende e encanta e fascina. O conto maravilhoso é aquele que procura tornar concretas e verossímeis histórias cujo caráter derivam para o devaneio e a fantasia. Nestas narrativas, que se passam num tempo que não é real nem especificamente determinado, tudo pode acontecer. Os espaços onde elas ocorrem, em geral, são misteriosos e sombrios, como grutas e florestas. Os personagens principais passam por conflitos e são auxiliados por seres sobrenaturais, com poderes e capacidades extraordinárias. Esses seres imaginários muitas vezes surgiram dos "Bestiários", livros da Idade Média que reuniam descrições e histórias de animais reais ou fantásticos. O grande escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) fez um bestiário moderno e reuniu muitos seres fantásticos de diversos países. Veja, por exemplo, no breve trecho que segue, a descrição de um dragão chinês:
Dragão chinês [...] O Dragão Chinês, o lung, é um dos quatro animais mágicos. No melhor dos casos, o dragão ocidental é aterrorizante, e no pior, ridículo; o lung das tradições chinesas, ao contrário, tem divindade e é como um anjo que fosse também um leão..
Contos de fada
Vimos que nos contos maravilhosos a característica principal são as situações sobrenaturais e a presença de seres e objetos mágicos e encantados. Transformações, metamorfoses e ações extraordinárias de um modo geral podem acontecer a qualquer momento da história. Há também um tipo de narrativa maravilhosa nas quais as transformações, em geral, são particularidades de determinados seres encantados, dotados de grandes poderes mágicos. Trata-se dos contos de fadas. As histórias desses contos, em geral, possuem personagens como príncipes, princesas, camponeses, entre outros, que são auxiliados pelas fadas, ou seus similares do sexo masculino, os magos, gênios etc.
A palavra fada vem do latim fatum que significa destino. Estes seres encantados orientam ou modificam o destino das pessoas. Por serem muito generosos e terem poderes sobrenaturais, eles surgem na "vida" dos personagens nos momentos de grandes dificuldades, quando parece que é impossível superar os conflitos. Nos contos de fadas, como em muitas narrativas literárias, existem episódios ou situações de equilíbrio e desequilíbrio que vão se modificando, de acordo com os acontecimentos que provocam a passagem de um estado para outro. O que prende a atenção do leitor são estas situações de conflitos e as soluções que vão acontecendo durante a narrativa.
segunda-feira, 17 de julho de 2017
DAQUI A MILÊNIOS - CONTOS DE ANDERSEN Volume 5
Sim! Daqui a milênios, havemos de atravessar o oceano nas asas do vapor, viajando pelos ares. Os jovens habitantes da América visitarão a velha Europa. Farão a viagem por causa dos monumentos e das cidades que, a essa época, estarão já em ruínas - tal qual como nós peregrinamos hoje em busca da magnificência caduca da Ásia Meridional.
Sim! Daqui a milênios eles hão de vir.
O Tâmisa, o Danúbio, o Reno continuam a rolar as suas ondas. O Monte Branco ainda ergue nas alturas o seu cume coberto de neve. A Aurora boreal resplandece ainda sobre as terras do Norte. Mas gerações se transformaram em pó, uma após outra; séries inteiras de homens, poderosos na sua época, jazem esquecidas...esquecidas como aqueles que dormem no seio da colina sobre a qual o abastado mercador, seu proprietário, senta-se hoje, para olhar a ondulação dos trigais.
- Vamos à Europa! - gritarão os jovens filhos da América. - Vamos ver a terra de nossos antepassados, a terra esplêndida dos monumentos e da imaginação! Vamos à Europa!
Chega a aeronave, repleta de passageiros; a viagem é assim mais rápida do que por mar. Já o frio eletromagnético, que passa por baixo do oceano, anunciou o número de membros da caravana aérea. Já a Europa está à vista. É a costa da Irlanda. Mas os passageiros ainda dormem. Desejam ser acordados somente quando estiverem voando sobre a Inglaterra. Lá, pisarão o solo da Europa na terra de Shakespeare, dizem os intelectuais; no país da política, ou no das máquinas, afirmam outros.
Ficarão ali um dia inteiro: é o tempo que aquela raça pressurosa pode despender em uma visita à grande Inglaterra e à Escócia.
E a viagem continua, através do Canal da mancha, em direção à França, a terra de Carlos Magno e de Napoleão. Ouve-se pronunciar o nome de Molière. Falam os sábios em uma escola clássica, da antiguidade remota. Há grande júbilo. Ouvem-se vivas aos heróis, aos poetas e cientistas que aquela idade não conheceu, e que, segundo a tradição, nasceram na cratera da Europa - Paris.
Voa a aeronave a vapor sobre o país de onde partiu Colombo, onde nasceu Cortés, onde Calderon criou dramas de versos sonoros. Ainda vivem nos vales floridos mulheres encantadoras; e as canções mais antigas falam de Cid e de Alambra.
Sempre pelos ares, atravessamos o mar em busca da Itália, do lugar onde existiu a velha e e eterna Roma. Roma desapareceu. A campanha é hoje deserta. Da Igreja de São Pedro o que se vê é somente uma ruína solitária, de cuja autenticidade há quem duvide.
Vamos à Grécia; dormiremos uma noite no hotel elegante, construído no cimo do Monte Olimpo - assim poderemos dizer que estivemos lá. E a viagem prossegue, agora, em direção ao Bósforo; aí repousaremos algumas horas, e veremos o sítio onde existiu Bizâncio. No lugar em que, segundo a lenda, se erguiam os jardins do harém turco, pescadores estendem suas redes.
