sexta-feira, 25 de março de 2016

A POLEGARZINHA - CONTOS DE ANDERSEN

Era uma vez uma mulher que desejava muito ter uma menina, bem pequenina. Não sabendo onde havia de buscá-la, foi, procurar uma feiticeira velha e disse-lhe:
   - Desejo tanto ter uma meninazinha! Não podes indicar onde acharei uma?
   - Ora, não há coisa mais fácil! - respondeu a feiticeira. - Leva este grão de cevada; não é daquela que cresce no campos, nem da que se costuma dar aos pintos. Planta-o em um vaso e verás o que acontece.
    A mulher agradeceu muito à feiticeira e deu-lhe doze moedas de prata.
    Assim que chegou a casa, plantou-o, e imediatamente nasceu e se desenvolveu uma flor magnífica, semelhante a uma tulipa; mas tinha as pétalas cerradas, como se estivesse ainda em botão.
    - Que bela flor! - disse a mulher, beijando as pétalas amarelas e purpurinas.
     No mesmo instante o botão abriu-se, com um leve estalido. Era, de fato, uma tulipa; mas dentro da corola, sentadinha no veludo verde dos estames, estava uma menina, pequenina, sim, mas cheia de graça e gentileza. Não tinha mais que uma polegada de altura e por isso a mulher chamou-a Polegarzinha.
   Arranjou-lhe um berço pequenino também: uma casca de noz bem polida; o colchão era um punhado de pétalas de violetas, e a coberta, uma pétala de rosa. passava a noite dormindo no seu bercinho, mas durante o dia brincava em cima da mesa, onde a mulher pusera um prato cheio d'água, cercado de flores. No meio flutuava  uma grande pétala de tulipa na qual a Polegarzinha navegava, remando com dois fios de crina branca. Dava gosto vê-la, na verdade! A meninazinha cantava e sua vozinha era tão suave e tão melodiosa como nunca se ouvira outra igual.
   Uma noite, enquanto ela dormia na sua linda caminha, entrou pela janela um sapo porque havia um vidro quebrado. Era um sapo gordo, feio, pegajoso. saltou na mesa onde a Polegarzinha dormia coberta com uma pétala de rosa.
    - Que menina bonitinha para casar com meu filho!- exclamou o sapo.
     E, pegando na casca de noz, tornou a saltar pelo buraco da vidraça levando a |Polegarzinha consigo. atravessava o jardim um riacho em cuja margem lodosa vivia a família de sapos. O filho não era menos feio, nem menos asqueroso que a mãe - porque quem roubou a Polegarzinha foi a mãe do sapo. Quando ele viu a linda meninazinha, dentro da casca de noz, nem pode falar direito; e só se ouviam seus ásperos coaxos:
   - Coaxe, coaxe! Breque, quec, quec!
    - Não fales tão alto, senão ela acorda - disse a mãe. - Poderia escarpar-nos, pois é tão leve  como uma pena de cisne! Vamos guardá-la no arroio, sobre uma grande pétala de nenúfar; é tão pequenina e tão leve que será como uma ilha para ela. Ali ficará segura, enquanto vamos ao fundo do pantanal preparar a casa onde morarás com ela.
    Havia no arroio, grande quantidade de plantas, de grandes folhas verdes; a maior era a que ficava mais distante da margem e para essa folha nadou a velha mãe do sapo, levando a casquinha de noz em que jazia a Polegarzinha.
   Quando a pobre criatura acordou, no dia seguinte, e viu onde se achava , desatou a chorar, porque era só água por todos os lados -  e ela sem poder alcançar a margem!
   A mãe do sapo trabalhou lá embaixo para preparar e adornar a morada da futura nora, forrando-a com folhas de grama e botões de nelumbo amarelo; depois nadou para a superfície, levando consigo o horrendo filho. e foi para a folha onde estava a polegarzinha. Queriam levar a linda  caminha pra o quarto de noivado, antes de conduzir a menina. fez uma profunda reverência, pondo toda a cabeça fora água, e disse:
    - Este é o meu filho com quem vais casar; viverás muito feliz com ele, lá debaixo do charco.
    Mas o filho só pode dizer, como sempre:
      - Coaxe, coaxe! Breque, quec, quec!
     Pegaram então na linda cama pequenina e mergulharam com ela. A Polegarzinha ficou chorando, sozinha na folha verde, porque não queria viver com aquela gente tão feia e menos ainda casar com aquele sapo tão repugnante. os peixinhos que nadavam por ali tinham, sem dúvida, ouvido o que disse a mãe do sapo, e espichavam a cabeça para fora  dágua para ver a meninazinha. E, acharam-na tão linda que não se conformavam com a ideia de vê-la morar debaixo da lama com aqueles entes tão feios. era bonita demais para casar com um sapo! Não ! Não era possível! Reuniram-se todos ao redor do talo que sustentava a grande folha, onde estava a Polegarzinha, e tanto o mordiscaram que acabaram por cortá-lo; e a folha se foi, ao sabor da correte - e  não tardou que estivesse já muito longe, fora do alcance dos sapos.
     A Polegarzinha foi navegando assim, passando por muitos lugares; e os passarinhos pousados nas moitas, quando a viam passear, cantavam:
    - Mas que linda meninazinha!
    A folha ia cada vez mais depressa, mais depressa e já estava navegando em terra estrangeira.
   Uma linda borboleta branca ia voando sempre em roda dela e acabou por pousar na folha, porque simpatizara com a Polegarzinha. A meninazinha sentia-se agora completamente feliz: via-se livre  do sapo e navegava por entre coisas tão lindas...O sol se refletia na água, que parecia ouro liquido. Ela desatou então o cinto e amarrou uma ponta na borboleta e a outra na folha , que ia assim agora ainda mais depressa.
   Mas de repente apareceu voando um grande besouro; viu a menina e abateu-se sobre o frágil corpinho; segurou-a e levou-a nas garras, voando para uma árvore. . A folha verde lá ia flutuando, à deriva , arrastando a borboleta, que estava amarrada e não podia desprender-se.
  Que susto para a pobre Polegarzinha quando se viu assim arrebatada nos ares por aquele feroz besouro! Mas o que mais a afligia era a lembrança da pobre borboleta branca, que amarrara à folha, e que, se não conseguisse desprender-se, morreria de fome. O besouro, porém, pouco se importava com a aflição da meninazinha: depositou-a na maior folha da árvore e trouxe-lhe mel das flores. Disse-lhe que era muito bonita, ainda que não tanto como um besouro. Todos os besouros que moravam naquela árvore foram visitá -los. As senhoritas olhavam para a Polegarzinha e diziam, agitando as antenas:
    - Que feia, que feia! Ora!...Só tem duas pernas!
     - Não tem antenas! Nem sequer uma! - dizia outra.
      - E que cintura tão fininha! Cruzes! Parece uma criatura humana...Que horror!- diziam as damas. Falavam assim da Polegarzinha, tão linda e tão delicada! O besouro velho que a raptara achava-a linda; mas de tanto ouvir os outros dizerem que era feia, acabou por acreditá-lo, e não quis saber mais dela: podia ir para onde bem entendesse. Então, levaram-na para longe, deixando-a sobre um malmequer. E ela lá ficou chorando, porque, de tão feia, nem os besouros a queriam. E, no , entanto, era a criatura mais bela que se poderia imaginar: e tão delicada e suave como uma pétala de rosa.
    A pobre Polegarzinha teve de viver todo o verão completamente só no mato. Construiu uma cama de grama e pendurou-a, feito uma rede, debaixo de uma folha de bardana, bastante grande para a proteger das chuvas. Alimentava-se de mel das flores e bebia as gotas de orvalho que achava nas folhas. Assim passou ela verão e outono; mas afinal veio o inverno. Todos os passarinhos que cantavam para ela seus doces gorjeios emigraram ; as flores e as folhas das árvores tinham murchado e secado; a grande folha de bardana que a abrigava, enrolara-se como a lona de um toldo, e agora restava dela apenas um talo duro e amarelo. E ela tremia de frio, porque já  não tinha sobre o corpo senão andrajos, e era tão pequenina e tão frágil! Coitadinha! Ia certamente ficar gelada! Começou a nevar. Cada floco que caía sobre a menina era como uma pá de neve despejada sobre um de nós,, porque somos grandes, e ela não tinha mais que uma polegada de altura. Enrolou-se em uma folha seca que pouco agasalhava. E a menina tremia de frio.
      Junto do bosque em que ela vivera todo esse tempo, estendia-se um trigal, mas já tinha sido ceifado há muito, ficando só o restolho - um estendal de hastes secas e duras, cravadas na terra gelada. Para a Polegarzinha aquilo era o mesmo que um mato denso, que ela atravessou transida de frio. Afinal chegou à porta da casa de um rato do campo. Era uma toca, debaixo do restolho. O rato morava lá dentro, em uma casa confortável e quentinha; tinha a sua despensa, bem provida de grãos e uma boa cozinha.  A meninazinha parou à porta e pediu, como uma criança filha de mendigos, um farelinho de grão de cevada, porque , há dois dias que não comia nada.
     - Coitadinha! - disse a rata ( porque era uma rata a dona da casa) . - Entra, entra, que a minha casa é quentinha, e fica para jantar comigo.
       Aquela rata velha era muito boa e gostou logo da Polegarzinha. Dali a pouco foi dizendo à menina:
     - Olha se quiseres, podes ficar aqui todo o inverno;; mas hás de trazer minha casa bem limpa e arranjada e contar-me histórias, de que muito gosto.
    A Polegarzinha assim fazia e era muito feliz ali com a rata velha. Um dia a dona da casa disse:
    - Vamos receber uma visita; meu vizinho vem me  ver todas as semanas. É bem mais abastado que eu, o vizinho; tem uma casa muito maior do que a nossa, com grandes salas, e usa sempre uma peliça negra, muito linda. Se pudesses casar com ele, então sim, serias afortunada! Só o que há é que ele é cego: como não podes ver-te, deves contar-lhe alguma das tuas histórias mais bonitas, para agradá-lo.
    Mas à Polegarzinha pouco se lhe dava o vizinho da rata do campo. O vizinho era uma toupeira! E foi mesmo fazer uma visita esperada, vestido com a sua peliça negra. D. Rata do Campo não se esqueceu de falar na rua riqueza e na sua sabedoria, e contou que sua moradia era mais de vinte vezes maior que a delas. Sim, podia ser homem de muito talento, o parente das toupeiras, mas detestava a luz do sol e as belas flores, e falava delas com o maior desprezo, porque nunca as vira!
     A Polegarzinha teve de cantar para o visitante; cantou o Besouro, besouro, vai-te embora e Quando o pároco passeio no campo. E o " toupeiro" , ouvindo-lhe a voz tão suave, enamorou-se dela; mas nada lhe disse, porque era um varão cheio de prudência.
    Pouco  depois  ele cavou uma passagem de comunicação entre a sua moradia e a da rata do campo, e tanto ela como a menina podiam ir e vir por ali quando quisessem. Mas avisou-as de que não deviam assustar-se quando topassem com um passarinho morto, que estava atravessado no corredor. Era um passarinho de verdade, tinha bico  e  penas, e parecia morto há muito pouco tempo; não se sabe como fora enterrado justamente ali, onde ele abrira aquela passagem.
    A toupeira segurou na boca um toro de pau podre, para lhe servir de lanterna - porque sabia que a madeira apodrecida brilha no escuro com uma luz fosforescente - e foi adiante delas, para que não tropeçassem, naquela escuridão. Quando chegaram ao ponto onde estava o passarinho morto, a toupeira abriu um buraco  no teto, empurrando a terra para cima com o focinho, para iluminar o túnel. No chão jazia uma andorinha morta, com as lindas asas bem unidas ao corpo e a cabeça e as perninhas escondidas entre as penas: era evidente que o pobre passarinho morrera de frio. A Polegarzinha ficou muito comovida, porque gostava muito de todos os passarinhos- não tinham eles cantado e piado para ela com tanta meiguice todo o verão? Mas a toupeira afastou a andorinha morta para um lado, com a perna curta, observando friamente:
    - Agora não pias mais! Que miséria, nascer passarinho! Graças a Deus nenhum de meus filhos será assim! Porque o passarinho, que não pode fazer mais nada senão dizer " Tui-ti! Tui-tiii!" o verão inteiro, quando chega o inverno morre de fome!
     - São palavras de sabedoria, essas- disse logo a rata velha. - De que serve, na verdade, viver o passarinho chilreado quando vem o inverno? Terá então de morrer de fome e de frio! Mas dizem que isso é muito aristocrático!
