quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O PINHEIRO - CONTOS DE ANDERSEN

 Lá longe, no interior da floresta profunda, nasceu um dia um lindo pinheirinho. O sítio era excelente, o sol iluminava-o o dia inteiro, a brisa brincava alegremente ao redor dele, e na vizinhança viviam muitos companheiros, todos pinheiros como ele, uns mais velhos, outros mais novinhos. Mas o pinheirinho não estava contente: seu anseio era crescer. Não fazia conta do calor do sol, nem do ar fresco; não dava também atenção às crianças, alegres e tagarelas que, depois de encher as bilhas, ou de enfiar as frutinhas brilhantes em hastes de palha, sentavam perto dele e diziam:
   - Mas que lindo pinheirinho! E tão pequeninho!
  Isso sim, o pinheiro não gostava de ouvir.
   Afinal ele foi crescendo, e cada ano que passava lhe trazia um novo broto; pode-se saber sempre a idade de um pinheiro, contando seus nós.
  - Quem me dera ser já da altura dos outros! - suspirava o pinheirinho.- Eu espalharia meus galhos lá longe, e minha copa poderia ver o vasto mundo! Os passarinhos viriam fazer seus ninhos nos meus galhos, e quando o vento soprasse eu poderia balançar a cabeça para um lado e para outro, como fazem meus companheiros!
  Nem a luz do sol, nem o canto dos passarinho, nem as nuvens rosadas que iam vogando por cima dele de madrugada e à tardinha - nada disse lhe dava prazer.
   No inverno quando o chão estava branco de neve resvaladiça, andava por ali uma lebre, em loucas correrias, e até dava saltos mesmo por cima da cabeça do pinheirinho, que achava aquilo a coisa mais irritante do mundo. passaram-se assim dois invernos, mas já no terceiro a lebre não podia mais saltar por cima; limitava-se a correr em roda dele: o pinheirinho estava mais alto. E sempre pensando consigo:
   - Crescer, crescer! Ficar bem alto, e bem velho - a única coisa neste mundo que dá valor à vida!
   Pelo outono apareceram os cortadores e abateram algumas das árvores maiores. Era assim todos o s anos, e o nosso jovem pinheirinho, já então de porte regular, estremecia quando via aquelas árvores enormes, magníficas, caírem ao chão, com um estrondo tremendo. Cortavam-lhe então os galhos; e assim, despojados e nus, mal se reconheciam agora os esguios troncos das soberbas árvores. Eram então deitados uns sobre os outros em carros enormes, e os cavalos em breve os levavam para longe, longe da floresta. Onde iriam? Qual seria seu destino?
   E quando, na primavera, voltaram  as cegonhas e as andorinhas, o pinheiro indagou:
  - Vocês sabem para onde os levaram? Não os encontraram em alguma parte?
   As andorinhas nada sabiam; mas a cegonha, depois de refletir um momento, disse:
   - Sim, creio que os encontrei! Quando voltava do Egito vi muitos navios com mastros esplêndidos. Desconfio muito que eram as árvores de que falas: cheiravam a pinho novo. E dou-te meus parabéns: navegavam magnificamente! Magnificamente!
   - Ah, Quem me dera ser tão alto como eles, para ir também navegar no mar! E que é isso, o mar? Com que se parece ele?
   - Ora! Isso levaria muito tempo a explicar- retorquiu a cegonha, erguendo o voo.
   E os raios do sol diziam ao pinheirinho:
   - Regozija-te com a mocidade! Regozija-te com a tua viçosa juventude, com a vida exuberante que te corre nas fibras!
   E o vento beijava a arvorezinha, e o orvalho a umedecia com suas lágrimas.
   Pelo Natal foram abatidas muitas árvores novas, da mesma altura daquele pinheirinho que estava sempre ansioso por ver o mundo; cortaram até algumas menores e mais novas que ele. Essas arvorezinhas eram escolhidas entre as mais belas; ninguém as despojou de seus galhos: foram acomodadas em carroças, e os cavalos as levaram pra longe, longe, bem longe do mato.
   - Para onde vão elas? - perguntava o pinheirinho. - Não são mais altas do que eu; para dizer a verdade, uma era até muito baixa...Por que deixaram os galhos? Onde podem elas ter ido?
   - Nós sabemos, nós sabemos! - pipilaram os pardais - Nós espiamos nas janelas da cidade! Sabemos para onde foram! Não podes imaginar quanta honra, quanta glória a separavam! Nós espiamos pelas vidraças, e vimos que foram plantadas em uma sala bem aquecida, e ornadas de coisas lindas - maças douradas, doces, brinquedos, e centenas de velas brilhantes!
   - E depois? - perguntou o pinheiro, tremendo até os últimos brotinhos- e depois? Que aconteceu depois?
  - Não vimos mais nada; mas o que vimos era lindo, lindo, como não sabemos contar!
   - Terei eu também esse destino glorioso? - gritava o pinheiro, deslumbrado. Isso é muito melhor que navegar no mar! Anseio pelo Natal! Já estou tão alto e tão copado como os outros que foram cortados no ano passado. Quem me dera estar já na sala aquecida, coberto de honras e de enfeites! E depois...sim, depois havia de acontecer alguma coisa anida melhor- se não fosse assim, porque teriam
o trabalho de me adornar? Deve vir alguma coisa ainda maior, anida mais esplêndida! Mas que será? Como me custa esperar tanto! Já nem sei o que sinto em mim!
   Regozija-te no nosso amor! - diziam o ar e a luz. Alegra-te com a tua mocidade e com a tua liberdade!
   Alegrar-se! É o que o pinheiro jamais podia fazer. Crescia e crescia, inverno e verão; e lá estava ele, todo vestido de folhagem verde, verde sombrio; e as pessoas que o viam diziam:
  - Que linda árvore!
   E quando veio o Natal foi o primeiro que abateram. O machado penetrava na madeira, cada vez mais profundo, e o pinheiro caiu por terra, soltando gemidos de dor; padecia muito...uma agonia, uma fraqueza, que jamais imaginara! Esqueceu-se naquele momento da sua boa sorte, tamanha era a tristeza que sentia ao deixar o lugar onde nascera; sabia que nunca mais veria seus companheiros queridos, nem os pequeninhos arbustos e as flores que tinham desabrochado à sua sombra, talvez nem sequer os passarinho! E a viagem também não lhe pareceu nada agradável.
   Somente tornou a si quando, no pátio para onde fora levado com outros pinheiros, ouviu um homem dizer:
  - Este é esplêndido! É exatamente o que nós queremos!
   Vieram então dois criados muito bem vestidos e levaram o pinheiro para uma grande e bela sala, cheia de quadros pelas paredes; na chaminé viam-se vasos chineses, com leões na tampa. Havia na sala também cadeiras de balanço, sofás estofados de seda, mesas cobertas de livros de figuras e de brinquedos, que tinham custado milhares e milhares de cruzeiros - pelo menos assim diziam as crianças. O pinheiro foi plantado em um barril cheio de areia, mas  ninguém sabia que era um barril, porque estava todo coberto de plantas verdes e posto sobre um tapete tecido de alegres cores. Como ele estremecia! Que iria acontecer agora? Agora...uma moça ajudada pelas criadas, começou a adorná-lo.
   Penduraram em alguns galhos ninhos recortados de papel de cor, e cheios de ameixas cristalizadas; noutros eram nozes e maças douradas, que pareciam ter nascido e crescido ali. E mais de cem velhinhas de cera, vermelhas, azuis e brancas foram postas por entre os galhos. Bonecas, que quase pareciam gente viva- o pinheiro nunca tinha visto coisa semelhante! - pareciam dançar entre os ramos; e lá mais acima, no ponto mais alto, no vértice da árvore, prederam uma grande estrela de ouropel; aquilo era, na verdade, esplêndido, esplêndido! Incomparável!
   - Logo à noite - diziam elas - logo à noite, a estrela brilhará lá em cima.
  - Quem me dera que já fosse noite! - pensava o pinheiro. - Tomara que acendam duma vez as velas, porque então...que acontecerá então? E os outros pinheiros virão da floresta para me ver? Os pardais voarão até aqui para espiar pelas janelas? Ficarei aqui, assim ornado, todo o inverno e todo o verão?
   E de tanto pensar nessas coisas, o pinheiro começou a sentir dor nas casca, e a dor na casca, nas árvore, é o mesmo que a nossa dor de cabeça.
   Enfim, as velas foram acesas, e- oh! que esplendor! O pinheiro tremia todo, e tanto tremeu que um dos raminhos pegou fogo.
   Que susto! a moça soltou um grito.
   Mas num momento foi extinto o fogo. Agora, porém, o pinheiro não ousava mais tremer; receava perder alguma coisa daquele esplendor, e sentia-se já meio desorientado com tanto fulgor e tanta glória.
   Enfim foram abertas de par em par as portas da sala e uma multidão de crianças entrou de roldão, como se quisesse lançar-se ao pinheiro. A gente grande entrou com mais compostura; os pequenos ficaram mudos por um instante, um instante somente! E começaram a soltar gritos de alegria, que repercutiam nas paredes. E dançavam em roda do pinheiro. E os presentes foram tirados da árvore, um por um.
   - Que fazem eles? - perguntava o pinheiro consigo mesmo. - Que virá agora?
     As velas foram se gastando e quando chegavam ao fim, junto dos galhos, eram logo apagados - e as crianças tiveram permissão de despojar a árvore. Atiraram-se ao pinheiro com tamanho ímpeto, que se ele não estivesse preso ao teto por um arame, oculto sob a estrela dourada, teria certamente caído ao chão.
   Puseram-se então as crianças a dançar, com seus lindos brinquedos; e ninguém mais deu atenção ao pinheiro, a não ser a velha aia, que examinava os galhos, a ver se não teria ficado escondido algum figo ou maça.
   - Uma história! Uma história! - gritavam as crianças, levando para o lado da árvore um homenzinho baixote e gordo.
   Sentou-se ele, dizendo:
   - Sim, é muito agradável sentar-se a gente aqui, à sombra dos galhos verdes; além disso, a árvores também pode aproveitar a minha história. Mas vou contar só uma. Qual preferem vocês - a história de ivedy-Avedy, ou a do Barrigudinho, aquele que caiu do muro abaixo, e mesmo assim veio a sentar no trono e a casar com a princesa?
   - Ivedy-Avedy -gritaram  uns.
   - O Barrigudinho - clamavam outros.
    Era um alarido terrível; só o pinheiro estava calado, pensando:
   - Deverei também fazer barulho, ou ficar quieto aqui?
   Porque era ele, sem nenhuma dúvida, um dos companheiros da festa, e fizera tudo quanto dele se exigira.
   E o homenzinho baixote e gordo contou a história do Barrigudinho, que caiu do muro, e mesmo assim subiu ao trono e casou com a princesa. E as crianças batiam palmas e pediam outra, queriam ouvir também a história de Ivedy-Avedy, mas o homenzinho não a contou. E o pinheiro ali estava, tranquilo e pensativo; os passarinhos do mato nunca tinham contado aquilo...O barrigudinho caiu do muro, e assim mesmo subiu ao trono e casou com a princesa!Sim, sim! Passam-se no mundo coisas estranhas!
   E o pinheiro acreditava que tudo aquilo era verdade, pois quem o afirmava era um homem tão bem posto. E dizia no íntimo do coração:
   - Quem sabe se eu também hei de cair ao chão, e depois casar com uma princesa?
   E alegrava-se na antecipação do dia seguinte, em que seria de novo enfeitado de velas e brinquedos, ouropéis* e frutas.
   - Amanhã não hei de tremer? Estarei mais seguro, na minha magnificência. Amanhã ouvirei outra vez a história do Barrigudinho, e talvez também a de Ivedy-Avedy...Quem sabe?
   E o pinheiro meditou nisso a noite inteira.
   De manhã vieram as criada. E a árvore pensou logo:
   - Vai começar de novo a minha grandeza!
   Mas as criadas retiram-no dali, sumiram com ele a escada, e atiraram-no para um canto escuro do sótão onde não entrava nem um só raio de luz. E o pinheiro pensava?
   - Que quer dizer isto? Que vim fazer neste lugar? Que é que vou ouvir aqui?
   Apoiou-se à parede, para não cair, e pensou, pensou, pensou. E teve tempo de sobra para pensar, porque correram dias, correram noites, sem que ninguém entrasse naquele sótão. Afinal um dia entrou alguém ali, mas somente para meter num canto algumas malas velhas; o pinheiro, completamente escondido à vista, parecia também inteiramente esquecido.
    - Agora é inverno - pensava ele. - O chão endureceu e está coberto de neve; não podem plantar-me agora, por isso tenho de ficar aqui, assim abrigado, até que volte a primavera. Como os homens são sábios e prudentes! Eu só queria que isto aqui não fosse tão escuro, e tão solitário! Nem sequer uma lebre! Era tão agradável, lá na floresta, quando a neve se alastrava no chão, e a lebre andava correndo em roda... Sim, mesmo quando ela pulava por cima de minha cabeça - coisa que então me irritava muito! Mas aqui a solidão é medonha!
   Nisto um ratinho veio vindo devagarinho.
  - Cui, cui!
   E veio outro, e mais outro, e foram farejando o pinheiro; e acabaram por subir por ele acima, dizendo:
   - Faz muito frio aqui! Se não fosse tão frio, seria até bem agradável, não é, pinheiro velho?
   - Eu não sou velho - respondeu a árvore - Há muitos outros - muito mais velhos do que eu.
    - Como vieste parar aqui? E que é que sabes?- perguntou o ratinho, que era muito curioso. - Fala-nos do lugar mais delicioso do mundo. Já estiveste lá? Já entraste na despensa, lá onde estão as prateleiras cheias de queijos? Onde os presuntos estão pendurados no teto? Onde a gente pode dançar por cima das velas? Aquele lugar de onde a gente sai gordo - por mais magro que fosse ao entrar?
   - Não, não conheço esse lugar; mas conheço a floresta, onde o sol brilha e os passarinhos cantam!
   E o pinheiro começou a falar na sua mocidade e nos prazeres que gozara. Os ratinhos jamais tinham ouvido nada que se parecesse com aquilo, e escutavam atentamente; depois disseram:
   - Quanta coisa já viste! Como tens sido feliz, pinheiro velho!
    - Mas eu não sou velho, não - retorquiu o pinheiro. - Foi ainda neste inverno que saí da floresta: estou justamente na flor da vida!
   - Como tu sabes falar! - disseram os camundongos.
   Voltaram na noite seguinte, e trouxeram mais quatro ratinhos, que também queriam ouvir a história da árvore. E quanto mais o pinheiro falava da sua mocidade na floresta, mas vividamente se lembrava de tudo e dizia:
   - Sim! Eram tempo muito agradáveis aqueles!
   Mas ainda podem voltar, podem voltar! O Barrigudinho caiu do muro, e apesar disso casou com a princesa.
   E o pinheiro lembrou-se de uma linda e delicada bétula nova, que vivia na floresta - uma verdadeira princesa, uma princesa muito linda, na sua opinião.
  - Quem é esse Barrigudinho? - indagaram os ratos.
   Contou-lhe então a história; lembrava-se bem de toda ela; e os ratinhos sentiram tanto prazer em ouvi-la que eram capazes de dar saltos até à ponta do tronco do pinheiro, de tanta alegria. Na noite seguinte apareceram mais alguns ratinhos, e no domingo até dois ratões se apresentaram. Estes, entretanto, declararam que a história não era nada divertida; e os ratinhos, depois de ouvirem esta opinião, muito vexados, também não acharam mais graça nela.
   - Sabes unicamente essa história? - indagaram os ratões.
   - Unicamente esta! respondeu o pinheiro. - Ouvi-a  na noite mais feliz da minha vida, ainda que não soubesse então até que ponto era feliz.
   - Mas é uma história mesquinha! Não sabes alguma que fale de carne de porco e de sebo? Alguma história de despensa, ou de celeiro?
   - Não - disse o pinheiro.
   - Então...já ouvimos demais! - retrucaram os ratões, retirando-se.
   Também os ratinhos se sumiram, e nunca mais apareceram. O pinheiro dizia, suspirando:
  - Era bem agradável, vê-los aqui sentados, ao redor de mim, aqueles ratinhos sempre atarefados, a escutar o que eu dizia...E até isso agora se acabou! Contudo, terei prazer em recordá-lo, quando me levarem daqui.
   Mas quando seria isso?
   Ora, uma manhã entraram algumas pessoas, que remexeram todo o sótão. Retiraram dali as malas, e o pinheiro também foi puxado lá dos seu canto; atiraram-no ao chão, sem o menor cuidado; um dos criados ergueu-o e levou-o escada abaixo. E ele tornou a ver a luz do dia. Sentiu o ar fresco, os quentes raios do sol- estava no pátio.
    - Agora sim - pensava ele - agora começa uma vida nova!
  Tudo era tão rápido que ele não se lembrou de olhar para si mesmo: havia muito o que ver em roda. O pátio vizinhava com o jardim; tudo ali era fresco e florescente- as rosas, brilhantes e perfumadas, debruçavam-se nas latas, os limoeiros estavam cobertos de flores e as andorinhas voavam para diante e para trás, chilreando:
   - Crriii-vrriii- vit, meu bem-amado voltou!
   Não era ao pinheiro, não, que se referiam.
  Mas o pinheiro exultava, tomando de deliciosas esperança:
  - Eu viverei! Eu viverei!
   Tentou estender os galhos, mas ai! estavam amarelos e secos. E tinham-no atirado para um montão de ervas e urtigas. A estrela de papel dourado, que ficara pregada nos últimos ramos, brilhava ainda assim aos raios de sol.
   Brincavam no pátio algumas criança - aquelas alegres crianças que na noite de Natal tinham dançado ao redor do pinheiro. Uma das menores, tendo avistado a estrela, correu a arrancá-la. E gritava, pisoteando os galhos, que estalaram debaixo de seus sapatos:
   - Olhem aqui! Olhem o que ainda está pregado no pinheiro velho do Natal! Ele está tão feio!
   E o pinheiro olhou para todas as flores do jardim, agora na frescura da sua beleza; olhou para si  mesmo, e sentiu no coração uma dor cruciante. Antes o tivessem deixado consumir-se sozinho no canto escuro do sótão; lembrou-se da sua vida feliz lá na floresta, da alegre véspera de Natal, e dos ratinhos que o escutavam com tanta atenção quando ele contava a história do Barrigudinho.
  - Acabado! Tudo acabado! - disse o pobre pinheiro. - Se ao menos eu tivesse sido feliz, como podia ter sido! Tudo acabado!
    E veio o criado e partiu o pinheiro em cavacos e amontou-se ; depois prendeu fogo neles. E o pinheiro soltava profundo lamentos, e cada lamento era como um pequeno tiro; as crianças correram para junto dele e pularam em roda da fogueira, gritando:
   - Paff! Paff!
   Mas cada um daqueles tristes gemidos era um pensamento que o pinheiro dedicava a um dia luminoso de verão, ou à uma noite estrelada de inverno, lá na floresta; e à véspera de natal; e ao Barrigudinho - a única história também acabada! acabada! Poque todas as histórias tem de chegar algum dia ao seu fim!
FIM
 



*Oropéis;
Aparências enganosas; falsos brilhos.
Tudo que parece verdadeiro, mas é enganoso.
Tudo que tem brilho falso.
Mais uma história longa, portanto o mesmo que os últimos lindos contos, postando aos poucos! Conforme a tempo de uma pessoa que cuida da casa e de 5 pessoas! Agora vou prepara o Jantar! beijo!

