Estava muito triste o pobre João; seu pai encontrava-se muito, muito doente, e ia morrer. Achavam-se ambos sozinhos no quartinho estreito. A vela que ardia sobre a mesa chegara já no fim, pois era muito tarde da noite.
- Tens sido um bom filho, João -disse o pai - e o Senhor te protegerá neste mundo.
Olhou ainda uma vez para o filho - um olhar ansioso e cheio de ternura - e expirou.
João chorou amargamente; agora não lhe restava mais ninguém no mundo - nem pai, nem mãe, nem irmão, nem irmã. Coitado! Ajoelhou-se ao pé da cama e beijou a mão do pai morto. E chorou, chorou, até que seus olhos se fecharam, e pegou no sono, com a cabeça apoiada no encosto duro da cama.
Teve então um estranho sonho: sonhou que via o Sol e a Lua inclinando-se diante dele. Viu também no sonho o pai, vivo, e forte, rindo como nos dias felizes de outrora. Uma linda moça, que trazia uma coroa de ouro sobre os longos cabelos, estendia a mão a João, enquanto o pai lhe dizia:
- Vê que linda noiva a tua, João! É a moça mais linda do mundo!
Nisto acordou, e todas aquelas belas visões se desvaneceram: o pai jazia na cama, morto e gelado, e não havia mais ninguém ao pé dele. coitado do João!
No dia seguinte foi o enterro. João acompanhou o esquife do pai, que tanto o amara, e que já não veria mais. Ouviu caírem as pazadas de terra sobre o caixão, e ficou olhando, até que a terra encobriu o último cantinho do ataúde. estava triste, tão triste, que lhe parecia sentir o coração despedaçar-se dentro do peito. Depois, os que tinham acompanhado o morto cantaram um hino tão comovente, que o rapaz sentiu outra vez as lágrima lhe subiram aos olhos. Chorou, e isso lhe fez bem: abrandou-lhe a dor. Sentiu-se mais consolado. O sol, que brilhava por entre as folhas verdes das árvores, parecia dizer-lhes:
- Não te desespere, João! Ergue os olhos, e vê como o céu está azul e lindo. E lá que está teu pai, rogando ao Senhor que vele sempre por ti!
- Também eu quero andar sempre reto na vida- disse João. - Assim me reunirei a meu pai, lá no céu. Que alegria, ver-nos de novo! Quanta coisa terei então para lhe contar! E ele me guiará e me ensinará, explicando-me os esplendores do céu, como me ensinava tudo aqui na terra. Como seremos felizes!
E joão via tudo aquilo, com tamanha certeza e tão grande fé, que sorria já por entre as lágrima. Os passarinhos chilreavam nos castanheiros - "tu-iii! tu-iii! " Estavam muito alegres, mesmo na hora do enterro, porque sabiam que o morto fora para o céu, e que agora tinha asas maiores e mais belas do que as deles. Sabiam que ele era feliz agora, porque tinha sido um homem bom aqui na terra- e alegravam-se muito com isso.
Viu-os João a voar; saíram das árvores verdes e seguiram pelo vasto mundo. e ele sentiu também um grande desejo de acompanhá-los. Antes, porém, de partir, quis fazer uma grande cruz de madeira, para assinalar a sepultura do pai. Quando foi cravá-lo no túmulo, achou-o todo coberto de areia e de flores. Mãos de estranhos, que tinham amado seu pai, porque era um homem bom, tinham ornado sua sepultura.
De manhã bem cedo João empacotou o que lhe pertencia, meteu no cinto toda a sua herança, que consistia apenas em cento e poucos cruzeiros, e com essa bagagem saiu a correr mundo. Primeiro, porém, foi ao cemitério; ajoelhou-se ao pé da sepultura do pai e rezou o Pai Nosso. Depois afastou-se, dizendo:
- Adeus, pai querido! Serei sempre um homem honesto para que possas sempre rogar a Deus que me proteja!
Os campos que atravessou estavam cheios de florzinhas que desabrochavam ao sol, embalando-se ao sopro da brisa; pareciam dizer-lhe:
- Bem- vindo sejas às nossas verdes campinas, bem-vindo! Não achas lindo este prado?
João voltou-se para ver ainda uma vez a igreja antiga, onde fora batizado, e aonde ia todos os domingos rezar, em companhia do pai. Avistou então lá no alto, na janelinha do campanário, o anãozinho da igreja, com seu gorrinho vermelho e pontudo; fazia pala com a mão, para defender os olhos da luz, e olhava para ele. João disse-lhe adeus cá de baixo, e anãozinho pôs a mão sobre o coração, agitou o gorro vermelho, e depois atirou-lhe beijos com os dedos unidos em pinha- era a sua maneira de dizer que lhe desejava boa viagem e felicidade.
Pensando sempre nas coisa esplêndidas que ia ver no grande e belo mundo que ficava além do horizonte, ia andando para a frente, sem parar, e achou-se em lugares onde nunca estivera antes. Não conhecia as cidades que ia atravessando,nem as pessoas que encontrava no caminho. Estava já em país estrangeiro.
Dormiu na primeira noite em um monte de feno. em pleno campo, porque não tinha outra cama. Achou-a, contudo, muito comoda, e pensou que nem o rei a teria melhor. Que quarto poderia ser mais belo do que aquele- o campo extenso, o arroio, o monte de feno, e tudo coroado pelo céu azul? Era na verdade um quarto maravilhoso. Tapete era o campo verde, todo estrelado de florzinhas vermelhas e brancas . os sabugueiros e as cercas de roseira silvestre eram as guirlandas de flores, e para lhe servir de toucador ali estava o riacho , cheio de água fresca e cristalina. os caniços inclinavam-se com querendo dizer: "Boa noite!" e "Bom dia !" E a lua era mesmo uma imensa lamparina, pendurada lá em cima , no céu azul; e não havia perigo de pegar fogo ao cortinado!
João podia pois dormir a sono solto, e foi o que ele fez: dormiu como uma pedra, e só acordou quando o sol apareceu e os passarinhos todos começaram a cantar em volta dele:
- Bom dia ! Bom dia! Não acordas hoje, dorminhoco?
Já os sinos repicam, porque era domingo. Dirigiam-se os camponeses à igreja, e João acompanhou-os. E quando ouvia a palavra de Deus, parecia-lhe que se achava na mesma velha igreja onde fora batizado e onde rezava ao lado de seu pai.
No cemitério, ao pé da igreja, havia muitos túmulos; alguns estavam cobertos de ervas daninhas. Lembrou-se o moço da sepultura do pai, que havia de ficar também assim mesmo, agora que ele não estava lá para tratar dela. Ajoelhou-se e começou a arrancar as ervas silvestres, endireitou as cruzes de madeira caídas, e pôs no lugar os ramos de flores que o vento espalhara. E ia pensando consigo:
- Talvez alguém faça o mesmo no túmulo de meu pai, já que eu não posso cuidar dele.
No portão do cemitério encontrou um velho mendigo, apoiado a uma muleta. deu-lhe o dinheiro miúdo que levava e continuou seu caminho - ia correr mundo- contente e tranquilo. Ao anoitecer o tempo transtornou-se; estava iminente uma tempestade terrível. João apurou o passo para ver se encontrava abrigo nalguma parte, mas depressa escureceu de todo. Avistou afinal uma capelinha solitária, no alto de um outeiro. Encaminhou-se para lá e verificou, contente, que a porta estava entreaberta; entrou para esperar ali até que a tempestade amainasse.
- Vou acomodar-me num cantinho - disse consigo.
- Estou tão cansado que o repouso me fará bem.
Sentou-se, pôs as mãos e disse as orações da noite. E pegou no sono, quase sem mentir, e enquanto a tormenta rugia lá fora, ele sonhava.
Acordou pelo meio da noite. Passara a tormenta, e agora o luar entrava pela janela. Viu então que no centro da igreja havia um ataúde com um morto dentro, esperando o enterro. João não era nada medroso. Tinha a consciência tranquila, e sabia bem que os mortos não fazem mal a ninguém; os vivos, sim - e justamente lá estavam dois homens vivos, parados junto do morto, que fora deposto ali até a hora do enterro. Tinham um plano indigno, que era impedi-lo de descansar tranquilamente no seu caixão. Queriam tirar o corpo para fora da igreja - aquele corpo indefeso do homem morto.
- Mas por que querem fazer isso? - perguntou João. - É uma ação má e um pecado! Pelo amor de Deus, deixem o homem descansar!
- Tolices! - exclamaram os dois malandros. - Ele nos logrou. Devia-nos e não pode pagar. E agora, que tornou a nos lograr, morrendo, não vamos receber dele nem um centavo. por isso nos vingaremos dele. Há de ficar do lado de fora da igreja, como um cão!
- Não possuo mais que cem cruzeiros - disse o bondoso rapaz. - É toda a minha fortuna. Mas dou-lhes tudo de boa vontade se me prometem deixar em paz o pobre homem. Ora! Posso ficar sem dinheiro: Tenho saúde, braços fortes, e Deus há de ajudar!
- Sim, sim! - responderam logo os malfeitores. - Se estás disposto a pagar a sua dívida, não lhe poremos a mão: podes contar isso!
E pegaram no dinheiro e foram embora, rindo às gargalhadas da simplicidade do rapaz. Enquanto isso, este acomodava de novo o cadáver no caixão: cruzou-lhe as mãos e saiu, metendo-se por dentro do mato, contente consigo mesmo.
Por onde filtrava um raio de luar, via pequeninos elfos, que se divertiam com suas danças, sem se importar com ele, pois sabiam que era bom e honesto. Só os maus nunca podem ver os elfos. Havia alguns do tamanho de um dedo, e tinham os longos cabelos louros presos com grampos de ouro. Embalavam-se , dois a dois, nas gotas de orvalho que cintilavam nas folhas de grama. De vez em quando as gotas rolavam e eles caíam entes as hastes do capim. E os bonequinhos minúsculos riam e divertiam-se muito com isso, porque era na verdade engraçado mesmo. Cantavam e João entendia suas lindas cantigas: eram as mesmas que ele cantava quando era pequenino.
Enormes aranhas, coroadas de ouro, estavam muito atarefadas: fiavam longas pontes e palácios entre as moitas, e quando se formavam finas gotinhas de orvalho sobre aquelas teias, elas brilhavam como espelhos ao luar. Tudo isso continuou assim até romper do sol; quando este surgiu, os elfos esconderam-se no seio das flores. O vento despedaçou as pontes e os palácios, que esvoaçaram pelos ares como teias de aranha.
João saía do mato quando ouviu uma voz forte de homem que o chamava:
- Olá, meu rapaz! Aonde vais nesse passo?
- Vou indo pelo vasto mundo - disse João. - Não tenho família. Sou pobre, mas sei que o Senhor olhará por mim.
- Pois eu também ando correndo mundo - disse o desconhecido. - Bem poderíamos ir juntos!
E lá se foram. Dentro de pouco tempo estavam amigos, pois ambos eram boas criaturas. Mas não tardou que João descobrisse que lhe faltava muito para igualar o outro em conhecimentos. O companheiro tinha visto muito mundo e sabia discorrer sobre todas as coisas.
Já o sol estava alto quando se sentaram à sombra de uma árvore para almoçar. Nesse momento avistaram uma velinha que vinha manquejando. Era tão velha e encurvada, que parecia dobrada pelo meio, e caminhava apoiada a uma muleta. Trazia às costas um feixe de lenha que juntara no mato. No seu avental dobrado, João notou que levava dentro daquela espécie de bolsa grandes feixes de fetos e varas de salgueiro. Ao chegar perto deles, a velhinha escorregou e caiu no chão; pôs-se então a gritar, porque a coitada tinha quebrado uma perna.
João disse logo que ambos levariam para casa a pobre velha, mas o estrangeiro abriu o saco de viagem e tirou dele um pequenino pote de unguento, declarando que aquela pomada podia curá-la completamente no mesmo instante, de sorte que ela poderia ir para casa caminhando tão bem como se nada lhe tivesse acontecido. Em troca, pedia-lhe os três feixes de varas que ela levava no avental.
-É muito caro! É um preço muito alto! - disse a velha , sacudindo a cabeça, a considerar:
Não queria desfazer-se daquelas varas, é claro : mas também não era nada agradável ficar ali com a perna partida; assim é que consentiu em pagar o preço pedido. Nem bem ele acabava de esfregá-la com o unguento, já a velinha se levantava e saía caminhando, e muito melhor do que antes - milagre do unguento, que infelizmente não se encontra à vontade na farmácia!