    A Polegarzinha nada disse; mas quando os outros dois se afastaram dali, voltou atrás, afastou as penas que cobriam a cabecinha da andorinha e beijou-lhe os olhinhos fechados.
    - Quem sabe se não foi  este mesmo passarinho que cantou para mim no verão?- pensava ela. - E era tão suave e tão terno aquele canto...
    A toupeira fechou a abertura que fizera, para que não entrasse mais a luz, e acompanhou as duas senhoras à  casa delas. Mas a Polegarzinha não conseguiu dormir. Levantou-se, teceu um tapete de fibras de feno e levou-o para cobrir a cabecinha da andorinha. Depois reuniu fiapos de algodão, que achou espalhados pelo quarto da rata do campo, e calçou os dois lados da cabeça do passarinho, para que não sentisse tanto frio da terra. E disse:
   - Adeus, lindo passarinho! Adeus! Agradeço-te o lindo canto que cantaste no verão, quando as árvores eram verdes e o sol nos mandava seus raios quentinhos!
    Dizendo estas palavras, ela apoiou a cabeça no peito da andorinha; mas imediatamente endireitou-se, porque sentiu que lá dentro alguma coisa batia; toc-toc! Era o coração do passarinho; não estava morto, apenas congelara; uma vez que começou a aquecer-se, retornou à vida.
    No outono todas as andorinhas voam para longe; vão em busca de outros países, de clima mais brando; mas se um delas se atrasa, o frio  enregela, e a avezinha cai  como morta, fica ali, entanguida, e a neve a cobre toda, como uma mortalha.
    A Polegarzinha tremia de medo, porque o passarinho era muito grande, comparado com ela, que só tinha uma polegada de altura. Mas afinal revestiu-se da coragem e aconchegou bem o algodão em roda do pobre passarinho; foi então buscar uma folha de hortelã, que lhe servia de colcha, e estendeu-a sobre a cabeça da andorinha.
    No dia seguinte ela esperou a  noite e tornou a ir, furtivamente, ao túnel. para ver  como estava a andorinha; achou-a viva, mas muito fraquinha: mal pode abrir os olhos um momento para ver a menina, quando ela parou ao seu lado, segurando um pedaço de madeira podre- a única lanterna de que dispunha.
    - Muito, muito obrigada, linda menina - disse a andorinha doente. - Sinto-me agora tão bem, tão refeita, que não tardarei muito em poder voar de novo: irei então para o país do sol quente!
    - Mas está muito frio lá fora - disse a menina- porque cai constantemente neve e granizo. Fica aqui, na tua cama bem quentinha, que eu tratarei de ti!
     Foi buscar água em uma pétala de flor e deu-a à andorinha; e esta contou-lhe então que tinha ferido uma asa em um espinheiro e por isso não pudera voar com as outras para o país do sol. Caíra ao chão e perdera  os sentidos; não podia lembrar-se do que lhe aconteceu depois, nem como viera parar naquele lugar.
    A Polegarzinha tratou da andorinha todo o inverno, com a maior ternura, mas sem dizer palavra à rata do campo nem ao pai-toupeira,porque eles não gostavam de passarinhos e principalmente das andorinhas.
    Quando voltou a primavera e o  sol começou a aquecer de novo a terra, a meninazinha alargou o buraco que a toupeira tinha aberto com o focinho, para que andorinha pudesse sair. Entrou o sol, inundando de luz o corredor. A andorinha perguntou à Polegarzinha se não queira ir com ela. Levá-la-ia às costas; ambos voariam assim para longe, para a mata verde. Mas a menina achou que a rata velha podia zangar-se se a abandonasse assim, sem mais nem menos. E respondeu logo:
   - Não, eu não posso ir.
   - Então adeus, menina linda e bondosa!
    E a andorinha saiu voando para o vasto firmamento. A Polegarzinha segui-lhe o voo com os olhos rasos de água, porque já tinha amor à andorinha.
    - Quit- vit! Qui-vit!" - cantava o passarinho , antes de se sumir na ramaria da mata verde.
    A Polegarzinha viva agora muito triste. Não lhe permitiam que saísse a tomar sol. os homens tinham semeado trigo sobre a toca da rata do campo; o trigo estava já crescido e formava agora um bosque intrincado, onde a meninazinha poderia perder-se, pois tinha só uma polegada de altura.
   - Vais casar, polegarzinha - disse-lhe um dia a rata do campo. - Meu vizinho pediu a tua mão. Vê que sorte para uma menina tão pobrezinha como tu! Agora tens de pensar em fazer teu enxoval. Precisas de roupas de linho e de lã - porque à mulher de Dom Toupa nada há de faltar!
     E a Polegarzinha teve de fiar e fiar. A rata do campo alugou quatro lagartas que teciam para ela noite de dia. O "toupeiro" visitava-a todas as noites. E levava sempre  a observar que, passado o verão, já o sol perderia aquele calor abrasador, com que torrava agora a terra, endurecendo-a como pedra. Então celebrariam o casamento. Quem não estava contente com esses projetos, porém, era a Polegarzinha, que não podia suportar aquele pai-toupeira aborrecido. Todos os dias - à hora de nascer o sol e quando ele desaparecia no poente - saía ela da boca da toca; e, se  soprava o vento, separando as espigas de trigo, e aparecia uma nesguinha do céu azul, via em imaginação a beleza e o esplendor das terras quentes. E ansiava por tornar a ver a sua querida andorinha. Mas esperava em vão! Ela não voltava ...sem dúvida ficara presa aos encantos da mata reverdecida.
     Quando chegou o outono estava pronto o enxoval da noiva. A rata do campo disse-lhe:
    - Daqui a quatro semanas será teu casamento.
     Pôs-se a Polegarzinha a chorar, porque não queira casar com aquele sujeito tão desenxabido.
    - Manhas! - disse a rata velha. -  Não sejas  teimosa! Olha que te dou uma dentada...Ah! Verás então como são afiados os meus dentes! Onde pensas que irias achar outro marido tão distinto? Nem mesmo a rainha tem uma peliça negra tão fina! E tem cozinha e despensa bem sortidas! Deves dar graças à Providência que te enviou um marido assim!
     E chegou o dia do casamento. Já Dom toupa tinha chegado e ia levar a Polegarzinha, que teria de viver dali em diante com ele, lá embaixo da terra, sem sair jamais ao ar livre para tomar sol, porque ele não gostava do sol nem da luz. A menina estava acabrunhada. Já não lhe seria permitido, como até aqui, olhar para o sol, da porta da toca, e tinha de se despedir da luz para sempre!
    Saiu, pois, da entrada da toca pela última vez, para dizer adeus ao sol. Estava terminada a ceifa e só ficara o restolho seco no trigal. Ergueu os braços e disse para o firmamento:
  - Adeus, adeus sol esplêndido!
 Depois, cingindo  com os braços uma florzinha vermelha, disse-lhe também:
    - Adeus, adeus! Dá saudades minhas à andorinha, se por acaso a vires ainda!
    Nisto ouviu, acima da cabeça, um chilreio:
   - Quit-vit! Qui-vit!
     Olhou para cima e enxergou a sua andorinha, que ia passando e ficou muito contente de ver a menina. Contou-lhe esta quando lhe desagradava aquele casamento com o feio Toupa, porque teria de viver toda a vida debaixo da terra, em uma toca onde nunca entra o sol. E chorava ao narrar o seu infortúnio, de tão triste que estava.
    - Vem aí o inverno - disse a andorinha. - Voarei então para outras terras, mais quentes do que a nossa. Queres ir comigo? Posso levar-te às costas. Amarra-te bem com tua faixa e eu voarei para bem longe do feio noivo Toupeira e da sua toca sombria. Voaremos para longe...longe...por cima das altas montanhas; iremos pra uma terra onde o sol é muito mais brilhante do que aqui, onde o verão é eterno e onde vicejam as flores mais lindas do mundo. Voa comigo, minha querida Polegarzinha - tu, que me salvaste a vida, quando eu estava enregelada, naquela toca medonha!
      - Sim, irei contigo - disse a Polegarzinha.
      E aninhou-se nas costas da andorinha, apoiou os pés sobre as suas asas e amarrou o cinto em uma das penas mais fortes. A andorinha ergueu o voo, subiu muito alto, atravessou mares e florestas e passou por cima das mais altas montanhas, cobertas de neves perpétuas.Muito frio teria sentido a pequenina criatura se não se abrigasse bem debaixo das quentes penas da andorinha: só deixava de fora a cabecinha, para apreciar a paisagem magnífica que ficava lá em baixo.
     Chegaram afinal ao país quente, onde o sol brilhava com mais fulgor e o céu parecia duas vezes mais alto; lá se estendiam por montes e vales parreirais sem fim, carregados de cachos de lindas uvas, brancas e pretas, e bosques extensos de limoeiros e laranjeiras. Por toda a parte recendia o suave perfume do mirto e da erva-cidreira; e pelos caminhos corriam lindas crianças brincando com borboletas enormes e de cores brilhantes. mas a andorinha continuou o voo - e a  paisagem era cada vez mais bela . Chegaram afinal a um lugar onde se erguia magnífico palácio antigo, todo de mármore de brancura deslumbrante. Cercava-o um parque esplendido e a seus pés estendiam-se um lago de águas azuis. Nos altos pilares enroscavam-se os parreirais, em cuja densa ramaria viam-se muitos ninhos de andorinhas; em um deles morava a que trouxera a menina.
    - Aqui está a minha casa- disse ela. Não ficarás morando comigo, porque não tenho quartos em que possas viver comodamente. deves procurar uma das flores mais lindas no jardim. lá embaixo, e eu te colocarei sobre ela; serás então feliz.
     - Como isto aqui é lindo! - gritou a menina,batendo palmas de contente.
     Estendida no chão estava uma coluna de mármore, partida em três pedaços; entre eles cresciam as flores mais belas que a Polegarzinha já vira na vida; grandes e alvíssimas. A andorinha desceu com a menina e pousou-a sobre uma das grandes pétalas de uma delas . Mas que surpresa! Ali estava já um anãozinho, um pequenina donzel do tamanho de meninazinha, branco e transparente como cristal. Estava sentando no centro da flor; cingia-lhe a cabecinha um coroa lindíssima, toda de ouro, e adornavam-lhe os ombros duas asas delicadas. Era o espírito da flor. Em cada cálice morava um casalzinho de anjos assim, mas aquele era o rei do povinho maravilhoso.
     _ Como é belo! - suspirou a Polegarzinha ao ouvido da andorinha.
      O  princepezinho assustou-se ao avistar o enorme pássaro - um gigante ao pé dele - mas ao enxergar a meninazinha, ficou encantado, pois nunca vira nenhuma assim tão linda. Tão enamorado ficou, que tirou da cabeça a sua coroa e colocou-a na dela; perguntou-lhe como se chamava, e se queria casar com ele e ser a rainha de todas as flores. Era  na verdade um pretendente muito diferente do filho do sapo ou do mestre Toupa, com sua rica peliça! Por isso mesmo ela foi logo dizendo "sim" ao  pedido do principezinho. Imediatamente começaram a aparecer damas e cavalheiros - todos tão pequeninos como os noivos - que saíam do cálice das flores; estavam tão bem vestidos e eram tão formosos que a gente não se cansava de olhá-los. Cada um ofereceu um presente  à Polegarzinha; mas o melhor de todos foi um par de asas muito lindas, como as de uma grande  borboleta branca. Quando foram ajustadas aos ombros da menina, ela também pode voar de flor em flor. Grande era  a alegria em todo o jardim. A andorinha, pousada no ninho, foi convidada a cantar um hino de esponsais, ela cantou o melhor que pode, porque estava triste, no fundo do coração: desejaria poder viver sempre com a Polegarzinha e agora teria de separar-se dela.
    Então os espíritos das flores disseram;
    - Não te chamarás mais polegarzinha; esse nome não  não é bonito e tu és linda...Nós  agora te chamaremos Maia.
    - Adeus, adeus! - dizia a  andorinha, como o coração cheio de tristeza, quando levantou voo outra vez, para retornar ao seu país.
     Deixou as terras quentes e lá se foi.
     De chegada, armou um ninhozinho perto da janela, na casa onde mora o homem que escreveu esta história. E contou-lhe tudo:
    - Qui-vit! Qui-vit! Qui-vit!
     E foi assim que chegou até nossos ouvidos toda esta narrativa.
 FIM!