O CERRO DOS ELFOS - CONTOS DE ANDERSEN

 Passeavam alguns lagartos, inquietos e preocupados, pelas fendas de uma árvore centenária, e enquanto andavam, iam conversando. Entendiam-se perfeitamente, pois que todos falavam a língua lagarteira.
   - Que barulho, que rebuliço lá dentro do Cerro dos Elfos! - dizia um. - Não pude pregar olho a noite inteira, com aquela algazarra! Era o mesmo que se eu tivesse dor de dentes!
   - Alguma coisa se passa lá, não resta dúvida- disse outro lagarto. - Há qualquer novidades no ar! Até a madrugada o cerro esteve erguido sobre quatro estacas vermelhas, para ficar bem arejado, e o corvo e as bruxinhas novas tem estado a aprender danças e mais danças, com sapateados estranhos...Algo há!...
    - É verdade - interveio terceiro lagarto. - Uma minhoca que conheço vinha saindo debaixo da terra; ela não para de contar! Coitada! Não pode ver nada, pois que é cega, mas ouvindo todo aquele rebuliço se pôs a escuta, e ficou sabendo muita coisa. No cerro encantado esperam uma visita importante; mas a minhoca não quis dizer quem é- talvez nem ela mesma o saiba...Todos os fogos-fátuos tiveram ordem de organizar a dança das tochas; e toda a prataria, e todo o ouro que rola prata e ouro, lá dentro do cerro! - foram areados, e postos a secar ao luar.
   - Quem poderá ser essa gente? - perguntavam os lagartos uns aos outros - Que estarão preparando lá dentro? Que barulho! E como tudo treme...
    Naquele instante abriu-se o Cerro dos Elfos, e apareceu a bruxa velha, a mãe dos elfos; não tinha costas, como uma máscara, e coxeava, mas vinha trajada convenientemente. Era a aia do rei dos Elfos, e aparentada de longe com a família real. Trazia na fronte, um coração de âmbar. Pôs-se a nadar e - oh! céus! - Quem diria que podia correr assim! Não parou senão quando chegou à casa da Ave de Mau Agouro, no pantanal.
   - Estás convidado para ir esta noite ao Cerro dos Elfos - disse ela. - E queres encarregar-te dos demais convites? Como não tens de cuidar do arranjo da casa, terás tempo de sobra, e deves ajudar-nos de alguma forma. Esperamos uma visita importante - alguns gnomos nossos amigos, que têm comunicações a nos fazer - e el-rei quer oferece-lhes uma festa.
   - E a quem devo convidar?
  - Ao baile pode ir todo o mundo, até criaturas humanas, desde que falem dormindo, ou tenham qualquer outro costume que as assemelhe à nossa gente. Mas no banquete só tomarão parte pessoas escolhidas e distintas: não admitimos gentinha! Tive até de teimar com o rei, pois na minha opinião não devíamos convidar os fantasmas. O tritão e as filhas devem ser convidados em primeiro lugar. visto que não devem gostar de ficar em terra seca, terão á disposição uma pedra úmida para sentar, ou talvez alguma coisa melhor; creio que assim não recusarão o convite desta vez. Devemos convidar os velhos anões rabudos da montanha; o duende do arroio, o diabinho doméstico; e não devemos esquecer o elfo preto, o porco do cemitério, o cavalo morto e os anões da igreja. É certo que estes últimos pertencem ao clero, que não é da nossa hierarquia; mas isso é por força do ofício, e eles vem a ser quase nossos parentes. Além disso, visitam-nos seguidamente.
   -Cró, cró- disse o corvo noturno, que lá se foi voando, a fazer os convites.
   Já as bruxinhas dançavam no cume do cerro; flutuavam ao redor delas seus longos véus de nevoeiro e luar, formando um quadro lindíssimo, para quem aprecia estes espetáculos. No centro do cerro ficava o vasto salão, esplendidamente adornado. O soalho fora lavado com raios de luar, e as paredes envernizadas com graxa de feiticeira, de sorte que brilhavam à luz como se fossem pétalas de tulipas. Na cozinha, estavam assando e preparando vários pratos: rãs assadas, peles de serpente, salada de sementes de chapéu de cobra; focinhos úmidos de camundongos e cicuta. Havia ainda cerveja, vinda diretamente da cervejaria da Mulher do Brejo, e vinho feito do salitre resplandecente das sepulturas. Isso quanto às comidas de sal; viriam depois, é claro os doces: pregos enferrujados e vidros de janelas de igreja.
   A coroa de ouro do velho rei dos elfos fora polida com pó de lápis de pedra; e era o lápis do monitor da classe, coisa muito difícil de obter, mesmo para o rei dos elfos. Puseram cortinas novas no quarto do rei, fixando-as com baba de lesma. Era na verdade um grande rebuliço no cerro!
   - Agora só o que falta é queimar crina e pelo de porco, para defumar, estará pronta a minha tarefa- disse a feiticeira velha, a que era aia do rei.
  - Papai querido - perguntou então a filha mais moça do rei - pode me dizer agora quem são esses hóspedes tão importantes?
  - Pois sim - respondeu  rei - não vejo inconveniente em que o saibas agora. Duas de minhas filhas devem estar prontas para casar, pois que duas infalivelmente casarão. O velho trasgo da Noruega, que mora nas vetustas montanhas do Dovre, e é dono de muitos castelos inexpugnáveis*, assentes no rochedo, além de uma mina de ouro, que vale ainda mais que os castelos, vem vindo para cá com seus dois filhos, que andam em busca de esposas.  O velho trasgo é um norueguês leal e honrado como os que mais o sejam, homem alegre e cheio de nobreza. Conheço-o há muitos anos, desde os bons tempos em que bebíamos juntos, Aqui veio ele buscar também sua esposa, que hoje está morta; era filha do rei da margueira de Mon. Casou bem. Anseio por tornar a ver o velho elfo norueguês! Dizem que os filhos são tanto grosseiros, mal-educados: jovem insolentes, mesmo. Talvez seja isso apenas acusação injusta; e com a idade se tornarão melhores. Verei talvez a minha família ensinar-lhes as boas maneiras.
   - E quando vem? - indagou outra.
   -Isso depende do vento e do tempo. Viajam muito devagar, e com muita economia. Virão por água, e esperarão uma oportunidade de viajar em algum navio. Eu queria que viessem pela Suécia, mas o velho não gosta desse caminho. É que ele não acompanha a marcha do tempo, não faz progresso, e isso é o que me aborrece.
   Naquele instante dois fogos-fátuos vinham chegando; como um saltava mais depressa, entrou primeiro. E ambos gritavam:
   - Vem aí! ...Vem aí!...
   - Deem-me minha coroa, e deixem-me aparecer ao luar - disse o rei.
  As filhas ergueram os mantos de luar e inclinaram-se até o chão. Ali estava o velho trasgo do Dovre, cingido de sua coroa de granizos endurecidos e pinhas lustrosas. Abrigava-se em uma pele de urso, e calçada botas altas, também de pele. Mas os filhos tinham o peito descoberto, porque eram rapazes vigorosos e não temiam o frio.
 - Isto é um cerro? - perguntou o mais jovem. - Lá na Noruega chamamos a isto uma toca!
   - Rapaz - disse o velho- onde tens então o miolo? Não tens olhos para ver que uma toca entra no chão e um cerro se ergue acima dele?
  A única coisa que lhes causou admiração, segundo disseram, foi o fato de compreenderem a língua daquela terra, sem nenhuma dificuldade.
   - Deixem-se de fumaças, rapazes! - disse o velho trasgo. - Quem os ouve poderá tomá-los por filhotes de urso, e mal-educados.
  Entraram no cerro, onde se achavam já reunidos os convidados do rei, e com tamanha pontualidade, que pareciam ter sido trazidos pelo mesmo golpe de vento. Tudo fora preparado conforme a condição de cada convidado: os habitantes do mar sentaram-se à mesa em tinas cheias d'água,  e diziam que se sentiam como se estivessem em casa, isto é, como o peixe na água. Portavam-se todos corretamente à mesa, exceto os trasguinhos noruegueses, que puseram os pés sobre a mesa, achando que tudo lhes era permitido.
    -Tirem os pés de cima da mesa! - ordenou o trasgo velho.
   Obedeceram, porém não imediatamente. Começaram então fazer cócegas nas damas que lhes ficavam aos lados, com as pinhas que tinham trazido nos bolsos; tiraram as botas, para ficar mais à vontade, e pediram que elas as segurassem. Mas o pai, o trasgo velho, era diferente: contava histórias muito lindas dos penhascos imponentes da Noruega, e das cascatas que se despenham, brancas de espuma, com rumor de trovão e vozes de órgão. Falava do salmão, que sobe aos saltos, rio acima, quando o espírito das águas toca na sua harpa de ouro; falou também nas claras noites de inverno, em que as campainhas do trenó repicam alegremente, e os moços patinam com tochas acesas sobre o gelo liso, tão transparente que eles veem os peixes que nadam sob os seus pés. E contava tão bem contado, que era como se todos estivessem vendo e ouvindo, o que ele descrevia. Era o mesmo que se as serrarias estivessem zunindo, e do salão. E de repente - zás! Eis que o trasgo velho dá na aia do rei um sonoro beijo! E eles não eram parentes, nem de longe!
     Seguiu-se o baile das filhas do rei: primeiro uma dança comum; em seguida, começaram a dança do sapateado, de muito belo efeito. Mas depois veio a mais difícil, chamada "dança fora da dança". Executaram então o que se chama pas de caractére. Valha-nos Deus! Que maneira de estirar as pernas! Não sabia mais a gente onde elas começavam, nem onde acabavam; nem também se sabia mais o que era braço, nem o que era perna, de tanto que se retorciam! Pareciam fitas de madeira, que se enrolam e desenrolam, ao voar da plaina do marceneiro. Rodavam tão ligeiras como piorras, e tanto giraram que o cavalo morto começou a se sentir mal, e teve de sair da mesa.
   - Cáspite! - exclamou o elfo grisalho. - São pernas vivas, não há dúvida! Esta é a verdadeira dança escocesa serrana. Mas que mais sabem elas fazer, além de girar como um torvelinho?
   - Já vais vê-lo - disse o rei- chamando a filha mais nova.
   Era delicada e brilhante como um raio de luar, e a mais graciosa de todas. Metia na boca uma varinha de madeira branca e sumi-se por encanto. Era um dom especial.
   Declarou logo o velho duende que não gostaria nada de casar com uma moça que tivesse semelhante faculdade, e achava que também nenhum de seus filhos a quereria.
   A segunda podia caminhar ao lado de si própria, como se fosse uma sombra - coisa que os elfos não possuem, como se sabe, nem a tiveram jamais, e nem a terão em tempo algum.
   O talento da terceira era muito diverso daqueles. Aprendera alguma coisa na cervejaria da Mulher do Brejo e sabia a arte misteriosa de  rechear toros de álamo com vaga-lumes.
    - Será uma boa dona de casa - disse o velho trasgo.
   E brindou-a com um cumprimento dos olhos, por que não queria beber muito.
   Veio então a quarta. Trazia uma magnífica harpa de ouro; mal vibrou nela a primeira nota, todos ergueram a perna esquerda - porque os elfos são canhotos dos pés. E quando ela tocava a segunda corda, todos eram obrigados a fazer tudo quanto ela queria.
  - Esta é perigosa! - disse o velho trasgo.
    Mas os filhos, fartos já daquilo tudo, saíram a tomar ar.
   - E a outra, o que é sabe? - continuou ele a indagar.
   - Eu aprendi a amar os noruegueses, respondeu ela própria; e não me casarei, a não ser para ir morar na Noruega.
   Mas a filha nova do rei cochichou no ouvido do velho:
  - Ela diz isso porque ouviu cantar uma canção norueguesa que dizia que quando o mundo se submergir, os rochedos da Noruega se manterão firmes, e permanecerão, como monumentos; por isso ela quer ir para lá, porque tem muito medo da morte.
   - Ah! Então é assim? - disse o velho trasgo. - Mas que faz a sétima?
   - Antes da sétima vem a sexta - disse o pai, que sabia contar.
    Contudo, a sexta não se apresentou logo. Afinal, disse:
  - Eu, só o que sei dizer a verdade a todo o mundo. E como ninguém se importa comigo, já tenho muito trabalho para aprontar  minha mortalha.
   Apareceu enfim a sétima, e última das irmãs; e sabem qual era a sua habilidade? Pois sabia contar histórias; uma infinidade delas; e sempre tinham uma história nova para contar.
  - Conta-me tantas histórias quantos são os dedos da minha mão - disse o velho:
   A bruxinha segurou-lhe o pulso, e o trago riu, riu tanto, que se torcia todo. Quando ela chegou ao dedo anular, em que brilhava uma anel de ouro - como se já soubesse que ia haver casamento - o velho disse-lhe:
   - Segura bem, que a mão é tua: caso contigo, eu mesmo.
   Observou a moça que ainda não tinha contado as histórias do dedo mindinho e do seu vizinho; mas o velho respondeu:
   - Ficam para o inverno. Hás de nos contar então todas as histórias que sabes a respeito do pinheiro, e do vidoeiro, e do gelo que estala e se racha, e dos presentes das ninfas dos bosques. Sim, contar-nos-às muitos casos, porque lá não há ninguém que saiba contá-los. E nunca ouvi contar como tu! Nós nos sentaremos no salão de pedra, onde queimam toros de pinheiro da Noruega, e beberemos o hidromel nos copos de chifre e ouro, que pertenceram aos antigos reis da Noruega; o Espírito das Águas deu-me um par deles de presente. E, quando a sereia for nos visitar, ela cantará para nós todas as canções das pastorinhas montanhesas. Verás como será divertido! Verás o salmão saltar na cachoeira, batendo a cauda contra as pedras do reino...Acredita...a vida é muito agradável na nossa velha e querida Noruega! Mas...onde estão os rapazes?
   Sim! Onde estavam os seus filhos - aqueles diabretes?
  Ora, andavam fazendo correrias pelo cerro, e apagando os fogos-fátuos que tinham vindo com tão boa vontade organizar a marcha das tochas.
   - Mas que vadiação é esta, marotos? Eu já escolhi uma mãe para vocês; agora cada um pode escolher uma das tias.
  Mas os moços declararam que era muito melhor fazer discursos e beber em boa camaradagem, porque não tinham inclinação para o casamento. Fizeram, pois, discursos, e beberam, tocando os copos uns nos outros; e depois viraram-nos de fundo para o ar, para mostrar que estavam vazios. tiraram então os casacos e deitaram-se na mesa para dormir, porque procediam como se estivessem em casa, e não queriam saber de cerimônias. Mas o velho trasgo dançou com a jovem noiva,, e trocou os sapatos com ela - costume mais delicado do que trocar anéis.
  De repente a velha bruxa solteirona, que tomava conta da casa, gritou:
  - O galo está cantando! Vamos fechar as janelas, senão o sol nos estragará a cútis!
  E o cerro fechou-se por si.
  Os lagartos passeavam abaixo e acima, pelas fendas da velha árvore, e dizia um:
  - Como é simpático o velho trasgo norueguês, não acham?
   Ao que retrucou logo a minhoca:
  - Gostei muito dos filhos!
   Mas a pobre da minhoca é cega, coitada!
FIM




O que é inexpugnáveis: Diz-se das coisas que não podem ser alcançadas, conquistadas; que são difíceis de acessar; invencíveis.