Para que queres essas varas?- perguntou João ao companheiro.
- São três lindos feixes de folhagem! Despertaram-me atenção, e gostei deles, porque sou um sujeito meio esquisito.
Quando já iam longe, João observou:
- Como o céu está ficando escuro! Vê que enormes nuvens negras!
- Não, não são nuvens - disse o outro; são montanhas, cujos picos ficam acima das nuvens.Lá a gente respira um ar fresco e puríssimo. E é uma vista magnífica! Amanhã estaremos, com certeza , muito acima disto aqui, bem lá no alto!
Mas as montanhas não ficavam tão próximas como pareciam. Andaram ainda um dia inteiro para alcançá-las. Estavam cobertas de matas sombrias, que se erguiam para o céu, e de rochedos que à distancia pareciam verdadeiras cidades. A escalada exigia grande dispêndio de energias, por isso João e seu companheiro resolveram ficar em uma pousada, para refazerem as forças antes da ascensão.
A grande sala da estalagem estava cheia, porque lá se achava naquele dia um pelotiqueiro, com seu teatrinho de bonecos. Acabava de instalá-lo, e toda aquela gente estava sentada, esperando o espetáculo. Na fila da frente, e no melhor lugar, sentaram-se um açougueiro, gordo e velho, com seu enorme buldogue ao pé de si. E que medonho focinho tinha o cão! Lá estava ele, com os olhos saltados, e tão arregalados como os de todos os mais.
Começou o espetáculo. Era uma peça linda, em que apareciam um rei e uma rainha, sentados em um trono de veludo. Tinham coroas de ouro, e trajes deslumbrantes, com longa cauda -coisa que eles podiam usar, certamente! Bonecos lindíssimos, de olhos de vidro e grandes bigodes, abriam e fechavam as portas, para manter a ventilação da sala. Era uma peça muito linda; e não era triste, nem um pouquinho triste. Mas justamente quando a rainha se levantou para atravessar a cena - só Deus pode saber o que impeliu o enorme buldogue a fazer semelhante coisa!- Como o rotundo açougueiro não o mantinha seguro, o cão deu um salto e foi parar no meio do palco; segurou a rainha pelo frágil peito e só largou em pedaços! Foi uma cena trágica!
O pobre do dono do teatrinho ficou desesperado e profundamente abatido, pois a rainha era mais linda das bonequinhas, e o horrendo buldogue lhe arrancara a cabeça.
Mas depois que tinham saído os espectadores, o estrangeiro que viera com João declarou que podia consertá-la. Tirou do saco um pote de unguento e untou com ele a boneca- era o mesmo unguento que tinha curado a pobre velha da perna quebrada. No mesmo instante a boneca ficou como nova - não: ficou muito melhor. Podia agora mover-se por si , não precisando dos cordéis. Era exatamente como uma pessoa viva-só lhe faltava falar. O pelotiqueiro ficou encantando ao ver que não tinham mais que se preocupar com os cordões daquela boneca, Nenhuma das outra era assim.
Noite alta, quando todos da hospedaria já estava, deitados, ouviram-se suspiros tão altos e tão tristes que todos pularam da cama para verificar o que seria aquilo. O pelotiqueiro foi direto ao teatrinho, porque pareciam vir dali os suspiros. E viu todas as boneca de pau amontoadas uma por cima das outras, e de mistura com elas o próprio rei - e era dali que saíam aqueles profundos suspiros. Tinham nos olhos de vidro um olhar tão suplicante...queriam todos ser também untados, como a rainha, com aquele unguento, para que pudessem ter movimento. A rainha ajoelhou-se, erguendo a sua bela coroa de ouro, como se quisesse dizer:
- Tira-me até isto, se quiseres, mas esfrega também, o rei e seus cortesões!
O pobre pelotiqueiro ficou com tanta pena que não pode reter as lágrima. Prometeu ao viajante todo o dinheiro que apurasse na primeira representação, se ele ao menos untasse quatro ou cindo bonecas, entre as melhores. Mas o estrangeiro disse que não aceitaria pagamento algum em dinheiro; queria apenas a grande espada que pendia da cinta do homem. Recebida a paga, tratou logo de esfregar meia dúzia de bonecas, que começaram imediatamente a dançar; e tão bem dançavam que todas as moças, as moças vivas, que assistiam à operação, começaram também a dançar. O cocheiro dançava com a cozinheira e o criado com a camareira. Os hóspedes também se associaram ao baile, e o mesmo fizeram a pá e as tenazes... mas estas caíram logo ao ensaiar os primeiros passos. Foi um serão bem alegre, na verdade!
De manhã cedo puseram-se os dois viajantes a caminho: começaram a subir a encosta íngreme da montanha altíssima, coberta de pinheiros. Subiram tão alto que lá de cima as torres da igreja pareciam apenas cerejinhas vermelhas entre a verdura. Avistaram ao redor, e a milhas e milhas de distância, lugares que nunca tinham visto. E, quanto a João, não vira jamais tamanha glória como a que lhe oferecia aquele mundo desconhecido. O sol brilhava no azul do firmamento; nas encostas ressoavam as trompas dos caçadores. E tudo era tão cheio de beleza e de doçura, que ele sentiu os olhos inundados de lágrimas exclamando em altas vozes:
- Deus Todo-Poderoso! Queria beijar o chão que pisaram teus pés
O seu companheiro também olhava, de mãos postas, para os bosques e as cidades que se estendiam diante dele, aos quentes raios de sol. Nesse instante ouviram ambos um som admirável, que vinha de cima. Ergueram os olhos e viram um grande cisne branco que voava acima deles; cantava, cantava, como nunca tinham ouvido nenhum pássaro cantar. Mas o canto foi ficando aos poucos , mais fraco , e por fim a ave abaixou a cabeça e veio descendo lentamente, até cair aos pés dos dois homens - morto, o lindo cisne!
- Que magníficas asas! - disse o companheiro de João. - Assim tão grandes e tão alvas, valem muito dinheiro! Vou levá-las. Vê como foi bom ter trazido esta espada!
E de um só golpe cortou ambas as asas da ave morta.
Andaram ainda léguas e léguas pelas montanhas, até que avistaram uma grande cidade; mais de cem torres brilhavam como prata à luz do sol. No centro dela erguia-se um magnífico palácio de mármore, com teto de ouro. Era a morada do rei.
Os dois viajantes não entraram imediatamente na cidade. Ficaram em uma hospedaria dos arredores para mudar de roupa, pois queriam apresentar-se corretamente vestidos pelas ruas. contou-lhes o albergueiro que o rei era um bom homem, que a ninguém fazia mal; mas a filha - Deus nos acuda! - que princesa malvada!
Era muito linda . Ninguém podia ser mais bela, nem mais interessante do que ela - mas de que servia isso? Era uma feiticeira perversa, que já causara a morte de muitos príncipes encantadores.
A princesa tinha declarado que quem quisesse podia apresentar-se como seu pretendente. Fosse lá quem fosse, príncipe ou mendigo, para ela era indiferente : só exigia que o candidato respondesse a três perguntas suas. Se acertasse as respostas, casaria com ela e reinaria sobre toda aquela terra quando morresse o rei seu pai. Mas se não atinasse com a resposta certa, mandava enforcá-lo, ou decapitá-lo. Era assim tão perversa a bela princesa!
O velho rei vivia ralado de desgosto; mas nada podia fazer contra aquela malvadez, porque tinha prometido à filha que não havia de intervir no seu casamento: deixava-lhe a liberdade de escolher quem quisesse e de fazer dos pretendentes também o que bem lhe parecesse. E quantos príncipes se haviam apresentado para obter a mão da princesa, falhando na tentava; e todos haviam morrido na forca, ou perdido a cabeça, porque cada um era avisado antes de enfrentá-la, ainda o tempo de evitar o perigo. Tão aflito vivia o rei, que todos os anos passava um dia inteiro, com os seus soldados, de joelhos, orando para que a princesa se modificasse; mas o caso é que ela não mudava. E , em sinal de luto, as velhas que bebiam aguardente a tingiam de negro antes de engoli-la - tamanho era o seu sentimento- porque nada mais lhes restava senão se lamentar.
- Esta princesa abominável devia levar uma boa sova! - disse João. - É o que ela merece. E se eu fosse o velho rei, havia de surrá-la até escorrer sangue!
Nesse momento ouviram uma gritaria na frente da pousada:
- Viva! Viva!
A princesa passava com seu séquito. E tanta era sua beleza que o povo esquecia, ao vê-la , toda a maldade do seu coração, e saudava-a:
- Viva! Viva!
Acompanhavam-na doze belas moças, vestidas de seda branca, e levando tulipas de ouro; montavam cavalos negros como carvão. O cavalo da princesa era branco como a neve, todo ajaezado de diamantes e rubis. Seu traje de montar era de ouro puro e o chicotinho brilhava como um raio de sol. Cingia-lhe a cabeça uma coroa resplandecente como as estrelas do céu, e o seu manto era todo recamado de milhares de asas de borboletas, muito brilhantes. Mas a própria princesa era ainda mais bela do que tudo isso.
Ao vê-la, João ficou muito vermelho - seu rosto tornou-se cor de sangue - e nem achou voz para dizer uma palavras. É que a princesa era o retrato vivo da linda jovem coroada de ouro que vira em sonhos, na noite em que lhe morrera o pai. Achou-a tão linda que a amou desde aquele momento.
- Não!- dizia consigo. - Ela não pode ser uma feiticeira malvada, que manda enforcar ou degolar os que não lhe adivinham os pensamentos! E, visto que qualquer um pode pretendê-la, ainda que seja um pobre mendigo, irei ao castelo. Não posso deixar de ir!
Quantos o ouviram disseram-lhe que desistisse daquela ideia, se não quisesse acabar como os outros. Seu companheiro também procurou dissuadi-lo; mas ele achava que tudo acabaria bem. Escovou a roupa e os sapato, lavou o rosto e as mãos, penteou o belo cabelo louro, lá se foi sozinho; atravessou toda a cidade, rumo ao palácio.
- Entra! - disse o rei, quando ele bateu à porta.
O moço abriu a porta e entrou, e o próprio rei veio ao seu encontro. estava de roupão e chinelas bordadas; mas tinha a coroa na cabeça, trazendo em uma das mãos o cetro e na outra o globo. Pediu licença a João, enquanto colocava o globo debaixo do braço para poder cumprimentá-lo.
Mas quando se inteirou de que era um novo pretendente à mão da filha, rompeu em pranto. Soluçava com tanta força que caíram ao chão o cetro e o globo, e teve de recorrer ao roupão para enxugar os olhos. Coitado do velho rei!
- Não te metas nessa empresa! - disse ele. -Vais ter a mesma sorte dos outros. Vem quero mostrar-te que é feito deles.
Levou-o ao jardim de recreio da princesa. O que o rapaz viu era espantoso! De cada árvore pendiam três ou quatro filhos de rei, que tinham querido desposar a princesa, e que não puderam decifrar seus enigmas. A cada sopro da brisa os esqueletos se entrechocavam, produzindo um ruído macabro , que espantava os passarinhos; estes já nem ousavam entrar naquele jardim. Todas as flores estavam escoradas com ossos humano, e nos vasos de plantas viam-se caveiras mostrando os dentes. Que belo jardim, na verdade, para uma princesa!
- Estás vendo? - perguntou o rei. - Pois é o que te espera. Ouve-me: renuncia a teu projeto, que me aflige profundamente, porque tudo isto me atormenta a vida!
João beijou a mão do bom rei, dizendo-lhe que estava certo de que tudo iria bem. É que estava enfeitiçado pela beleza da jovem. Justamente naquele momento chegava ela, com todas as suas damas, entravam no pátio do palácio; eles foram cumprimentá-la. Era muito linda, e, quando estendeu a mão ao moço, sentiu-se ele ainda mais enamorado do que nunca.
Entraram no salão do palácio, onde pequenos pajens serviram biscoitos de gengibre e geleia. Mas o rei estava tão triste que nem pode comer nada. Além disso, os biscoitos de gengibre eram muito duros para os seus dentes.
Ficou combinado que João voltaria ao palácio na manhã seguinte, quando estariam ali juízes e todo o conselho para julgar as suas respostas. Se saísse bem da prova, teria de voltar lá ainda duas vezes - o que não tinha acontecido com nenhum candidato.