segunda-feira, 21 de março de 2016

AS VELAS - CONTOS DE ANDERSEN

Era uma vez uma grande vela de cera, que conhecia perfeitamente seu próprio valor.
    - Nasci de cera - dizia ela - e fui fundida em um molde. Dou melhor luz mais tempo que as outras velas. Meu lugar é no lustre ou no castiçal de prata.
    - Que vida esplêndida! - disse a vela de sebo.- Eu sou de sebo - uma simples vela escorrida, mas tenho um consolo: valho um pouco mais que a vela de tostão, que só foi mergulhada no sebo oito vezes. para ficar de uma grossura conveniente. Ora, isso me basta! Não há dúvida  que pode mesmo escolher o seu lugar neste mundo... As velas de cera vão para o salão, são postas no lustre de cristal enquanto eu fico na cozinha. Mas ora... afinal a cozinha é também um bom lugar: não é de lá que sai toda a alimentação da casa?
     - Mas há coisa mais importante do que o alimento - retrucou a vela de cera. É a vida social! Ver os outros brilharem, enquanto a gente mesmo está resplandecendo! Esta noite vai haver um baile na casa, e daqui a pouco virão buscar-me - a mim e a toda a minha gente.
        Mal acabara de dizer essa palavras, vieram mesmo buscar as velas de cera; mas também levaram a de sebo. A própria senhora tomou-a nas mãos delicadas e levou-a para a cozinha. Lá estava um menino com uma cesta, que encheram de batatas; puseram nela também algumas maças. A bondosa dama deu tudo aquilo ao menino pobre:
   - Toma também esta vela, meu menino. Tua mãe fica a trabalhar até altas horas; a vela lhe poderá se útil.
   A filhinha da casa, que estava ao pé da mãe, disse, radiante de alegria:
  - Eu também vou ficar acordada até altas horas! Temos um baile hoje e eu vou levar no vestido compridas fitas vermelhas.
   E que luz lhe iluminava o rosto! Que alegria! Nenhuma vela de cera pode resplandecer como os olhos de uma criança!
    E a vela de sebo pensava consigo:
   - Que coisa magnifica!" Nunca me hei de esquecer disto - e nunca mais tornarei a ver coisa semelhante!
    Meteram-na na cesta, fecharam a tampa e o menino carregou tudo para casa.
    - Quem sabe onde irei agora!... Meu destino é ir para casa de gente pobre. Talvez nem me deem sequer um castiçal de latão - enquanto a vela de cera lá está, rodeadas de prata, e vendo só gente fina...Como há de ser lindo espalhar luz para gente distinta!Mas minha sorte é ser de sebo e não de cera!
    E a vela chegou à casa da gente pobre: uma viúva e três filhos, que moravam num quartinho muito baixo, bem defronte ao palacete.
   - Deus abençoe a bondosa senhora pelo seu presente! - disse a mãe. - Uma vela esplêndida, que pode ficar acesa até altas horas da noite!
    E acendeu a vela.
    - Apre! - disse ela. - Que mau cheiro deitou esse fósforo com que ela me acendeu! Lá no palacete ninguém se atreverá certamente  oferecer coisa semelhante a uma vela de cera!
    Lá também tinham acendido as velas, que derramavam luz para a rua. Vinham chegando, todas sacolejantes, as carruagens que traziam os convidados, vestidos de gala; e a música retinia.
   - Lá começa a festa - pensou a vela de sebo.
    E, lembrando-se do rosto radiante da meninazinha, que brilhava ainda mais que todas as velas de cera, repetiu:
    - Nunca mais tornarei a ver uma coisa assim!
    Naquele instante entrou a filhinha menor da casa pobre. Abraçou os irmãos, dizendo que tinha uma notícia muito importante- tão importante que só podia comunicá-la em segredo. E cochichou:
   - Imaginem! Hoje vamos comer batatas assadas!
    E o seu rosto irradiava de tanta felicidade. A vela desprendeu mais brilho e viu uma alegria tão grande como a que presenciara no palacete, quando a menina rica disse:
    - Hoje há um baile em casa e vou usar um vestido com compridas fitas vermelhas!
    - Será então uma felicidade tão extraordinária comer batatas assadas? Porque noto que aqui, pelo menos entre as crianças, reina a mesma alegria que lá...
    Nisto deu um espirro- isto é, respingou, pois  a vela de sebo não pode fazer mais que isso.
    Puseram a mesa e comeram as batatas. Que saborosas! Foi um verdadeiro festim; depois cada criança recebeu uma maça. E a menor recitou:
          " Graças Te dou, Pai do Céu,
                  Por este alimento,
            Que nos deu Tua bondade,
                 Pra nosso sustento.
                         Amém!
 - Mamãe, mamãe! Não recitei bem os versinhos?
  - Não é nisso que deves pensar, filhinha: lembra-te somente do bom Deus,  que te deu o que comer.
   Depois as crianças foram para a cama,e, com um beijo da mãe, adormeceram logo.
  A senhora ali ficou sentada , a coser, até altas horas da noite: precisava ganhar com que comprar o sustento para si e para as crianças.
  Do palacete, lá do outro lado da rua, vinham os sons da música e o brilho das velas. As estrelas cintilavam acima de todas as casas, das da gente rica e das da gente pobre, luzindo com fulgor igual, com igual simpatia.
    - Afinal, a noite foi bem agradável - declarou a vela de sebo. - Acaso as velas de cera, lá no castiçal de prata, terão tido momentos melhores? Gostaria bem de sabê-lo antes de me extinguir...
     Pensava nas duas crianças, igualmente felizes, uma - a meninazinha iluminada pelas velas de cera; a outra - radiante à luz da vela de sebo...
    E acabou-se a história.
FIM


sábado, 19 de março de 2016

O ELFO - CONTOS DE ANDERSEN

No centro de um jardim havia um roseira; estava coberta de rosas e na mais linda de todas morava um elfo. Era tão pequenino, tão pequenino, que olhos humanos não podiam vê-lo. Tinha um ninho bem abrigado dentro de cada pétala de rosa. Era tão bem-feito, tão primoroso como uma criancinha humana; e tinha asas, que lhe chegavam até os pezinhos. E que perfume delicioso o do seu quartinho! Que lindas eram as paredes translúcidas! Eram pétalas de um rosado muito pálido. O dia inteiro ele brincava nos raios  de sol, voava de flor em flor, dançava nas asas flutuantes das borboletas. Depois tomava medidas para ver quantos passos teria de dar para percorrer todas as estradas e atalhos de uma folha de tília. Eram esses caminhos o que nós chamamos nervuras, mas para o elfo era estradas sem fim. Porque antes que ele chegasse ao fim entrava o sol, pois sempre começava muito tarde.
    Esfriou muito; caía o orvalho e soprava. Era mais que tempo de ir para casa! O elfo andou o mais depressa que podia, mas a rosa já se fechara, e ele não pode entrar - não havia uma única rosa aberta! O coitadinho estava muito assustado: nunca se vira assim fora de casa à noite; sempre dormira tão resguardado, atrás das pétalas agasalhadoras da rosa! Ah! Agora certamente ia morrer!
    Sabia que no outro extremo do jardim havia um caramanchão coberto de madressilvas deliciosas, aquelas flores que pareciam lindas trombetinhas pintadas. Podia entrar em uma delas e dormir até amanhecer. Voou para lá. Mas...oh! Já lá dentro estavam duas pessoas : um moço e uma moça - ambos muito bonitos. Estavam sentados ao lado um do outro e não queriam separar-se, porque se amavam muito ternamente. Amavam-se mais do que o melhor dos filhos pode amar a seus pais.
    - E, contudo, temos de nos separar! - dizia o moço,
    - Teu irmão não é nosso amigo, senão não me mandaria para tão longe, a viajar por montes e mares. Adeus, minha noiva - porque bem sabes que assim te considero!
     Beijaram-se então; a moça chorou e deu-lhe uma rosa; mas antes de entregar a flor abriu as pétalas. Então o elfo voou para dentro dela e deitou a cabecinha sobre as pétalas perfumadas, e anida ouviu os noivos dizerem:
     - Adeus! Adeus!
     E o moço guardou a rosa sobre o coração. E como batia aquele coração!  O pequenino elfo não pode  dormir com aquelas pulsações.
     Mas a rosa não ficou muito tempo quieta sobre o coração  ansioso: quando ia andando pela mata escura, o moço tirou-a dali e beijou-a apaixonadamente, muitas, muitas vezes. E o pequeno alfo já temia ser esmagado. Sentia, através das pétalas, o calor dos lábios do moço, e a rosa desabrochou como o faria ao calor do sol do meio-dia.
      Apareceu então, por detrás dele, um homem moreno, que vinha furioso; era o irmão da linda jovem. Puxou uma faca longa e aguçada, e, enquanto o outro beijava a rosa, o malvado matou-o. Cortou-lhe fora a cabeça e enterrou-a, com o corpo, na terra fofa, debaixo de uma tília.
     - Agora está morto e acabou-se! - pensou o mau irmão. - Nunca mais voltará. Tinha de fazer uma longa viagem pelas montanhas e através do oceano, andar por lugares onde é muito fácil perder a vida - e ele perdeu-a! Nunca mais voltará e minha irmã não ousará pedir notícias dele.
      Amontoou então, com o pé , folhas secas sobre a terra revolvida, e voltou para casa, no meio da escuridão da noite. Não ia, porém, sozinho, como pensava: ia com ele o pequenino elfo. Este se escondera em uma folha seca de tília, que tinha caído da árvore sobre a cabeça do homem mau, enquanto ele cavava a cova. Cobria-a o chapéu agora; lá dentro estava muito escuro e o elfo tremia de medo e de ódio do malvado. O homem mau chegou à casa de manhã cedo; tirou o chapéu e foi para o quarto da irmã; a moça, linda e feliz, dormia, sonhando com o bem-amado, que julgava longe, por montes e matos. O malvado curvou-se  sobre ela, com um riso mau, um riso de inimigo. A folha seca caiu-lhe do  cabelo sobre a colcha; mas ele nem sequer notou isso e retirou-se para dormir. O elfo deixou a folha morta e foi se arrastando, entrou na orelha da moça adormecida e contou-lhe, como em um sonho, toda a história do bárbaro assassínio. Descreveu o lugar onde seu irmão cometera o crime e onde ele enterrara o corpo; falou-lhe na tília florida e disse:
     - E, para que não penses que tudo isso foi um mero sonho teu, acharás uma folhinha seca na coberta da cama.
       E ela achou a folha, quando acordou! Como a moça chorou! E que doloroso pranto! Mas não ousou contar a ninguém sua aflição.
     A janela do quarto ficou aberta o dia inteiro. O elfo podia descer facilmente para o jardim, para as rosas e as outras flores; mas desejava  acompanhar a triste noiva. Junto da janela vicejava uma roseira de todo o ano e ele se aninhou em uma flor onde podia ver a pobre moça. Seu irmão entrou muitas vezes no quarto; vinha alegre, de uma alegria má; ela, entretanto, não dizia uma só palavra sobre a tristeza do seu coração.
   À noite ela saiu de casa sem ser vista e foi  à floresta, em direção ao lugar onde estava a tília. Afastou as folhas secas do chão e cavou  a terra, achando aquele que fora assassinado. E chorou muito a pobre noiva! E como chorou a Deus pedindo que a levasse também depressa! Se pudesse conduzir  para casa o corpo do morto ficaria mais consolada: não podendo, porém, fazê-lo, pegou na pálida cabeça de olhos já fechado, beijou os lábios frios e sacudiu a terra que se apegara aos lindos cabelos, dizendo\\\\\\\\\\\\\\\\\\;
   - Isto me pertence?
   Tornou a cobrir o corpo com terra e folhas secas. Depois levou para a cabeça e um raminho do jasmineiro que florescia junto à cova.
   Chegando ao seu quarto pegou no maior vaso de barro que achou em casa, meteu dentro a cabeça do morto , cobriu-a com terra e plantou  nela o galho de jasmim.
   - Adeus, adeus! murmurou o elfo.
    E, não podendo mais suportar a vista de tamanha dor, voou para o jardim à procura da sua rosa; ela porém estava murcha  e apenas algumas pétalas fanadas ainda se apegavam ao cálice verde.
     - Como  passam depressa o bem e a beleza! - suspirava ele.
     Afinal achou outra rosa e estabeleceu nela o seu lar. Podia viver a salvo entre as suas pétalas perfumadas.
           Todas as manhãs voava para a janela da moça e via-a a sempre ali, chorando ao pé do vaso. Suas lágrima amargas caíam sobre o jasmineiro; e, ao passo que ia ficando cada dia mais pálida, o galinho ia ganhando força e vigor. Foram aparecendo as folhinhas, uma após outra, e por fim pequeninos botoes alvos, que ela beijava; mas o malvado irmão ralhava com ela, perguntando-lhe se estava louca. É que ele não gostava de ver - sem saber por que - a irmã sempre debruçada sobre aquele vaso, a chorar. Não sabia que olhos estavam escondidos lá dentro, fechados para sempre, nem que lábios vermelhos se tinham reduzido a pó, na profundeza daquele vaso.
     Um dia ela ela inclinou a cabeça sobre o vaso do jasmim e o pequenino elfo foi achá-la ali adormecida. Ele entrou na orelha da moça, e falou-lhe, num sussurro, daquela noite, no caramanchão de madressilva, no perfume das rosas e no amor dos elfos. Ela ia sonhando aqueles sonhos suaves, e,  enquanto sonhava, sua vida extinguiu-se. Estava morta. Tivera uma morte suave e fora para o céu, onde estava o seu bem-amado! O jasmineiro abriu suas alvas flores que espalharam o mais suave perfume. Não tinham outra maneira de chorar a morta.
     O irmão malvado viu a linda planta florescida e levou-a consigo, como lembrança. Pôs o vaso no seu quarto, perto da cama, porque eram tão lindas as flores e exalavam um perfume tão suave e tão fresco...O pequeno elfo também foi e voava de flor em flor; em cada uma vivia um elfo pequenino, e a cada um ele foi contando a história do assassinado, cuja cabeça repousava agora debaixo da terra. Contou-lhes a história do irmão malvado e da irmã infeliz,
    - Nós sabemos de tudo - diziam as criaturinhas.- Nós sabemos. Pois não foi daqueles olhos e daqueles lábios assassinados que nós nascemos? Nós sabemos, nós sabemos disso!
     E sacudiam a cabecinha de uma maneira estranha...
    Não compreendia o elfo com os outros podiam ficar tão calmos; e voou para as abelhas que andavam sugando mel. Contou-lhes a história do irmão malvado; as abelhas contaram tudo à sua rainha, e esta ordenou-lhes que na manhã seguinte matassem o assassino.
      Mas durante a noite, a primeira noite depois da morte da irmã, quando o irmão estava adormecido na cama, perto do jasmineiro perfumado, todas as flores abriram bem as pétalas. De cada uma delas saiu um dos pequeninos espíritos invisíveis  da flor - e todos iam armados, levando suas pequeninas lanças envenenadas.Alojaram-se-lhe primeiro nas orelhas e lhe insinuaram sonhos terríveis. Depois voaram-lhe sobre a boca e picaram-lhe a língua com seus dardos envenenados. E diziam:
    - Agora sim, vingamos a morta!
     E voltaram para as alvas flores do jasmineiro.
    Quando o dia clareou, a janela abriu-se toda de repente: o elfo e todo o enxame de abelhas com sua rainha entraram voando para matá-lo.
   Mas ele já estava morto; havia gente parada ao pé da cama e todos diziam:
   - Foi o cheiro do jasmineiro que o matou!
     Então o elfo compreendeu a vingança das flores e disse-a à rainha das abelhas. Ela e todo o seu povo zumbiam ao redor do vaso; e as abelhas não queriam ir embora.
     Um homem tirou dali o vaso do jasmineiro, mas uma abelha fincou-lhe o ferrão na mão e ele deixou cair o vaso, que ficou em cacos.
     E todos viram então o crânio já todo branco e compreenderam que o morto que jazia no leito era um assassino. A rainha das abelhas zumbia no ar, e cantava, cantava para o elfo, contando-lhe a vingança das flores; dizia que atrás de cada pétala, mesmo das mais miudinhas, vive escondido um ser que pode descobrir e vingar todas as más ações.
FIM