Queridos leitores, todas essas histórias dos Andersen são extensas, então vou continuar postando aos poucos.( pausa para buscar filho na escola)

sábado, 15 de outubro de 2016

O JARDIM DO PARAÍSO - CONTOS DE ANDERSEN

  Era uma vez um princepezinho. Ninguém tinha tantos livros, nem tão lindos, como ele; tudo o que já aconteceu neste mundo estava escrito naqueles livros: e o menino via tudo representado em figuras muito lindas. Achava naqueles livros informações sobre todas as terras, sobre todos os povos; contudo não encontrava neles uma só palavra a respeito do jardim do Paraíso - e era isso o que mais lhe interessava.
   Quando era menor, mas já estava em idade de aprender a ler, dissera-lhe a avó que as flores do Jardim do Paraíso eram bolinhos delicados, cujos pistilos estavam cheios de vinho. Em uma flor estava escrita a história; em outra, a geografia, em outra a tabuada, de sorte que bastava comer o bolinho e já se ficava sabendo a lição. E quanto mais a gente comia, mais ficava sabendo de geografia, de história e de tabuada.
   Naquele tempo ele acreditava naquilo tudo; mas ao crescer, e ao passo que ia aprendendo e lendo tanta coisa, foi compreendendo que o esplendor do jardim do Paraíso devia ser de uma espécie muito diferente. e dizia consigo.
   - Por que foi Eva colher o fruto da árvore da Ciência? Por que comeu Adão o fruto proibido? Se fosse comigo não teria acontecido nada disso! Nunca teria o pecado entrado no mundo!
   Dizia isso então, e ainda o repetia aos dezessete anos. O Jardim do Paraíso enchi-lhe todos os pensamentos.
   Um dia andava passeando no mato. Ia completamente só - o que era o seu maior prazer. Já estava escurecendo, e grandes nuvens se acumulavam no céu. E começou a chover; chovia como se o céu fosse um imenso rio a derramar água sobre a terra; e ficou tão escuro como no fundo do poço mais profundo. Ele escorregava na grama úmida e caía sobre as pedras nuas que juncavam no chão rochoso. Tudo escorria água, e o pobre príncipe não tinha um fio seco na roupa. Teve de trepar sobre enormes blocos de pedra, cobertos de espesso musgo, que filtrava água. Já estava quase desmaiando, quando ouviu um ruído estranho e viu diante de si uma enorme caverna iluminada. No meio ardia uma fogueira, tão grande que dava para assar um veado - o que de fato estavam fazendo ali. Era um esplêndido veado, enfiado com chifres e tudo, num espeto, que ia virando vagarosamente entre dois troncos de pinheiro atorados. Uma velha, tão alta e tão vigorosa que mais parecia um homem disfarçado, estava sentada ao pé do fogo, onde lançava lenha de vez em quando.
    - Entra! - disse ela. - Senta-te perto do fogo, para secar essa roupa.
   - Como venta aqui dentro! - disse o príncipe, sentando-se no chão.
   - Pior será quando meus filhos voltarem! Porque esta é a caverna dos ventos ; meus filhos são os quatro ventos do mundo. Entendes o que te digo?
    - Onde estão teus filhos? - perguntou o príncipe.
   - Não é fácil responder a uma pergunta feita com tamanha estupidez! Meus filhos fazem o que entendem. Neste momento estão jogando o volante com as nuvens, lá no salão do rei - disse ela, apontando para o céu.
   - Ah! Sim? Acho que falas com muita aspereza - respondeu o príncipe. - Não és tão cortês como as mulheres com quem estou habituado a tratar!
   - Pois eu digo que é porque elas não tem em que se ocupar! Eu tenho de ser assim áspera se quiser governar os meus filhos. E posso fazê-lo, apesar de serem eles muito teimosos! Estás vendo aqueles quatro sacos pendurados na parede? Pois meus filhos tem tanto medo deles como tu tinhas da vara que estava atrás do espelho. Posso dobrar os rapazes, é o que te digo, e então eles entram no saco; não perdemos tempo com cerimônias. E não podem sair para pregar suas peças senão quando bem me parecer. Mas aí vem um deles...
    Era o Vento-norte, que entrava com um sopro gelado, espalhando flocos de neve e alastrando o chão de granizos enormes. A roupa era de pele de urso, e o chapéu, que lhe cobria até as orelhas, de pele de foca. Pendiam-lhe da barba longos flocos de neve, e da gola da jaqueta caíam a cada passo grandes granizos.
   - Não vás já para perto do fogo!- disse o príncipe. - Podes apanhar frieiras...
   - Frieiras - disse o Vento-norte, dando uma risada. - Frieiras! Mas é o frio a coisa de que mais gosto no mundo! Que espécie de criaturinha frágil és tu? E como entraste na caverna dos ventos?
   - Ele é meu hóspede - disse a velha - e se não estás contente com esta explicação, podes ir para o saco! Já sabes agora qual é a minha opinião!
  Estas palavras produziram efeito, porque o Vento-norte tratou de contar de onde vinha, e por onde tinha andado durante o último mês.
   - Venho dos mares árticos. Estive na Ilha do Urso com os russos, caçadores de morsas. Sentei-me ao leme e dormi enquanto navegavam para sair do cabo Norte; de vez em quando acordava, e via as procelárias que voavam ao redor de minhas pernas. São aves esquisitas: dão um golpe brusco de asas e depois ficam com elas estendidas e imóveis, mas mesmo assim vão voando a grande velocidade.
   - Não sejas tão prolixo! - disse a mãe dos ventos - Então foste a Ilha do Urso?
    - Aquilo lá é esplêndido! A gente acha ali um pavimento para dançar, chato como uma panqueca, neve meio derretida e musgo; há ossos de baleia e de urso polar por toda a parte: parecem pernas e braços de gigantes, cobertos de bolor esverdeado. A gente tem a impressão de que o sol nunca os aqueceu! Dei um pequeno sopro no nevoeiro, para observar a cabana. Não era mais que uma casa construída de destroços de naufrágio e coberta de couro de baleia, com o carnaz(Parte da pele dos animais que fica oposta ao pelo ou à cútis.) para fora; era todo vermelho e verde. Um urso polar vivo estava sentado no teto, rosnando. Fui até a praia, procurar ninhos de pássaros: soprei então dentro de milhares de gargantas, e eles aprenderam a fechar a boca! Lá mais abaixo as morsas rolavam como gusanos(Verme encontrado nas plantas de agave),  monstruosos, com cabeça de porco e dentes de um metro de comprimento!
   - És um bom contador de histórias, meu rapaz! - disse a mãe.- Sinto água na boca, só de te ouvir!
   - E, foi então uma caçada!...Os arpões mergulhavam no peito das morsas e o sangue esguichava, que nem fonte, no gelo. lembrei-me então do meu desporto...Soprei e fiz meus navios - os blocos de gelo, altos como montanhas -apertar os botes. zzzz...como os homens assobiavam, e como gritavam! Mas eu assobiava mais alto. Viram-se obrigados a atirar fora as morsas mortas, cestas, cordas - tudo foi parar no meio do gelo! Sacudi flocos de neve em cima deles, e empurrei-os para o sul, para irem provar a água salgada...Aquele nunca mais voltarão à Ilha do Urso!
      - Pois fizeste muito mal! só o mal! - disse a mãe dos ventos.
  - O bem que fiz, os outros que te contem. Mas ali vem meu irmão do oeste! Gosto mais dele do que dos outros; cheira a mar. e traz consigo sempre uma esplêndida brisa glacial!   - É o suave Zéfiro, não é? - perguntou o príncipe.
   - Sim, é o Zéfiro - disse a velha - mas que seja tão suave, isso não! Era dantes um menino delicado, mas isso foi há muito tempo...
  Parecia um velho selvagem dos matos, e tinha na cabeça um chápeu acolchoado, certamente para se defender de golpes. Empunhava um cacete de mogno, cortado sem dúvida nas florestas da América. Não podia ser outra coisa.
    - De onde vens? - indagou a mãe.
  - Da solidão das florestas! Daquelas florestas onde as trepadeiras espinhentas se emaranham nas árvores, formando um muro; onde a cobra-d'água vive na relva úmida; e onde a criatura humana não parece ser desejada!
  - E que fizeste por lá?
  - Olhei dentro do rio profundo, e vi-o despenhar-se dos rochedos, desfeito em pó, e voltar a atirar-se para as nuvens, para formar o arco-íris. Vi o búfalo  selvagem nadando no rio, mas a corrente arrastou-o para longe. Flutuou com o bando de patos bravos, que voavam para o céu quando chegavam às cataratas; mas o búfalo teve de descer por ela abaixo. Gostei de ver aquilo, e soprei uma tempestade, de sorte que as árvores mais velhas se despedaçavam em estilhaços!
  - E nada mais fizeste?
   - Também andei dando saltos mortais nas savanas, dei palmadas no cavalo selvagem e sacudi os coqueiros. Sim, tenho muitas histórias para narrar! Mas a gente não deve contar tudo o que sabe..Não é, velha dama?
   Beijou a mãe, e com tanta força que ela quase caiu para trás. Era na verdade um rapaz selvagem!
   Apareceu naquele momento o Vento-sul. Vestia a capa flutuante e o turbante do beduíno. Ao entrar disse, metendo mais lenha no fogo:
  - Que frio horrível! Bem que se vê que o Vento-norte chegou primeiro!
   - Pois aqui está tão quente, que dá para assar um urso polar- disse o Vento-norte.
  - Tu já és mesmo um urso polar!
  - Queres ir para o saco? - perguntou a velha. - Senta-te naquela pedra e conta-nos onde andaste.
  - Na África mãe! Andei caçando o leão com os hotentotes* na Cafraria*! Que verde a grama daquelas planícies! É da cor da oliva. Os gnus andavam dançando em roda, e as avestruzes correram carreiras comigo - mas sou ainda o mais veloz. Fui ao deserto de areias amarelas. Parece o fundo do mar. Encontrei uma caravana! Estavam matando o último camelo, para tirar água para beber, mas não arranjaram muita, não. E era o sol abrasando, lá em cima, e a areia queimando, cá embaixo! Não se viam limites naquele deserto sem fim. Então cavei a areia fina e escorregadia e levantei-a em enormes redemoinhos - e que dança! Era coisa digna de se ver o abatimento dos dromedários, e o mercador a arrancar o cafetã da cabeça! Prosternou-se diante de mim como se eu fosse seu deus Alá. Agora lá estão soterrados, e há uma pirâmide de areia em cima deles todos; quando eu soprar por lá outra vez, o sol há de branquear os seus ossos, e então os viajantes hão de ver que houve gente por ali antes deles: a não ser assim dificilmente o acreditariam naquele deserto!
    - Então tua andaste fazendo o mal! - disse a mãe. - Entra para o saco!
   E antes que ele soubesse bem onde estava, ela segurara o Vento-sul pela cintura e metera-o no saco; ele ainda rolou pelo chão, mas a velha sentou-se em cima e tudo ficou quieto.
   -Teu filhos são rapazes muitos vivos - disse o príncipe.
  - Sim, assim é ; mas eu sei dominá-los! Aqui está o quarto.
   Era o Vento-leste, e vinha vestido de chinês.
  - Olá! Vens daquele quarteirão? Pensei que estavas no Jardim do paraíso.
  - Somente amanhã irei para esse lado- disse o Vento-leste. - Faz amanhã cem anos que lá estive pela última vez. Venho agora da China, onde dancei ao redor da torre de porcelana, até fazer todas as campainhas tinirem outra vez! Nas ruas os funcionários eram açoitados; estouravam-lhes nas costas as canas de bambu, posto que fossem gente de alta categoria, do primeiro ao nono grau. Gritavam: "Dou-te graças, meu paternal benfeitor!" Mas essas palavras não lhe vinham do coração. E eu ia tangendo as campainhas, e cantando, "Tsing, Tsang, Tsu"!
   - Mas tu é louco! - disse a velha dama. - É muito bom que vás amanhã ao Jardim do Paraíso, que sempre influi na tua educação. Trata de beber bastante na fonte da sabedoria, e traze-me uma garrafinha cheia.
   - Eu trarei - disse o Vento-leste. - Mas por que meteste meu irmão Sul no saco? Ele que saia, porque tem de me falar sobre a Fênix. A princesa do Jardim do paraíso sempre quer noticias dela, quando lhe faço minha visita, de cem em cem anos. Abre o saco, mãe, e serás a mãe mais querida, e te darei dois bolsos de chá, tão fresco e tão verde como na hora em que o colhi, lá onde nasceu!
   - Pois bem; em honra do chá, e também porque és o meu rapaz predileto, vou abrir o saco.
    Assim o fez, e o Vento-sul saiu, arrastando-se; mas vinha muito desapontado, porque o príncipe estrangeiro vira a sua humilhação.
  - Aqui tens uma folha de palmeira para o princesa - disse ele. - Deu-ma a Fênix em pessoa, a única que existe no mundo. Com o bico ela rabiscou na palma toda a história dos seus cem anos de vida. A princesa pode ler, e verá como a Fênix prendeu fogo ao ninho, e sentou-se sobre ele, e morreu queimada, como uma viúva hindu. E como estalavam os galhos secos! E que fumaça subia no ar! E era um cheiro...Mas afinal tudo ardeu em chamas, e a velha Fênix ficou reduzida a cinzas: mas seu ovo ali ficou, rubro no meio do fogo; rebentou com grande estouro, e o filhote voou. Agora reina sobre todas as aves, e é a única Fênix no mundo inteiro. Ele deu uma bicada nesta palma: é um cumprimento para a princesa.
     - Vamos agora comer alguma coisa- disse a mãe dos ventos.
   Sentara-se todos, para comer o veado assado; o príncipe sentou-se ao lado do Vento-leste, e logo ficaram bons amigos.
  - Peço-te que me expliques - disse ele ao Vento-leste - quem é essa princesa de quem falavas; e também onde fica o Jardim do Paraíso.
   - Queres ir lá! - perguntou o vento-leste. - Pois então voa amanhã comigo. Devo dizer-te, contudo, que nenhum homem lá esteve ainda, desde o tempo de Adão e Eva. Lêste o que deles dizem tuas histórias da Bíblia, não?
   - Lá, sim!
   - Quando eles forma expulsos, o Jardim do Paraíso caiu na terra; mas conservou o calor do sol, o ar suave, e todo o seu esplendor. É lá que mora a Rainha das Fadas; é lá também que fica a Ilha da Felicidade, onde não entra jamais a morte, onde a vida é um eterno deleite. Amanhã montarás nas minhas costas e eu te levarei até lá; creio que posso fazê-lo! Mas agora não fales mais, que quero dormir.
   E foram descansar. Quando o príncipe acordou no dia seguinte, não ficou surpreendido de se ver acima das nuvens. Estava sentado nas costas do Vento-leste, que o segurava com muito cuidado ; iam tão alto que campos e matos, riso e lagos pareciam apenas um grande mapa colorido.
  - Bom-dia- disse o vento-leste. - Podes dormir mais um pouco, porque não há muito o que ver naquele país sem relevo que está lá embaixo - a não ser que queiras contar as igrejas. Parecem manchinhas de giz no tapete verde.
   Ele chamava"tapete verde" aos campo e pradarias.
  - Foi muita grosseria minha sair sem me despedir de tua mãe e de teus irmãos. - disse o príncipe.
   - Ora, isso se desculpa, porque estavas adormecido.
   Voavam agora ainda mais depressa. Podia-se observar o seu voo pelo cicio das árvores, quando passavam por cima dos bosques; e sempre que sobrevoavam um lago, ou o mar, as vagas levantavam-se, e grandes navios mergulhavam fundo nas águas, como cisnes nadando.
   Ao lusco-fusco era interessante olhar para as grandes cidades, com todas as luzes tremeluzindo aqui e ali; pareciam as faíscas de um papel queimado, que se espalham no ar, como as crianças quando saem da escola. O príncipe bateu palmas, mas o Vento-leste disse-lhe que era melhor que se segurasse bem, senão poderia cair e ficar espetado nalgum campanário.
   A águia da grande floresta era rápida no voo; mas o Vento-leste era ainda mais rápido. O cossaco*, montado no seu cavalo, corria veloz pelas planícies; mas a corrida do príncipe era ainda mais veloz.
    - Agora já podes ver a cordilheira do himalaia. São as montanhas mais altas da Ásia - disse o vento-leste- não tardaremos em chegar ao Jardim do Paraíso.
   Desviaram-se mais para o sul, e o ar recendia já as especiarias e flores. Os figos e as romãs eram silvestres, e das vinhas, também  silvestres, pendiam cachos vermelhos e arroxeados. Desceram ali e estenderam-se na grama macia, onde as flores inclinavam a cabecinha para o lado do vento, com quem diz: " Sê bem-vindo!"
   - Já estamos no Jardim do paraíso? - perguntou o príncipe.
  - Não, não! Mas breve chegaremos. Vês aquela muralha de rochedos, e a grande caverna, de onde pende a vinha como uma enorme cortina? Temos da atravessá-la! Abriga-te bem na capa; aqui o sol queima, mas daqui a dois passos sentirás frio de enregelar. A  ave que paira além da caverna tem uma asa aqui no calor do verão e a outra lá no frio do inverno.
   - Então este é o caminho do Jardim do paraíso! - disse o príncipe.
    Entraram na caverna. Como era frio lá dentro! Mas isso não durou muito. O vento-leste abriu as asas elas brilharam como uma chama ardente. Mas que caverna aquela! Enormes blocos de pedra, manando água, pendiam sobre a cabeça dos viajantes, e tinham as mais variadas formas ; ora eram tão estreitos e tão baixos que eles tinham de arrastar-se, andando de gatinhas; ora alargavam-se, erguendo tão altos que aprecia já o ar livre. Dir-se-ia uma capela funerária, onde se viam os tubos mudos de órgãos petrificados.
  - Parece que vamos viajando pela estrada da Morte, para ir ao Jardim do Paraíso!
   O vento-leste não respondeu uma palavra a esta observação do príncipe; apenas apontou para a frente, onde se via brilhar uma bela luz azul. Os blocos de pedra acima deles forma ficando mais pálidos e mais pálidos, e afinal tornaram-se transparentes como uma nuvem branca ao luar. O  ar, deliciosamente suave, era fresco como no alto das montanhas, e perfumado com a brisa que sopra entre as roseiras do vale.
   Corria ali um rio, tão claro como o próprio ar, e os peixes que nele nadavam pareciam de ouro e de prata. Caracolavam dentro d'água enguias purpurinas, que apresentavam reflexos azulados a cada salto; e as grandes folhas dos nenúfares tingiam-se de todas as cores do arco-íris, enquanto a flor era como uma ardente chama cor de laranja, que se alimentava da água como o óleo conserva uma lâmpada constantemente acesa. Uma firme ponte de mármore, esculpida com tanta perícia e delicadeza que parecia feita de renda e contas de vidro, dava acesso por sobre as águas à Ilha da Felicidade, onde florescia o Jardim do Paraíso.
   Tomando nos braços o príncipe, levou-o o Vento-leste por cima dela. As flores e folhas cantavam todos os lindos cânticos de sua infância, mas cantavam-nos mais admiravelmente do que qualquer voz humana poderia cantá-los.
   E aquelas árvores? Eram palmeiras ou plantas d'água gigantescas? O príncipe nunca vira árvores tão belas nem tão viçosas. Das árvores pendiam festões de trepadeiras extraordinárias, daquelas que só se veem pintadas a ouro e a cores lindas, nas margens de velhos missais, ou entrelaçadas nas letras iniciais. Era a combinação mais admirável de passarinhos, flores e arabescos.
    Ali perto pousava na relva um bando de pavões, todos com a brilhante cauda aberta em leque. Sim...o príncipe assim o julgou; mas quando tocou nas aves verificou que não eram pavões, mas plantas. Eram grandes folhas de bardana, brilhantes como a cauda do pavão. Leões e tigres andavam, como ágeis gatos, pelas sebes verdes, que recendiam a flor de oliveira; e leão e tigre eram mansos. A pomba do mato, cintilante como a mais linda pérola, batia com as asas na juba do leão; e a antílope, de ordinário tão tímida, ali estava parada, acenando com a cabeça, como se também quisesse tomar parte no brinquedo.
   Nesse momento apareceu a Fada do Jardim, que se adiantou para cumprimentá-los; sua roupagem brilhava como o sol, e irradiava do seu rosto aquele fulgor da mãe feliz, que se regozija com a volta do filho. Era jovem, e lindíssima, e cercava-a um bando de meninas amáveis, cada uma com uma estrela brilhante no cabelo.
   Quando o Vento-leste lhe entregou a folha com a inscrição da Fênix, seus olhos fulgiram de alegria. Tomou o príncipe pela mão e levou-o para o seu palácio, cujas paredes eram da cor da pétala da tulipa, quando refulge à luz  do sol. O teto era uma imensa flor fulgurante, e quanto mais a gente olhava para ela, mais profundo parecia o cálice. O príncipe foi até a janela, e, olhando pela vidraça, viu a Árvore da Ciência, com a serpente,e Adão e Eva ali perto.
  - Então eles não foram expulsos? - perguntou.
   E a Fada explicou-lhe que o tempo gravara uma pintura em cada vidro; mas essas pinturas não  eram pinturas comuns, como as que conhecemos: eram cenas vivas; as folhas das árvores moviam-se; as pessoas iam e vinham, como as imagens refletidas em um espelho.
   Olhou ele então por outro vidro e viu o sonho de Jacob, com a escada subindo direita para o céu, e anjos de asas imensas, que subiam e desciam por ela.
  Tudo o que já aconteceu neste mundo vivia e movia-se naqueles vidros das janelas; somente o Tempo podia imprimir figuras tão maravilhosas.
  Sorrindo, levou-o a Fada para uma sala grande e alta, cujas paredes eram como pinturas transparentes, que representavam rostos, cada qual mais belo. Eram milhões: os bem-aventurados,     que cantavam e sorriam: e todos os seus cânticos fundiam-se em uma melodia perfeita. Os que estavam mais acima eram tão miudinhos que pareciam menores que o menor botãozinho de rosa: não eram mais que um pontinho em um desenho. No meio da sala erguia-se uma grande árvore, de galhos pendentes; maças dourada, grandes e pequenas, apareciam entre a folhagem, como laranjas. Era a árvore da Ciência,cujo fruto Adão e Eva tinham comido. De cada folha pendia uma gota de sereno, vermelha e rutilante - parecia que a árvore estava chorando lágrima de sangue.
   - Vamos agora entrar no bote - disse a linda Fada do Jardim. - As águas agitadas trazem frescura. O bote arfa, mas não se move do lugar: todos os países do mundo passarão diante de nossos olhos.
   Curiosa visão, na verdade era aquela da costa em movimento! Ali vinham os Alpes altíssimos vestidos de neve, com suas nuvens e seus pinheiros sombrios. A trompa ecoava melancólica e o pastor cantarolava suavemente pelos vales. Bananeiras curvavam as largas folhas por cima do bote; cisnes negros nadavam na água, e na praia apareciam as flores e os animas mais estranhos. Era a Nova Holanda, a quinta parte do mundo, que ia deslizando, sobre u fundo de montanhas azuis.
   Ouviram cânticos de padres, e viram danças de selvagens, ao som de tambores e flautas feitas de ossos. As pirâmides do Egito alcançavam as nuvens. Viram coluna derrocadas; e logo depois navegavam diante deles as Esfinges meio enterradas na areia. Vinha depois a Aurora Boreal, iluminando os vulcões extintos do polo - eram fogos de artifício que ninguém poderia imitar!
   Sentia-se o príncipe muito feliz; e ainda viu cem vezes mais coisas do que as que aí ficam descritas. Por fim indagou:
  -Posso ficar aqui para sempre?
   - Isso depende de ti - respondeu a fada. - Se não te deixares tentar, como Adão, e não fizeres o que é proibido, poderás ficar aqui para sempre.
  -Não tocarei nas maças da Árvore da Ciência - disse ele. - Há aqui milhares de frutas, tão soberbas como aquelas...
   - Sonda o teu coração; e se não és bastante forte, volta com o Vento-leste, que te trouxe. Ele vai sair agora, e não tornará senão daqui a cem anos; esse tempo, neste lugar , passa voando, como se fossem apenas cem horas. Mas é ainda assim tempo bastante longo para tentação e pecado. Todas as tardes, à hora do crepúsculo, eu terei de dizer-te: " Vem comigo! " e te chamarei com um aceno - mas tu deves ficar para trás. Não me acompanhes, porque a cada passo que deres teus desejos irão aumentando. Entrarás no salão, onde está a árvore da Ciência; eu durmo à sombra de seus ramos fragrantes. Terás de te curvar  sobre  o meu rosto; eu te sorrirei, mas se me beijares os lábios, o Paraíso imediatamente submergirá nas profundezas da terra, e estará perdido para ti. Ventos cortantes, vindos das regiões selvagens, soprarão em roda de ti; chuva, gelada gotejará sobre a tua cabeça. Terás de suportar tristezas e aflições.
  - Quero ficar aqui! - disse o príncipe.
   E o vento-leste beijou-o na fronte, dizendo-lhe:
  - Se forte, e nos encontraremos outra vez aqui mesmo, daqui a cem anos. Adeus! Adeus!
   E distendeu as largas asas, que brilhavam como papoulas no tempo da ceifa, ou como a Aurora Boreal no frio inverno.
   - Adeus! Adeus! - sussurrava a voz do Vento-leste, entre as flores e as árvores.
   Cegonhas e pelicanos voavam na linha, como fitas ondulantes, levando-o para o extremo do jardim.
   Agora vamos começar nossas danças, informou a Fada; e no fim, quando eu dançar contigo, à hora em que o sol se põe, tu me verás acenar-te e chamar-te: "Vem comigo!" Mas fica onde estás: não me atendas! Terei de repetir isto todas as noites, nestes cem anos. Cada vez que resistires, tu te tornarás mais forte, e afinal acabarás por nem pensar mais em me seguir. Será hoje a primeira vez. E agora estás avisado!
   E a Fada levou-o para um grande salão todo feito de lírios brancos e transparentes, cujos estames amarelos formavam dentro de cada um uma pequenina harpa dourada, que produzia sons de flauta e de instrumentos de corda. Moças amáveis, esbeltas e flexíveis, vestidas de gaze flutuante, que revelava os membros delicados, resplandeciam na dança, e cantavam de alegria da alegria de viver - declarando que nunca morreriam, e que o jardim do paraíso floresceria para sempre.
   O sol desceu para o poente e o céu ficou todo banhado de uma luz que dava aos lírios o matiz das mais lindas rosas; e o príncipe bebeu o vinho espumoso que as donzelas lhe ofereceram. Sentia uma alegria tão grande como jamais conhecera; viu o fundo do salão que se abria, e ali apareceu a Árvore da Ciência tão cheia de esplendor que o cegava. De lá vinha um canto suave e delicado, como a voz de sua mãe, e parecia dizer-lhe: " Meu filho, meu filho bem-amado!"
   Então a Fada acenou-lhe, chamando com voz persuasiva:
   - Vem! Vem comigo!
   Era tão terna a voz que ele a seguiu, esquecendo a promessa feita, esquecendo tudo já na primeira noite em que ela lhe sorria e o chamava.
    A fragrância do ar que o cercava era cada vez mais intensa, as harpas soavam mais suavemente do que nunca, e parecia que no salão onde estava a árvore, milhões de rostos sorridentes lhe acenavam e cantavam:
   - Devemos saber tudo. O homem é o senhor da terra!
    Já não eram mais lágrimas de sangue que gotejavam da árvore; pareciam-lhe agora brilhantes estrelas vermelhas.
   - Vem! Vem! - chamavam ainda a voz trêmula.
   E a cada passo sentia o príncipe mais ardentes as faces, e o sangue correr com mais rapidez.
  - Tenho de ir -dizia ele - não é pecado, devo ir vê-la dormindo. Nada se perderá se eu não a beijar, e eu não a beijarei. tenho força de vontade!
   A Fada deixou cair suas vestes cintilantes, afastou os ramos, e um momento depois estava oculta dentro da folhagem.
  - Ainda não pequei! - disse o príncipe. - Nem hei de pecar!
   Afastou então os galhos. Lá estava ela, já adormecida, e tão bela como somente a Fada do jardim do Paraíso pode ser. Sorria em sonhos; ele se curvou e viu as lágrimas que lhe tremiam nos cílios.