João, porém, não receava aquela prova. Longe disso! Estava muito alegre a só pensava na formosura da princesa. estava persuadido de que Deus o judaria, não sabia por que meios, mas tinha certeza de se sair bem; e entendia que era melhor não ficar a matutar no caso. E de volta à hospedaria, onde o esperava o companheiro, fez todo o caminho a dançar de alegria. Não se cansava de repetir como era bela a princesa e com quanta amabilidade o tratara. Nem sabia como havia de esperar o dia seguinte e a hora de ir ao palácio para tentar a sorte pela segunda vez. Mas o amigo sacudia a cabeça, muito triste.
- Estimo-te tanto - dizia ele - e poderíamos viver em boa camaradagem ainda por tanto tempo! Mas agora estou arriscando a perde-te para sempre, meu caro João! Meu pobre João! Só tenho vontade de chorar! Mas reagirei! Não quero empanar a felicidade desta noite, talvez a última que nos resta para estarmos juntos. Vamos dar expansão à alegria por hoje, que não faltará tempo para lágrimas amanhã!
Espalharam-se pela cidade a notícia de que a princesa tinha um novo pretendente, e reinava por toda a parte uma tristeza profunda. Os teatros cerraram as portas; as mulheres que vendiam doces amarraram uma tira de crepe nos seus porquinhos de açúcar; o rei e os sacerdotes ajoelharam-se nas igrejas, em ferventes preces; e as lamentações que se erguiam de toda a parte eram ouvidas a grande distância. Porque todos estavam convencidos de que João não poderia ter mais sorte que os outros.
Já tarde da noite o seu companheiro preparou uma grande caneca de ponche e disse-lhe:
- Vamos! devemos estar alegres: bebamos à saúde da princesa!
Mas quando João acabou de beber o segundo copo daquele ponche, sentiu-se de repente tomado de sono tão forte, que não pode manter os olhos abertos : dormiu ali mesmo. O companheiro ergueu-o da cadeira com o maior cuidado e levou-o para a cama.
Assim que escureceu por completo pegou nas asas que tinha cortado do cisne morto e amarrou-as aos ombros: meteu no bolso o maior dos feixes de varas que lhe dera a velha que tinha quebrado a perna na queda. abriu a janela e saiu voando pelos ares; voou por cima das casas e foi ter ao palácio; e ali sentou-se em uma saliência de pedra, debaixo da janela do quarto da princesa.
A cidade inteira estava mergulhada em completo silêncio. Quando os relógios deram as onze e três quartos, abriu-se a janela da princesa e ela saiu voando; vestia roupagens brancas e tinha asas negras. Atravessou a cidade e dirigiu-se para uma alta montanha. O companheiro de João tornara-se invisível, de sorte que a princesa não podia descobri-lo; saiu voando também e durante o vôo ia batendo nela com o feixe de varas, e tão rijo, que cada varada lhe fazia sangrar a carne. E como voavam! O vento enfunava o manto branco da princesa, como se fosse uma vela de barco, e o luar se espalhava nele. Que noite, aquela!
- Ai! Quanta geada! Quanta geada! - gritava a princesa a cada golpe de vara.
Mas era o que ela merecia mesmo.
Chegou afinal à encosta do cerro e bateu. Abriu-se o flanco da montanha com um ribombo de trovão e ela entrou. Ele também entrou, mas ninguém o viu, porque se tornara invisível.
Atravessaram uma passagem muito larga e extensa, iluminada de maneira estranha. Milhares de aranhas fosforescentes corriam pelas paredes, produzindo uma luz viva. Entraram em um grande salão, todo de ouro e prata. Flores enormes, como grandes girassóis, azuis e vermelhas, cobriam as paredes, mas ninguém podia colhê-las, porque as hastes eram cobras medonhas e venenosas, e as próprias flores não passavam de chamas vivas, que dardejavam de suas garras. O teto era vivente: formado de vaga-lumes e morcegos, que agitavam constantemente as asas. Era um lugar medonho! No centro erguia-se um trono, sustentado por quatro esqueletos de cavalos, ajaezados de teias de aranha chamejantes. O trono era de vidro de cor leitosa, e as almofadas que forravam consistiam em ratinhos pretos, que mordiam as caudas uns dos outro. Encimava-o um dossel de teia de aranha rosada, toda semeada de lindas moscas verdes, que cintilavam como esmeraldas.
Ocupava o trono um feiticeiro velho, horrendo, de coroa na cabeça e cetro na mão. Beijou a testa da princesa e sentou-a a seu lado, no trono riquíssimo, enquanto a música começava a soar. Enormes gafanhotos negros tocavam gaita de boca, e uma velha coruja batia no estômago, fazendo-o rufar como um tambor. Mas que concerto fantástico! Miríades de duendezinhos anões, com fogos-fátuos pregados nos capuzes, saltavam ao redor do salão.
Deram entrada no salão os cortesões e as damas, todos com ares de grandes personagens; mas quem observasse com atenção veria logo que tudo aquilo não passava de fingimento: eram cabeças de repolho, espetadas em cabos de vassoura, que o velho feiticeiro tinha enfeitiçado e revestido de roupas bordadas. Isso não tinha, porém, importância alguma, pois que serviam apenas para dar aparência de gente de verdade.
Quando as danças foram interrompidas, a princesa contou ao feiticeiro que aparecera um novo pretendente e perguntou-lhe que adivinhas lhe a havia de propor.
- Deves pensar - disse o feiticeiro - em alguma coisa simples, que o desconcerte. Pensa em um de teus sapatos, por exemplo. Ele nunca se lembrará de semelhante coisa. E então - zás! cabeça fora! E quando vieres amanhã à noite, não te esqueças de me trazer seus olhos, que quero comê-los.
Fez a princesa uma grande reverência, prometendo cumprir o que lhe pedira. o feiticeiro abriu o cerro e ela saiu voando de volta a casa. Mas o amigo de João saíra junto e de novo a vergastava com varadas tão rijas, que ela gemia alto, queixando-se dos granizos que caíam - e apressava o vôo a fim de chegar mais depressa ao seu quarto, onde entrou pela janela. Ele então voltou para a estalagem, onde João continuava adormecido. Desprendeu as asas dos ombros e deitou-se, muito cansado - e com toda razão!
João acordou cedo no dia seguinte. Disse-lhe então o companheiro que sonhara com a princesa - um sonho estranho, em que entrava um sapato da moça. E pediu-lhe que perguntasse se ela não tinha pensado em um dos seus sapatos. É claro que sabia bem de tudo,´pois ouvira a conversa dela com o feiticeiro; mas preferiu não revelar esse segredo ao amigo.
- Pois sim - disse este - tanto faz uma pergunta como outra. Pode bem ser que teu sonho veja verdadeiro, porque tenho sempre confiado na proteção de Deus. Entretanto, vou despedir-me de ti, porque, se não acertar, já sabes, não nos tornaremos a ver.
Abraçaram-se e João seguiu para a cidade. E foi direito ao palácio do rei. o salão estava completamente cheio. Os juízes, sentados em suas poltronas reclinavam a cabeça em almofadas de penas, porque tinham de pensar muito. o velho rei, de pé, enxugava as lágrima com seu alvo lenço.
Entrou a princesa. Estava ainda mais linda do que na véspera, e foi cumprimentando a todos com um sorriso. Mas a seu pretendente ela estendeu a mão, dizendo-lhe:
- Bom dia ! Como passou?
João tinha de adivinhar o que ela trazia naquele instante no pensamento. E a princesa ficou a olhar para ele, de maneira muito amável, esperando , até que lhe ouviu a palavra " sapato". Ah! Então seu rosto ficou branco como cal, e ela estremeceu da cabeça aos pés. Mas de nada lhe valia tremer: João tinha adivinhado!
Justos céus! Como o rei ficou contente! De tão satisfeito, até virou cambalhotas; e todos aplaudiram, tanto a sua proeza como a de João, que acertara a primeira resposta.
Também o seu amigo alegrou-se muito, quando soube que tudo correra tão bem. E João, de mãos postas, deu graças a Deus, certo de que seria igualmente auxiliado nas duas provas restantes. Porque no dia seguinte teria de responder mais uma vez.
Á noite tudo se passou como na véspera. Assim que João pegou no sono, seu companheiro voou no encalço da princesa, batendo-lhe ainda com mais vigor, pois desta vez tomara dois feixes de varas. sempre invisível, via e ouvia tudo. Desta vez a princesa devia pensar na sua luva, e ele comunicou isso ao amigo, como se tivesse sonhado.
Naturalmente João não encontrou a menor dificuldade em acertar a resposta, e o regozijo no palácio não tinha limites. A corte inteira virou cambalhotas, como vira o rei fazer na véspera. mas a princesa ficou imóvel no seu sofá, muda de surpresa.
Tudo dependia agora da resposta que João desse à terceira adivinhação. se acertasse, casaria com a bela princesa e herdaria o reino inteiro, quando o velho rei morresse. Mas se não adivinhasse , perderia a vida e o feiticeiro comeria seus lindos olhos azuis!
À noite, João rezou e foi para a cama cedo, não tardou a pegar no sono - um sono muito tranquilo. Seu amigo amarrou as asas às costas, cingiu a espada, e, pegando nos três feixes de varas, voou para o palácio.
A noite estava escura como carvão; a ventania soprava com tamanha fúria que destelhava as casas. No jardim, onde os esqueletos estavam pendurados , as árvores curvavam-se como juncos. Sucediam-se os relâmpagos sem cessar, e o trovão ribombava, fazendo a terra ressoar a noite inteira. Abriu-se a janela com estrépito e a princesa saiu voando. Estava mortalmente pálida, mas ria da tormenta; para ela podia ser até mais violenta. Seu longo manto branco voava ao vento, como uma vela de navio; e a tudo isso o seu corpo era vergastado com os três feixes de varas. Já o corpo da princesa gotejava sangue, e ela mal podia manter-se no ar. Afinal chegou à montanha - e mesmo não poderia ir mais longe - A ventania está furiosa e cai saraiva constantemente - disse ela ao feiticeiro. - Eu nunca tinha saído com um tempo tão espantoso!
- É que há gente de muita sorte- explicou o feiticeiro.
Contou-lhe ela que João tinha tornado a adivinhar; e que se acertasse ainda no dia seguinte, ganharia a aposta, e ela não tornaria às montanhas. Nem poderia jamais dedicar-se às suas artes de feitiçaria; e essa ideia a afligia muito.
- Ele não acertará desta vez - disse o feiticeiro.-
Hei de achar alguma coisa em que jamais possa pensar - A não ser que seja um mágico mais poderoso do que eu. Mas por agora, vamos dançar!
Pegou nas mãos da princesa e dançou com ela , girando por entre os gnomos pequeninos e fogos-fátuos que estavam no salão. As aranhas vermelhas fiavam alegremente, correndo pelas paredes abaixo e acima; as flores chamejantes pareciam lançar faíscas; a coruja tocava tambor; os gritos cricrilavam; e os gafanhotos negros tocavam gaita de boca. Era um baile divertidíssimo!
A certa altura, a princesa achou que devia voltar antes que dessem falta dela no palácio. Ofereceu-se o feiticeiro para acompanhá-la; gozaria assim mais algum tempo da sua companhia.
Saíram voando no meio da tempestade. o feiticeiro teve de confessar que nunca tinha sentido uma chuva de granizos como aquela. e quando se despediu da princesa, junto do palácio, disse-lhe ao ouvido:
- Pensa na minha cabeça!
Mas ouviu-o o companheiro invisível; e justamente no momento em que a princesa entrava pela janela e o feiticeiro dava volta , apanhou-o pela longa barba negra, e de um golpe de espada decepou-lhe a medonha cabeça; e fez tudo com tamanha presteza que o feiticeiro nem chegou a ver o que acontecera. atirou o corpo do feiticeiro ao mar para que os peixes o devorassem, e, depois de lavar a cabeça, envolveu-a no seu lenço de seda, levando-a para a hospedaria. Chegando lá, deitou-se e adormeceu.
No dia seguinte entregou aquela trouxa a João, recomendando-lhe que não a desatasse senão quando a princesa lhe perguntasse no que tinha pensado.
O salão estava tão cheio de gente que as pessoas se comprimiam umas contra as outras, como rabanetes amarrados em molho. Os juízes lá estavam, sentados nas suas poltronas, com as almofadas macias para a cabeça. o velho rei vestira uma roupa nova, e tinha mandado polir a cora e o cetro, que resplandeciam. Mas a princesa, mortalmente pálida, vestira-se de preto, como se fosse assistir a um funeral.
- Em que pensei? - perguntou ela a João.