domingo, 13 de março de 2016

A HISTÓRIA DO ANO - CONTOS DE ANDERESEN

Era no mês de janeiro. A nevasca desabava, impetuosa. A neve turbilhonava pelas ruas e vielas. As vidraças estavam cobertas de uma camada de neve, e neve caía também, em grande quantidade, dos telhados das casas. Dir-se-ia que todas as criaturas se achavam dominadas por uma pressa incontida: os homens andavam correndo: precipitavam-se nos braços uns dos outros, segurando-se mutuamente por um instante, para firmar o pé. Carros e cavalos pareciam cobertos de açúcar cristalizado. Os lacaios mantinham-se encolhidos, na traseira dos carros, para que a neve não lhes batesse no rosto. Os pedestres também procuravam escudar-se contra a tempestade, acompanhando as carruagens , que só muito lentamente iam abrindo passagem na neve profunda. E quando, afinal, a borrasca amainou e as pás conseguiram abrir um caminho estreito rente com as casas, os que se encontravam no meio dele estacavam : nenhum queria ceder o passo, entrando na neve funda para dar passagem ao outro. E ali ficavam, imóveis e silenciosos, até que por um acordo tácito cada um resolvia sacrificar uma única perna, afundando-a no montão de neve.
      À noite o vento serenou; o céu, varrido, estava mais alto, mais transparente. As estrelas pareciam novinhas em folhas e algumas tinham um fulgor deslumbrante.  O frio fazia o ar crepitar, e a camada de neve superior estava enfim tão forte, pela madrugada, que podia resistir ao peso dos pardais, os quais desciam, aos pulinhos, para as baixadas, de onde a neve fora removida. Não encontraram, porém, grande coisa para comer e o frio castigava-os.
      - Pio, pio!- disse um. - Isto é então um ano novo?
Pois olha, é pior que o velho! A gente podia bem ter ficado com  aquele...Não estou gostando nada deste!
     - É, é isso mesmo; os homens saíram a correr pelas ruas, saudando  o ano novo com salvas de tiros - acudiu um pardalzinho que tremia de frio. - Atiraram potes às portas e pareciam doidos de alegria, só porque desaparecera o ano velho. E eu também fiquei muito contente, porque esperava que viriam dias melhores. Mas qual: O frio é até pior que antes. Os homens andam enganados na cronologia.
    - É mesmo - disse o terceiro, um pardal já velho, de cabeça branca. - Eles lá tem uma coisa  a que chamam calendário, uma invenção lá deles, e querem que tudo se subordine àquilo. Ora qual! O ano começa quando chega a primavera! É assim na Natureza e eu me guio é por ela. 
- Mas...e quando é que vem a primavera? - indagaram os outros.
      - Ora, ela vem quando volta a cegonha. Mas é que ela não tem tempo bem certo para chegar, principalmente aqui, na cidade: ninguém poderá dizer, com certeza, quando será o dia de chegada. No campo as pessoas sabem com mais segurança qual é o tempo. Não querem voar para lá para esperá-la? Estaríamos assim mais próximos da primavera, seja lá como for.
      - Ora, tudo isso tem seus prós e contras - disse um dos pardais, que até ali estivera sempre saltitando e piando sem dizer afinal coisa que prestasse. - Na cidade há de fato comodidades que não sei se encontrarei lá por fora. Aqui bem perto mora uma família humana que teve uma boa ideia: fixou ao muro alguns vasos de barro, com a boca para dentro; no fundo de cada vaso abriram um buraco tão grande que dá para a gente entrar e sair. Eu e meu marido fizemos ninho ali, pois os homens arranjaram tudo aquilo só pelo prazer de nos ver - isso é claro: por que mais havia de ser? Também se divertem, atirando-nos migalhas de pão, de sorte que temos o sustento seguro. Acho, pois, que vamos ficar por aqui mesmo, ainda que não estejamos muito contentes...Mas vamos ficar.
      - Pois  nós cá vamos para o campo para ver se a primavera já chegou!
       E lá se foram voando.
       No campo o inverno era muito rigoroso: alguns graus abaixo da temperatura da cidade. Um vento cortante varria os restolhais, cobertos de neve. O camponês sentado no trenó, com as mãos abrigadas em espessas luvas, sacudia os braços para que não os entorpecesse o frio. Repousava-lhe sobre os joelhos o chicote inútil: os magros cavalos corriam tanto que estavam cobertos de suor, a despeito da neve que estalava. Os pardais, transidos de frio, iam sempre saltitando nos sulcos do trenó, e cantando:
    - Pio, pio! Quando virá a primavera? Ainda tardará muito? muito tempo? muito tempo?
     - Muito tempo!  - respondeu uma voz, vinda da colina mais próxima, coberta de neve.
    A voz foi ecoar ao longe, pelo campo a fora. Talvez fosse somente o eco; mas talvez fosse a voz de um velho esquisito, que, no meio da tempestade, estava sentado lá em cima, sobre um montão de neve. Era todo branco: parecia um camponês envolto em uma roupa de grossa lã branca. Os alvos cabelos eram muito compridos; o rosto pálido, os olhos grandes e claros.
     - Quem é aquele velho? - perguntaram os pardais. E o corvo velho, que pousara em um moirão da cerca, tão condescendente que reconhecia que todos nós somos apenas passarinhos aos olhos de Deus, dignou-se responder aos pardais:
    - Eu sei; é o inverno, o velho do ano passado. Não morreu, ainda que o afirme o calendário. È o tutor do jovem príncipe da primavera, que vai chegar; É o inverno quem exerce a regência. Brrrr!...Este frio faz até a gente tremer, não é pequerruchos?
    Estão vendo? Pois não foi o que eu disse mesmo? - disse logo o pardalzinho menor. - O calendário é apenas uma invenção humana; não corresponde à Natureza. Deviam confiar essas coisas a gente como nós, que somos mais inteligentes.
     Passou-se uma semana; passaram-se duas.O Lago, gelado, duro, parecia chumbo derretido. Pairava sobre a terra um nevoeiro úmido. No ar adejavam bando de gralhas pretas, silenciosas. Tudo parecia adormecido. Mas de repente um raio de sol deslizou pela superfície do lago e ele resplandeceu como estanho derretido. A camada de neve que cobria o campo e o cerro já não brilhavam tanto.Mas o vulto branco, o próprio inverno, ainda lá estava sentado, com os olhos voltados para o sul. Não notou que o tapete de neve se ia afundando na terra, e que iam aparecendo aqui e ali manchinhas verdes, que atraiam imediatamente multidões de pardais.
     - Pio-pio-pio-pio! Virá já a primavera? Vira já?
     - A primavera! A primavera!
    E o brado ressoava por campos e prados e através das matas escuras, onde o musgo, de um verde tenro, brilhava nos troncos das árvores. Já vinham voando, das bandas do sul, as primeiras cegonhas: traziam às costas duas graciosas criancinhas - um menino e uma menina, que atiravam beijos para a terra. Onde quer que pusessem  o pé, brotavam da neve flores alvíssimas. De mãos dadas foram se aproximando do velho de gelo, e, depois de saudá-lo, agasalharam-se no seu peito. Imediatamente tudo - as três criaturas e a paisagem que os cercava- tudo ficou envolto em uma cerração espessa. O vento foi expulsando, em violentas rajadas, névoa densa. O sol resplandecia, já cálido. Sumira-se o inverno e no trono do ano do ano apareciam somente os belos filhos da primavera.
                 Isto sim! - diziam os pardais. - Isto é que se pode chamar de Ano Novo! Agora sim, vamos recuperar o que nos tomou o rigoroso inverno.
               Em toda a parte, por onde andavam as crianças, brotavam os gomos verdes das árvores. Das moitas de arbustos crescia a relva e as semeaduras ficavam mais verdes, mais viçosas. A menina ia espalhando flores, que levava no vestido arregaçado; pareciam brotar ali, e por mais que ela as espargisse, tinha o regaço sempre cheio. Arrebatada e cheia de fervor, ela semeou abundante nevada de flores sobre pessegueiros e macieiras, antes mesmo que  brotassem no caule as folhinhas verdes.
            E bateram palmas, ela e o menino. E imediatamente apareceram, voando em bando, pássaros que não se sabe de onde vieram: mas todos eles gorjeavam e cantavam:
           - Chegou a primavera! Chegou a primavera!
            Que maravilhoso espetáculo!
           Avozinhas encanecidas saíam à luz do sol, espreguiçando-se, contentes; e, vendo as flores amarelas que brotavam por toda a parte nos prados, sentiam renovar-se nelas a mocidade: o mundo rejuvenescia e elas diziam:
            - Que belo dia o de hoje!
            A mata ainda trajava seu vestido pardo esverdeado: era um mar de gomos. Mas já desabrochara aspérula, fresquinha e cheirosa: brotavam as violetas, as anêmonas e primaveras. E cada folhinha de grama estava cheia de seiva e de viço. Era um tapete magnífico, que convidava a gente a deitar-se nele. E, de fato, lá estava estendido na relva o casalzinho da primavera, de mãos dadas, cantando; e sorrindo e cantando,iam crescendo e crescendo.
           Nem notavam que ia caindo do céu uma chuvinha suave. E gotinhas de chuva e lágrimas de alegria confundiram-se. Os noivos abraçaram-se, e no mesmo instante desfraldou-se a verdura da mata. Quando o sol surgiu, todas as florestas resplandeciam de tão verdes.
             E o casal de noivos lá andava, de mãos dadas, sob a abóboda de folhagem, onde os raios de sol desenhavam efeitos de luz e sombra. Num murmúrio claro e vivo corriam regatos e ribeiras sobre o leito de pedrinhas multicores, por entre os juncos, de um verde aveludado. É a Natureza dizia .