   - É por mim que choras? - murmurou ele. - Não chores, linda menina. Só agora compreendo a bem-aventurança do Paraíso: ela vibra no meu sangue e nos meus pensamentos. Sinto a força dos anjos e da vida eterna em meu corpo mortal! Se eu tivesse de viver na noite eterna, um momento como este me recompensaria!
    E ele enxugou com um beijo as lágrimas dos seus olhos; e beijou-a na boca.
   Ouviu-se então um som de trovão, mais estrondoso, mais espantoso do que tudo quanto ele jamais ouvira, e tudo o que o cercava desmoronou. A linda Fada, o Paraíso florido, tudo caiu e cada vez ia descendo mais. O príncipe viu que tudo se afundava na escuridão da noite; e brilhava agora lá longe, como uma estrelinha, pequenina e cintilante. Fechou os olhos, e ficou longo tempo como morto.
  Fria chuva caía-lhe no rosto, e um vento cortante soprava-lhe ao redor da cabeça. Afinal, voltou-lhe a memória.
   - Que fiz eu! - suspirou ele.- Pequei como Adão, pequei tão gravemente que o Paraíso caiu na terra!
   Abriu então os olhos ainda pode ver a estrela, a longínqua estrela que cintilava como o Paraíso; era a estrela da manhã, que brilhava no céu. levantou-se e viu que estava no mato, perto da caverna dos ventos; e a mãe dos ventos estava sentada ao seu lado. Parecia muito zangada, e ergueu a mão, dizendo:
   - Então, já primeiro dia! Mas eu logo vi! Sim! Se fosses meu filho, irias para o saco!
   - Ele não demora muito a ir para lá - disse a Morte.
   Era uma velha forte, com uma foice na mão e grandes asas negras. E ela continuou:
   - Ele será deitado em um caixão. Não agora; eu apenas o assinalo e deixo-o ainda por algum tempo andar pela terra para expiar seu pecado e ficar melhor. Virei algum dia. E quando ele menos me esperar, voltarei; deito-o então em um caixão negro, ponho-o à cabeça e voo para a estrela. Lá também floresce o jardim do Paraíso, e se ele for bom e piedoso entrará no jardim; mas se ainda tiver  pensamentos perversos e o coração cheio de pecado, caíra cada vez mais baixo, dentror do seu caixão, mais abaixo ainda do que o Paraíso caiu; e eu irei apenas uma vez em mila nos, para ver se ele vai afundando mais, ou e se ergue para a estrela, a cintilante estrela que está brilhando lá em cima!
FIM

*Hotentotes;
Esses dois grupos são os san, também conhecidos por bosquímanos ou boximanes e que são caçadores-coletores, e os khoikhoi, que são pastores e que foram chamados hotentotes pelos colonizadores europeus.

*Cafraria:
região do Sudeste da África, habitada por povos não muçulmanos de raça negra. 

Cosaco:*

refere-se a grupos de formações sociais e militares, inicialmente, de origem turca .

   (Oi amiguinhos queridos esta história também é longa , então para não demorar as postagens vou postando o que consigo digitar, que delícia estes contos, eu amo muito tudo isso)

A AVÓ - CONTOS DE ANDERSEN

                   A avó está muito velha. Rugas inumeráveis lhe sulcam o rosto, e a sua cabeleira ficou inteiramente branca. Mas os olhos, que brilham como duas estrelas - e até muito mais lindos que as estrelas - seus olhos tem uma expressão suave e amável. E faz bem olhar para aqueles olhos. Além disso, ela sabe contar as histórias mais belas do mundo, e tem um vestido de uma fazenda estampada, cheio de flores muito, muito grandes. É uma seda pesada, que farfalha. A avó sabe muita coisa, Ela possui um livro de oração com grandes fechos de prata, e o lê diariamente. Dentro do livro há uma rosa, toda achatada, e seca; não é tão bonita como as que a avó tem em um vaso, e contudo ela sorri carinhosamente para aquela rosa, e fica com os olhos cheios de lágrima. Por que será que a avó olha assim a flor murcha que está dentro do livro? Não o sabes?
                     Cada vez que as lágrimas da avó caem sobre a flor, as pétalas ficam de novo frescas; a rosa intumesce, e enche toda a sala de perfume. As paredes se esvaecem, como se fossem de névoa, e em roda da avó estende-se a magnífica mata verdejante, e o sol brilha na folhagem. E a avó - oh! a avó voltou a ser jovem, uma encantadora jovem de cabelos louros e crespos, de faces cheias e coradas, linda e graciosa: nenhuma rosa poderia ser mais bela! Mas os olhos, os meigos olhos suaves esses sim, ainda são os mesmos da avó. Ao lado dela está um moço alto e vigoroso. Ele lhe oferece a rosa, e ela sorri... Mas já não é mais assim o sorriso da avó! E contudo agora...
                       Mas já desapareceu o sorriso. Passam voando muitos pensamentos, muitos vultos. Sumiu-se o moço bonito, A rosa está no livro de oração, e a avó...a avó tornou a ser outra vez uma velha, a olhar para a rosa murcha imprensada no livro.
                         E agora a avó morreu.
                        Ela estava sentada na poltrona, contando uma linda história, uma história muito longa, e maravilhosa, e disse que a história acabara, e que se sentia cansada. Reclinou a cabeça para cochilar um pouquinho. E ressonava brandamente. Dormia. Mas depois tudo foi ficando silencioso  silencioso...O rosto da avó parecia cheio de felicidade e de paz. Era como se a luz do sol lhe iluminasse as feições. Ela sorriu novamente; e então as pessoas disseram que a avó acabava de expirar.
                    Deitaram-na no caixão preto, e ali jazia ela, toda em linho branco, ainda suave e bela, mas com os olhos cerrados. Tinham desaparecido todas as rugas. E ali estava ela estendida, com um sorriso nos lábios, e o venerável cabelo de prata. E a gente não sentia medo algum ao vê-la: ela continuava a ser a boa e querida vovó.
                      Puseram-lhe sob a  cabeça o livro de oração, de acordo com o seu pedido. E depois a enterraram.
                   Plantaram uma roseira no túmulo, que ficava bem junto do muro do cemitério. E lá estava ela, cheia de rosas; e o rouxinol cantava, esvoaçando sobre a sepultura e sobre as flores. De dentro da igreja vinham, na voz do órgão, os mais belos cânticos do livro que estava debaixo da cabeça da morta. O luar iluminava a sepultura, mas a morta não estava ali.


   Até uma criança podia andar tranquilamente pelo cemitério, mesmo à noite, e colher uma rosa junto ao muro. Os defuntos sabem mais do que sabemos todos nós, os vivos. Os mortos sabem quanto pavor se apoderaria de nós, se acontecesse um milagre e eles andassem entre nós. Os mortos são melhores do que nós, por isso não voltam.
   A terra acumulou-se acima do caixão, e também dentro dele há terra. As folhas do livro de oração tornaram-se poeira. A rosa com todas as suas recordações, desfez-se em pó. Mas acima dela, rosas frescas estão florindo. Lá mais acima, canta o rouxinol, e ressoa o órgão. Lá em cima vive a saudade da velha avó de olhos suaves e sempre jovens. Os olhos não poderão morrer, nunca! Os nossos um dia hão de tornar a ver a avó, moça e bela, como no tempo em que beijava pela primeira vez a fresca rosa vermelha que agora, no túmulo, se converteu em pó.
FIM

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A FILHA DO REI DO BREJO - CONTOS DE ANDERSEN