Imediatamente ele desatou o lenço; e não foi o menos espantado, é claro, ao ver que rolava de dentro da trouxa a medonha cabeça do feiticeiro. Todos estremeceram àquela vista horrenda, mas a princesa ficou como uma estátua de pedra, sem poder dizer uma palavra.
Por fim levantou-se e estendeu a mão a seu noivo. E, sem olhar para ninguém, soltou um suspiro, dizendo:
- Agora és meu senhor. Hoje mesmo nos casaremos.
- Muito me alegro com isso! - exclamou o rei. - Agora sim, tudo vai bem!
E todo povo deu vivas; a banda militar saiu a tocar pelas ruas e os sinos repicavam ; as confeitarias tiraram os crepes dos porquinhos de açúcar - porque agora a cidade inteira estava em festa. Três bois, recheados de patos e frangos, foram assados inteiros na praça do mercado e postos à disposição do povo. das fontes e chafariz manava vinho - e do melhor! E quem comprava um bolinho recebia de inhapa seis grandes bolos -- e bolos com passas!
À noite , toda a cidade pôs luminária; os soldados deram salvas e os meninos queimaram bichas da China. No palácio houve um grande banquete, com abundância de manjares e vinhos, e só ouvia o tinir dos copos. As gentis damas de honor dançaram com os cavalheiros da nobreza. À grande distância se ouviam as suas canções:
"Aqui estão as moças mais bonitas,
Rodopiando da música aos compassos;
Pedindo que o tambor soe e ressoe
A cadência seguindo dos seus passos.
Gira, donzela ! Gira, e não te canses!
Gira e regira, e faze espalhafato!
E canta, e rodopia, e salta e dança,
Até gastar a sola do sapato!"
Mas a princesa era ainda uma feiticeira, e não tinha amor nenhum a seu noivo.
O amigo do João, preocupado com esse fato, deu-lhe três penas das asas do cisne e um frasquinho com algumas gotas de certo líquido; recomendou-lhe que pusesse ao pé da cama da princesa uma grande tina com água, na qual lançaria as três penas e aquelas gotas . No momento em que a princesa fosse recolher-se, ele devia dar-lhe um um leve empurrão, de modo que ela caísse dentro da tina. Mergulharia então três vezes a princesa naquela água, e assim a libertaria para sempre das artes da feitiçaria. Ela havia de amá-lo ternamente desde então.
João seguiu ao pé da letra os conselhos do companheiro, apesar dos gritos que a princesa deu ao se mergulhada na água. E foi na forma de um grande cisne negro, de olhos de chama, que ela lutou por se desvencilhar das suas mãos. No segundo mergulho ela saiu da água transformada em um cisne branco, com uma coleira negra; e terceira vez que ele forçou a ave a submergir, já saiu da água a bela princesa na sua forma primitiva. Estava mais bela do que nunca, e foi com os olhos rasos dágua que ela agradeceu ao marido de a ter livrado assim do encantamento do feiticeiro.
Pela manhã o velho rei apresentou-se com toda a corte para congratular o casal. O último a chegar foi o amigo de João; trazia a bengala e o saco de viagem.
João abraçou-o muitas vezes, dizendo-lhe que não devia abandoná-los. E, pois que lhe devia toda a sua felicidade, pediu-lhe que ficasse morando com eles. Mas o amigo sacudiu a cabeça, dizendo com muita delicadeza:
- Não, minha hora chegou. Nada mais fiz do que pagar-te uma dívida. não lembras daquele morto que uns malfeitores queriam maltratar? Deste então tudo quanto tinhas para que o deixassem descansar em paz no seu caixão. Pois eu sou aquele homem.
E sumiu-se no instante.
Duraram um mês inteiro as festas do noivado. João e a princesa amava-se muito. O velho rei ainda viveu bastante para ver seus netos: estes trepavam-lhe nos joelhos e brincavam com o cetro real . E quando o rei morreu, João veio a reinar sobre o reino inteiro.
FIM
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
terça-feira, 24 de novembro de 2015
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
UMA FAMÍLIA FELIZ - CONTOS DE ANDERSEN
A maior folha que cresce nos nossos campos é a bardana. Quase que pode servir de avental, no verão, e de guarda-chuva, no inverno, porque é do tamanho gigantesco. Além disso, jamais um pé de bardana vive sozinho: onde aparece um, nascem logo outros, muitos outros, e a moita não tarda em se tornar um mantinho cerrado, que serve para alimentar os caracóis.
Sim, aqueles grandes caracóis brancos, que as pessoas distintas do tempo antigo mandavam guisar, e comiam, soltando gritinhos de satisfação, e dizendo, porque disso estavam convencidas:
- Como é gostoso!
Pois aqueles caracóis nutriam-se de bardana; e é fora de dúvida que essa planta foi criada somente em sua intenção.
Ora, havia uma velha casa, onde ninguém mais comia caracóis, porque fora exterminada a espécie; mas as bardanas; não tinham morrido; ao contrário, vicejam mais vigorosas que nunca, e invadiam tudo, até os canteiros e caminhos. Não era mais possível livrar delas o jardim: era uma verdadeira floresta. Havia ainda, é certo, uma velha macieira, ou uma ameixeira decrépita, mas a ninguém ocorreria a ideia de que aquele maciço de bardanas tivesse sido jamais um jardim.
Pois naquele mato cerrado vivam os dois derradeiros caracóis da raça. Nem eles próprios sabiam mais que idade tinham; mas recordavam-se de quão numerosos eram os caracóis outrora, e todos de origem estrangeira; e sabiam bem que a floresta de bardanas tinha nascido para eles. Nunca tinham saído do jardim; mas sabiam que para além dele havia alguma coisa no universo, que se chamava uma residência. Lá eram os caracóis cozidos. - e isso os deixava negros - e depois postos em um prato de prata. Que acontecia então? Não o sabiam. Também não entediam muito bem o que significava " ser cozido" , e " posto em um prato de prata"; mas julgavam que seria alguma distinção honorífica.
Nem o cascudo, nem o sapo , nem a minhoca souberam dizer nada a respeito, pois nenhum deles tinha sido jamais cozido e posto em um prato de prata.
E os velhos caracóis brancos compreenderam então que eram eles o que havia de mais distinto no mundo, pois que as bardanas não existiam senão para alimentá-los, e a casa , para que lá fossem cozidos e postos em um prato de prata.
Viviam os dois últimos representantes da raça muito retirados e muito felizes; e como não tinham filhos, adotaram um caracolzinho da raça comum.
Mas o caracolzinho não crescia, porque era de raça inferior. Contudo os velhos , sobretudo a mãe - a mãe caracol - achava que ele crescia a olhos vistos; e quando o pai do caracol não se mostrava convencido, obrigava-o a tatear a concha e a confessar que ela estava com a razão.
Um dia caiu uma chuva torrencial, e o pai caracol disse:
- Escuta, escuta! Como a chuva tamborila nas folhas de bardana: Rum, durum-dum-dum-Rum, durumdum-dum!
- É mesmo -disse a mãe caracol.- As gotas escorrem, enormes, pelas hastes das bardanas. Vais ver que tudo ficará molhado. Felizmente temos nossas boas casas e o pequerrucho também tem a sua! Somos na verdade mais bem promovidos que todas as outras criaturas. Isto prova que somos os senhores do universo. temos casa própria, desde que nascemos, e a floresta foi plantada para nós. Só o que eu queria saber é até onde vai ela e o que existe lá para diante...
- Para além da floresta não há nada - afirmou o pai caracol. - Em parte alguma pode haver lugar melhor do que a nossa casa: eu, por mim, nada mais desejo.
- Pois eu cá - retrucou a mãe caracol - queria ir à residência, para ser cozida e posta em um prato de prata. Foi assim com todos os meus antepassados. E fica sabendo que é uma coisa muito aristocrática!
Talvez a casa tenha caído, ou quem sabe até se a floresta ficou tão cerrada que as pessoas não puderam mais sair de dentro ? Ora, nos não temos pressa! Tu é que andas sempre à disparada, e o menino já cai pensando do mesmo modo. Pois ele não subiu, em três dias apenas, até a ponta daquela haste? Eu sinto até vertigens só de olhar para aquilo!
- Não ralhes com o menino: ele sobe com tanta prudência! Esta criança ainda nos dará muita alegria. Mas...já pensaste nisto: onde encontraremos uma esposa para ele? Achas que ainda haverá nesta mata outros caracóis da nossa espécie?
- Caracóis pretos, isso é o que não falta; caracóis pretos, sem concha. Mas são pessoas de origem muito vulgar, apesar de terem muita presunção! Seria bom falar nisso às formigas, que andam sempre correndo para todos os lados, como se tivessem muitos negócios... Talvez elas conheçam uma esposa que sirva para o nosso pequenote.
- Sim, conheço uma, e encantadora -disse a formiga; mas receio que ela não aceite, porque é uma rainha.
- Mas isso não obsta - disseram os velhos. - Ela tem casa?
- Tem até um castelo: o castelo maravilhoso das formigas, que tem setecentos corredores.
- Ora muito obrigada, D. Formiga! Meu filho não vai morara em um formigueiro! E se a senhora não tem nada melhor a nos propor, vamos falar com as moscas, que voam pelos arredores, quer chova quer faça sol, e conhecem a floresta por dentro e por fora.
- Sim, sim; conhecemos uma moça que serve para esposa dele - zuniram as moscas. - A cem passos daqui vive, em uma groselheira,um a jovem donzela caracol, das de concha. Mora lá sozinha , vive muito retirada e está em idade de casar. Fica a cem passos daqui, somente a cem passos de homem.
- Pois sim; então a ela compete vir procurá-lo - disseram logos os velhos; - ele tem uma floresta inteira, e ela não possui mais que uma groselheira!
Foram as moscas procurar a jovem caracol. Levou a noiva oito dias na viagem; mas isso era justamente a prova mais certa de que era de boa raça.
Realizou-se logo o casamento. Vaga-lumes iluminavam o salão conforme podiam. E não houve nais nada na festa, porque os caracóis velhos já não podiam suportar muito barulho.
A mãe fez um discurso magnífico em lugar do pai, que não pode falar, de tão comovido. Fizeram doação de toda a floresta de bardanas ao noivo, e repetiram-lhe o que sempre tinham dito: que era ela o que havia de melhor no mundo. E que se eles se conservassem bons e honestos, e tivessem numerosa prole, seus descentes haviam de entrar um dia na casa de residência; lá seriam cozidos até ficarem pretos e postos então em um prato de prata. Terminado o discurso, tornaram os velhos a entrar nas suas conchas, de onde nunca mais saíram: ficaram dormindo. O jovem casal reinou na floresta e teve numerosa descendência, que não chegou jamais a ser cozida, nem posta em um prato de prata - de onde o casal concluiu que a casa devia ter desmoronado e que toda a raça humana tinha desaparecido. E como não havia ninguém para contradizê-los, acreditaram que essa era a verdade.
E se a chuva tamborilava nas enorme folhas de bardana, era para eles. E se o sol iluminava o cerrado, colorindo as folhas, era ainda só para eles.
E os caracóis viviam felizes; e toda a família era feliz, imensamente feliz...
FIM
Pois naquele mato cerrado vivam os dois derradeiros caracóis da raça. Nem eles próprios sabiam mais que idade tinham; mas recordavam-se de quão numerosos eram os caracóis outrora, e todos de origem estrangeira; e sabiam bem que a floresta de bardanas tinha nascido para eles. Nunca tinham saído do jardim; mas sabiam que para além dele havia alguma coisa no universo, que se chamava uma residência. Lá eram os caracóis cozidos. - e isso os deixava negros - e depois postos em um prato de prata. Que acontecia então? Não o sabiam. Também não entediam muito bem o que significava " ser cozido" , e " posto em um prato de prata"; mas julgavam que seria alguma distinção honorífica.
Nem o cascudo, nem o sapo , nem a minhoca souberam dizer nada a respeito, pois nenhum deles tinha sido jamais cozido e posto em um prato de prata.
E os velhos caracóis brancos compreenderam então que eram eles o que havia de mais distinto no mundo, pois que as bardanas não existiam senão para alimentá-los, e a casa , para que lá fossem cozidos e postos em um prato de prata.
Viviam os dois últimos representantes da raça muito retirados e muito felizes; e como não tinham filhos, adotaram um caracolzinho da raça comum.
Mas o caracolzinho não crescia, porque era de raça inferior. Contudo os velhos , sobretudo a mãe - a mãe caracol - achava que ele crescia a olhos vistos; e quando o pai do caracol não se mostrava convencido, obrigava-o a tatear a concha e a confessar que ela estava com a razão.