          - O mundo é perfeito e eterno, e assim será sempre e sempre!
          O cuco gritava e a calhandra trinava; era uma primavera esplêndida. Só os salgueiros ainda usavam luvas de lã, que abrigavam flores: eram muito prudentes. Mas gente assim é tão aborrecida...
            Passaram-se dias, passaram-se semanas. O calor parecia descer em catadupas. Ondas de ar quente atravessavam o trigal, que ia ficando cada dia mais amarelo. O lótus branco das regiões setentrionais espalhava suas grande folhas verdes sobre a superfície dos lagos da mata abrigando os peixes que buscavam a sua sombra.
            Na orla do bosque ficava a casa campestre, que o sol ilumina, aquecendo as rosas recém-desabrochadas e as cerejeiras crivadas de frutinhas escuras, suculentas, quase cozidas do calor; ali estava sentada a graciosa esposa do verão, aquela que vimos anda criança, depois já noiva. Pousa o olhar nas nuvens que sobem do horizonte, e que ondulam escuras e pesadas como montanhas, subindo cada vez mais no céu. Vinham de três lados diferentes e iam crescendo sempre; desciam depois, como um mar invertido e petrificado sobre o bosque, onde todas as vozes tinham emudecido como por encanto. Já não havia a mínima aragem; nenhum gorjeio. Toda a natureza respirava  só gravidade expectativa. Pessoas a cavalo e a pé corriam pela estrada e pelos caminhos, no afã de alcançar um abrigo, um teto protetor...Eis que de repente surge uma luz, como se o sol irrompesse chamejante ofuscando e devorando tudo. Mas logo tornou a escuridão, como um estrondo retumbante. Caía a água em catadupas. Luz e treva, silêncio e estrondo, alternavam-se constantemente. O caniço novo ondulava seu penacho pardo sobre o banhado; caíam trevas, irrompia de novo a luz; revezavam-se os estrondo. Relvados e trigais, abatidos pelas águas, jaziam acamados, como se não pudessem jamais tornar a erguer-se.
      De repente a chuva enfraqueceu; eram agora gotas avulsas que caíam. De novo resplandeceu o sol, e as gotinhas brilhavam como pérolas sobre hastes e folhas. Trinavam os passarinhos; os peixes pulavam dento d'Água. os mosquitos dançavam no ar, e lá fora, sobre  uma pedra, em meio das águas salgadas do mar, fustigadas pelo vento, estava sentado o verão; era um moço robusto, de membros vigorosos, e tinha o cabelo a gotejar água. Remoçado no banho refrescante, ali estava , sob os raios quentes do sol. Toda a natureza rejuvenescera; tudo se ergui agora, viçoso, forte, belo. Era verão, verão! O agradável e quente verão!
         Dos trevos cheios de frescura erguia-se um aroma suave. Ao pé deles adejavam as abelhas, zumbindo em torno da antiga sede da assembleia do seu povo. Os galhos da groselheira cingiam as pedras do altar, que lavadas da chuva, brilhavam à luz do sol. Ali voava a rainha das abelhas com seu enxame, que ia preparar cera e mel. Ninguém as viu, a não ser o verão e sua esposa; para eles somente fora posta a mesa do altar, com as oferendas da natureza.
      Luzia o céu da tarde como ouro; fulgia como nenhuma cúpula de igreja poderia fulgir. No firmamento, entre o arrebol da tarde e a aurora, via-se a lua: era pois o verão.
      E de novo passavam os dias e passavam as semanas. No meio dos trigais brilhavam as foices polidas dos  ceifeiros. Os galhos da macieira vergavam ao peso das frutas vermelhas e amarelas. O lúpulo, pendente dos altos tufos, exalava agradável perfume. À sombra da aveleira cheia de cachos pesados, descansava o verão, ao lado de sua grave esposa.
      - Que riqueza! - dizia ela. - Espalhavam-se em roda de nós as bençãos do céu. Em toda a parte desfruto conforto, bem-estar; e todavia, não sei por que, estou com saudade...saudade de sossego, de tranquilidade. Andam  já lavrando os campos. Os homens querem ganhar sempre e sempre, cada vez mais! Olha como descem as cegonhas em bando, e vão andando a alguma distância atrás do arado: é a ave egípcia, que nos trouxe pelos ares. Não te lembras da nossa chegada, quando éramos pequeninos, a este país do Norte? Trazíamos flores, a bela luz do sol e a verdura das matas. O vento é cruel para as árvores, coitadas! Deixa-as pardas e escuras, como as do Sul; mas as daqui não se carregam de frutas douradas, como aquelas...
      - Queres então ver as frutas douradas? - perguntou o verão. - Pois vais ter esse prazer.
      Ergueu o braço e as folhas da mata tingiram-se de vermelho e ouro. A sebe de roseiras resplandeceu de frutinhas cor de fogo. Os galhos dos lilases dobravam-se sob o peso de grandes bagas pardacentas. As castanhas, já maduras, caíam dos ouriços verde-escuros. No chão do mato, as violetas floresciam pela segunda vez.
     A rainha do ano, contudo, ia ficando cada vez mais pálida, mais taciturna.
     - O vento frio aí vem - dizia ela. - A noite traz um nevoeiro úmido...Tenho saudades da terra da minha infância.
     E, vendo as cegonhas partirem, uma a uma, estendia as mãos, como se quisessem ir com elas. Olhou para os ninhos, já desertos; em em deles crescia o lóio de haste comprida, e em outro havia um pé de colza amarela; dirse-ia que não tinham eles outra finalidade a não ser  proteger abrigar aquelas plantas. Os pardais foram fazer uma visita aos ninhos das cegonhas.
   - Pio, pio! Onde estão os donos? Parece que essa gente não pode suportar o sopro do vento, por isso abandona o país. Pois boa viagem!
    As folhas da mata iam ficando cada vez mais amarelas e caindo umas sobre as outras. Desencadeavam-se as tempestades do outono. Já avançara muito o ano, e sobre o leito das folhas amarelas repousava a rainha, fitando com o olhar suave uma estrela cintilante. A seu lado estava o marido. Soprou uma rajada de vento que ergueu as folhas em turbilhão; e , quando caíram, aos montões, a rainha sumiu-se. Apenas uma borboleta, a derradeira do ano, esvoaçava no ar frio.
    E chegaram as neves úmidas. Soprava agora um vento gelado. As noites , escuras e compridas, sucediam-se em procissão. O rei do ano lá estava, com a cabeleira branca como a neve; mas ele não o sabia: pensava que aquilo eram flocos de neve caídos das nuvens, como aquela camada fininha que cobria o prado verde.
    E os sinos repicavam, saudando a época do Natal.
     - Repicavam os sinos do Natal - disse o rei.- Em breve há de nascer o novo par de soberanos e então poderei descansar, como minha mulher. Descansaram, na estrela cintilante...
     No bosque de pinheiros, fresco e verde, no meio da neve, estava o anjo do Natal, que abençoava as arvorezinhas novas, as árvores que iriam dar esplendor à sua  festa.
     - Ainda tens de trabalhar- disse o anjo; ainda não é hora de descanso! Deixa que a neve se estenda, para aquecer a nova semeadura. Aprende a suportar que se honre a outro, embora sejas ainda o soberano. Aprende a viver, mesmo esquecido já... A hora da liberdade há de chegar, quando chegar a primavera.
     - E quando virá a primavera? - indagou o inverno.
      - Quando a cegonha voltar.
      E lá estava sentado, com a cabeleira branca e a barba nívea, glacial, dobrado ao peso do tempo, mais ainda vigoroso com a tempestade hibernal, ainda forte como o poder do gelo- o inverno! Lá estava no alto da colina, sobre um montão de neve, como os olhos fitos no sul, como outrora tinha ficado sentado a olhar... O gelo estalava; a neve crepitava; os patinadores faziam giros sobre os lagos polidos; as gralhas e corvos destacavam-se nitidamente no fundo branco. Nem a mais leve aragem...No ar quieto, o inverno cerrava os punhos, enquanto o gelo cobria o espaço que ficava entre as margens do rio, em uma espessura de algumas braças.
     E de novo chegaram da cidade os pardais, a perguntar.
    - Quando virá a primavera? Quando virá a primavera? Teremos então bom tempo e melhor alimentação...O ano velho não prestou!
    Pensando , em silêncio, o inverno acenou para o mato desfolhado e negro, onde cada árvore mostrava bem a forma e a curva dos galhos nus. Durante o sono  hibernal desciam das nuvens as nevoas glaciais. E o soberano sonhava, sonhava com a sua juventude e com a idade madura. Ao romper do dia a floresta inteira resplandecia coberta de geada rutilante; era o sonho do verão, sonhado pelo inverno. A luz do sol espalhava geada sobre os galhos das árvore.
    E os pardais perguntavam:
  - Quando virá a primavera?
    E, como um eco, das altas colinas cobertas de neve, veio um som:
   - Primavera!
    O sol era mais ardente; a neve ia derretendo; os passarinhos puseram-se a cantar:
    - Primavera! Primavera!
     Lá pelas alturas singrava a primeira cegonha; e logo a segunda. E cada uma trazia à costas uma criança encantadora. As cegonhas descerram sobre os campos. As crianças beijaram os torrões de terra e o velho silencioso, que num instante desapareceu, como Moisés, levado pela cerração.
      E estava acabada a história do ano.
     - Sim!- disseram os pardais. - É muito bonita. Mas esta história não está de acordo com o calendário; portanto, não vale nada.
FIM
 