   As cegonhas sabem muitas histórias, que vão contando aos filhotes, e todas essas histórias falam de brejos e banhados. E as cegonhas sabem também adaptá-las à idade e compreensão das crianças. Os mais novinhos contentam-se com parlendas infantis, e outras tolices, mas os mais crescidos querem ouvir coisas mais sensatas, ou que pelo menos falem da família. Algumas dessas histórias, das mais compridas e mais antigas, foram assim conservadas pelas cegonhas; uma delas conta de Moisés, que foi  abandonado pela mãe nas águas do Nilo, onde a filha do rei o encontrou. E conta também como a princesa o educou, e como ele veio a ser um grande homem, cujo túmulo ninguém sabe até hoje onde está. Essa história é conhecida de todos.
    A outra história não é ainda tão conhecida, porque as cegonhas até agora a guardaram em segredo. Há mais de mil anos que as mães cegonhas a vão passando umas às outras, e cada mãe sempre a contava melhor que a anterior; até que hoje em dia nós podemos contá-la melhor ainda que todas elas.
  O primeiro casal de cegonhas que contou essa história, e que de fato a viveu, tinha seu pouso de verão no teto da casa de madeira do Viking(*), construída perto do "Vidmosen" ( O Brejo Bruto), em Wendsyssel. Fica no condado de Hiorring, para os lados de Skaw, ao norte da Jutlândia - conforme dizem os entendidos. Existe lá um grande brejo, de que falam as crônicas do condado.  Aquela região era antigamente  coberta pelas águas do mar, mas o terreno foi levantando, e estende-se hoje por muitas milhas. Cercam-na de todos os lados campinas pantanosas, tremedais e turfeiras, onde crescem amoreiras e arbustos enfezados.
     Paira quase sempre sobre aqueles pauis um nevoeiro denso, e há setenta anos eram eles ainda infestados de lobos. Assentava-lhe bem o nome de Brejo Bruto, e não é difícil imaginar quão medonho e desolado seria aquilo, no meio de todos aqueles atoleiros e banhados, há mil anos atrás! As plantas, particularmente, são ainda as mesmas daquele tempo. Os juncos ainda são da mesma altura, e ostentam a mesma espécie de folhas, de pontas penugentas. Ainda cresce lá a bétula de casaca branca e folhas delicadas e pendentes. Quanto às criaturas viventes, as moscas ainda usam vestidos de gaze do mesmo feitio; e as cegonhas ainda trajam, com as daquele  tempo, roupa preta e branca, e compridas meias vermelhas.
    É claro que as criaturas humanas trajavam então roupas de corte muito diferente das de hoje em dia; e se alguma delas, servo ou caçador, ou quem quer que seja, se aventurasse a andar pelo tremedal, esperava-a o mesmo destino que há mil anos - havia de se sumir ali, e submergir, indo parar na casa do Rei do Brejo. É ele quem reina lá embaixo, sobre todo o reino dos banhados e tremedais.
   Quadrava-lhe também o nome de Rei dos Tremedais, mas preferimos chamá-lo Rei do Brejo, como diziam as cegonhas. Pouco sabemos do seu reino, mas isso é o de menos.
   Perto dos brejos, para o lado daquele braço do Cattegat chamado Limfiord ( Golfo viscoso) , assentava a casa do Viking, com sua adega de pedra, sua torre e seus três andares. As cegonhas tinham construído o ninho sobre o teto, e a mãe cegonha estava chocando seus ovos. Esperava ver todos descascados, sem perder nenhum.
  Uma tarde o pai cegonha estava tardando em voltar, e quando chegou parecia um tanto aborrecido. E disse logo à mãe cegonha:
  - Tenho uma coisa terrível para te contar!
   - Não a contes então - respondeu ela. - Lembra-te de que estou chocando, e isso talvez me perturbe e prejudique os ovos!
   - Mas é preciso que o saibas; ela está aqui, a filha do nosso hospedeiro do Egito. Aventurou-se a fazer a viagem, e agora se sumiu.
    -Ela, a parenta das fadas! Conta-me tudo, tudo...Sabes que assim choca como estou, não posso esperar nada.
   - Olha aqui, minha velha! Ela sem dúvida acreditou no que o doutor disse, conforme me contaste: acreditou que as flores do brejo que nascem aqui fariam bem ao pai, e voou  para cá, vestida de plumagem, com as outras duas princesa, aquelas que vem do norte todos os anos para tomar banhos e rejuvenescer. Ela veio, sim, e desapareceu!
    - Estás fazendo muitos rodeios; eu não posso ficar assim suspensa, à espera; os ovos apanhariam frio.
   - Tenho estado vigiando, disse o pai cegonha, e hoje, quando me encontrava no meio dos caniços, lá onde o banhado mal se aguenta, vi três cisnes voando; mas notei no seu voo alguma coisa que me chamou a atenção. E disse comigo: "Vigia-os! Aqueles cisnes não são cisnes de verdade! Vestem apenas a plumagem de cisne". Tu sabes, minha velha, tão bem como eu, que a gente sente intuitivamente se uma coisa é ou não é o que quer parecer.
   - É assim mesmo, é; mas conta-me o que houve com a princesa. Estou farta de ouvir na plumagem dos cisnes.
       - Sabes que no meio do pântano há uma espécie de lago. Poderás ver uma ponta dele daqui, se ergueres a cabeça. Havia lá um enorme tronco de salgueiro, entre os  arbustos e o tremedal, e os três cisnes pousaram nele, batendo as asas e olhando em redor. Então um despiu a plumagem de cisne, e reconheci imediatamente a princesa do Egito. Sentou-se ali, coberta apenas com seus longos cabelos negros; ouvi que ela pedia às outras que cuidassem da sua plumagem de cisne, enquanto mergulhava na água para colher a flor do brejo, que julgava encontrar lá embaixo. Elas o prometeram; mas ergueram a cabeça e levantaram voo, levando a plumagem abandonada. "Que irão fazer com aquilo?" pensei comigo; e certamente ela também fez a mesma pergunta. E a resposta, teve-a em seguida: voaram pelos ares com a roupagem de penas! E gritavam :" Mergulha agora! Nunca mais tornarás a voar disfarçada em cisne, pata! Nunca mais tornarás a ver a terra do Egito...Podes ficar ai no banhado!" E rasgaram o vestido de penugem em mil bocados, espalhando as penas por toda a parte, com uma tempestade de neve. E aquelas duas malvadas voaram para longe.
   - Que coisa terrível! - disse a mãe cegonha. - E depois?
   - A princesa lamentava-se e chorava! Suas lágrimas foram gotejando sobre o tronco do chorão; e ele começou a mover-se, porque era ao próprio Rei do Brejo em pessoa, que mora no apul. Vi o tronco virar-se e revirar-se, e vi que não era mais tronco: estendia para os lados galhos lamacentos, que eram os braços. A pobrezinha ficou aterrada, e atirou-se para o tremedal, que não suporta nem o meu peso, quanto mais o dela! Sumiu-se imediatamente, e o tronco de chorão foi atrás dela: e arrastou-a para o fundo. Brotaram no lodo grande borbulhas negras, e depois fundo ficou quieto outra vez. Agora ela lá esta enterrada no Brejo Bruto, e nunca mais voltará ao Egito, para levar as flores que veio buscar. Oh! minha velha, tu não terias suportado semelhante cena!
  - Tu nem devias - ter-me contado uma coisa assim, justamente agora: poderia fazer mal aos ovos. Mas a princesa que cuide de si! Ela há de arranjar auxílio em alguma parte. Agora, se tivesse acontecido isso contigo ou comigo, ou com alguém da nossa espécie, então sim, tudo estaria acabado!
   Ainda assim - disse o pai cegonha - eu hei de vigiar todos os dias.
  E cumpriu a  promessa.
   Passou-se muito tempo; um dia notou ele que das profundezas insondáveis brotava uma haste verde. E quando chegou à superfície da água, apareceu na ponta uma folha, que foi crescendo, dia a dia. Junto da folha apareceu depois um botão, e uma manhã muito cedo, exatamente no momento em que o pai da cegonha ia passando. Abriu-se o botão aos quentes raios de sol: e no meio estava um lindo nenê. Uma meninazinha, tão fresca como se viesse saindo agora mesmo do banho. Era  tão parecida com a princesa do Egito que a princípio a cegonha pensou que era ela mesma, que ficara outra vez pequenina; mas refletindo um pouco, compreendeu que era a filhinha do Rei do Brejo. Por isso aparecia assim numa flor de loto.
  - Ela não pode ficar ali - pensou o pai cegonha - e tenho já tantos no ninho...Mas veio uma ideia! A mulher do Viking não tem filhos, e deseja tanto um nenê..Visto que dizem que eu trago nenêzinhos, vou fazer isso de verdade, desta vez. Vou voar para a casa do Viking com o nenê, e há de ser uma grande alegria para a sua mulher.
   E a cegonha segurou o nenê e voou com ele para a casa de madeira. Chegando lá, abriu um buraco na pele de bexiga que tapava a janela, e depôs o nenê nos braços da mulher do Viking.
    Feito isto, rumou para casa e contou à mãe cegonha o que tinha acontecido. Os filhotes ouviram a história - e já estavam em idade de compreendê-la.
    - Já vês que a princesa não está morta; foi ela sem dúvida que mandou aquele nenê cá para cima, e eu achei um lar para a criancinha.
   - Desde o princípio eu o dizia - retrucou a mãe cegonha. - Agora vê se te resolves a cuidar de nossos filhos: está chegando o tempo de empreendermos a nossa viagem. Sinto de vez em quando um zunido nas asas! O cuco e o rouxinol já la se foram, e ouvi as perdizes dizerem que cedo teremos bons ventos. E, ou nossos pequerruchos farão boa figura nas manobras, ou eu não entendo disso!
    Quando a mulher do Viking acordou, e encontrou a seu lado o nenêzinho, ficou contentíssima. Beijou-o e cobriu-o de carícias; mas o nenê gritava e esperneava, e não havia nada que o contentasse. Afinal depois de muito chorar, adormeceu, e era sem dúvida a coisa mas linda que se podia ver. A mulher do Viking estava na maior alegria - corpo e alma inundados de felicidade. Estava agora certa de que o marido com todo os seus homens iam voltar tão inesperadamente como tinha aparecido aquele nenê. E ela e toda a criadagem trataram imediatamente de por a casa em ordem para esperá-los. As extensas tapeçarias que ela e suas criada tinham tecido, e que representavam seus deuses - Odin, Thor e Freya - foram penduradas. Os servos arearam e poliram os velhos escudos que pendiam das paredes; as almofada foram espalhadas pelos bancos, e encheu-se de lenha a grande lareira do vestíbulo, de sorte que ficava pronta para acender no momento preciso. A própria mulher do Viking ajudava em todos os trabalhos, de modo que ao escurecer estava fatigada, e dormiu profundamente.


   Ao despertar, de manhã cedo, ficou muito assustada, porque deu falta do nenê: tinha desaparecido. Sentou-se e, acendeu alguns galhos de pinheiros para ver se enxergava a criança. Não a encontrou, mas aos pés da cama estava um sapo horrendo. Assustou-se ao ver aquele animal tão feio, e ia dar-lhe uma bordoada com uma bengala pesada, mas o sapo deitou-lhe um olhar tão estranho e tão triste, que ela não teve coragem de desferir o golpe. Continuou a procurar a criança, e nisto o sapo saltou um gemido fraco, que a sobressaltou. Saltou da cama e foi abrir a janela; o sol, que ia surgindo, iluminou com seus raios a cama e o enorme sapo. Imediatamente a boca do monstro foi se contraindo, foi ficando pequena e rosada, os lábios estenderam-se, tomando lindas formas, e ali estava de novo sua linda filhinha, em lugar do horrendo animal.
  - Mas que é isto? - exclamou ela. - Que sonho horrível! - É a minha querida filhinha...
   Beijou-a e apertou-a ao peito, mas a criança lutava e mordia-a, como uma gatinha furiosa.
   O senhor, Viking, não chegou nesse dia, e nem no seguinte; estava já a caminho, mas o vento não lhe era favorável; soprava para o sul para as cegonhas.
   - Um mau vento, que não presta para nada!
   Dentro de alguns dias já a mulher do Viking compreendera o que se passava com o seu nenê: algum poder maléfico a dominava. De dia era tão linda como uma fada, mas tinha então um temperamento perverso; à noite virava em um sapo medonho, tranquilo e dócil, de olhos tristes e suaves. Duas naturezas viviam em continua alternativa no seu corpo e na sua alma. É que a criancinha, que provinha da rã, de dia tinha a forma da mãe e a natureza má do pai; mas à noite seu parentesco com ele revelava-se na forma exterior, enquanto a natureza suave e o espírito delicado da mãe irradiavam daquele monstro disforme.


   Quem poderia libertá-la do poder daquele encantamento?
  Por maior que fossem o desgosto e desassossego da mulher do Viking, ela sentia uma imensa piedade daquele serzinho infeliz. Sentia que jamais poderia contar ao marido aquela história toda, porque bem sabia que ele, conforme o costume do tempo, havia de abandonar a pobre criança na estrada, para quem quisesse vê-la. A boa mulher não tinha coragem de suportar semelhante coisa, e resolveu definitivamente que o marido só havia de ver a menina durante o dia claro.
   Uma manhã ouviu-se o barulho de asas de cegonhas zunindo no teto: durante a noite mais de cem casais tinham pousado ali para descansar, depois das grandes manobras, e experimentavam as asas antes de empreender o longo voo para o sul.
   - Todos os homens prontos! - gritavam elas. - E também todas as mulheres e crianças!
   E as mais novinhas diziam:
   - Sinto-me tão leve! Minhas pernas latejam, com se estivessem cheias de rãs vivas! Que coisa esplêndida, viajar por terras estrangeiras!
   - Em linha! - disseram os pais. - E não batam tanto o bico: não é bom para o peito.
   E lá se foram voando.
   Naquele instante soou uma trompa na charneca. Chegara o Viking, com todos os seus homens; traziam um opulento despôjo, arrancado da costa da Gália, lá onde o povo gritava de terror, como fazia o povo da Bretanha:
   - Livrem-nos dos selvagens do Norte!
   Que vida, que movimenta havia agora na casa do Viking, perto do Brejo Bruto!" Veio para o saguão o barril de hidromel, acendeu-se a grande lareira, e muitos cavalos foram mortos para a festa, que devia ser estrondosa. O sacerdote aspergiu os escravos com o sangue dos cavalos, como uma consagração. O fogo crepitava e rugia, arrojando a fumaça para o teto, e dos barrotes escorria a fuligem; mas eles estavam habituados àquilo.
   Todos os convidados receberam lindos presentes. Todas as contendas, todas as desconfianças foram esquecidas. Os homens beberam copiosamente, e, depois de roerem toda  a carne, batiam com os ossos no rosto uns dos outros - mas isso tudo eram sinais de amizade. O Skald -o menestrel daqueles tempos- era também um guerreiro. Acompanhara-os na expedição, e sabia muito bem o que dizia quando cantava . O Skald cantou, pois, uma balada, narrando todos os feitos de guerra, todas as proezas daqueles homens. E após cada estrofe, vinha um estribilho: " A fortuna se pode perder, os amigos podem morrer, a gente morre um dia - mas um nome glorioso nunca morre!"
    E o homens tangiam os escudos, batiam com as facas nos ossos de vitela que estavam sobre  a mesa, e todo o vestíbulo retinia.
     A mulher do Viking estava sentada no banco que atravessava o salão do banquete. Trajava um vestido de seda, e tinha pulseiras de ouro e grandes contas de âmbar. O Skald mencionou seu nome no canto, falou do tesouro de ouro que ela trouxera ao seu marido, e da alegria dele, com a vinda da linda criança( que atá agora ele só vira sob a sua amável aparência diurna). Admirava a natureza apaixonada da menina, e dizia que ela viria a ser uma valente donzela de armas, uma daquelas pessoas que não pestanejavam, nem que uma mão destra lhe arranque as sobrancelhas, por brincadeira, com uma espada aguçada.
   O barril de hidromel esgotou-se, e rolaram outro para o salão; Não tardou que o outro se esvaziasse até a borra, mas aquela gente tinha a cabeça tão forte, que não se abalava. Havia entre eles então um provérbio: " Os irracionais sabem quando é hora de deixar a grama e ir para casa, mas os loucos não sabem quando chega de beber". Sim...eles bem o sabiam, mas muitas vezes as pessoas sabem uma coisa e praticam outra, apesar disso. Sabiam também que " o amigo mais íntimo torna-se importuno, se se  demora demais na nossa casa"; mas mesmo assim iam ficando. Comidas e bebidas são coisas muito boas! A sociedade era muito jovial! À noite os escravos dormiam entre as cinzas quentes; mergulhavam os dedos na gordura cheia de fuligem e lambiam-nos. Estranhos tempos eram aqueles, na verdade!
   Naquele ano o Viking tornou a partir para uma excursão, quando os ventos do outono já começavam a soprar. Navegou com seus homens para a costa da Bretanha.
   - E ali, do outro lado da água...- dizia ele.
   A mulher ficou em casa com a criança; a mãe adotiva parece que já gostava mais do pobre sapo de olhos melancólicos e suspiros queixosos, do que da linda menina que mordia e despedaçava tudo.
   - Já o frio e pegadiço nevoeiro do outono, o "verme roedor" que rói as folhas das árvores, se estendia por sobre bosques e campos; e "ave de penas soltas, como eles chamavam a neve, cerrada, por toda a parte. Era o inverno que vinha chegando. Os pardais tomaram sob a sua proteção os ninhos das cegonhas, e criticavam os ausentes lá a seu modo. O casais de cegonhas e seus filhotes...onde andaram eles?
   As cegonhas estavam na terra do Egito, onde gozavam um sol como nós temos em um dia de verão! Achavam-se cercadas de tamarindos e de acácias. O crescente de Maomé luzia nas cúpulas das mesquitas, e muitos casais pousavam nas torres esguias, descansando da longa viagem. Bandos inteiros delas tinham os ninhos lado a lado, nos imensos pilares, ou nas arcadas arruinadas dos templos desertos. A tamareira erguia bem alto seu abrigo de palmas, como se quisesse formar um guarda-sol. As pirâmides, de um branco acinzentado, desenhavam na clara atmosfera do deserto o seu perfil sombrio, onde a avestruz sabia que acharia lugar para se aninhar. O leão agachava-se, contemplando  com seus grandes olhos inteligentes a Esfinge de mármore meio enterrada na areia. As águas do Nilo tinham recuado, e a terra formigava de rãs; para a cegonha era aquela visão mais esplêndida em toda a extensão da terra. Os olhos dos filhotes estavas deslumbrados, diante daquele espetáculo.
  - Vejam o que há por aqui; tudo isso nós sempre temos, no nosso quente país - disse a mãe cegonha.
   E os pequenos sentiram o estômago tinir. Um deles perguntou:
   - Não há mais nada por aqui? Nós não vamos mais para o interior?
   - Não há por lá muito que ver não. Na margem fértil há apenas matos isolados, onde as árvores estão tramadas de trepadeira. Só o elefante, com aquelas pernas grossas e fortes, é que pode abrir caminho lá dentro. As cobras ali são demasiado grandes para nós, e os lagartos muito ariscos. Se vocês saírem para o deserto, durante o bom tempo a luz do sol os cegará e, se houver mudança, poderão ficar soterrados com uma tempestade de areia. Não, é melhor ficar onde estamos; há rãs de sobra, e gafanhotos. Eu fico aqui!
    E assim ficaram todos.
   As cegonhas velhas pousaram nos seus ninhos, nos minaretes esbeltos, descansando; mas ao mesmo tempo estavam muito ocupadas, alisando as penas e esfregando o bico nas meias vermelhas. Ou senão erguiam o comprido pescoço, inclinando gravemente a cabeça, com uma luz de sabedoria nos olhos pardacentos. As senhoritas cegonhas passeavam gravemente entre os caniços sumarentos, deitando olhares para os moços cegonhas, ou travando conhecimento com eles. De três em três  passos engoliam uma rã, ou iam andando com uma cobrinha segura no bico - o que lhes parecia de muito bom efeito, e era muito gostoso. Os moços armavam brigas a cada passo, e batiam as asas com fúria, ferindo-se mutuamente com o bico, até escorrer sangue. Depois da briga escolhiam uma companheira e iam construir seu ninho.; era para isso que viviam. Não tardava que rompessem novas disputas, porque naqueles países as pessoas são muito ardorosas. Mas tudo o que os filhos faziam estava bem feito. O sol brilhava todos os dias, não faltava alimento; em nada tinham de pensar, a não ser no prazer!
     Mas no grande palácio do seu hospedeiro egípcio, como diziam as cegonhas não reinava a mesma alegria. O rico e poderoso senhor jazia estendido no leito, com os membros tão rígidos como se fosse uma múmia. O grande saguão todo pintado era tão cheio de esplendor, como se ele estivesse deitado dentro de uma tulipa. Cercava-no os parente e amigos; não estava morto, e contudo, mal se poderia dizer que vivia. A flor milagrosa do brejo das terras do norte, que tinha de ser achada e colhida pela pessoa que mais o amasse, nunca foi trazida. Sua filha, tão jovem e tão linda, que voara para o norte longínquo, atravessando terras, que voara para o norte longínquo, atravessando terras e mares, vestida com a plumagem de um cisne, nunca voltara. As outras duas princesa cisnes voltaram, e contaram esta história:
   - Nós voávamos muito alto nos ares quando um caçador nos viu e disparou uma flecha; acertou mesmo no coração da nossa amiga e ela caiu lentamente. Desceu cantando o seu canto de despedida, e foi cair em um lago no meio do mato. Nós a enterramos lá perto da praia, à sombra de uma bétula; mas também a vingamos: amarramos fogo debaixo das asas de uma andorinha que tinha o ninho no beiral do telhado dele. Prendeu fogo no teto e o chalé inteiro ardeu, ele morreu queimado lá dentro. As chamas iluminarem a lagoa onde ela jazia, terra da terra, debaixo do vidoeiro. Nunca mais ela votará à terra do Egito.
   Choravam ambas, e o pai cegonha , que as ouvia, bateu com o bico e disse:
   - Tudo mentira; eu bem queria meter meu bico com toda a força no peito delas!
   - Onde teu bico se quebraria, e ficarias em bonito estado! - disse a mãe cegonha. - Pensa primeiro em ti e na nossa família, e tudo o mais virá em segundo lugar!
    - Eu vou pousar sobre a cúpula aberta amanhã, quando todos os sábios e pessoas instruídas se reuniram para falar no homem doente: talvez eles cheguem um pouco mais perto da verdade!
   Reuniram-se os sábios, e falaram longa e eruditamente, mas a cegonha achou que tudo o que disseram não tinha pés nem cabeça. E nada resultou da discussão, nem para o homem doente nem para afilha, enterrada lá no Brejo Bruto. contudo, nós também pudemos ouvir o que disseram, e talvez compreendêssemos melhor - ou pelo menos tão bem com a cegonha.
   - É o amor que sustenta a vida! O amor mais elevado nutre a vida mais elevada! Só pelo amor pode esta vida ser recuperada!
   E os sábios declararam que aquilo era uma grande verdade.
   - É uma bela ideia! - disse o pai cegonha, imediatamente.
   - Eu não a entendo muito bem - declarou a mãe cegonha - entretanto a culpa não é minha, mas a ideia. Afinal, isso não me preocupa muito: tenho mais em que pensar!