Voarão os viajantes sobre os restos de cidades outrora importantes, no caudaloso Danúbio - cidades que o nossa época hoje ignora, porque ainda não existem. Mas aqui e ali, nos lugares onde há abundância de monumentos, uns que nascem agora, outros que ainda estão por vir aqui e ali, a caravana aérea pousa, para logo tornar a se elevar nos ares.
Lá está a Alemanha, outrora envolta em densíssima rede de canais e vias férreas.
Eis a terra onde pregou Lutero, onde Goethe cantou, onde Mozart empunhou o cetro dos sons! Grandes nomes, espalhando brilho nas artes e nas ciências, são citados - mas nós os ignoramos. Um dia de estada na Alemanha, e mais outro no Norte, na terra de Oersted e de Lineu, e na Noruega, país dos antigos heróis e dos jovens normandos.
No regresso visitarão a Islândia. Já lá não existe o gêiser; apagou-se o Hecla: mas a ilha, como a eterna tábua petrificada da saga, continua a enraizar seus penedos no mar.
- Há muita coisa para se ver na Europa - declara o jovem americano. - E vimos tudo em oito dias. Não é tão difícil, quando se observam os preceitos do grande viajante, o Sr...- cita aqui o nome de um dos contemporâneos dessa época futura - na sua famosa obra: A Europa inteira, vista em oito dias..
FIM
Sim! Daqui a milênios eles hão de vir.
O Tâmisa, o Danúbio, o Reno continuam a rolar as suas ondas. O Monte Branco ainda ergue nas alturas o seu cume coberto de neve. A Aurora boreal resplandece ainda sobre as terras do Norte. Mas gerações se transformaram em pó, uma após outra; séries inteiras de homens, poderosos na sua época, jazem esquecidas...esquecidas como aqueles que dormem no seio da colina sobre a qual o abastado mercador, seu proprietário, senta-se hoje, para olhar a ondulação dos trigais.
- Vamos à Europa! - gritarão os jovens filhos da América. - Vamos ver a terra de nossos antepassados, a terra esplêndida dos monumentos e da imaginação! Vamos à Europa!
Chega a aeronave, repleta de passageiros; a viagem é assim mais rápida do que por mar. Já o frio eletromagnético, que passa por baixo do oceano, anunciou o número de membros da caravana aérea. Já a Europa está à vista. É a costa da Irlanda. Mas os passageiros ainda dormem. Desejam ser acordados somente quando estiverem voando sobre a Inglaterra. Lá, pisarão o solo da Europa na terra de Shakespeare, dizem os intelectuais; no país da política, ou no das máquinas, afirmam outros.
Ficarão ali um dia inteiro: é o tempo que aquela raça pressurosa pode despender em uma visita à grande Inglaterra e à Escócia.
E a viagem continua, através do Canal da mancha, em direção à França, a terra de Carlos Magno e de Napoleão. Ouve-se pronunciar o nome de Molière. Falam os sábios em uma escola clássica, da antiguidade remota. Há grande júbilo. Ouvem-se vivas aos heróis, aos poetas e cientistas que aquela idade não conheceu, e que, segundo a tradição, nasceram na cratera da Europa - Paris.
Voa a aeronave a vapor sobre o país de onde partiu Colombo, onde nasceu Cortés, onde Calderon criou dramas de versos sonoros. Ainda vivem nos vales floridos mulheres encantadoras; e as canções mais antigas falam de Cid e de Alambra.
Sempre pelos ares, atravessamos o mar em busca da Itália, do lugar onde existiu a velha e e eterna Roma. Roma desapareceu. A campanha é hoje deserta. Da Igreja de São Pedro o que se vê é somente uma ruína solitária, de cuja autenticidade há quem duvide.
Vamos à Grécia; dormiremos uma noite no hotel elegante, construído no cimo do Monte Olimpo - assim poderemos dizer que estivemos lá. E a viagem prossegue, agora, em direção ao Bósforo; aí repousaremos algumas horas, e veremos o sítio onde existiu Bizâncio. No lugar em que, segundo a lenda, se erguiam os jardins do harém turco, pescadores estendem suas redes.
Voarão os viajantes sobre os restos de cidades outrora importantes, no caudaloso Danúbio - cidades que o nossa época hoje ignora, porque ainda não existem. Mas aqui e ali, nos lugares onde há abundância de monumentos, uns que nascem agora, outros que ainda estão por vir aqui e ali, a caravana aérea pousa, para logo tornar a se elevar nos ares.
Lá está a Alemanha, outrora envolta em densíssima rede de canais e vias férreas.
Eis a terra onde pregou Lutero, onde Goethe cantou, onde Mozart empunhou o cetro dos sons! Grandes nomes, espalhando brilho nas artes e nas ciências, são citados - mas nós os ignoramos. Um dia de estada na Alemanha, e mais outro no Norte, na terra de Oersted e de Lineu, e na Noruega, país dos antigos heróis e dos jovens normandos.
No regresso visitarão a Islândia. Já lá não existe o gêiser; apagou-se o Hecla: mas a ilha, como a eterna tábua petrificada da saga, continua a enraizar seus penedos no mar.
- Há muita coisa para se ver na Europa - declara o jovem americano. - E vimos tudo em oito dias. Não é tão difícil, quando se observam os preceitos do grande viajante, o Sr...- cita aqui o nome de um dos contemporâneos dessa época futura - na sua famosa obra: A Europa inteira, vista em oito dias..
FIM
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