Significado do Nome Nívea

Nívea: Significa “da neve”, “branca como a neve”.





















domingo, 21 de fevereiro de 2016

A Margarida das Galinhas - Contos de Andersen


    Sobre as copas das velhas árvores esvoaçavam gralhas e corvos, granando sempre. Fervilhavam ali as aves, em número incalculável - e que parecia aumentar quando estourava um tiro entre elas. Lá do galinheiro onde a Margarida estava sentada, cercada de patinhos que corriam por cima dos seus tamancos a todo o instante, ouvia ela a  vozearia das aves negras.
    Ela conhecia as galinhas e os patos, um por um, desde que tinham descascado; e orgulhava-se das suas aves, e da bela casa que possuíam. Ela mesma tinha o seu quartinho nessa casa, um quartinho sempre limpo e agradável, como queria a dona da quinta. A dama ia muitas vezes até lá, acompanhada de visitas importantes e elegantes, às quais desejava mostrar o " quartel das galinhas e dos  patos", como chamavam àquela casinha alegre.
    No quarto da Margarida havia uma poltrona e um guarda- roupa: e até uma cômoda, sobre a qual se via uma placa de latão, bem areada. onde se via gravada a palavra " Grubbe". Era o nome da antiga e aristocrática família que dominara no antigo castelo senhorial. A placa foi achada em uma escavação do terreno, e, segundo dizia o sacristão, valia agora  apenas como lembrança. E ele era bem informado, sabia muita coisa do lugar e dos antigos tempos. Sua  sabedoria provinha dos livros; tinha na gaveta muitas notas que tomara. Mas... talvez a mais velha das gralhas ainda soubesse mais que ele, e propalava o que sabia lá na sua língua... Mas era língua de gralha, e o sacristão, por mais instruído que fosse, não entendia essa linguagem.
    No verão, ao fim de um dia muito quente, pairavam brumas acima do pântano; parecia então que por detrás das velhas árvores, abrigo das gralhas, se estendia um grande lago. Assim era, na verdade, quando vivia ali o  Cavalheiro Grubbe, no velho castelo de muralhas espessas e vermelhas.
    Atravessando a torre chegava-se a um corredor ladrilhado, que ia ter aos quartos. As janelas eram estreitas e as vidraças muito pequenas, mesmo no grande salão de danças. Mas nos tempo do último dos Grubbe, ninguém já se lembrava que ali houvera bailes, noutra época! E contudo existia ainda lá um velho atabale, que servira na orquestra.
     Havia um armário, ornado de artísticas esculturas, onde eram guardados bulbos de flores raras, pois a Sra. Grubbe gostava de plantas; cultivava árvores e arbustos, enquanto seu marido preferia sair a cavalo, à caça de lobos e javalis - sempre acompanhado de sua filhinha Maria. A menina, já aos cinco anos, montava admiravelmente, e saía a cavalo, os grande olhos negros encarando tudo e todos com arrogância. Era para ela um grande prazer dar chicotadas nos cães de caça; mas o pai desejaria antes que ela as fizesse cair nas costas dos camponesinhos que corriam a ver os amos, feito uns basbaques.
    O camponês que morava na choça de barro ao pé do castelo tinha um filho chamado Soren, da idade da pequenina donzela aristocrata. Era seguro e ágil e trepava às árvores com a maior facilidade. A menina mandava-o subir para lhe trazer ninhos. As aves despojadas soltavam grandes gritos, e um dia uma grande ave deu-lhe uma bicada que o rapazinho ia ficar cego. Mas o olho não fora atingido.
    Maria Grubbe chamava-o " o meu Soren - alto  favor de que se valeria um dia o pai do rapazinho, o pobre Jon. Cometera ele uma falta qualquer e o castigo que lhe deram foi montar o cavalo de pau, que havia no patio. O cavalo tinha quatro estacas em vez de pernas, e as costas não eram mais que uma tábua estreita, sobre a qual tinha de se acomodar o cavaleiro improvisado. Além disso lhe amarraram  aos pés pesados tijolos, para que não se sentisse tão comodamente instalado no cavalo... Soren, chorando, implorou piedade à menina, a qual deu ordem imediata para livrarem  Jon daquele suplício. Como não lhe obedeceram, bateu o pé e foi puxar o pai pela manga até rasgá-la. Obtinha tudo quanto queria e tiveram de lhe fazer a vontade: o pai de Soren foi descido do cavalo.
   Vinha entrando nesse momento a Sra. Grubbe; acariciou os cabelos da filha e deitou-lhe um olhar cheio de ternura - mas a menina não sabia por que era aquilo...
    Maria preferiu ir ao canil, ver os cães de caça, a acompanhar a mãe que desceu pelo jardim, indo até o lago onde floresciam os lírios d'Água; os juncos acenavam por entre o canavial, as plantas aquáticas erguiam os penachos. Vendo aquela exuberância, sentindo aquela frescura, a mãe exclamou:
     - Como isto aqui é agradável!
     Havia naquele tempo uma árvore rara no jardim; ela mesma a plantara: era uma faia preta, de folhas muito escuras, espécie de mancha negra entre as árvores. É planta que precisa de muito sol: se viver sempre na sombra fica tão verde como as outras árvores e perde aquela particularidade esquisita.
    Nos castanheiros altos abundavam os ninhos, assim como nas moitas do prado. Dir-se-ia que as aves sabiam que eram protegidas naqueles sítios, onde não era permitido matá-las a tiro.
    Para lá se dirigiu a pequena Maria, acompanhada de Soren, o menino que trepava destramente pelos troncos acima. Por mais alto que se abrigassem ovos e filhotes ainda mal-emplumados eram desalojados das copas sem dificuldade. Cheias de medo, espantadas, esvoaçavam as aves, grandes e pequenas. No campo e nas copas das árvores gritavam incessantemente os quero-queros, os corvos e gralhas, tal qual como fizeram sempre e até hoje costumam fazer.
    De repente a senhora perguntou:
   - Que é que estão fazendo aí, meus filhos? Mas... isso é um crime!
    Soren mostrou-se intimidado e a própria pequena donzela aristocrata baixou o olhar por um momento. Mas foi só um momento: respondeu com voz rápida e arrogante:
    - Tenho licença do papai!
     - Crá, crá, crá! Vamos embora, vamos embora! - gritaram as enormes aves pretas, voando para longe.
      No dia seguinte, porém, voltaram todas pois aquela era a sua casa.
     Quem não ficou muito tempo naquela casa foi a senhora suave e taciturna. Chamou-a o Senhor; e, na verdade, poder-se-ia dizer que sua terra estava antes lá  ao lado de Deus do que naquela quinta. Dobravam os sinos do campanário, cheios de majestade, enquanto levavam o corpo para a igreja; e os pobres tínhamos olhos úmidos, porque ela sempre os tratara com muita bondade.
     Depois que ela se foi, ninguém mais se ocupou com as plantas; o jardim transformou-se num deserto.
    Diziam que o Sr. Grubbe era homem duro. Mas, mesmo assim pequenina, a filha o dominava.
    Ele só sabia rir para ela e a menina obtinha então quanto queria. Estava já com doze anos e era de compleição robusta. Aquele olhos negros pareciam varar a gente de lado a lado. Montava a cavalo como um homem e era tão destra no tiro de espingarda como um caçador experimentado.
    Um dia passaram pela região visitantes ilustres; os mais ilustres que se podia imaginar: o jovem rei acompanhado do seu meio-irmão, o Sr. Ulrich Friedrich Gyldenlowe. Queria caças javalis e para isso foram à quinta onde passariam alguns dias.
    À mesa ficou Gyldenlowe ao lado de Maria Grubbe. Tomou-lhe ele de repente a cabeça entre as mãos e deu-lhe um beijo, como se fossem parentes. Ela, porém, vibrou-lhe uma bofetada, declarando que não o suportava. E todos riram do caso como se fosse coisa muito engraçada.
     E... quem sabe se não era mesmo engraçado? Passados cinco anos - tinha ela então dezessete - chegou um mensageiro com uma carta: o Sr. Guldenlowe pedia a mão da nobre donzela. E olhem que isso era coisa muito importante!
     - É o cavalheiro mais distinto e valente de todo o reino - disse o Sr. Grubbe. - Não deves rejeitá-lo.
      - Huuum ... Não gosto muito dele! - disse Maria.
     Contudo, não rejeitou o homem mais distinto do reino, o que se sentava ao lado do rei.
     Lá seguiram em um navio para Copenague a prataria e as roupas de fino linho e de lã, enquanto Maria Grubbe fazia a viagem por terra, em dez dias. Ora, aconteceu que ventos contrários a princípio, calmarias depois detiveram no caminho o enxoval, que levou quatro meses para alcançar a capital. E quando afinal lá chegou, já não encontrou a Sra. Gyldenlowe, que desaparecera...
      - Antes quero dormir numa cama forrada com o pano mais grosseiro do que numa toda coberta de seda! E acho melhor andar descalça, a pé, do que ir sentada na carruagem ao lado dele!
      Numa tarde de novembro, ao escurecer, duas mulheres a cavalo entraram na Cidade de Aarhuus; era a sra. Gyldenlowe e sua criada. Vinham da cidade de Weile, onde tinham desembarcado, vindas num navio de Copenague. Detiveram-se diante da casa de pedra que o Sr. Grubbe possuía em Aarhuus. O pai não gostou nada daquela visita inesperada; ralhou seriamente com a filha, mas acabou cedendo-lhe um cubículo para dormir. Serviam-lhe também pela manhã a sopa de cerveja a que estava habituada; mas o pai continuava zangado, e ela não estava acostumada com aquilo. Não era de caráter suave,e, como devemos sempre responder quando alguém nos fala, ela não poupava as respostas falando com amargura do marido, com o qual não queria viver: achava que sua dignidade não lhe permitia isso.
     Assim se passou um ano - e não foi um ano agradável! Palavras iradas cruzavam-se muitas vezes entre pai e filha, coisa que jamais deveria acontecer! Ora, palavras ruins só podem produzir frutos ruins, e ninguém sabia de que maneira iria acabar tudo aquilo.
     - Não podemos ficar ambos sob o mesmo teto - disse um dia o pai. - Vai instalar-te na nossa velha quinta. Mas... escuta: é preferível que mordas a língua a espalhares mentiras entre o povo!
      Separaram-se. Ela foi estabelecer-se com a criada na velha quinta onde nascera e onde a mulher taciturna e silenciosa, sua mãe, jazia enterrada na cripta da igreja. Seu único protetor era um velho pastor que morava na quinta.
       Os quartos estavam cheios de teias de aranhas, que pendiam do teto, pretas, pesadas, poeirentas. No jardim cresciam todas as plantas à vontade: entre árvores e moitas estendia-se o lúpulo e outras trepadeiras, formando extensas redes. A cicuta e a urtiga viçavam com um vigor extraordinário. A faia, toda coberta por outras plantas, estavam bem abrigada, e suas folhas eram agora verdes, como as da árvores comuns: nada lhe restava da antiga magnificência.
     Gralhas  e corvos voavam por cima dos altos castanheiros,e, a julgar pela vozearia que erguiam, haviam de ter novidades importantes para contar.
     Ah! Ela estava de volta, a pequerrucha que mandava outrora roubar suas ninhadas...E o ladrão, o rapazinho que subia para ir buscar os ovos e os filhotes, içava-se agora em uma árvore sem folhas: lá estava ele sentado no alto do mastro de um navio - e apanharia boas chicotadas com uma corda bem grossa se se mostrasse desajeitado...
      Foi o sacristão quem nos contou tudo isso, há pouco tempo. Reunira e compilara o material em livros e anotações, e guardara tudo em uma gaveta, com muitos outros escritos.
      - O mundo tem altos e baixos - disse ele. A gente acha tudo isto tão estranho...Mas vejamos o que foi feito de Maria Grubbe, sem esquecer, contudo, a Margarida das galinhas, que habita agora a vistosa casinha das aves... Maria Grubbe também lá estava, no seu tempo, mas essa não pensava como pensa hoje a velha  Margarida...
    Passou o inverno: passou a primavera, e passou o verão. Voltou a época tempestuosa do outono, com as cerrações, tão úmidas e tão frias. Na velha quinta a vida era solitária e aborrecida.
     Maria Grubbe pegava na espingarda e lá se ia para os campo, matar lebre e raposas, e quanta ave podia abater. Mais de uma vez encontrou o nobre Sr. Palle Dyre, de Norrebak que vagava também pelos campos com a espingarda e a matilha. Era alto e forte, e vangloriava-se disso toda vez que com ela conversava. Poderia competir com o Cavalheiro Brockenhuus, de Egeskov, na Ilha Fiôna, cuja memoria ainda estava presente na lembrança de toda a gente. Seguindo o exemplo do saudoso cavalheiro, mandara Palle Dyre suspender acima do potão do seu castelo uma buzina de caça, presa a uma corrente de ferro, e quando voltava a casa, apanhava a corrente, erguia-se do chão , com cavalo e tudo, e tirava um som da buzina.
     - A senhora deve ir ver isso, D. Maria! O ar que se respira em Norrebak é um ar livre e fresco.
     Não ficou registrado o dia em que ela foi para o castelo; mas os castiçais da Igreja de Norrebak tinham, gravados, os nomes dos doadores: Palle Dyre e Maria Grubbe
      Sim, Palle Dyre era forte e alto, e bebia como uma esponja. Era como um barril sem fundo que jamais se podia encher. Grunhia como um chiqueiro inteiro; era  vermelho e tinha o rosto inchado. É a filha de Grubbe dizia:
      -É sujeito manhoso e pérfido.
     Cansou-se de viver a seu lado, sem que as coisas melhorassem nunca. Um belo dia, servida a mesa, os pratos esfriaram: Palle Dyre saíra para caçar raposas e a senhora não foi encontrada em parte alguma. Palle Dyre tornou à casa pela meia-noite, mas a senhora não voltou, nem à meia-noite, nem no outro dia.
    Montando a cavalo, saíra de Norrebak, sem adeuses e sem saudades.
    O dia era úmido e sombrio e soprava um vento cortante. Um bando de aves negras voava, aos gritos, acima de sua cabeça.
     Maria dirigiu-se para o Sul e foi até a Alemanha. De caminho empenhava anéis de ouro e outras joias. Tomou depois rumo de Leste, mas voltou e seguiu para o Oeste. Viajava sem nenhum objetivo; ia andando e inimizando-se com todo o mundo - até com Deus Nosso Senhor, tamanha era a sua miséria moral. Dentro em breve sentia também o corpo abatido, a ponto de nem já poder andar. E, vendo-a caída sobre o montículo onde tinha o ninho, o quero-quero pôs-se a esvoaçar, gritando, conforme o costume: "Ladra!Ladra!" E, contudo, a pobre Maria jamais roubara bens alheios- somente, quando menina, mandava tirar os ovos e os filhotes das aves. E isso lhe vinha agora à memória...