   Tinham os sábios falado longamente sobre o amor; a diferença entre o amor dos namorados e o amor que une os pais aos filhos , as plantas à luz ; e lembraram como os raios do sol beijavam o lodo e logo brotava a vida dos tenros gominhos.
    O discurso inteiro era tão erudito que o pai cegonha não pode entendê-lo, quanto mais repeti-lo depois. Ficou pensativo, pousado sobre uma perna o dia inteiro, com os olhos meio fechados. A ciência era para ele fardo muito pesado.
   Entretanto uma coisa a cegonha ficara sabendo perfeitamente; ouvira de ricos e pobres que grande infortúnio era para milhares de pessoas e para todo o país que aquele homem estivesse assim tão doente, e sem esperança de cura. Seria na verdade um dia abençoado aquele em que viessem recuperar a saúde. mas perguntavam uns as outros;
   -  Onde é que viceja a flor milagrosa que há de curá-lo?
   E consultaram todos os escritos eruditos; e as estrelas cintilantes; os ventos e as ondas do mar foram interrogados. Mas os sábios só puderam dar uma resposta:
   - É o amor que sustenta a vida.
   Mas como aplicar o provérbio, isso é que nenhum deles sabia.
   Afinal concordaram todos em que o socorro devia ver pela mão da princesa, que amava o pai de todo o coração e de todo o entendimento. E decidiram enfim o que ela teria de fazer. E agora já se tinha passado mais de uma ano e um dia que a tinham mandado ir à noite, pela lua nova , ao deserto, para consultar a Esfinge. Lá teria ela de afastar a areia da porta até a soleira, e caminhar pela longa passagem que ia direito ao meio da pirâmide, onde um dos mais poderosos de seus antigos reis jazia enfaixado nas suas ligaduras de múmia, no meio do maior esplendor e glória. Ela devia curvar a cabeça para o corpo, e ser-lhe-ia então revelado o sítio em que havia de achar a cura e salvação de seu pai.


   E ela fez tudo isso, e em sonhos lhe foi revelado o lugar exato onde, nas profundezas do pantanal, acharia a flor do loto, que lhe havia de tocar o peito debaixo da água. E ela devia levar essa flor para sua terra.
    A princesa voou, vestida da plumagem do cisne, para o Brejo Bruto, lá no norte longínquo.
   Ora, o casal de cegonhas sabia de tudo isso desde o princípio, e nós compreendemos o caso melhor do que elas. Sabemos que o Rei do Brejo a levou para o fundo, e ficou com ela, e que para agente do seu país a princesa estava desaparecida e morta. Os  mais sábios disseram como a mãe cegonha:
   - Ela há de saber cuidar de si!
   E ficaram esperando que voltasse, por não saberem o que fazer.
   - Estou com vontade de tomar a plumagem de cisne das duas princesas hipócritas - disse o pai  cegonha. - Assim elas não podrão tornar a ir ao Brejo Bruto, para fazer outros malefícios. Guardarei as plumagens em lugar alto, até que achemos alguma utilidade para elas.
   - E onde vais guardá-las?
   - No nosso ninho, no Brejo Bruto. Eu e os pequenos podemos carregá-las, e se isso for muito difícil, há pelo caminho muitos lugares onde poderemos ocultá-las até nosso próximo voo. Uma plumagem é bastante para ela, mas duas ainda será melhor. É prudente ter cobertas que cheguem nas regiões do norte!
   - Ninguém te agradecerá isso; mas és o chefe. Nada tenho a dizer, senão quando estou chocando.
    Durante este tempo a criancinha, já no salão do Viking, perto do Brejo Bruto, para onde as cegonhas voavam na primavera, recebera um nome: Helga.Era, porém, um nome muito delicado para um espírito  tão selvagem como o que se encerrava nela. Aquilo ia ficando pior, de dia em dia, de mês em mês. E todos os anos, enquanto isso, as cegonas faziam a mesma viagem, para o Nilo no outono, para o Brejo Bruto na primavera. A criancinha cresceu; era agora uma menina grande, e nem se sabe como foi que de repente se transformou em um mocinha lindíssima. Aos dezesseis anos, a casca era linda, mas a amêndoa dura e áspera; mais feroz do que nunca, mesmo para aqueles tempos, tão grosseiros e selvagens.
   Seu maior prazer era mergulhar as alvas mãos no sangue dos cavalos do sacrifício; e, no meio de seus caprichos selvagens, era capaz de arrancar a dente as cabeças dos galos pretos que o sacerdote ia sacrificar. Um dia disse com a maior seriedade ao pai adotivo:
   - Se teu inimigo viesse aqui e amarrasse uma corda nos barrotes da tua casa, passando-as depois pelas tuas orelhas, eu não te acordaria. Fingiria não o ouvir, por causa daquele puxão de orelhas que me deste há anos, e que me magoou. Não esqueci, não!
    Mas o Viking não acreditava no que  ela dizia. É que, como todo mundo, estava encantado na beleza da menina, e nem sequer sonhava que transformação se operava no corpo e alma da pequena Helga nas horas sombrias da noite.
   Helga montava um cavalo em pelo, como se fizesse parte dele, e nem sequer desmontava enquanto o animal lutava, a dentadas, com os outros cavalos selvagens. Arrojava-se muitas vezes ao mar do alto do rochedo toda vestida, e nadava ao encontro do Viking, quando o seu bote se aproximava da praia; cortava os fios mais longos de sua bela cabeleira, para encordoar seu arco.
   - O que a  gente faz por suas mãos é o melhor- dizia.
    A mulher do Viking, como todas as daqueles tempo, era forte de espírito e tinha uma vontade firme; mas ainda assim, para aquela filha, era tão fraca e tão solícita como qualquer outra mãe, porque sabia que pesava sobre ela um terrível encantamento. Muitas vezes, vendo a mãe no balcão, Helga, ao que  parecia só para assustá-la, sentava-se no bocal do poço, estendia mãos e pés, e atirava-se de costas naquele buraco estreito e escuro. Depois, graças a sua natureza de rã, tornava a erguer-se e subia como um gato, escorrendo água.
  Uma coisa, entretanto, detinha sempre a pequena Helga; era o lusco-fusco. À hora do crepúsculo, ela ficava quieta e pensativa, e consentia até que a chamassem à ordem. Ao se aproximar o momento, uma percepção interior a levava a procurar a mãe, e quando o sol se punha, e a transformação se operava , ela ficava triste e quieta, e encolhia-se toda, tomando a forma de sapo. O corpo era muito maior mais disforme e feio. Parecia um mísero anão, com a cabeça de rã e dedos membranosos. Tinha então nos olhos uma expressão digna de lástima: voz, não a tinha - era apenas um grasnido rouco, como os soluços sufocados de uma criança que sonha. Então a mulher do Viking punha-o sobre os joelhos, e, vendo o seu olhar, esquecia a forma desfigurada, dizendo muitas vezes:
  - Chego quase a preferir que ficasse sempre a minha muda rãzinha nova...Tens aparência  mais terrível quando estás vestida de beleza.
   E escrevia runas contra as doenças e a feitiçaria, arremessando-as sobre a infeliz menina - mas sem nenhum resultado.
   Um dia o pai cegonha disse:
   - A gente nem pode crer que ela já foi tão pequenina que cabia dentro de um lírio! Agora está crescida, e á imagem perfeita de sua mãe egípcia, que não tornamos a ver. Ela não tratou de cuidar de si tão bem como tu e os sábios disseram que havia de fazer. Esvoaço por cima do pantanal todos os anos, e nunca vi o mais leve traço dela. Sim, digo-te agora que todos os anos, quando eu voltava  antes de ti para ver se o nosso ninho, estava em condições, passei mais de uma noite  voando como uma coruja ou um morcego, esquadrinhando a água, mas sem nenhum resultado. Nem tivemos ainda em que aproveitar as duas plumagens de cisne que eu e os meninos trouxemos com tanta dificuldade: foi preciso três viagens, para conseguir trazê-las até aqui! Lá estão há anos no fundo do ninho, e se acontecer algum desastre - um incêndio nos caibros da casa, por exemplo - ficarão todo perdidas.
    - E nosso rico ninho ficaria então perdido também - disse a mãe cegonha - mas isso te preocupa menos do que teus vestidos de penas, e a tua princesa do brejo. Seria melhor que fosses lá procurá-la um dia, e ficasses para sempre no meio do lodo. És um mau pai para teus próprios filhotes, e sempre eu disse isso mesmo, desde a primeira ninhada que choquei. De admirar é que nós ou um de nossos pequerruchos não tenhamos já sentido as asas varadas por uma flechada daquela maluca, a rapariga Viking. Ela não sabe nada do que lhe aconteceu. Nós estamos aqui mais em nossa casa do que ela, e devia lembrar-se sempre disso. Nunca esquecemos nossas obrigações. Todos os anos pagamos nosso tributo de uma pena, um ovo e um filhote, como é nosso dever. Pensas que quando ela anda por aqui eu baixo o voo, como costumava, e como faço lá no Egito, onde estou " em boa camaradagem" com todo o mudo, e posso até ir espiar nas suas panelas e chaleiras, se me der na fantasia? Pois sim! Fico aqui em cima, indignada com ela, aquela raposa! E eu também. Devias tê-la deixado na flor de loto, que ela a esta hora estaria morta.
   - O que vale é que tu és muito melhor que a tua língua - disse o pai cegonha. - Conheço-te melhor do que tu mesma, querida.
   Deu um salto e bateu as asas três vezes, esticando altivamente o pescoço, e saiu voando, sem mover as asas distendidas. Quando ganhou certa distância deu mais alguns golpes de asa vigorosos, cabeça e pescoço airosamente esticados, enquanto a plumagem resplandecia ao sol. Que força e que rapidez naquele voo!
     - É ele ainda o mais belo de todos - disse a mãe cegonha - mas eu não lhe digo isso...
   Naquele outono o Viking voltou ceso, trazendo muito despojos e prisioneiros; entre esses havia um jovem padre cristão, um daqueles homens que perseguiam os deuses pagãos do norte.
  Ultimamente havia discussões frequentes, tanto no salão como no camarim das mulheres, a respeito da nova fé que se estava espalhando em todos os países do sul. Através do sagrado Ansgarius tinha-se alastrado até Hedeby, no Schlei. A pequena Helga tinha ouvido falar no "Cristo Branco" , que por amor dos homens se tinha dado a si mesmo, para salvá-los. Mas aquelas palavras lhe tinham entrado por um ouvido e saído pelo outro, como  se diz. O verdadeiro sentido da palavra " amor" só parecia penetrar no seu entendimento quando estava toda encolhida no corpo de uma rã, no seu quarto secreto; mas a mulher do Viking tinha ouvido a história, e sentira uma estranha comoção quando falaram do Filho do único Deus verdadeiro.
   Voltando de suas excursões contavam os homens que tinham visto custosos templos, construídos de pedra polida, dedicados Àquele que viera como uma mensagem de Amor. Um dia trouxeram dois vasos de ouro, primorosamente trabalhados a mão, e que exalavam um perfume especial. Eram os turíbulos que os sacerdotes cristãos sacudiam diante dos altares, em que jamais corria sangue.
   O jovem sacerdote foi encerrado nas profundas adegas de pedra da casa de madeira, e ligaram-lhe os pés e as mãos com cordas de fibra vegetal. Disse a mulher do Viking que ele era " tão belo como Baldur", e sentiu grande piedade dele; mas Helga propôs que fosse jarretado e amarrado à cauda de bois selvagens.
   - E eu soltarei nele os cães. Havia de ser um alegre espetáculo, e mais alegre ainda se eu acompanhasse a corrida!
   Não era essa, porém, a morte que o Viking lhe reservava; como negava  e perseguia os grande deuses, seria oferecido em holocausto de manhã, sobre a pedra da ara, na floresta. Pela primeira vez ia ser sacrificado ali um  homem. A jovem Helga pediu que a deixassem aspergir as efígies dos deuses e o povo com o seu sangue. Poliu bem a sua aguda faca, e quando um dos enormes e ferozes cães que abundavam por ali, se atirou a ela, enterrou-lhe a faca no flanco " para experimentar; mas a mulher do Viking olhou com profunda tristeza para aquela menina tão selvagem e má.
    Quando chegou a noite, a mãe disse-lhe ternas palavras de mágoa, brotadas da tristeza do seu coração. O feio sapo, com aquele corpo grosseiro, fixou nela os tristes olhos castanhos, escutando-a; e parecia compreender-lhe as palavras com o espírito de um ser humano.
   - Eu jamais disse a meu marido uma única palavra sobre o duplo pesar que me vem de ti- disse a mulher do Viking. - Meu coração está cheio de tristeza por tua causa - tal é o amor de mãe! Mas o amor é sentimento que nunca penetrou no teu coração: ele é como a argila fria. Como conseguiste entrar na minha casa?
   Então a disforme criatura estremeceu, como se aquelas palavras lhe tocassem alguma corda invisível entre o corpo e alma, e de seus olhos caíram grandes lágrimas.
   - Virão para ti dias terríveis, e para mim também! Melhor fora que , em pequenina, tivesses sido abandonada na estrada, e embalada pelo frio sono da morte!---
    E a mulher do Viking derramando lágrimas amargas, saiu, cheia de mágoa e de tristeza, passando sob a cortina de pele que pendia dos caibros, dividindo o salão ao meio.
    O sapo, todo encolhido, agachou-se em um canto, e reinou na sala um silêncio de morte. De vez em quando agitava o corpo do animal um suspiro meio abafado; parecia que alguma coisa lutava, angustiada, por surgir para a vida, no seu coração. Deu um passo e escutou, depois deu mais alguns passos e segurou a pesada tranca da porta com suas mãos desajeitadas. Puxou-a devagarinho para trás, e ergueu a aldrava sem ruído; depois pegou na lâmpada que estava na ante-sala. Parecia que um poder muito forte lhe dava forças. Ergueu o ferrolho da porta trancada da adega e entrou. O prisioneiro dormia; tocou-o com a mão fria e viscosa, e quando ele acordou e viu aquela criatura horrenda, estremeceu, como se visse uma aparição diabólica. Ela puxou a faca e cortou as cordas. Chamou-o, depois, com um aceno. Invocando o Santo Nome, fez ele o sinal da cruz, e como a forma não se alterou, repetiu as palavras do salmista: " Bem-aventurado é o que atende ao pobre e necessitado: o senhor o livrará no dia do mal". Depois perguntou-lhe:
   - Quem tu és, que tens a aparência de um animal, enquanto praticas voluntariamente ações de misericórdia?
   O sapo apenas fez-lhe um aceno e guiou-o, abrigado pelas cortinas, por uma longa passagem que ia dar ao estábulo; lá mostrou-lhe um cavalo, no qual o padre montou; acompanhou-o o sapo, que se colocou na frente, segurando-se às crinas do animal. Compreendeu o prisioneiro a sua intenção e seguiram apressadamente por um caminho que ele jamais poderia ter descoberto, em direção à charneca. Esqueceu a horrenda forma, porque sabia que a misericórdia do Senhor trabalhava através do espirito da escuridão. Orava e cantava hinos sacros que faziam a rã estremecer. Seria o poder da oração e dos seus cânticos que operava nela, ou era o ar fresco da madrugada que se aproximava? Quais seriam seus sentimentos?