Um dia caiu uma chuva torrencial, e o pai caracol disse:
- Escuta, escuta! Como a chuva tamborila nas folhas de bardana: Rum, durum-dum-dum-Rum, durumdum-dum!
- É mesmo -disse a mãe caracol.- As gotas escorrem, enormes, pelas hastes das bardanas. Vais ver que tudo ficará molhado. Felizmente temos nossas boas casas e o pequerrucho também tem a sua! Somos na verdade mais bem promovidos que todas as outras criaturas. Isto prova que somos os senhores do universo. temos casa própria, desde que nascemos, e a floresta foi plantada para nós. Só o que eu queria saber é até onde vai ela e o que existe lá para diante...
- Para além da floresta não há nada - afirmou o pai caracol. - Em parte alguma pode haver lugar melhor do que a nossa casa: eu, por mim, nada mais desejo.
- Pois eu cá - retrucou a mãe caracol - queria ir à residência, para ser cozida e posta em um prato de prata. Foi assim com todos os meus antepassados. E fica sabendo que é uma coisa muito aristocrática!
Talvez a casa tenha caído, ou quem sabe até se a floresta ficou tão cerrada que as pessoas não puderam mais sair de dentro ? Ora, nos não temos pressa! Tu é que andas sempre à disparada, e o menino já cai pensando do mesmo modo. Pois ele não subiu, em três dias apenas, até a ponta daquela haste? Eu sinto até vertigens só de olhar para aquilo!
- Não ralhes com o menino: ele sobe com tanta prudência! Esta criança ainda nos dará muita alegria. Mas...já pensaste nisto: onde encontraremos uma esposa para ele? Achas que ainda haverá nesta mata outros caracóis da nossa espécie?
- Caracóis pretos, isso é o que não falta; caracóis pretos, sem concha. Mas são pessoas de origem muito vulgar, apesar de terem muita presunção! Seria bom falar nisso às formigas, que andam sempre correndo para todos os lados, como se tivessem muitos negócios... Talvez elas conheçam uma esposa que sirva para o nosso pequenote.
- Sim, conheço uma, e encantadora -disse a formiga; mas receio que ela não aceite, porque é uma rainha.
- Mas isso não obsta - disseram os velhos. - Ela tem casa?
- Tem até um castelo: o castelo maravilhoso das formigas, que tem setecentos corredores.
- Ora muito obrigada, D. Formiga! Meu filho não vai morara em um formigueiro! E se a senhora não tem nada melhor a nos propor, vamos falar com as moscas, que voam pelos arredores, quer chova quer faça sol, e conhecem a floresta por dentro e por fora.
- Sim, sim; conhecemos uma moça que serve para esposa dele - zuniram as moscas. - A cem passos daqui vive, em uma groselheira,um a jovem donzela caracol, das de concha. Mora lá sozinha , vive muito retirada e está em idade de casar. Fica a cem passos daqui, somente a cem passos de homem.
- Pois sim; então a ela compete vir procurá-lo - disseram logos os velhos; - ele tem uma floresta inteira, e ela não possui mais que uma groselheira!
Foram as moscas procurar a jovem caracol. Levou a noiva oito dias na viagem; mas isso era justamente a prova mais certa de que era de boa raça.
Realizou-se logo o casamento. Vaga-lumes iluminavam o salão conforme podiam. E não houve nais nada na festa, porque os caracóis velhos já não podiam suportar muito barulho.
A mãe fez um discurso magnífico em lugar do pai, que não pode falar, de tão comovido. Fizeram doação de toda a floresta de bardanas ao noivo, e repetiram-lhe o que sempre tinham dito: que era ela o que havia de melhor no mundo. E que se eles se conservassem bons e honestos, e tivessem numerosa prole, seus descentes haviam de entrar um dia na casa de residência; lá seriam cozidos até ficarem pretos e postos então em um prato de prata. Terminado o discurso, tornaram os velhos a entrar nas suas conchas, de onde nunca mais saíram: ficaram dormindo. O jovem casal reinou na floresta e teve numerosa descendência, que não chegou jamais a ser cozida, nem posta em um prato de prata - de onde o casal concluiu que a casa devia ter desmoronado e que toda a raça humana tinha desaparecido. E como não havia ninguém para contradizê-los, acreditaram que essa era a verdade.
E se a chuva tamborilava nas enorme folhas de bardana, era para eles. E se o sol iluminava o cerrado, colorindo as folhas, era ainda só para eles.
E os caracóis viviam felizes; e toda a família era feliz, imensamente feliz...
FIM
domingo, 15 de novembro de 2015
O CAMINHO ESPINHOSO DA GLÓRIA- CONTOS DE ANDRESEN
A velha lenda do "Caminho espinhoso da glória" fala-nos de " um atirador que chegou, por fim, obter honras e dignidades, mas somente o alcançou depois de uma longa série de desgostos e combates perigosos". Ouvindo a lenda, quem não se lembrará do seu próprio caminho ignorado, mas cheio de espinhos, e dos inúmeros reveses que padeceu?
Lenda e realidade limitam uma com a outra: mas enquanto a lenda encontra aqui mesmo na terra a sua solução harmoniosa, a realidade aponta as mais das vezes para além da vida terrena - para as eras por vir, para a eternidade.
É a História Universal uma lanterna mágica que nos mostra em diapositivos, sobre o fundo sombrio do presente, de que maneira os benfeitores da humanidade , os mártires do gênio, peregrinam pelo caminho espinhoso da honra e da glória.
Vindo de todas as épocas, de todos os países, chega até nós o fulgor dessas imagens: e, ainda que rutilem por um só instante, cada uma delas representa uma vida inteira, uma vida de lutas e vitórias.
Vejamos, em um rápido volver de olhos, alguns dos mártires dessa multidão, que só se extinguirá quando o globo terrestre se desfizer em pó.
Lá está o anfiteatro completamente cheio. Aristófanes, nas Nuvens, despeja torrentes de ironia e de escárnio sobre o povo. No palco é metido a ridículo, física e moralmente, o homem mais notável da Atenas, aquele que foi o esteio e amparo do povo contra os trinta tiranos -Sócrates, que na confusão da batalha salvara Alcibíades e Xenofonte, e cujo espírito se elevou acima dos deuses da antiguidade. Ele está presente. Levanta-se no banco dos espectadores, para que o público, que ri ,possa confrontar o original com a caricatura do palco, e verificar por si o grau de semelhança entre um e outra. E ali está o filósofo, em frente deles - e muito superior a todos eles.
E é a verde cicuta, a cicuta viçosa e peçonhenta, quem deita a sua sombra sobre Atenas, e não a oliveira!
Sete cidades disputaram a honra de ser o berço de Homero - depois de estar ele morto! Vejamos, porém, como decorreu a sua vida. Lá vai ele, a pé, de cidade em cidade, recitando seus versos, para ganhar a vida. E a preocupação do pão de cada dia lhe encanece cedo a cabeça. É o grande vate, agora cego, tateia em busca do caminho. Agudos espinhos despedaçam o manto do rei da poesia. Seus cantos , porém, continuam vivendo , e é somente por eles que continuam também vivos os deuses os heróis da antiguidade.
E quadro surge após quadro, já do Oriente, já do Ocidente, distantes entre si no espaço e no tempo, mas representando todos ele um trecho do caminho espinhoso da glória, onde o cardo só rebenta em flores quando chega a hora de adornar o túmulo...
À sombra das palmeiras avançam os camelos , ricamente carregados de anil e de outras preciosidades, que o soberano envia àquelas cujos cânticos despertam a alegria do povo e enchem de glória a pátria. O homem que a inveja e a mentira tinham atirado ao exílio foi enfim encontrado. Aproxima-se a caravana da cidadezinha onde achara uma asilo. À porta da cidade um cortejo fúnebre detém a caravana: levam um pobre a enterrar. E o defunto pobre é exatamente aquele que iam buscar: Firdusi, que acaba de dar o último passo da sua peregrinação no caminho espinhoso da honra e da glória.
Nos degraus de mármore do palácio da capital portuguêsa um africano de feições rudes, lábios grossos, cabelos pretos e lanosos, estende a mão , mendigando. É o dedicado escravo de Camões. Se não fosse ele, se não fossem as moedas de cobre que lhe atiram os transeuntes, o poeta de Os Lusíadas morreria de fome.
Hoje, que suntuoso monumento se ergue sobre o túmulo de Camões!
Mais outro quadro.
Por detrás de uma grade de ferro aparece um homem pálido como a morte, de barba longa e emaranhada. E grita:
- Fiz uma descoberta! Fiz a maior descoberta dos últimos séculos! E eles me mantem aqui prisioneiro, há mais de vinte anos!
- Quem é aquele homem?
- Um louco - responde o guarda. - Imagina só quanta coisa a loucura pode inventar! Deu-lhe uma mania: que a gente pode movimentar-se, andar para a frente, por meio do vapor!
Era Salomão de Caus, que descobrira a força do vapor; mas Richelieu não lhe compreendeu a intenção, que ele não explicara com muita clareza. Morreu no hospício.
Lá está Colombo, outrora perseguido e escarnecido pelos moleques da rua, porque pretendia descobrir um mundo novo. E ele o descobriu! No dia do seu regresso triunfante chega até os seus ouvidos o clamor de júbilo que sobe do peito dos homens, e o repique dos sinos das igrejas. não tardará, porém, que os sinos da inveja sobrepujem aqueles. O descobridor de um Mundo, aquele que tirou do mar a terra dourada da América e a deu de presente ao seu rei, recebe em recompensa as correntes de ferro que hão de agrilhoar. E ele faz questão de levar essas correntes ao túmulo, porque elas dão testemunho deste mundo e da maneira como os homens avaliam o mérito dos seus contemporâneos.
E um após outro, vão aparecendo os quadros. O caminho espinhoso da glória está cheio.
Lá, na treva da noite, está o homem que mediu os montes da lua, que se arrojou ao espaço infinito, para os astros, para os planetas; aquele gênio poderoso, que entendeu o espírito da natureza e sentiu que a terra se movia sob os seus pés: Galileu. Agora , velho, cego e surdo, aguilhoado pelos espinhos do sofrimento, obrigado abjurar, mal pode levantar o pé - aquele pé que bateu no chão, desesperado, quando viu que ocultavam a verdade, e ele exclamou:
- E contudo, ela se move!
Lá está agora uma mulher, uma mulher com o espírito de uma criança, cheio de entusiamo e de fé. É ela quem ergue o pendão à frente do exército em luta, alcançando a vitória e a salvação para a pátria. Alto, bem alto se levanta o clamor de júbilo, e mais alto ainda sobem as labaredas da fogueira: Joana dArc, a Bruxa, está sendo queimada. E outro século chegou a cuspir sobre o lírio imaculado. Voltaire, o espírito satírico do bom-senso, decanta a " Pucelle".
No thing, isto é, na sede do tribunal do povo, em Viborg, a nobreza dinamarquesa queima as leis promulgadas pelo rei. Sobem muito alto as chamas, iluminam a época, iluminam o legislador : elas desenham uma auréola lá dentro da escura masmorra da torre onde foi encarcerado. Encanecido, curvado ao peso dos anos , abrindo com o dedo um sulco na pedra da mesa do popular, amigo do burguês e do camponês - Cristiano II. A história do seu reinado é escrita por inimigos. E não devemos esquecer os vinte e cinco anos que passou na prisão, ainda que não seja possível apagar a mancha indelével do sangue que ele fez correr.
Lá vai um navio , que deixa a costa dinamarquesa. Encostado ao mastro , um homem lança um último olhar para a Ilha de Hveen. È Tycho Brahe. Ele elevou até as estrelas o nome da Dinamarca, e deram-lhe em recompensa humilhações e desgostos. E é por isso que se vai para um país estrangeiro, sempre repetindo:
- Por toda a parte o céu se curva em abóboda acima de mim. Que mais posso querer?
E o dinamarquês ilustre lá se vai naquele navio; vai viver em país estranho, livre e cercado de honras.
- Ah! Ser livre , embora apenas para padecer as dores insuportáveis do corpo!
É um gemido que ecoa, atravessando as épocas, e chega aos nossos ouvidos. Que quadro! Griffenfeld, o Prometeu dinamarquês, amarrado ao penedo da Ilha de Munkholm.
Estamos agora na América, à beira de um dos maiores rios: ali está reunida uma multidão imensa. Dizem que vai partir dali um navio, arrostando os elementos, os ventos, a intempérie: é Roberto Fulton quem se propõe assim resolver o problema.Começa a viagem, mas de repente o navio para: a multidão ri, apupa, assobia. E o próprio pai do inventor brada:
- Que arrogância! Que loucura! Aí tem ele o que merecia!