    Do ponto onde estava deitada, avistava as dunas. Lá, à beira-mar, viviam os pescadores, mas se sentia sem forças para ir até a praia. No alto esvoaçavam as gaivotas, gritando coma as gralhas e os corvos da velha quinta. Desciam no Voo e agora lhe pareciam negras como o carvão- e tudo ficou em trevas para os seus olhos.
     Quando os reabriu, sentiu que alguém a levava. Um homem alto e robusto a erguera e levava-a nos braços. Olhou para o seu rosto barbudo: tinha sobre um olho uma cicatriz que lhe atravessava a sobrancelha, separando-a em duas metades. levou-a até o navio; lá ouviu do capitão palavras coléricas em troca do ato que praticara.
    No dia seguinte o navio fez-se ao mar. Maria Grubbe não desembarcou; é de supor pois, que seguiu viagem nele. Parece que voltou mais tarde. mas quando? E onde aportou?
    Também sobre esse ponto o sacristão sabia alguma coisa- e não era apenas uma história compilada por ele à custa de muito trabalho. Obtivera a estranha narração de um velho livro, digno de inteira fé, livro que qualquer um de nós pode também obter e ler. O escritor dinamarquês Ludwig Holberg, que escreveu tantos livros interessantes e tantas comédias cheias de graça, que nos mostram bem a sua época e os costumes contemporâneos, fala de Maria Grubbe nas suas cartas e narra como a encontrou. Vale a pena saber essa história, mas nem por isso havemos de esquecer a  Margarida das galinhas, que lá vive, contente e bondosa, na bela casa das aves...
      Tínhamos visto partir o navio que levava Maria Grubbe.
      Passaram-se muitos anos.
      A peste assolava agora Copenague - era o ano de 1711. A rainha da Dinamarca retirou-se para a sua Pátria. a Alemanha; o rei abandonou a capital. E só não fugia a toda pressa quem não tinha meio nenhum de escapar. Os estudantes, ainda que tivessem alojamento e alimentação gratuitos, abandonavam a cidade, o último que restava na hospedaria gratuita, foi-se também. Partira às duas da madrugada, levando a mochila que continha mais livro e manuscritos do que roupa. Pairava acima da cidade um nevoeiro úmido e nas ruas não se via alma vivente. Cruzes traçadas nas portas das casas indicavam que nelas penetrara a epidemia, ou que já exterminara os moradores. Passou uma grande carroça, aos sacolões. Aos estalos do chicote do cocheiro os cavalos galopavam: ia cheia de cadáveres. O moço estudante cobriu o rosto com a mão, inalando ao mesmo tempo álcool concentrado que levava em um tubo provido de uma esponja.
      De um botequim, que ficava numa viela, vinham gritos e gargalhadas sinistras: gente que passava a noite bebendo para esquecer que a epidemia estava às suas portas e pronta a reuni-los também aos defuntos da carroça.
      O estudante dirigiu-se para a canal, junto à ponte do castelo, onde se viam alguns navios pequenos: um deles ia levantar ancora para fugir à cidade empestada.
       -  Se Deus nos conservar a vida e se tivermos vento favorável, viajaremos para o Estreito de Groen, perto da Ilha de Falster - disse o capitão.
        Indagou depois o nome do estudante que queria tomar parte na viagem.
       - Ludwig Holberg- respondeu ele.
       Aquele nome não tinha nenhum som diferente dos outros, naquele tempo; e contudo, hoje, é um dos mais ilustres da Dinamarca. Naquela época, porém não passava do de um jovem estudante desconhecido.
       Deslizou o navio pela frente do castelo; ainda não era dia claro quando alcançaram o mar. Leve brisa enfunava as velas; o estudante acomodou-se no chão, rosto exposto ao ar fresco, e logo adormeceu -coisa que não era nada aconselhável.
     Já na manhã do terceiro dia ancorava o navio na Ilha de Falster. O estudante perguntou  ao capitão se conhecia alguém ali que quisesse hospedá-lo por pouco dinheiro.
    - Acho que ficaria bem em casa na barqueira, em Borrehaus - disse o comandante. - Se quiser mostrar-se bastante cortês, chame-a de mãe Soren Sorenson Mullaer. Mas é bem possível que se enfureça se usar termos muito polidos. O marido está preso por ter cometido um crime, e é ela quem agora conduz a barca, pois tem pulso para isso!
     Tomando a mochila, lá se foi o estudante em busca da casa da barqueira. Como a porta não estava  fechada, entrou; viu uma peça ladrilhada, onde o móvel mais importante era um catre, coberto com uma grande colcha de pele. Uma galinha branca, rodeada da ninhada estava amarrada ao pé do catre. Tinha virado o bebedouro e a água escorrera pelo ladrilho. Não havia ninguém naquela peça, nem no cubículo contíguo, a não ser uma criança que dormia no seu berço.----
    Afinal a barca voltou; vinha nela uma pessoa- não se podia dizer se era homem ou mulher: estava envolta em um vasto manto e trazia a cabeça abrigada com um capuz. A barca atracou.
    Foi uma mulher quem desembarcou e entrou na casa. Era impressionante o seu aspecto, quando se aprumou. Olhos soberbos luziam sob as sobrancelhas negras. Era a mãe Soren, a barqueira. Mas... as gralhas e os corvos haviam de gritar outro nome, um nome que conhecemos bem!
     Vinha carrancuda: não parecia gostar muito de conversas. Mas enfim ficou assentado que o estudante se hospedaria em sua casa por tempo indeterminado - enquanto as condiçoes de vida não melhorassem em Copenague.
     Alguns homens sérios da pequenina cidade vizinha iam de vez em quando visitar a casa da barca : o cutileiro Franz e o cobrador de impostos, Sivert. Tomavam uma caneca de cerveja e discutiam com o estudante. Diziam que era moço de muito valor, que lia latim e grego, e dava outras provas de grande sabedoria.
     Ao que a mãe Soren replicava:
     - Quantos menos uma pessoa sabe, menos a sabedoria lhe pesa...
     Um dia disse-lhe Holberg, ao ver como abria os nós de pinho com as mãos e depois as mergulhava na áspera barrela em que embebia a roupa:
      - Dura é a vida que a senhora leva...
       - Oh! Isso é comigo!
       - E desde criança sempre teve de se cansar assim?
        - O senhor pode ver nas minhas mãos.
       Mostrou-lhas: eram pequenas, mas ásperas e de unhas quebrada. E continuou:
       - O senhor é um erudito, sabe ler...
       Pelo Natal caíram fortes nevadas. Vieram os grandes frios, Soprava um vento cortante, que até parecia carregar água-forte para lavar o rosto das pessoas. À mãe Soren pouco importava que soprasse o vento ou que o frio lhe cortasse o rosto. Enrolava-se no manto, punha o capuz à cabeça e arrostava o tempo. Ainda ia em meio a tarde e já a casa estava às escuras. Ela meteu a lenha e turfa na lareira e sentou-se para cerzir as meias, pois não tinha quem a ajudasse nos trabalhos da casa. Ao anoitecer começou a conversar com o estudante e disse-lhe mais palavras do que era seu costume. falou do marido.
        - Por imprudência ,matou um marinheiro de Dragor e por isso foi condenado a trabalhos forçados: terá de trabalhar três anos, acorrentado. Como é um simples marinheiro, aplicaram-lhe logo a lei.
         - A lei também pune as classes superiores - disse Holberg.
         - O senhor acha que é assim?
         Durante alguns momentos esteve a olhar para as chamas, depois retomou a palavra:
        - Nunca ouviu falar de Kai Lykke, que mandou demolir uma igreja que havia nas suas terras e, como  o pregador Martin o censurasse do púlpito por isso, mandou prendê-lo e julgá-lo pelo tribunal, que o condenou à morte, e, de fato, foi decapitado? Não foi um homicídio por imprudência,e, contudo, Kai Lykke nada sofreu.
      - Segundo as leis da época, era direito seu. Fizemos progressos, de então para cá...
        - Sim... O senhor pode dizer isso ao tolos!
      E a mãe Soren levantou-se, foi ao quartinho onde dormia a criancinha, acomodou-a melhor e voltou. Fez a cama do estudante, a quem dera a colcha de pele porque era mais friorento do que ela, apesar de ter nascido na Noruega.
     O dia de Ano Bom raiou, na verdade, claro e cheio de sol. O frio era contudo tão forte que a neve caída durante a noite endurecera, podendo-se caminhar sobre ela. Os sinos da cidadezinha repicavam, chamando os fiéis à igreja. O estudante Holberg cobriu-se com seu manto de lã para ir à cidade. Por sobre a casa da barca voavam gralhas e corvos, e tal era a gritaria que soltavam que mal se ouvia o repique dos sinos. A mãe Soren estava enchendo de neve uma caldeira de latão, para o derreter ao fogo e obter assim água potável. Olhava para as aves que fervilhavam por cima da casa, e lá martelava as suas idéias...
      O estudante Holberg dirigiu-se para a igreja. Tanto na ida como na volta passou pela casa do cobrador Sivert, que ficava junto ao portão da cidade. Convidaram´-no para romar uma caneca de cerveja quente , com mel e gengibre. A conversa recaiu sobre a mãe Soren, a respeito de quem  o cobrador não sabia lá grande coisa: não sabia mais que a maioria das pessoas, pois pouca gente estava informada de sua vida . Disse que ela não era da Ilhna de Falster e que provavelmente em outro tempos dispusera de recursos mais abundantes: o marido era um simples marujo de temperamento fogoso, que matara um marinheiro de Dragor e batia na mulher. E, apesar disso, ela o defendia!
      - Não era eu quem havia de tolerar semelhante tratamento! - declarou a mulher do cobrador. - É verdade que descendo de gente melhor: meu pai era fabricante de meias da Casa Real.-----------------
    -  Por isso mesmo a senhora casou com um funcionário real! - disse Holberg, cumprimentando a ambos com mesura.
      Chegou a noite de Reis. A mãe Soren acendeu um círio dos Magos para Holberg - isto é, uma vela de sebo de três pontas, que ela mesma preparava.
      - Cada ponta por um homem! - disse Holberg.
      - Como? - disse ela, lançando-lhe um olhar penetrante.
       - Sim, cada um dos Homens Santos do Oriente.
      - Ah! Sim...
        Calou-se a mulher. Mas foi nessa mesma noite que ele veio a saber mais alguma coisa.
     - A senhora dedica um verdadeiro carinho a seu marido - disse o estudante. - E contudo dizem que ela a maltrata...
      - Isso é coisa que só a mim diz respeito - e a mais ninguém! As pancadas poderiam ter-me feito bem, em criança. Agora as recebo pelos meus pecados. Mas eu sei o bem que ele me fez.
      E, levantando-se, continuou:
      - Quando eu lá estava, atirada no campo deserto, doente, sem que ninguém se interessasse por mim, quando todos evitavam o meu contato, exceto as gralhas e os corvos, que ansiavam por me comer a bicada, ele me carregou nos braços, e ainda teve de suportar as palavras de censura por levar semelhante despojo para bordo do navio... Como não me abato por pouca coisa, depressa me refiz. Cada um tem o seu jeito e o seu modo de viver: Soren tem o dele e não se deve julgar o cavalo pelo cabresto. O que é certo é que vivi ao seu lado uma vida mais agradável do que com aquele a quem me chamavam o mais distinto, o mais elegante , entre todos os súditos do rei...Tive por esposo o Governador Gyldenlowe, meio irmão do rei, depois casei com Palle Dyre...Um valia tanto quanto o outro, cada qual à sua maneira - e eu cá à minha... Pois digo-lhe que falei muito hoje, mas agora já o senhor sabe tudo...
      Era Maria Grubbe! Que estranho jogo da vida!
      Não viu muitos dias de Reis além daquele. Holberg conta que ela morreu em 1716, não registrou. porém, o fato que se passou, quando ela jazia morta, na casa da barca: uma multidão de aves negras, enormes, esvoaçavam em volta da casa, mas sem gritar. Dir-se-ia que sabiam que num enterro devemos guardar silêncio. Assim que ela foi enterrada, desapareceram as aves; mas nessa mesma noite surgiram lá na Jutlândia, nos arredores da velha quinta, bandos enormes de gralhas e corvos, gritando cada qual mais alto, como se tivessem alguma coisa para contar. Talvez quisessem falar daquele meninozinho que lhes roubava os ovos e os filhotes, o filho do camponês a quem o rei presentou com uma jarreteira de ferro e da donzelinha aristocrata que acabou a vida como mulher de barqueiro...
     - Crac! crac! Bravo! bravo!- gritavam as aves.
     E toda a sua descendência gritava, quando demoliam o velho castelo:
     - Crac! crac! Bravo! bravo!
     E o sacristão começou a falar:
    - Elas ainda gritam do mesmo modo, e contudo já não ha mais motivo para gritar: a linhagem extinguiu-se; o castelo foi demolido,e, no sítio em que se erguia dantes, apruma-se agora um lindo aviário, com seu cata-vento dourado; e lá está a Margarida das galinhas, muito contente com a sua agradável morada...
      Depois concluiu:
      - Porque, se ela não tivesse achado aquele lugar para viver, teria ido parar no asilo de mendigos.
      Acima da cabeça dela arrulhavam as pombas. Pelo chão tagarelavam os perus; os patos não paravam um momento de grasnar. E diziam lá entre si:
     - Ninguém a conhece. Ela não tem família...E é por pura misericórdia que a deixam ficar aqui. Não tem nem pai-pato, nem mãe galinha, nem tampouco possui descendentes...
      Mas a verdade é que a Margarida tinha uma família. É que eles não sabiam, nem mesmo o sacristão, a despeito de ter tanta coisa escrita na gaveta.
     Mas uma das gralhas velhas sabia da história e contou-a. A mãe e avó tinham-lhe falado da mãe e da avó da Margarida das galinhas. Nós também lhe conhecemos a avó: nós a vimos, ainda criança, cavalgando soberba, atravessando a ponte levadiça e lançando ao redor olhares arrogante, como se o mundo e todos os ninhos de aves lhe pertencessem, Nós a vimos no charneca, e nas dunas, e finalmente na casa da barca. A neta, a derradeira da estirpe, voltara àquela terra, onde outrora se elevava o velho castelo do morgado, àquela terra onde as negras aves silvestres levantavam a sua gritaria.
    La porém. lá estava sentada entre as aves domésticas, que a conheciam e gostavam dela. E a Margarida das galinhas nada tinha a desejar: esperava a morte com alegria, pois já estava bastante idosa.
    - Crá! crá! crá! - gritavam as gralhas , esvoaçando por cima da casa.
      E isso, lá na língua das gralhas, por certo queria dizer:
      - Cova ! cova! cova!
      Pois bem: a Margaridas das galinhas teve afinal a sua cova, mas ninguém sabe onde ela fica, a não ser a velha gralha preta - se é que ainda não morreu também.
      Ficaste, pois, sabendo toda a história daquela velha quinta, da antiga estirpe dos Grubbe, e de toda a família da Margarida das galinhas.
 FIM