    Ela se ergueu e quis deter o cavalo e saltar, mas o sacerdote cristão segurou-a firmemente, com toda a força de que dispunha, a cantou em voz alta um salmo, como se isso pudesse libertá-la do feitiço que a dominava.
   O cavalo deu um salto mais violento  do que todos os outros, o céu avermelhou-se, e os primeiros raios de sol surgiram entre as nuvens. No que os raios de luz a tocaram, deu-se a transformação. Era uma vez mais uma linda moça, mas seu espírito demoníaco continuava a ser o mesmo. O sacerdote, perplexo, viu, que tinha agora nos braços uma bela jovem. Deteve o cavalo e saltou ao chão, julgando que era vítima de um novo ardil do demônio. Mas a jovem Helga desmontou também. Seu  vestido curto apenas lhe chegava aos joelhos. Tirou do cinto a afiada faca e lançou-se sobre o homem espantado, gritando:
   - Espera! Espera que minha faca vai picar-te em pedacinhos, escravo sem barbas!
    Atirou-se a ele, e travaram luta; mas parecia que um poder invisível dava força ao cristão; segurou-a, e era como se o velho carvalho a cuja sombra combatiam quisesse ajudá-lo, porque ela tropeçou nas raízes soltas e salientes. Ali percorria um regato murmurante e ele a burrifou com água, ordenando ao espírito imundo que a deixasse, e fazendo sobre ela o sinal da cruz, conforme o uso cristão. Mas a água do batismo não tem poder, se o rio da fé não mana do interior. Ainda assim, alguma coisa mais do que a força do homem se opunha, por intermédio dele, ao mal que lutava dentro dela. Os braços caíram-lhe, e ela olhou pálida e assombrada, para aquele homem que parecia ser um mágico poderoso, adestrado nas artes secretas, que repetia runas sombrias e traçava no ar sinais cabalísticos. Helga não recuaria, nem que ele brandisse uma espada chamejante, ou uma acha aguçada diante dela. Mas tremeu quando ele lhe traçou o sinal da cruz sobre a fronte e o peito, e sentou-se diante dele, de cabeça baixa, como uma ave selvagem enfim domada.
   E o sacerdote falou-lhe então com delicadeza do ato de amor que ela praticara por ele naquela noite, entrando na sua cela, sob a forma de um horrendo sapo, cortando as cordas que o prendiam e levando-o para a luz e para a vida. Ela também estava amarrada, e com liames mais forte do que os dele; mas por seu intermédio, podia alcançar a luz e a vida eterna, Ia levá-la para Hedeby, para o sagrado Ansgarius, e lá naquela cidade cristã o feitiço seria anulado; porém agora não iria sentada à sua frente, no cavalo, nem que o acompanhasse de livre vontade: não ousava mais carregá-la assim.
    - Deves ir sentada atrás de mim; tua beleza mágica tem um poder , outorgado pelo demônio, que eu temo. Mas mesmo assim, hei de obter a vitória, por Cristo!
    Ajoelhou-se e orou humildemente, com todo o fervor. Era agora como se o bosque tranquilo se tivesse transformado em um templo divino, consagrado por aquela coração. Os passarinhos começaram a cantar, como se pertencessem a um coro sacro, e fragrância das flores silvestres era como o perfume ambrosíaco do incenso, enquanto o jovem padre recitava as palavras da Santa Escritura.
    " A alvorada do alto visitou-nos; para dar luz aos que estão nas trevas e na sombra da morte. Para guiar os seus pés no caminho da paz".
   Falou do anseio de toda a natureza pela redenção: e enquanto falava, o cavalo que os levava esteve ao pé deles, roçando-se nas moitas de amoreiras, cujos frutos suculentos e maduros fazia cair nas mãozinhas de Helga, como se quisesse convidá-la a se desalterar. A jovem deixou, pacientemente , que ele a erguesse e depusesse no dorso do animal, e sentou-se ali como uma criatura meio inconsciente, indiferente a tudo e sem vontade própria.
    O cristão, com duas estacas, fez uma cruz que levou na mão erguida, enquanto iam pela floresta. O matagal ia ficando cada vez mais denso, e acabou num emaranhado inextricável de arbustos. Moitas de abrunheiros silvestres obstruíam o caminho, e tinham de controlá-las. Os arroios sussurrantes transformavam-se em lagoas estagnadas, que era preciso também rodear.
   Mas hauriam forças e encontravam alívio na brisa pura da floresta - e também novo poder lhes vinha das palavras suaves de amor e de fé que o jovem sacerdote dizia no seu fervente desejo de levar aquela pobre criatura desgarrada ao caminho da luz e do amor.
   Dizem que as ondas do mar podem arredondar e polir os rochedos mais escabrosos; assim foi que o orvalho da misericórdia, caindo sobre a menina, abrandou tudo o que nela era duro e a alisou todas as asperezas. Não quero dizer que tal efeito se observou imediatamente: ela própria teve tanta consciência do que se passava em si, como a semente enterrada no solo tem da ação das chuvas refrigerantes e do calor do sol sobre a sua florescência e frutificação.
   Quando o canto da mãe cai no coração do filhinho, este vai gaguejando as palavras após ela, sem as compreender; mas mais tarde elas se cristalizam em pensamentos, e com o tempo se tornam claras para ele. Foi assim também que a "Palavra" operou no coração de Helga.
    Afinal saíram da mata, entrando em uma charneca, depois tornaram a atravessar uma floresta densa. Ao entardecer encontraram um bando de ladrões. Era um grupo numeroso; fizeram parar o cavalo e deitara ao chão os viajantes, gritando para o padre:
   - Onde roubaste esta linda rapariga?
   O sacerdote não tinha outra arma senão a faca que tomara à jovem, e vibrou-a para a direita e para a esquerda. Um dos ladrões ergueu a acha sobre a sua cabeça, mas ele conseguiu saltar para um lado; não fora isso teria sido atingido. O golpe foi apanhar o pescoço do cavalo, que caiu morto, esguichando sangue. Então Helga pareceu despertar de um longo e profundo desmaio; atirou-se para o animal agonizante. O padre pôs-se na frente dela, como um escudo: mas um dos ladrões vibrou-lhe tamanha pancada na cabeça com o seu cajado de ferro, que ele caiu morto, e sangue e cérebro espalharam-se para todos os lados.
   Os ladrões seguraram  a jovem pelos braços, mas o sol naquele instante ia entrando, e quando os últimos raios se sumiram ela estava transformada em rã. Uma boca esverdeada atravessa-lhe o meio do rosto ; os braços foram ficando fininhos e viscosos, e as mãos enormes, de dedos membranosos, abriam-se como leques.
   Abandonaram-na os ladrões, aterrorizados, e ela ali ficou, como um horrendo monstro. E, obedecendo á sua natureza de rã, começou apular, dando saltos enormes, e desapareceu nas moitas densas. Então perceberam os ladrões que aquilo devia ser o mau espirito do Loki, ou alguma outra feitiçaria, e fugiram a toda a pressa, muito assustados.
   Surgira já a lua cheia, que brilhava com todo o esplendor, quando ela saiu da moita. Parou junto ao corpo do padre cristão e do cavalo morto; seus olhos pareciam banhados de lágrima, ao olhar para eles, e o sapo soltou um suspiro, como fazem as crianças quando rompem a chorar. Lançou-se sobre os cadáveres, um depois do outro; trouxe água na mão que, larga e membranosa como era, tinha a forma de uma taça. Borrifou-os; mas ...estava mortos, e mortos tinham de permanecer! Bem o compreendeu ela. Não tardaria que animais selvagens viessem para devorá-los; mas não, isso não era possível! E ela cavou, cavou o chão até onde pode: queria cavar uma sepultura para eles. De nada dispunha, senão das mãos e de um galho de árvore, e lacerou a membrana que lhe ligava os dedos, até escorrer sangue. Viu logo que era tarefa superior à suas forças e foi buscar mais água para lavar o rosto do homem, cobrindo-o com folhas verdes fresquinhas. Trouxe depois galhos de árvores para cobri-lo, e espalhou entre os ramos folhas secas. Foi buscar então as pedras mais pesadas que pode carregar, depondo sobre o corpo, e encheu os espaços como musgo. Achou então que a muralha estava  bastante forte, mas o difícil trabalho ocupara a noite inteira; erguia-se já o sol, e lá estava a pequena Helga em todo o esplendor da beleza, com as mãos a escorrer sangue, e, pela primeira vez, as faces rosadas banhada de lágrimas.
   Naquela transformação parecia que sua duas naturezas travavam luta. Ela estremeceu e olhou em roda, como se acabasse de despertar de um sonho agitado. Apoiou-se no tronco de uma faia nova, e afinal subiu como um gato pelo tronco, sentando-se firmemente nos mais altos galhos. E lá permaneceu sentada o dia inteiro, como um esquilo assustadiço, na solidão do mato onde tudo é tranquilo e morto, segundo dizem.
   Morto...lá voava um casal de borboletas, girando em roda e perseguindo-se; e perto havia alguns formigueiros, em cada um dos quais centenas de criaturinhas andavam de um lado para outro. No ar dançavam mosquitos sem conta, e enxames e enxames de moscas, joaninhas, libelinhas de asas de ouro, e outras criaturinhas aladas. Do chão úmido saíam minhocas e toupeiras...mas tudo o mais era tranquilo e morto no mato. Mas quando alguém diz isto, não sabe o que diz. Ninguém notou a presença de Helga senão um bando de gralhas que voavam parando ao redor da árvore onde ela estava, com ar atrevido e interrogativo, mas um olhar da menina bastou para afugentá-las. Não podiam compreendê-la, como ela mesma não se entendia mais a si mesma.
   Ao entardecer, quando o sol começou a desaparecer no poente, a proximidade da transformação deu-lhe forças para continuar o trabalho. Desceu devagarinho da árvore, e quando se sumiu o último raio de sol, lá estava ela outra vez pequenina e transformada em rã, com as mãos dilaceradas. Mas agora brilhavam-lhe os olhos com uma beleza nova, que não possuía quando ela se via cheia de altivez com a sua beleza. Eram os mais suaves e mais ternos olhos de donzela que resplandeciam agora na face da rã. Eram o testemunho vivo da existência de um profundo sentimento e de um coração humano; e os lindos olhos estavam úmidos de lágrimas, e deixavam cair gotas preciosas que lha aliviavam o coração.
   A cruz, último trabalho daquele que agora ali estava morto e frio, ainda jazia ao pé do túmulo. Inconscientemente, ergue-a e colocou-a entre as pedras que cobriam o homem e o cavalo. Àquela triste recordação brotaram-lhe de novo as lágrima. Cheia de saudade, ela traçou o mesmo sinal na terra, sobre a sepultura - e quando formava com ambas as mãos o sinal da cruz, a pele membranosa lhe caiu dos dedos, como uma luva que se rompe. Foi lavar as mãos no arroio e ficou admirada de sua delicada brancura. Fez outra vez o sinal sagrado no ar, entre ela e o homem morto; seus lábios começaram a tremer, a língua moveu-se-lhe , e o nome que na sua cavalgada pela floresta ouvira tantas vezes subiu-lhe aos lábios - e ela pronunciou as palavra " Jesus cristo".
    Caiu-lhe então do corpo a pele de rã; ela era a linda mocinha, mas a cabeça inclinou-se-lhe pesadamente e seus membros exigiram repouso. E adormeceu. Curto foi o sono; despertou à meia-noite; diante dela estava o cavalo morto, cabriolando, agora cheio de vida: vida que lhe irradiava dos olhos e do pescoço ferido. Ao pé dele apareceu o padre cristão assassinado" mais belo do que Baldur", como bem poderia dizer a mulher do Viking, e todo cercado de chamas de fogo.
   Transparecia ansiedade nos seus grandes e humildes olhos, e um julgamento reto no olhar penetrante, que perscrutava os mais remotos recessos do coração. Helga estremeceu, e sentiu despertar dentro do seu ser todas as memórias, como se tivesse chegado o dia do juízo final. E a cada prova de bondade que recebera, cada palavra de carinho que ouvira, apareciam-lhe agora nítidas e vivas no espírito. Compreendeu então que tinha sido o amor que a sustentara naqueles dias de provas, pelos quais todas as criaturas formadas de pó e de argila, corpo e alma, tem de passar, e lutar e combater. Compreendeu que apenas tinha ido para o lugar para onde fora chamada e que nada fizera por si mesma: tudo lhe fora dado. Curvava-se agora, cheia de humildade, cheia de vergonha, diante daquele que podia ler todos os impulsos do seu coração; e naquele momento sentiu a chama purificadora do espírito Santo que lhe penetrava na alma.
   - E tu, filha da terra - disse o mártir cristão- da terra brotaste e da terra nascerás outra vez! Dentro de ti a luz do sol tornará conscientemente à sua origem; não os raios do sol, que vemos, mas os de Deus! Alma alguma será perdida; as coisa temporais só nos trazem fadiga e desgosto, mas a eternidade vivifica. Venho da terra da morte; tu também viajarás um dia pelos vales profundo, para chegar à montanha radiante em cujo vértice moram a graça e a perfeição. Não posso levar-te a Hedeby, para o batismo cristão; antes disso terás de romper o escudo líquido, e trazer das profundezas do pantanal, viva, aquela que te deu a vida; terá de cumprir a tua tarefa antes de receberes a consagração!
    Ergueu-se então, colocando-a sobre o cavalo e deu-lhe um turíbulo como os que ela tinha visto no salão do Viking. Evolou-se do incensório um perfume intenso, e a ferida aberta na fronte do mártir brilhou como um diadema radiante. Ele tirou a cruz do túmulo, levando-a alçada, enquanto cavalgavam pelo espaço em rápida carreira, através dos bosques sussurrantes e por sobre as alturas onde os valentes guerreiro de outrora estava enterrados, montando seus cavalos de guerra, também mortos.
   Os guerreiros fortes ergueram-se e cavalgaram para o vértice dos montes; os largos círculo de ouro que lhes circundavam a cabeça brilhavam ao luar, e suas roupagens flutuavam ao vento. O grande dragão que amontoa tesouros ergueu a cabeça para vê-los, e hostes inteiras de anões espiavam de seus montículos, onde enxameavam luzes vermelhas, verdes e azuis, como centelhas que surgem das cinzas de papel queimado.
   E lá se iam eles, por sobre matas e charnecas, rios e lagoas, para o norte, para o Brejo Bruto; e lá chegados pairaram no ar, formando grandes círculos. O mártir ergueu bem alto a cruz, que brilhava como ouro, e seus lábios começaram a cantar a santa missa. Helga cantou com ele, como uma criança acompanha o cântico de sua mãe. Ela ergueu o turíbulo, de onde se evolava um perfume de altar tão intenso e tão extraordinário que os juncos e caniços rebentaram em flores, e das profundezas do brejo brotaram talos e mais talos, em números infinito. Tudo o que tinha vida dentro do paul alçou-se para o ar e floresceu. Os lotos espalharam-se pela superfície da lagoa, como um tapete de flores bordadas, e sobre o tapete jazia uma mulher adormecida. Era moça e linda: Helga julgou ver-se ; pensou que sua imagem se espelhara na lagoa tranquila. Era sua mãe, a mulher do rei do Brejo, a princesa do rio Nilo.
   O padre martirizado ordenou que a mulher adormecida fosse posta sobre o dorso do cavalo, mas o animal mergulhou ao peso do fardo, como se não tivesse mais substância do que uma mortalha flutuando ao vento. O sinal da cruz deu, porém, força ao fantasma, e os três cavalgaram pelo ar, para a terra seca. Nesse momento o galo cantou no saguão do Viking, e a visão diluiu-se no nevoeiro que o vento impelia para longe - mas a mãe e filha ficaram juntas.
    - Sou em mesma, que vejo refletida na água profunda? - perguntou a mãe.
   E a filha dizia:
   - Estarei vendo o meu retrato, no espelho de um escudo brilhante?
     Mas quando se aproximaram uma da outra, e se abraçaram, coração contra coração e o da mãe pulsou mais depressa, ela compreendeu.
  - Minha filha! A flor do meu coração! Meu loto das páguas profundas!
   E ela chorou. E suas lágrimas, caindo sobre a filha, foram para este um novo batismo de amor e de vida.--
   - Eu vim aqui coberta com uma plumagem de cisne - disse a mãe- e neste lugar a despi. Mergulhei no pântano, que se fechou por cima de mim. Uma força me arrastava para o fundo. Senti a mão do sono me apertar as pálpebras. Adormeci, e sonhei...parecia-me que estava outra vez na imensa Pirâmide do Egito; mas diante de mim estava ainda o tronco movediço de salgueiro que me assustara na superfície do banhado. Olhei para as fendas da casca, que eram de cores vivas e brilhantes, e elas foram se transformando em hieróglifos; eram bandas que envolviam a múmia, que eu via. As cobertas despedaçaram-se, e delas surgiu, caminhando, o rei múmia de mil anos, negro como breu, negro como caracol lustroso do mato, ou como o barro peganhento do tremendal. Se era o Rei Múmia ou o Rei do Brejo, não o sabia eu. Segurou-me nos braços e senti do que ia morrer. Quando tornei à vida senti sobre o peito alguma coisa que tinha calor; um passarinho agitava as asas e pipilava.Voou do meu peito, subiu para aquele dossel escuro e pesado, mas ainda ficava presa a mim um longa fita verde; e eu ouvi o seu canto e compreendi-lhe as notas: "Liberdade! Sol! Para o Pai!" Lembrei-me então de meu pai, lá na terra cheia de sol, do meu lar, da minha vida, do meu amor! E soltei a fita e deixei-me flutuar e voar...para casa, para meu pai. Desde essa hora nunca tornei a sonhar. Creio que dormi um sono longo e pesado até agora, até o instante em que aquela música suave e um delicado perfume me despertaram e me restituíram a liberdade.
   Onde iria a fita verde que prendia o coração da mãe às asas do passarinho? Só a cegonha o vira. A fita era a haste verde, o ramo a flor brilhante que embalara o nenezinho, agora desabrochada em plena beleza, e mais uma vez descansando no seio materno. E enquanto elas ali estava, coração contra coração, girava a cegonha acima delas em grandes círculo: afinal voou para o seu ninho e trouxe as plumagens de cisne que há tanto tempo guardava com carinho. Atirou uma sobre cada uma delas; as penas se cerraram, e mãe e filha ergueram-se no ar como dois alvos cisnes.
   - Agora vamos conversa -disse o pai cegonha - porque compreendemos mutuamente nossa linguagem, ainda que cada um de nós tenha o bico diferente, conforme a espécie. Foi a coisa mais feliz deste mundo que tivessem aparecido hoje. Amanhã temos de partir, eu, a mãe e os filhotes. Vamos voar para o sul. Sim, porém bem olhar para mim! Sou um velho amigo do Nilo, e a minha mulher também; ela não tem o coração tão aguçado como o bico, não! Disse sempre que a princesa havia de cuidar de si mesma. Eu e os pequerruchos trouxemos para cá as duas plumagens. Que alegre estou, e que sorte estar ainda aqui! Assim que amanhecer vamos partir - um grande bando de cegonhas; assim não poderão extraviar-se , e nós as vigiaremos durante a viagem.
    - E a flor do loto, que eu devia levar - disse a princesa egípcia - voa a meu lado vestida de cisne. Levo comigo a flor do meu coração, e assim está decifrado o enigma. agora- para casa! Para casa!...
   Mas Helga disse que não podia deixar a terra da Dinamarca sem ver ainda uma vez sua dedicada mãe adotiva, a mulher do Viking. Porque na memória da menina, surgiam agora todas as palavras ternas e todas as lágrimas que a mãe adotiva derramara por ela, e até parceia que por isso mesmo amava mais ainda sua mãe.
    - Sim, devemos ir ao saguão do Viking- disse o pai cegonha - é lá que nos esperam a mãe e os pequerruchos. Como vão arregalar os olhos, e bater as asas! Minha velha não fala quase ; é um tanto seca e brusca, mas reflete muito. Vou fazer um grande barulho, para avisá-los de nossa chegada.
   E ele abria e fechava o bico; e , com os dois cisnes, voou para o saguão do Viling.
   Lá dentro todos dormiam profundamente; a mulher do Viking só se acomodava para repousar já alta noite, porque estava muito aflita com o desaparecimento de Helga, que sumira há três dias. Desaparecera com o padre cristão, e parecia que ajudara na fuga, porque era o seu cavalo que faltava na estrebaria. Que poder a levara a assim proceder? A mulher do Viking pensava em todos os milagres que diziam ter feito o " Cristo Branco", e também aqueles que acreditavam nele e o seguiam. Todos esses pensamento tomavam forma em seus sonhos, e aprecia-lhe que estava ainda acordada, sentada, pensativa, na beira da cama, na escuridão do quarto.
   Desabou uma tempestade: ouvia agora o marulho dos vagalhões do Mar do Norte, que vinham de leste e de oeste, e das águas do Cattegat. A serpente monstruosa que, segundo a sua fé, cingia a terra nas profundezas do oceano, tremia em convulsões e medo de "Ragnarok", a noite dos deuses. Personificava o dia de Juízo, em que tudo se consumirá, até os próprios deuses poderosos. Soou a trompa de Gialler, e os deuses se foram montados no arco-íris vestidos de aço para a última batalha; diante deles voavam as Valquírias, donzelas armadas de escudos, e fechavam a marcha os fantasmas dos guerreiros defuntos. Toda a atmosfera resplandecia, sob a radiante luz do norte, mas por fim a escuridão venceu. Era uma hora terrível, e em seu sonho a pequena Helga estava ao seu lado, toda encolhidinha no chão, na figura horrenda de sapo. Tremia e chegava-se cada vez mais para a mãe adotiva, que a depôs nos joelhos, e, porque muito a amava, apertou-a ao peito, apesar da horrível pele de sapo.
   E o ar retinia com o fragor de espadas e de paus ferrados, e zunia com o silvo das flechas como se estivesse caindo uma medonha saraivada de granizos. Chegara a hora em que céu e terra deviam acabar, as estrelas tinham de cair, e tudo devia sucumbir ao fogo de Surtur - e contudo uma nova terra e um novo céu haviam de surgir, e campos de trigo haviam de ondular aonde agora ao mares rolavam sobre a areia dourada.
    O Deus que ninguém podia nomear havia de reinar, e para Ele ascenderia Baldur, o humilde, o amante, redimido do reino da morte...lá vinha ele...a mulher do Viking via-o nitidamente ela lhe conhecia o rosto...era o padre cristão, o prisioneiro do marido. E ela gritou, em altas vozes:
    - O " Cristo Branco"!
    E quando clamava este nome depunha um beijo na fronte do asqueroso sapo. A pele da rã caiu e diante dela estava a pequena Helga, em todo o esplendor da beleza, gentil como jamais se tinha mostrado, e com um fulgor novo nos olhos. Beijou as mãos da mãe adotiva e abençoou-a por todo o cuidado e amor que lhe dispensara nos dias de sua provocação e miséria. Agradeceu-lhe os pensamentos que incutira nela, e por ter proferido o nome que ela agora repetia: " O Cristo Branco"!
   E a pequena Helga ergueu-se nos ares como um grande cisne branco e distendeu-se as asas, ao mesmo tampo que se ouvia o rumor violento de um bando de aves de arribação que voavam.
    O estrondo das asas lá fora despertou a mulher do Viking; sabia que era o tempo das cegonhas voarem, e compreendeu que era esse o rumor de asas que ouvia. Queria ver mais uma vez as cegonhas empreenderam a viagem para lhes dizer adeus; levantou-se e foi até o balcão. Viu as cegonhas pousarem uma por uma, nos tetos das construções que cercavam o pátio, e bandos delas que voavam em grandes círculo. Justamente em frente dela, na beirada do poço onde a pequena Helga tantas vezes lhe causaram sustos com a sua selvajeria, pousavam dois cisnes alvíssimos, que olhavam para ela com olhos inteligentes. Lembrou-se então do seu sonho, que ainda lhe parecia realmente vivido. Lembrou-se da pequena Helga na figura de cisne. Lembrou-se do padre cristão, e uma grande e súbita alegria lhe brotou na alma. Os cisnes batiam as asas e inclinavam a cabeça, como se a estivessem cumprimentando, e a mulher do Viking estendeu os braços para eles, como se compreendesse tudo, e sorria-lhes, com os olhos inundados de lágrimas.
   - Nós não vamos esperar os cisnes - disse a mãe cegonha - se eles querem viajar conosco, que venham duma vez. Não podemos ficar aqui a perder tempo até que as tarambolas nos passem! É muito bonito viajar como nós, toda a família reunida; não é como as tarambolas e os pavoncinos, que voam separados das fêmeas. Isso é feio! E por que estão aqueles cisnes a bater as asas daquele jeito?
   - Ora essa! Cada um voa conforme a sua espécie - disse o pai cegonha. - Os cisnes voam em linha oblíqua, os grous em forma de triângulo, e as tarambolas em uma linha curva, como uma cobra.
   - Não fales em cobra enquanto estamos voando por aqui- disse a mãe. - Isso desperta nos pequenos desejos que não podem se satisfeitos.
   Enquanto voavam, Helga, vestida de cisne, perguntava à mãe:
  - Que é aquilo? São as altas montanhas, de que tenho ouvido falar?
  - Aquilo são nuvens tempestuosas, que o vento impele abaixo de nós.
  - E aquilo lá longe, aquelas nuvens brancas tão altas? - indagou de novo a filha.
  - Aquilo são altas montanhas cobertas de neve perpétua - disse a mãe, quando atravessavam os Alpes, em direção ao Mediterrâneo azulado.
   - Terra da África! Praia do Egito! - cantava a filha do Nilo, no auge da alegria, quando lá do alto do espaço na sua alva plumagem, avistou a delgada linha amarela e sinuosa, que era o seu berço. As outras aves também a avistaram, e apressaram o voo.
   - Já sinto o cheiro de lobo e das rãs do Nilo - disse a mãe cegonha. - Estou toda excitada! Agora sim, vocês vão ter coisas excelentes para comer; e coisas para ver, também. Aqui é que vivem o marabu, o ibis e o grou. Pertencem todos eles à nossa família, mas nenhum nos iguala em beleza; são muito cheios de si, apesar disso, especialmente o ibis - os egípcios lhe dão tanta importância...Fazem até múmias deles, recheando-as com especiarias. Pois eu antes queria ser estufada de rãs vivas, e tu também! E serás mesmo! É melhor ter alguma coisa no papo enquanto a gente está viva do que todo aquele barulho depois que morremos...Este é o meu parecer, e sei que estou com a razão!
   - As cegonhas já voltaram!
    Isto se dizia na grande casa do Nilo, cujo senhor jazia ainda no grande salão, deitado sobre almofadas de penas e coberto com uma pele de leopardo. Mal se podia dizer que estava vivo, e contudo não morrera ainda, sempre à espera da flor de loto do profundo paul do norte.
   Servos e parentes rodeavam-lhe o leito, quando viram dois grandes cisnes brancos, que tinham chegado com as cegonhas, entraram voando no saguão. Despiram sua plumagem deslumbrante de alvura, e dela saíram duas lindas mulheres, tão semelhantes uma à outra como duas gotas de sereno. Curvaram-se sobre o ancião, pálido e fanado, afastando do rosto seus longos cabelos.
  Quando Helga se inclinou sobre o avô, voltou a cor às faces do velho, que parecia sentir nova vida nos membros. Levantou-se, pois tinha agora a saúde e a energia restaurada. Filha e neta abraçaram-no como se tivessem vindo trazer-lhe a alegre saudação da manhã, após uma noite longa e perturbada.
  E a alegria reinou então na casa - e também no ninho da cegonha; mas neste o regozijo maior era um razão da abundância de alimento, principalmente minhocas e rãs.
  E enquanto os sábios rabiscavam a história das duas princesas e da flor da saúde, que viera trazer tão grande alegria e bençãos à terra, o casal de cegonhas narrava a mesma história - lá à sua maneira- à família. Isto, porém, foi somente depois que todos tinham satisfeito seu apetite, senão...teriam coisa melhor a fazer do que ouvir histórias.
  - Com certeza agora hão de fazer alguma coisa de ti, afinal - murmurava a mãe cegonha. - É de toda a justiça.
  - Mas que é que podem fazer de mim? - dizia o pai. - E que fiz eu? Nada, nada!
  - Fizeste mais do que todos eles! Não fosses tu e os meninos, jamais as princesa teriam tornado a ver o Egito, nem o velho teria recobrado a saúde. Tu serás alguma coisa! Eles te darão afinal o grau de doutor, e nossos filhos já nascerão com o título, e os filhotes deles também. Pois tu já pareces um doutor egípcio mesmo...ao menos para mim é isso que digo.
    Então reuniram-se os homens ilustrados e os sábios, para estabelecer o princípio nuclear, como declararam eles, que se oculta na raiz do assunto:" É o amor que sustenta a vida". Vieram então as explicações: " A princesa era o raio de sol; ela desceu até onde vivia o Rei do Brejo, e da sua união resultou a flor".
   - Não posso repetir exatamente as palavras deles- disse o pai cegonha, que escutara do teto, e agora queria contar tudo no ninho. - Tudo o que disseram era tão complicado e tão erudito, que não só eles obtiveram honras, mas todos os presentes também: até o cozinheiro mereceu uma distinção - provavelmente por causa da sopa!
    - E ti, que foi que deram? - perguntou a mãe cegonha. - Não deviam esquecer a pessoa mais importante, que és tu. os sábios só o que fizeram foi tagarelar em tudo isso. Mas a tua vez há de chegar, certamente!
   Por noite alta, quando já toda a gente da casa dormia, tranquila e feliz, havia ainda uma pessoa acordada. Não era o pai cegonha, posto que ele se conservasse de pé no seu ninho, descansando  em uma só perna, como uma sentinela vigilante no seu posto. Não: era Helga. Debruçada no balcão, na noite clara, olhava para as estrelas rutilantes, maiores e mais puras naquele fulgor do que ela jamais as vira no norte; e ainda assim, era as mesmas estrelas. Pensava na mulher do Viking, lá perto do Brejo Bruto; pensava nos olhos tão meigos da mãe adotiva, nas lágrimas que ela derramara sobre a pobre menina-rã, que agora ali estava, gozando o fúlgido brilho das estrelas e o delicioso ar da primavera, junto às águas do Nilo. Pensava no amor que ela dispensara a uma criatura miserável, que sob a forma humana era um animal feroz, e no corpo de um animal era odiosa à vista e ao tato. Olhava para a estrelas cintilantes e lembra-se da luz ofuscante que brilhava na fronte do padre martirizado, quando voava sobre charcos e florestas. Recordava-se dos tons de sua voz, das palavras que dissera enquanto ela se sentia abatida e humilhada- palavras que falavam na fonte sublime de amor, o mais elevado amor, que abrangia todas as gerações da humanidade. Que haveria que não fosse ganho e conseguido por semelhante amor?
     Noite e dia vivia Helga absorta no pensamento da sua felicidade; perdia-se completamente naquela contemplação, como uma criança que volta as costas, apressada, ao doador, para examinar os lindo presentes. Feliz era, na verdade, e aquela felicidade parecia ir sempre aumentando; podia ainda aumentar; havia de aumentar. E tanto se emaranhou nesses pensamentos, que chegou a não pensar mais no Doador.
   E assim foi na insensatez da juventude que ela pecou. Luzia nos seus olhos o orgulho, mas subitamente sentiu-se despertar daquele sonho vão. Ouviu um grande alarido lá embaixo, no pátio, e olhando para lá viu círculos. Nunca vira aquelas aves enormes, pesadas e rústicas, cujas asas pareciam ter sido aparadas; estavam muito fatigadas,e ela perguntou o que lhes suceder. Pela primeira vez ouviu então a lenda que os egípcios contam sobre a avestruz.
  Contam eles que dantes a avestruz pertencia a uma raça bela e gloriosa de aves, que possuíam asas grandes e vigorosa. Um dia, ao escurecer, as grandes aves da floresta disseram-lhe:
   - Irmã, vamos amanhã, se Deus quiser, descer ao rio para beber ?
   E a avestruz respondeu:
   - Eu quero ir!
   Ao raiar do dia saíram voando, alçando primeiro o voo bem alto para o sol, o olho de Deus. A avestruz voava cada vez mais alto e mais alto, muito acima das outras aves, no seu voo orgulhoso para a luz. Confiava nas próprias forças, e não nas que lhe vêm do Doador; ela não dissera "Se Deus quiser!"
    Mas o anjo vingador afastou o véu do oceano flamejante de luz, e num instante pegou fogo nas asas da orgulhosa ave, que caiu por terra em mísero estado.
   Desde esse dia a avestruz e a sua raça nunca mais puderam erguer-se no ar; quando se vê acuada, no cúmulo do terror, ela mal pode alçar-se em um voo rasteiro, beirando a terra, em círculos que vão diminuindo de diâmetro. Isto é uma advertência para a humanidade: lembra-nos que em todas as nossas ações e pensamento devemos dizer sempre: "Se Deus quiser!"
   Séria e pensativa, Helga curvou a cabeça e olhou para a avestruz perseguida e notou-lhe o temor e também o mesquinho orgulho ao ver a grande sombra que projetava na parede branca, que o luar iluminava. E seus e pensamentos iam se tornando mais graves e mais inquietos. Já lhe fora outorgada uma vida tão rica de alegrias; que mais viria depois? O melhor de tudo, talvez - "se Deus quisesse"!
   No começo da primavera, quando as cegonhas já estavam se preparando para a emigração, a pequena Helga tirou a sua pulseira de ouro, riscou nela o seu nome, chamou o pai cegonha e fechou-a no seu pescoço. Disse-lhe que a levasse à mulher do Viking, para que ela visse que a filha adotiva vivia, era feliz, e não a esquecera.
   - Isto é muito custoso para carregar! - pensou o pai cegonha, quando sentiu aquele peso no peito- mas a gente não deve desprezar nem o ouro nem as honras! Dizem por aí que a cegonha traz felicidade ...
   - É, tu produzes ouro, e eu ovos - disse a mãe cegonha - mas tu dás ouro uma única vez, e eu ponho ovos todos os anos. E mesmo assim, ninguém nos dá valor; isto é na verdade muito triste!
   - Ora, minha velha, lembra-te de que a gente tem a consciência do próprio valor, e não te mortifiques.
    - Pois sim! Mas não podemos carregar por fora; isso também não nos traz bom vento, nem fartura de nutrição!
   E lançaram-se no espaço.
  O pequeno rouxinol, que cantava na moita de tamarindos, ia também para o norte; Helga ouvira o seu canto muitas vezes no Brejo Bruto e resolveu mandar também uma mensagem por ele. Conhecia a linguagem das aves, porque tinha vestido uma plumagem de cisne, e não a esquecera, porque conversava com as cegonhas e com as andorinhas. Compreendeu-a muito bem o rouxinol, e ela pediu-lhe que voasse até o bosque de faias, na Jutlândia, onde ela tinha feito a sepultura de pedras e galhos; pediu-lhe que dissesse aos outros passarinhos que cuidassem do túmulo e cantassem por ali. O rouxinol voou.
   Com ele voou também o tempo. No outono, uma águia empoleirada em uma das pirâmides, avistou uma magnifica caravana que se aproximava. Os camelos vinham muito carregados, e os homens em armadura, montando altivos cavalos árabe, brancos como prata, de narinas palpitantes e crinas flutuantes que caíam até o chão. Era um príncipe real da Arábia, belo como o mais belo dos príncipes, que chegava à majestosa mansão onde agora o ninho da cegonha estava vazio. Seus habitantes ainda permaneciam na morada setentrional; mas não tardariam a voltar - não, justamente no dia em que as festas eram mais solenes eles chegaram. Era um noivado que se festejava, e Helga era a noiva, toda vestida de seda e coberta de ricas jóias. O noivo era o jovem príncipe árabe e sentaram-se ambos à cabeceira da mesa, entre a mãe e o avô.
   Mas Helga não olhava par ao belo rosto do noivo, nem fitava os olhos altivos, que se fixaram nela. Olhava para uma estrela brilhante, que fulgurava no céu. Naquele momento ouviu-se o ar retinir com o bater de grandes asas: eram as cegonhas que voltavam. E o velho casal, mesmo cansado como estava, necessitado de repouso, baixou o voo e foi pousar na grade da varanda.
   Não sabiam da grande festa. Tinham ouvido dizer na fronteira do país que Helga os tinha pintado na parede, porque pertenciam à história da sua vida.