E enquanto isso a multidão grita:
- Está louco! Está louco! É preciso prendê-lo!
Mas eis que se parte um preguinho, que tinha por um momento estorvado o andamento da máquina. tornaram a girar as pás, de novo passam pela água, e o navio prossegue a viagem. E a força do vapor vem reduzir a minutos as horas que separavam os continentes.
O gênero humano! Compreenderás tu a bem-aventurança desses instantes de conhecimento partilhado, o sentimento de um espírito compenetrado da sua missão, esse instante em que todo o desespero, todas as feridas rasgadas no caminho espinhoso da glória - até as que vem da própria culpa - se convertem em salvação, em vigor e em claridade? Esse momento em que a desarmonia se muda em harmonia, em que os homens encontram a manifestação da graça divina na criatura e percebem de que maneira esta tudo lhes manifesta?
O caminho espinhoso da glória nos aparece, pois, como uma auréola que fulge ao redor da terra, Três vezes felizes os que foram escolhidos para trilhar esse caminho: aqueles que, sem merecimento próprio, mas pela força da graça, são postos entre o arquiteto da ponte, que é Deus , e a humanidade!
O espírito da Historia adeja, com asas poderosas, por sobre as épocas; ele anima, consola e desperta ideias suaves, mostrando o caminho espinhoso da glória - esse caminho que não vai acabar, como na lenda, em esplendor e alegria terrena, mas para além deste mundo, nas eras da eternidade.
FIM
Lenda e realidade limitam uma com a outra: mas enquanto a lenda encontra aqui mesmo na terra a sua solução harmoniosa, a realidade aponta as mais das vezes para além da vida terrena - para as eras por vir, para a eternidade.
É a História Universal uma lanterna mágica que nos mostra em diapositivos, sobre o fundo sombrio do presente, de que maneira os benfeitores da humanidade , os mártires do gênio, peregrinam pelo caminho espinhoso da honra e da glória.
Vindo de todas as épocas, de todos os países, chega até nós o fulgor dessas imagens: e, ainda que rutilem por um só instante, cada uma delas representa uma vida inteira, uma vida de lutas e vitórias.
Vejamos, em um rápido volver de olhos, alguns dos mártires dessa multidão, que só se extinguirá quando o globo terrestre se desfizer em pó.
Lá está o anfiteatro completamente cheio. Aristófanes, nas Nuvens, despeja torrentes de ironia e de escárnio sobre o povo. No palco é metido a ridículo, física e moralmente, o homem mais notável da Atenas, aquele que foi o esteio e amparo do povo contra os trinta tiranos -Sócrates, que na confusão da batalha salvara Alcibíades e Xenofonte, e cujo espírito se elevou acima dos deuses da antiguidade. Ele está presente. Levanta-se no banco dos espectadores, para que o público, que ri ,possa confrontar o original com a caricatura do palco, e verificar por si o grau de semelhança entre um e outra. E ali está o filósofo, em frente deles - e muito superior a todos eles.
E é a verde cicuta, a cicuta viçosa e peçonhenta, quem deita a sua sombra sobre Atenas, e não a oliveira!
Sete cidades disputaram a honra de ser o berço de Homero - depois de estar ele morto! Vejamos, porém, como decorreu a sua vida. Lá vai ele, a pé, de cidade em cidade, recitando seus versos, para ganhar a vida. E a preocupação do pão de cada dia lhe encanece cedo a cabeça. É o grande vate, agora cego, tateia em busca do caminho. Agudos espinhos despedaçam o manto do rei da poesia. Seus cantos , porém, continuam vivendo , e é somente por eles que continuam também vivos os deuses os heróis da antiguidade.
E quadro surge após quadro, já do Oriente, já do Ocidente, distantes entre si no espaço e no tempo, mas representando todos ele um trecho do caminho espinhoso da glória, onde o cardo só rebenta em flores quando chega a hora de adornar o túmulo...
À sombra das palmeiras avançam os camelos , ricamente carregados de anil e de outras preciosidades, que o soberano envia àquelas cujos cânticos despertam a alegria do povo e enchem de glória a pátria. O homem que a inveja e a mentira tinham atirado ao exílio foi enfim encontrado. Aproxima-se a caravana da cidadezinha onde achara uma asilo. À porta da cidade um cortejo fúnebre detém a caravana: levam um pobre a enterrar. E o defunto pobre é exatamente aquele que iam buscar: Firdusi, que acaba de dar o último passo da sua peregrinação no caminho espinhoso da honra e da glória.
Nos degraus de mármore do palácio da capital portuguêsa um africano de feições rudes, lábios grossos, cabelos pretos e lanosos, estende a mão , mendigando. É o dedicado escravo de Camões. Se não fosse ele, se não fossem as moedas de cobre que lhe atiram os transeuntes, o poeta de Os Lusíadas morreria de fome.
Hoje, que suntuoso monumento se ergue sobre o túmulo de Camões!
Mais outro quadro.
Por detrás de uma grade de ferro aparece um homem pálido como a morte, de barba longa e emaranhada. E grita:
- Fiz uma descoberta! Fiz a maior descoberta dos últimos séculos! E eles me mantem aqui prisioneiro, há mais de vinte anos!
- Quem é aquele homem?
- Um louco - responde o guarda. - Imagina só quanta coisa a loucura pode inventar! Deu-lhe uma mania: que a gente pode movimentar-se, andar para a frente, por meio do vapor!
Era Salomão de Caus, que descobrira a força do vapor; mas Richelieu não lhe compreendeu a intenção, que ele não explicara com muita clareza. Morreu no hospício.
Lá está Colombo, outrora perseguido e escarnecido pelos moleques da rua, porque pretendia descobrir um mundo novo. E ele o descobriu! No dia do seu regresso triunfante chega até os seus ouvidos o clamor de júbilo que sobe do peito dos homens, e o repique dos sinos das igrejas. não tardará, porém, que os sinos da inveja sobrepujem aqueles. O descobridor de um Mundo, aquele que tirou do mar a terra dourada da América e a deu de presente ao seu rei, recebe em recompensa as correntes de ferro que hão de agrilhoar. E ele faz questão de levar essas correntes ao túmulo, porque elas dão testemunho deste mundo e da maneira como os homens avaliam o mérito dos seus contemporâneos.
E um após outro, vão aparecendo os quadros. O caminho espinhoso da glória está cheio.
Lá, na treva da noite, está o homem que mediu os montes da lua, que se arrojou ao espaço infinito, para os astros, para os planetas; aquele gênio poderoso, que entendeu o espírito da natureza e sentiu que a terra se movia sob os seus pés: Galileu. Agora , velho, cego e surdo, aguilhoado pelos espinhos do sofrimento, obrigado abjurar, mal pode levantar o pé - aquele pé que bateu no chão, desesperado, quando viu que ocultavam a verdade, e ele exclamou:
- E contudo, ela se move!
Lá está agora uma mulher, uma mulher com o espírito de uma criança, cheio de entusiamo e de fé. É ela quem ergue o pendão à frente do exército em luta, alcançando a vitória e a salvação para a pátria. Alto, bem alto se levanta o clamor de júbilo, e mais alto ainda sobem as labaredas da fogueira: Joana dArc, a Bruxa, está sendo queimada. E outro século chegou a cuspir sobre o lírio imaculado. Voltaire, o espírito satírico do bom-senso, decanta a " Pucelle".
No thing, isto é, na sede do tribunal do povo, em Viborg, a nobreza dinamarquesa queima as leis promulgadas pelo rei. Sobem muito alto as chamas, iluminam a época, iluminam o legislador : elas desenham uma auréola lá dentro da escura masmorra da torre onde foi encarcerado. Encanecido, curvado ao peso dos anos , abrindo com o dedo um sulco na pedra da mesa do popular, amigo do burguês e do camponês - Cristiano II. A história do seu reinado é escrita por inimigos. E não devemos esquecer os vinte e cinco anos que passou na prisão, ainda que não seja possível apagar a mancha indelével do sangue que ele fez correr.
Lá vai um navio , que deixa a costa dinamarquesa. Encostado ao mastro , um homem lança um último olhar para a Ilha de Hveen. È Tycho Brahe. Ele elevou até as estrelas o nome da Dinamarca, e deram-lhe em recompensa humilhações e desgostos. E é por isso que se vai para um país estrangeiro, sempre repetindo:
- Por toda a parte o céu se curva em abóboda acima de mim. Que mais posso querer?
E o dinamarquês ilustre lá se vai naquele navio; vai viver em país estranho, livre e cercado de honras.
- Ah! Ser livre , embora apenas para padecer as dores insuportáveis do corpo!
É um gemido que ecoa, atravessando as épocas, e chega aos nossos ouvidos. Que quadro! Griffenfeld, o Prometeu dinamarquês, amarrado ao penedo da Ilha de Munkholm.
Estamos agora na América, à beira de um dos maiores rios: ali está reunida uma multidão imensa. Dizem que vai partir dali um navio, arrostando os elementos, os ventos, a intempérie: é Roberto Fulton quem se propõe assim resolver o problema.Começa a viagem, mas de repente o navio para: a multidão ri, apupa, assobia. E o próprio pai do inventor brada:
- Que arrogância! Que loucura! Aí tem ele o que merecia!
E enquanto isso a multidão grita:
- Está louco! Está louco! É preciso prendê-lo!
Mas eis que se parte um preguinho, que tinha por um momento estorvado o andamento da máquina. tornaram a girar as pás, de novo passam pela água, e o navio prossegue a viagem. E a força do vapor vem reduzir a minutos as horas que separavam os continentes.
O gênero humano! Compreenderás tu a bem-aventurança desses instantes de conhecimento partilhado, o sentimento de um espírito compenetrado da sua missão, esse instante em que todo o desespero, todas as feridas rasgadas no caminho espinhoso da glória - até as que vem da própria culpa - se convertem em salvação, em vigor e em claridade? Esse momento em que a desarmonia se muda em harmonia, em que os homens encontram a manifestação da graça divina na criatura e percebem de que maneira esta tudo lhes manifesta?
O caminho espinhoso da glória nos aparece, pois, como uma auréola que fulge ao redor da terra, Três vezes felizes os que foram escolhidos para trilhar esse caminho: aqueles que, sem merecimento próprio, mas pela força da graça, são postos entre o arquiteto da ponte, que é Deus , e a humanidade!
O espírito da Historia adeja, com asas poderosas, por sobre as épocas; ele anima, consola e desperta ideias suaves, mostrando o caminho espinhoso da glória - esse caminho que não vai acabar, como na lenda, em esplendor e alegria terrena, mas para além deste mundo, nas eras da eternidade.
FIM
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
O LINHO - CONTOS DE ANDERSEN
O linho estava todo em flor, coberto de pequenas corolas azuis, delicadas como as asas da cigarra - e ainda mais transparentes. Recebia a luz do sol e as águas da chuva: era como a criancinha que depois do banho recebe um beijo da mamãe. Isso aumenta a beleza das crianças; e foi o que aconteceu com o linho.
- Dizem que cresci muito- exclamava ele - que estou muito alto e que hei de dar um belo pedaço de pano. Sou, na verdade, muito feliz! Sou, certamente, o mais feliz de todos. que sorte tenho tido! E tudo me sairá bem . O sol me alegra tanto e a chuva me refresca - esta chuvinha boa e agradável ! Sou infinitamente feliz: não há ninguém mais feliz do que eu!
- Pois sim, pois sim! - disse a taquara. - Não conheces o mundo , mas eu conheço, pois sou toda cheia de nós.
E ela rangia, lamentando-se:
"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"
- Não, senhora! Não acabou -disse o linho.- Amanhã o sol há de brilhar, ou há de vir a chuva me refrescar. Sinto que estou crescendo... sinto que estou em flor. Ah! Sou eu o mais feliz!
Mas um dia vieram uns homens e seguraram o linho pelo pescoço, arrancado-o com raiz e tudo. Aquilo doeu muito! Depois deitaram-no à água, como se quisessem afogá-lo; e depois o expuseram ao calor do fogo - parecia que iam agora assá-lo! Foi uma coisa horrível!
- Ora, não se pode viver bem todos os dias -disse o linho.- Devemos passar trabalhos: é assim que se aprende.