 Círio:
   Vela grande, com aproximadamente 80 centímetros de comprimento com 10 cm de diâmetro, usada nas cerimônias religiosas
Despojo:
 substantivo masculino plural
tudo aquilo que sobra; restos, fragmentos.  
       



sábado, 13 de fevereiro de 2016

A AVE DOS CÂNTICOS DO POVO- CONTOS DE ANDERSEN

Inverno. A camada de neve que recobre a terra parece uma capa de mármore, talhado da rocha. O ar é límpido e claro, o vento, afiado como uma espada de aço batido. As árvores erguem-se , cobertas de corais brancos, como amendoeiras em flor. A atmosfera é leve e fresca como nos cimos dos Alpes.
     À luz da aurora boreal, a noite é magnífica, no esplendor de estrelas sem conta.
     Vem as tempestades. As nuvens levantam-se no céu, sacodem-se e deixam cair plumas de cisne. Os flocos de neve turbilhonam, cobrem desfiladeiros e casas, campos abertos e ruas fechadas.
     Mas nós estamos sentados na sala aquecida, ao pé da estufa cheia de brasas, contando histórias dos tempos antigos. Ouçamos uma lenda:
     Erguia-se à beira-mar um túmulo pré-histórico. À meia-noite achava-se sentado sobre as pedras o espírito do herói ali sepultado, e que fora outrora um rei. Luzia-lhe na fronte o diadema de ouro, enquanto o vento lhe agitava os cabelos. Estava todo revestido de ferro e aço. A cabeça pendia-lhe, pesarosa, sobre o peito; e o espírito suspirou, como se mágoa profunda o abatesse: dir-se-ia uma alma penada.
    Aproxima-se um navio; a maruja lança âncora e  desembarca. Vem entre os marujos um poeta, que se acerca do espírito do rei, indagando:
     -  Por que estás triste? Que é que te aflige assim?
      E o defunto respondeu:
     - É que ninguém contou os meus feitos. Estão todos mortos, esquecidos. Nenhum canto os transmite a outras terras, nem os grava no coração dos homens. por isso não encontro paz nem descanso.
       E o espectro falou de suas obras, de suas façanhas, conhecidas dos seus contemporâneos, que não tinham celebrado, pois que não havia entre eles um só poeta.
     Então o bardo tangeu as cordas da lira e cantou; cantou o valor juvenil do herói, a força do homem, a grandeza das sua boas ações. E, ao ouvi-lo, o rosto do morto resplandecia, como a orla da nuvem à luz do luar. Alegre e feliz ergueu-se o vulto, rodeado de raios e de  auras, e sumiu-se, como a aurora boreal. Só se via agora o túmulo coberto de grama verde, cujas pedras não tinham letra alguma. Mas sobre ele esvoaçava aos últimos acordes da lira, e como se desta vez tivesse saído, uma avezinha, um passarinho encantador; tinha a voz sonora do tordo, a voz animada do coração humano, o próprio som da pátria, tal como o ouve a ave de arribação. E o passarinho vou sobre montanhas os vales os campos e bosques : Era o ave dos cânticos do povo que nunca morre. E nós ouvimos o seu canto. Ouvimo-lo agora na sala, enquanto lá fora as abelhas brancas caem em exames e a tempestade se abate sobre as coisas. A ave não canta somente a nênia do herói- canta também cantos de amor, meigos e suaves, e cantos ardentes, cantos numerosos, da lealdade que impera no  Norte. Canta contos de fadas, em palavras e sons, adágios e máximas rimadas, que, dispostas como runas sob a língua do finado, o constrangem a falar.
    E é assim, que o cântico do povo fica sabendo tudo da sua terra natal.
    Nos velhos tempos pagãos, na era dos "vikings", a voz da ave ficou morando na harpa do bardo.
    Nos dias dos castelos dos cavalheiros, no tempo em que a balança da Justiça se erguia do punho fechado do forte, na era em que a razão repousava na força, naqueles tempos em que um camponês não tinha mais valor que um cão - onde iria a ave do cântico do povo encontrar abrigo e proteção? Nem a rudeza nem a estupidez se preocupavam com ela.
    Mas no mirante do castelo feudal, a castelã, sentada diante do pergaminho, anotava velhas recordações e lendas e cantigas antigas: a velhinha do bosque e o mascate que anda vagando pelo mundo vão visitá-la, e contam-lhe essas lendas e essas cantigas- e eis que a ave voa por sobre a sua cabeça, batendo as asas, gorjeando e cantando, a ave que nunca morre, que não morrerá enquanto houver na terra uma colina onde possa pousar: a ave dos cânticos do povo.
     Agora chega até nós o seu canto. Lá fora tudo são trevas e cai neve. Ela nos insinua as runas debaixo da língua. Conhecemos a nossa terra natal. Deus fala conosco na na nossa língua materna - na voz da ave dos cânticos do povo . Ressurgem as velhas recordações; avivam-se as cores desmaiadas; a lenda e o canto instilam uma bebida abençoada, que eleva a alma e enobrece os pensamentos a tal ponto que a noite se transforma em uma festa - uma festa de Natal.
    Turbilhonam os flocos de neve; estala o raio; impera a tormenta, pois dela é o poder: ela nos domina - e contudo não é Deus, não é  Nosso Senhor.
    Inverno. O vento corta como uma espada de aço batido. Turbilhonam os flocos de neve. Parece que está nevando há dias, há semanas; a neve se acumula sobre a grande cidade, numa montanha imensa, como um pesadelo na noite  hibernal. Tudo o que há na terra está oculto: desapareceu tudo, exceto a cruz dourada da igreja, símbolo da fé. A  cruz ergue-se acima do túmulo de neve, brilhando no ar azul, à clara luz do sol.
     E sobre a cidade sepultada voam as aves do céu; voam as aves, grandes e pequenas, gorjeando, chilreando, piando, cada uma com a voz que Deus lhe deu.
     Vem em primeiro lugar o bando de pardais, piando ao menor incidente que apareça na rua e na travessa, no ninho ou na casa; eles sabem histórias de todas as peças das casa, e dizem:
     - Piu, piu, piu! Conhecemos a cidade sepultada! Piu, piu! Tudo que ali vive tem voz: Piu, piu, piu!
      As negras gralhas  e os corvos negros voam sobre a neve branca:
     - Grasn! grasn! grasn!
     Eles queriam dizer: Sepultura, sepultura! Mas a língua não ajudava ; e então grasnavam:
     Lá embaixo talvez ainda se arranje alguma coisa para o papo - e é isso o que serve, afinal, segundo a opinião da maioria dos que lá vivem. E é uma opinião respeitável, a  da gente grave! Grav! grav! grav!
     É isso; não podiam dizer o que pretendiam, porque a língua não ajudava.
     Vem os cisnes bravos, com as asas a zunir, e cantam coisas magníficas, coisas grandiosas, que ainda um dia hão de brotar dos pensamentos e dos corações humanos lá embaixo, na cidade que descansa, sob a camada de neve.
     Lá não há morte; lá reina a vida. E nós a ouvimos, nos sons que retinem como o órgão da igreja, que nos comovem como as melodias de colina dos silfos, como os hinos de Ossiam; como o bater ruidoso das asas das valquírias. Que harmonia! Ela fala ao nosso coração, elava-nos as ideias- é a ave dos cânticos do povo que estamos ouvindo....
     Nesse instante vem do céu um bafejo quente. os montes de neve enchem-se de fendas, por onde penetra a luz do sol. Vem a primavera, vem as aves, novas gerações de aves, com as mesmas vozes da Pátria.
      Escuta a história do ano:
      O poder da nevasca, o pesadelo da noite hibernal- tudo se transforma, tudo se eleva, ao esplêndido gorjeio da ave dos cânticos do povo, da ave que jamais há de morrer!
FIM
   

   Bardo:Um bardo, ou aedo, na Europa antiga, era uma pessoa encarregada de transmitir histórias, mitoslendas e poemas de forma oral, cantando as histórias do seu povo em poemas recitados. Era simultaneamente músico e poeta e, mais tarde, seria designado de trovador. É a principal raiz da música tradicional irlandesa. O bardo usava frequentemente um alaúde para tocar suas melodias e músicas, que contavam na maioria das vezes uma história triste.

Tordo: tordo-comumtordo-músico ou tordo-pinto (Turdus philomelos) é uma ave pertencente ao género Turdus.[2] [3] Ocorre naturalmente na EuropaNorte de ÁfricaMédio Oriente e Sibéria,[4] e foi introduzida na Austrália e Nova Zelândia durante a segunda metade do século XIX.[5] Dependendo da latitude, pode ser residente, migratória ou parcialmente migratória, possuindo trêssubespécies geralmente aceites.[4]

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O PRÍNCIPE MALVADO - CONTOS DE ANDERSEN

  Era uma vez um príncipe muito perverso, que só pensava em conquistar todos os países do mundo e inspirar medo às criaturas humanas. Por onde passava, ia assolando a terra a ferro e fogo. Seus soldados pisoteavam as sementeiras, incendiavam as casas dos camponeses, deixando as chamas vermelhas lamberem a folhagem do pomar, de tal maneira que as frutas ficavam assadas nas árvores enegrecidas e estorricadas. Quantas mães não procuraram refúgio, com os filhinhos nos braços, atrás das paredes ainda fumegantes da casa incendiada! Mas lá mesmo iam os soldados descobri-las, e, dando, com as infelizes, ainda achavam maior estímulo para seus diabólicos instintos! O próprio gênio do mal não poderia proceder com maior maldade do que aquela soldadesca. Mas o príncipe entendia que assim devia ser, que aquilo era regular e lícito.
   Aumentava dia a dia o seu poder. Seu nome era de todos temido, e sempre se saía bem de todas as façanhas. Possuía grandes tesouros, que levara das cidades conquistadas para o seu país, e na capital acumulavam-se riquezas que não tinham rival em parte alguma. Mandou construir castelos suntuosos, igrejas, salões de recepção; e quem via aquelas magníficas construções e os tesouros que continham, não podia deixar de exclamar, tomando de respeito:
    - Que grande príncipe!
     Mas é porque não se lembrava então da miséria que ele andara espalhando pelas outras terras; é porque não ouvia os suspiros e os gemidos que erguiam das cidades reduzidas a cinzas.
    Contemplando todo o seu ouro e seus esplêndidos edifícios, o príncipe também pensava como a multidão: " Que grande príncipe sou eu!" Mas vinha-lhe logo outro pensamento:
     - É preciso que tenha mais ainda, muito mais! Nenhum poder deve igualar ao meu e menos ainda ultrapassá-lo!
      E, assim pensando, moveu guerra aos vizinhos, vencendo-os a todos. Jungiu ao seu carro, com cadeias de ouro, os reis vencidos, e assim se exibiu pelas ruas da capital. Quando se regalava à mesa, os reis vencidos tinham de se ajoelhar aos pés e dos cortesãos, e só podiam comer os restos que lhes atiravam.
      Acabou por fazer erigir a própria estátua nas praças públicas e nos castelos reais; e se não a instalou também nas igrejas, diante do altar do Senhor, foi porque os sacerdotes se lhe opuseram, dizendo:
    - Vossa Alteza é grande, mas Deus é maior. E nós não obedeceremos a semelhante ordem.
   - Pois então - bradou o príncipe- vencerei também a Deus!
   E na sua arrogância e estúpida impiedade, mandou construir um suntuoso navio, para nele sulcar os ares,
   Era um navio de magnífico aspecto e todo pintado de cores variegadas. Parecia salpicado de milhares de olhos, mas , na verdade, cada olho era um cano de fuzil. Sentado no centro da nave, bastava-lhe calçar uma alavanca para que mil balas disparassem de todos o lados, enquanto as bocas de fogo eram imediatamente carregadas de novo. Centenas de águias foram atreladas ao navio, e, rápidas como flechas, subiram em direção ao sol.
   Como a terra se estendia lá embaixo!Com suas montanhas e florestas, parecia apenas uma lavoura cheia dos sulcos do arado. Mas dali a pouco já se assemelhava a um mapa raso, de traços não muito distintos; e por fim aparecia toda envolta em névoas e nuvens.
   E as águias voavam cada vez mais alto, mais alto nos ares...
   Mas eis que Deus mandou um dos seus inúmeros anjos - um único. O príncipe malvado lançou contra ele milhares de balas; elas porém, ricocheteavam , sem ferir as asas brilhantes do anjo, e caíam como simples grãos de granizo. Contudo, uma gota de sangue, uma só gota, brotou de uma das alvas penas e foi cair no navio do príncipe. E essa gota única corroeu o navio, pesou sobre ele como milhares de quintais de chumbo e arrastou-o para baixo, em uma queda precipitada. Partiram-se as robustas asas das águias. O vento uivava ao redor da cabeça do príncipe e as nuvens formadas pela fumaça das labaredas das cidades incendiadas transformavam-se em vultos ameaçadores - caranguejos marinhos, de milhas de comprimento, que estendiam para ele garras e pinças; e amontoavam-se formando imensos penedos. E desses penedos rolavam blocos, que se convertiam logo em dragões a cuspir fogo...
   E o príncipe jazia semimorto no bojo do navio, que ficou afinal suspenso, depois de um baque tremendo, sobre uma floresta.
   - Quero vencer a Deus! - bradava o príncipe. - Jurei-o e hei de fazer o que quero!
    E sete anos se passarem na construção de artísticos navios que haviam se singrar os ares, como veleiros. O príncipe mandou cortar raios do aço mais resistente para despedaçar as fortificações do céu. Concentrou-se  guerreiros de todos os países que conquistara: formavam filas de milhas de extensão. Embarcaram esses exércitos nos navios engenhosamente construídos; o príncipe aproximou-se do que lhe era destinado...
    Mas eis que Deus enviou um enxame de mosquitos- um único enxame, não muito grande, de mosquitos que dançavam em redor do príncipe, picando-lhe o rosto e as mãos. Enraivecido, desem bainhou a espada e deu golpes no ar. Mas era só no ar que acertava mesmo: não apanhava um só mosquito. Mandou então buscar tapetes preciosos e enrolou-se neles, para se livrar dos insetos. Os criados executaram todas as suas ordens. Mas um mosquito- um único mosquito - ficou no interior do tapete e introduziu-se no ouvido do príncipe. Picou-o e a picada ardia como fogo que queima. O veneno do mosquito infiltrou-se-lhe no cérebro e o príncipe, como um louco, lançou longe os tapetes em que se envolvia. Despedaçando as roupas, pôs-se a dançar, completamente despido, diante dos seus ferozes guerreiros. Estes agora zombavam do príncipe doido, que quisera guerrear Deus e fora vencido por um só mosquito, por um minúsculo mosquito. FIM