   - Isso é muito bonito da parte dela - disse o pai cegonha.
   - Pois eu acho que é muito pouco - disse a mãe  - também, se nem isso fizessem...
    Ao avistá-los ali, ergue-se Helga da mesa e saiu para a varanda, para lhes acariciar as asas. O casal de cegonhas velhas curvou a cabeça, e as mais novas, vendo aquilo, sentiram-se lisonjeadas com aquela grande honra. Helga ergueu os olhos para a estrela, que parecia ainda maior e mais pura; entre ela e a estrela flutuava uma forma mais pura ainda que o próprio ar, visível entretanto só para ela. A forma aproximava-se, e ela viu que era o padre martirizado, que também chegara para a sua grande festa - viera mesmo do reino celestial.
 - A glória e a bem-aventurança de lá são mais radiosos do que todos estes esplendores terrestres - disse ele.
   A pequena Helga pediu, em oração mais humilde e mais ardente do que nunca, que por um único instante lhe fosse dado contemplar o reino do Céu. Sentiu-se então erguida acima da terra; parecia que era levada em uma suave corrente de música e doces pensamentos. Era uma música extraterrena, que não somente a cercava, mas estava também dentro do seu ser. E não há palavra humana que possa exprimi-la.
   - Agora devemos voltar -disse o mártir - senão darão falta de ti.
   - Só mais um olhar! - suplicou ela - um momento, um instante só!
   - Devemos tornar à terra; os convidados já estão se despedindo.
  - Um só olhar mais - o último!
   Helga viu-se de novo na varanda mas todas as tochas lá fora estavam extintas e as luzes do salão do banquete também se tinham apagado. As cegonhas haviam ido embora. Não estava li mais nenhum convidado; nem o noivo. Tudo se desvanecera naqueles três minutos tão curtos.
   Sentiu então Helga um grande temor; atravessou o grande salão vazio e entrou na sala próxima, onde dormiam guerreiros estranhos. Abriu uma porta, que dava para o seu quarto, mas achou-se em um jardim que nunca tinha visto. No céu surgiam clarões vermelhos; era a madrugada que vinha. Somente três minutos no céu e uma noite inteira escoara na terra.
    Avistou então as cegonhas; chamou-as na linguagem delas. O pai cegonha voltou a cabeça, escutou e acercou-se dela.
   -Tu falas a nossa língua- disse ele. - Que queres?  Por que vieste aqui, mulher estrangeira?
   - Mas eu sou Helga. Não me conheces? Nós estivemos conversando na varanda, há poucos minutos.
  - É engano teu - disse a cegonha. - Sem dúvida sonhaste.
   - Não, não! Não foi sonho.
   E ela falou-lhe da fortaleza do Viking, do Brejo Bruto, e da viagem que tinham feito juntos.
   O pai cegonha piscou os olhos e disse:
   - Ah! Mas isso é uma história muito velha! Creio que esse caso aconteceu no tempo da bisavó da bisavó da minha avó. Sim: é verdade que houve no Egito uma princesa que veio da Dinamarca, mas essa princesa desapareceu na noite do casamento. Isso foi há muitas centenas de anos. podes ler essa história ali, no monumento do jardim. Lá estão esculpidos cisnes e cegonhas, e tu estás bem alto, toda de mármore branco.
   E assim era: Helga compreendeu tudo e caiu de joelhos.
   Surgiu o sol; e, como nos antigos tempos caía a  pele da rã à lua dos seus raios, revelando a linda menina, assim agora, ao batismo de luz, uma visão de beleza. Mais radiosa e mais pura do que o próprio ar - um raio de luz - ergue-se para o céu. O corpo terrestre se desfez em pó - só ficou uma flor de loto, já seca, no lugar onde ela estivera.
    - Ah! - disse o pai cegonha. - É um fim diferente para a história...Não o esperava, mas acho-o lindo!
    - Que dirão dele as nossas crianças? - perguntou a mãe cegonha.
   - Ah! Isso é que é o mais importante - disse o pai cegonha.
FIM