Mas o fato é que padeceu, tormentos horríveis; foi molhado, torrado, despedaçado, e cardado... Nem ele mesmo sabia que nome havia de dar a todos os processos a que o submeteram. Afinal, meterem-no na roca: Rrrr! ...Rrrr!... Nem lhe era possível concentrar as ideias. E, no meio de todas aquelas torturas, ia sempre pensando:
- Fui muito feliz outrora... A gente deve contentar-se com os bens que já gozou...contentar-se...contentar-se...ar!...Ai!
E foi então que o meteram no tear; e ali ele se transformou em uma grande e bela peça de pano. E todo o linho, até a última haste, foi gasto naquela única peça.
- Mas que coisa extraordinária! Quando é que eu ia imaginar isto! Vejam como a sorte me favorece! A taquara não estava mal-informada quanto aquele "lá-lá´ri´lá-ri-lá-lá" que cantava! Mas a cantiga não se acabou, não! Pelo contrário- agora é que vai começar. É, com efeito, extraordinário! É certo que me fizeram sofrer um bocado, lá isso é verdade; mas cheguei ser alguém. Sou eu mais feliz de todos. Como fiquei forte, distinto, branco , e tão comprido... Isto sim vale a pena! Não é só ser uma planta, ainda que esteja coberta de flores!Ninguém se importava comigo, e água, só recebia quando chovia. Agora sim, tratam de mim, enchem-me de mimos. A criada vira-me todos os dias, e todas as noites me dão um banho de chuveiro, com o regador. A esposa do pastor até fez um discurso, dizendo que eu era a melhor peça de linho de toda a paróquia. Não! Eu não poderia se mais feliz do que sou!
Levaram o pano de linho para dentro de casa, e lá caiu ele sob os golpes da tesoura. Ah! como o talharam e retalharam! Não era nada agradável, aquilo! Mas afinal foi convertido em doze peças de roupa - peças cujo nome não se costuma dizer, mas que todas as pessoas devem usar. Fizeram uma dúzia, dessas peças.
- Vejam! Agora é que me tornei coisa útil. Era então este o meu destino! Que maravilha! Agora presto serviços, tenho utilidade no mundo, como todos devem ter. Isto é que causa prazer à gente! Somos agora doze peças, mas somos todas uma e a mesma coisa. Formamos exatamente uma dúzia. Que sorte extraordinária a nossa!
Passaram-se anos. Um dia, enfim, o pano de linho estava gasto.
- Tudo se acaba, afinal -dizia cada peça de roupa. - Eu gostaria de durar mais um pouco, mas a gente também não deve desejar o impossível.
Foram então rasgadas em pedacinhos. E, quando se viram assim picadas, encharcadas de água e cozidas, pensaram que agora, sim, estava tudo acabado. Nem elas mesmas sabiam quanta coisa acontecia...e de repente estavam transformadas em belo papel branco.
- Mas que surpresa, que maravilhosa surpresa! - disse o linho. - Sou mais fino agora do que dantes, e hão de escrever sobre a minha superfície! Poi isto não é uma sorte extraordinária?
E realmente nele foram escritas as mais lindas histórias e poesias; e apenas um único pingo de tinta lhe caiu em cima, fazendo um borrão, isto em um momento de pouca sorte. E as pessoas ouviram o que fora escrito sobre o papel; eram coisas boas e inteligentes, que tornavam os ouvintes muito melhores e mais instruídos. Havia uma benção nas palavras escritas naquele papel.
- Mas isto é muito mais do que eu podia imaginar, quando era uma simples florzinha azul, lá no campo! Como ia esperar que um dia pudesse espalhar alegria e conhecimentos entre os homens? Ainda não posso compreender, mas realmente assim é. Deus sabe que não fiz senão o que minhas limitadas forças me obrigaram a fazer, para assegurar a minha subsistência; e todavia ele me favorece desta maneira, fazendo que eu vá de uma alegria a outra, de uma honra a outra honra. E cada vez que penso comigo: " acabou-se a cantoria!" torno de novo a uma vida melhor, mais elevada! Agora, com certeza, irei viajar pelo mundo, para que os homens me possam ler... Não pode ser de outra maneira. Não há nada mais certo! E tenho pensamentos magníficos, e tão numerosos como fora, outrora as minhas flores azuis... Sou a criatura mais feliz do mundo!
Contudo não o mandaram viajar: enviaram-no à tipografia. E lá aquilo que nele estava escrito foi composto e impresso, para formar um livro, e até muitas centenas de livros; assim poderiam tirar alegria e proveito de sua leitura muito maior número de pessoas que não lhes seria possível fazer se um único papel corresse mundo, gastando-se no caminho.
- É claro que isso é muito mais razoável - pensava o papel escrito. - Nem me lembrava de semelhante coisa. Fico em casa, onde serei honrado como um velho avô, e é o que no fundo venho a ser de todos esses livros novos. Assim o resultado será muito maior. Eu não poderia circular daquele jeito. Mas foi em mim que fixou os olhos aquele que escreveu a obra. cada palavra entrou em mim, vinda diretamente da pena. Sou a mais feliz das criaturas!
E o papel foi amarrado, feito um fardo, e assim o lançaram em um barril, na lavanderia.
- Quem bem trabalha, melhor descansa! É muito útil a gente se concentrar e ter tempo para meditar sobre as coisas que traz no seu íntimo. Só agora sei realmente o que está escrito em mim. E conhecer-se a gente a si própria é a verdadeira sabedoria. Que farão de mim, agora? De qualquer forma darei um passo à frente: é sempre para a frente que a gente caminha. Isso já o sei por experiência própria.
Mas um belo dia todo o papel for retirado do barril e posto sobre o fogão. Ia ser queimado. pois não podia ser vendido no armazém para embrulhar manteiga ou açúcar. E todas as crianças da casa se agruparam em roda, porque gostavam de ver arder papel, que dava labaredas tão altas e tão lindas. Além disso a gente via nas cinzas aquela multidão de faíscas vermelhas, que esvoaçavam para odos os lados. e iam extinguindo-se rapidamente. As crianças chamavam aquela brincadeira " ver as crianças saírem da escola"; e a última faísca era o mestre. Muitas vezes toda a gente pensava que ele já tinha saído, quando de repente lá vinha mais outra faísca:
- Lá se foi o mestre-escola!
Mas é que não estavam bem informados. Deviam saber quem era que ia saindo! Nós o sabemos, mas as crianças ignoravam-no.
Todo o papel velho, o fardo inteiro, inflamou-se num instante.
- Uuuu! - clamava ele, quando flamejava em labaredas altas. - Uuuu! ...
Não se pode dizer que aquilo era lá muito agradável. Mas quando tudo estava em chamas, ergueram-se elas a tamanha altura como o linho nunca poderia erguer suas florzinhas azuis; e brilhavam como o pano branco jamais poderia brilhar. Todas as letras escritas nele ficaram vermelhas no mesmo instante; e todos os pensamentos, todas as palavras que estavam ali se transformaram em labaredas.
- Agora subo diretamente até o sol! clamou a chama.
E foi como se mil vozes cantassem uníssono. E a s chamas saíram no topo da chaminé.
E mais finos ainda que as chamas, invisíveis para o olho humano, adejavam seres pequeninos: tantos quantas tinham sido as flores do linho. Eram mais leves que a chama de que haviam nascido. E quando esta se extinguiu, e do papel nada mais restava senão a cinza escura, eles dançaram ainda uma vez por cima dela: onde quer que um deles a roçasse, brotava centelhas rubras.
- As crianças saíram da escola e o mestre foi último!
Grande era a alegria, e diante da cinza morta cantavam as crianças:
"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"
Mas todos aquele pequeninos seres invisíveis disseram:
- A cantiga não se acaba nunca! E é isso o que há de mais lindo. Bem o sei eu, e por isso mesmo sou a criatura mais feliz do mundo!
Todavia , eram palavras essas que as crianças não podiam ouvir, nem entender.
Também, não era preciso: pois as crianças não devem saber tudo, não é ?
FIM
- Dizem que cresci muito- exclamava ele - que estou muito alto e que hei de dar um belo pedaço de pano. Sou, na verdade, muito feliz! Sou, certamente, o mais feliz de todos. que sorte tenho tido! E tudo me sairá bem . O sol me alegra tanto e a chuva me refresca - esta chuvinha boa e agradável ! Sou infinitamente feliz: não há ninguém mais feliz do que eu!
- Pois sim, pois sim! - disse a taquara. - Não conheces o mundo , mas eu conheço, pois sou toda cheia de nós.
E ela rangia, lamentando-se:
"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"
- Não, senhora! Não acabou -disse o linho.- Amanhã o sol há de brilhar, ou há de vir a chuva me refrescar. Sinto que estou crescendo... sinto que estou em flor. Ah! Sou eu o mais feliz!
Mas um dia vieram uns homens e seguraram o linho pelo pescoço, arrancado-o com raiz e tudo. Aquilo doeu muito! Depois deitaram-no à água, como se quisessem afogá-lo; e depois o expuseram ao calor do fogo - parecia que iam agora assá-lo! Foi uma coisa horrível!
- Ora, não se pode viver bem todos os dias -disse o linho.- Devemos passar trabalhos: é assim que se aprende.
Mas o fato é que padeceu, tormentos horríveis; foi molhado, torrado, despedaçado, e cardado... Nem ele mesmo sabia que nome havia de dar a todos os processos a que o submeteram. Afinal, meterem-no na roca: Rrrr! ...Rrrr!... Nem lhe era possível concentrar as ideias. E, no meio de todas aquelas torturas, ia sempre pensando:
- Fui muito feliz outrora... A gente deve contentar-se com os bens que já gozou...contentar-se...contentar-se...ar!...Ai!
E foi então que o meteram no tear; e ali ele se transformou em uma grande e bela peça de pano. E todo o linho, até a última haste, foi gasto naquela única peça.
- Mas que coisa extraordinária! Quando é que eu ia imaginar isto! Vejam como a sorte me favorece! A taquara não estava mal-informada quanto aquele "lá-lá´ri´lá-ri-lá-lá" que cantava! Mas a cantiga não se acabou, não! Pelo contrário- agora é que vai começar. É, com efeito, extraordinário! É certo que me fizeram sofrer um bocado, lá isso é verdade; mas cheguei ser alguém. Sou eu mais feliz de todos. Como fiquei forte, distinto, branco , e tão comprido... Isto sim vale a pena! Não é só ser uma planta, ainda que esteja coberta de flores!Ninguém se importava comigo, e água, só recebia quando chovia. Agora sim, tratam de mim, enchem-me de mimos. A criada vira-me todos os dias, e todas as noites me dão um banho de chuveiro, com o regador. A esposa do pastor até fez um discurso, dizendo que eu era a melhor peça de linho de toda a paróquia. Não! Eu não poderia se mais feliz do que sou!
Levaram o pano de linho para dentro de casa, e lá caiu ele sob os golpes da tesoura. Ah! como o talharam e retalharam! Não era nada agradável, aquilo! Mas afinal foi convertido em doze peças de roupa - peças cujo nome não se costuma dizer, mas que todas as pessoas devem usar. Fizeram uma dúzia, dessas peças.
- Vejam! Agora é que me tornei coisa útil. Era então este o meu destino! Que maravilha! Agora presto serviços, tenho utilidade no mundo, como todos devem ter. Isto é que causa prazer à gente! Somos agora doze peças, mas somos todas uma e a mesma coisa. Formamos exatamente uma dúzia. Que sorte extraordinária a nossa!
Passaram-se anos. Um dia, enfim, o pano de linho estava gasto.
- Tudo se acaba, afinal -dizia cada peça de roupa. - Eu gostaria de durar mais um pouco, mas a gente também não deve desejar o impossível.
Foram então rasgadas em pedacinhos. E, quando se viram assim picadas, encharcadas de água e cozidas, pensaram que agora, sim, estava tudo acabado. Nem elas mesmas sabiam quanta coisa acontecia...e de repente estavam transformadas em belo papel branco.
- Mas que surpresa, que maravilhosa surpresa! - disse o linho. - Sou mais fino agora do que dantes, e hão de escrever sobre a minha superfície! Poi isto não é uma sorte extraordinária?
E realmente nele foram escritas as mais lindas histórias e poesias; e apenas um único pingo de tinta lhe caiu em cima, fazendo um borrão, isto em um momento de pouca sorte. E as pessoas ouviram o que fora escrito sobre o papel; eram coisas boas e inteligentes, que tornavam os ouvintes muito melhores e mais instruídos. Havia uma benção nas palavras escritas naquele papel.
- Mas isto é muito mais do que eu podia imaginar, quando era uma simples florzinha azul, lá no campo! Como ia esperar que um dia pudesse espalhar alegria e conhecimentos entre os homens? Ainda não posso compreender, mas realmente assim é. Deus sabe que não fiz senão o que minhas limitadas forças me obrigaram a fazer, para assegurar a minha subsistência; e todavia ele me favorece desta maneira, fazendo que eu vá de uma alegria a outra, de uma honra a outra honra. E cada vez que penso comigo: " acabou-se a cantoria!" torno de novo a uma vida melhor, mais elevada! Agora, com certeza, irei viajar pelo mundo, para que os homens me possam ler... Não pode ser de outra maneira. Não há nada mais certo! E tenho pensamentos magníficos, e tão numerosos como fora, outrora as minhas flores azuis... Sou a criatura mais feliz do mundo!
Contudo não o mandaram viajar: enviaram-no à tipografia. E lá aquilo que nele estava escrito foi composto e impresso, para formar um livro, e até muitas centenas de livros; assim poderiam tirar alegria e proveito de sua leitura muito maior número de pessoas que não lhes seria possível fazer se um único papel corresse mundo, gastando-se no caminho.
- É claro que isso é muito mais razoável - pensava o papel escrito. - Nem me lembrava de semelhante coisa. Fico em casa, onde serei honrado como um velho avô, e é o que no fundo venho a ser de todos esses livros novos. Assim o resultado será muito maior. Eu não poderia circular daquele jeito. Mas foi em mim que fixou os olhos aquele que escreveu a obra. cada palavra entrou em mim, vinda diretamente da pena. Sou a mais feliz das criaturas!
E o papel foi amarrado, feito um fardo, e assim o lançaram em um barril, na lavanderia.
- Quem bem trabalha, melhor descansa! É muito útil a gente se concentrar e ter tempo para meditar sobre as coisas que traz no seu íntimo. Só agora sei realmente o que está escrito em mim. E conhecer-se a gente a si própria é a verdadeira sabedoria. Que farão de mim, agora? De qualquer forma darei um passo à frente: é sempre para a frente que a gente caminha. Isso já o sei por experiência própria.
Mas um belo dia todo o papel for retirado do barril e posto sobre o fogão. Ia ser queimado. pois não podia ser vendido no armazém para embrulhar manteiga ou açúcar. E todas as crianças da casa se agruparam em roda, porque gostavam de ver arder papel, que dava labaredas tão altas e tão lindas. Além disso a gente via nas cinzas aquela multidão de faíscas vermelhas, que esvoaçavam para odos os lados. e iam extinguindo-se rapidamente. As crianças chamavam aquela brincadeira " ver as crianças saírem da escola"; e a última faísca era o mestre. Muitas vezes toda a gente pensava que ele já tinha saído, quando de repente lá vinha mais outra faísca:
- Lá se foi o mestre-escola!
Mas é que não estavam bem informados. Deviam saber quem era que ia saindo! Nós o sabemos, mas as crianças ignoravam-no.
Todo o papel velho, o fardo inteiro, inflamou-se num instante.
- Uuuu! - clamava ele, quando flamejava em labaredas altas. - Uuuu! ...
Não se pode dizer que aquilo era lá muito agradável. Mas quando tudo estava em chamas, ergueram-se elas a tamanha altura como o linho nunca poderia erguer suas florzinhas azuis; e brilhavam como o pano branco jamais poderia brilhar. Todas as letras escritas nele ficaram vermelhas no mesmo instante; e todos os pensamentos, todas as palavras que estavam ali se transformaram em labaredas.
- Agora subo diretamente até o sol! clamou a chama.
E foi como se mil vozes cantassem uníssono. E a s chamas saíram no topo da chaminé.
E mais finos ainda que as chamas, invisíveis para o olho humano, adejavam seres pequeninos: tantos quantas tinham sido as flores do linho. Eram mais leves que a chama de que haviam nascido. E quando esta se extinguiu, e do papel nada mais restava senão a cinza escura, eles dançaram ainda uma vez por cima dela: onde quer que um deles a roçasse, brotava centelhas rubras.
- As crianças saíram da escola e o mestre foi último!
Grande era a alegria, e diante da cinza morta cantavam as crianças:
"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"
Mas todos aquele pequeninos seres invisíveis disseram:
- A cantiga não se acaba nunca! E é isso o que há de mais lindo. Bem o sei eu, e por isso mesmo sou a criatura mais feliz do mundo!
Todavia , eram palavras essas que as crianças não podiam ouvir, nem entender.
Também, não era preciso: pois as crianças não devem saber tudo, não é ?
FIM
terça-feira, 10 de novembro de 2015
CADA COISA NO SEU LUGAR - CONTOS DE ANDRESEN
Isto aconteceu há mais de um século.
Na margem do grande lago, junto ao bosque, assentava uma velha mansão cercada de profundos fossos, todos cheios de juncos; junto à ponte um frondoso salgueiro curvava os galhos sobre os caniços.
Ouviu-se de repente, subindo a vereda que ali ia dar, um som de trompas de caça; e a pastorinha que cuidava dos patos apressou-se a apartá-los da ponte, antes que os espezinhasse o bando de caçadores, que se aproximavam a galope. Contudo, vindo à rédea solta, chegaram antes que ela tivesse escapado; e a pastorinha teve de escalar precipitadamente um pilar da ponte, para não ser atropelada.
Era quase uma menina, e de frágil compleição; o olhar, suave, traía-lhe a inteligência e a bondade. Mas o barão, esse não atentou em nada disso: ao passar, a toda disparada, empurrou-a com o cabo do chicote, atirando-a de costas no fosso. E gritou:
- Cada coisa no seu lugar! O teu é no fosso!
Soltou então uma gargalhada, como se tivesse dito coisa muito espirituosa. imitaram-no os companheiros, e às risadas estrepitosas de todo o bando, juntaram-se também os latidos dos perdigueiros.
A sorte foi que a pastorinha, ao cair, tivesse podido agarrar-se a um galho do salgueiro, ficando assim suspensa sobre a água; e, quando o barão e sua comitiva desapareceram com a matilha, tratou ela de içar-se, conforme podia. mas o galho quebrou-se, e ela teria caído entre os juncais, se um pulso forte, vindo de cima da ponte, não a tivesse segurado. era um mascate que, tendo visto de alguma distancia o que acontecera, corria em seu auxílio.
- Cada coisa no seu lugar! - disse ele, arremedando o nobre barão, quando depunha a menina em terra enxuta.
Tentou então endireitar o galho quebrado, que não se separara totalmente do tronco; mas como não o conseguiu, convencido de que nem sempre se pode por cada coisa no seu lugar, fincou-o na terra fofa.
- Cresce aí, se puderes - disse ele- e produz boas flautas para aquela gente lá de cima...
É que, a seu ver, o barão e toda a sua malta mereciam boas varadas.
Contudo, atravessou a ponte e foi direito à casa nobre. Não se dirigiu, porém. à sala do banquete - era muito humilde para isso, é claro. Entrou pelos fundo, onde se encontrava a criadagem. Todos eles, homens e mulheres, remexeram nas bagatelas que carregava, regateando. E enquanto isso, vinham lá de cima a grita e os bramidos dos hóspedes, pois que aquelas vozes dissonantes não mereciam o nome de canções. Pelas janelas abertas ouviam-se as risadas estridentes e os latidos dos cães; nos copos e canecas espumavam o vinho e a cerveja. os cães de estimação comiam com os donos, e não era raro ver um daqueles fidalgos segurar a longa orelha do seu favorito, limpar-lhe com ela o focinho e depois pespegar-lhe um beijo.
Querendo divertir-se à custa do mascate, ordenaram-lhe que subisse com a sua mercadoria. O vinho velava-lhes a razão, e a luz do entendimento, já de si escassa, extinguira-se por completo naqueles cérebros. deitaram vinho em um pé de meia, e queriam que o mascate o bebesse a toda pressa. Achavam extraordinária graça na brincadeira, e riam a bom rir. Depois, já cansados, passaram a jogar- e campos, granjas e outros bens foram ganhos e perdidos no baralho.
- Cada coisa no seu lugar! - disse o mascate, afastando-se daquela casa de perdição. - O meu é na estrada livre. Não me sentia bem ali.
E a menina dos patos, vendo-o atravessar o pátio, enviou-lhe um adeus, sorridente.
Passaram-se os dias, passaram-se as semanas, e o galho de salgueiro, plantado pelo mascate à beira do fosso conservava-se fresco, e ia brotando. Compreendeu a menina que o ramo criara raízes, e ficou muito contente, porque aquela nova arvorezinha era a sua árvore, segundo dizia. E, à medida que crescia a planta, ia a casa solarenga desmoronando, entre as libações, e a jogatina- dois passatempos admiráveis, que levam depressa à ruína. E seis anos depois, o barão, de cajado e sacola, atravessava pela última vez a porta do castelo, adquirido havia pouco por um rico negociante.
Ora, o rico negociante outro não era senão aquele mascate, a quem ele pretendera obrigar a tomar vinho em um pé de meia, para divertimento seu e dos amigos. E como a honestidade e o trabalho levam à prosperidade, era agora o mascate o dono e senhor da baronia. E desde então foi terminantemente proibido o jogo de cartas em todo o feudo.
-É um péssimo divertimento - dizia ele .- Quando o demônio viu a Bíblia pela primeira vez, procurou uma arma para guerreá-la e inventou o baralho.
Um dia casou o novo proprietário. E com quem ? Ora, com quem havia de ser? Com aquela pastorinha que cuidava dos patos, e que conservou sempre a mesma meiguice e bondade de coração. E era tão bela agora nos seus ativios elegantes como se tivesse nascido em um berço nobre . Como se processou tanta mudança é uma história muito longa para contar agora, nestes tempos em que tudo corre com tanta precipitação; mas isso aconteceu- e é que importa ao caso.
Corria a vida agora tranquila e feliz na velha mansão: a mãe cuidava do governo da casa, enquanto o pai atendia os negócios, de dia em dia mais prósperos, como se a benção do céu os protegesse. É que a prosperidade atrai a prosperidade.
O castelo foi restaurado e todo pintado de novo; limparam-se os fossos, plantaram-se árvores frutíferas. Naquela casa tudo tinha aspecto acolhedor e amigo. O soalho brilhava como um espelho. Nas longas noites de inverno a dona da casa e suas aias trabalhavam, fiando na roca, instaladas na sala principal. Todos os domingos o conselheiro - porque o mascate, na idade madura, chegou a ser o representante da lei- lia a Bíblia em voz alta. Aos filhos, que foram nascendo, deu o casal a melhor educação, ainda que nem todos mostrassem a mesma inteligência, o que não é caso raro. Entretanto o salgueiro da estrada convertera-se em uma bela árvore: crescera sempre em liberdade, sem que nunca ninguém a podasse.
- É a árvore genealógica - dizia o casal.
Era preciso, pois, honrá-la e tratá-la com respeito. E isso mesmo advertiam aos filhos, até aos que não tinham lá muito boa cabeça.
Transcorreu um século. Vemo-nos transportados à época. O lago transformou-se em um charco, e o velho solar quase desapareceu. Do fosso profundo só resta hoje um valo de água estagnada, ao pé de uns restos de muros em ruínas, sobre as quais se eleva, magnífico, um belo salgueiro; a árvore genealógica, sobrevivendo a tudo, e demonstrando a que ponto pode chegar a beleza de um salgueiro, quando ninguém o mutila. É certo que o tronco está fendido da raíz à copa - é a honrosa cicatriz a recordar os combates que sustentou contra as tempestades; mas ainda se ergue altaneiro, e em cada fenda, que o vento e as chuvas encherem de terra, crescem plantas e flores - condecorações da sua galhardia. Na copa, onde os ramos se entrelaçam, floresce todo um jardim de fetos e framboesas, que lhe dão um aspecto pitoresco; até uma pequena sorveira ali enraizou, elevando-se , esbelta e delicada, no meio da folhagem do salgueiro, que se mira na água pardacenta do valo, quando o vento impele o limo para um lado.
No topo do cerro próximo, cercado de bosques, onde se descortina esplendida vista, ergue-se a nova casa solarenga. É vasta e magnifica:os vidros das janelas são tão transparente, que elas parecem sempre abertas. A ampla escadaria que conduz à entrada sobe à sombra de um verdadeiro caramanchão de flores e folhagens trepadeiras. A grama do prado é tão verde, que dá impressão de que alguém a lava todos os dias. E dentro, nos salões suntuosos, pendem das paredes quadros de grande valor. Sofás e poltronas , estofados de veludo e de seda, podem ser transportados facilmente de um lado para outro, sobre os rodízios. Mesas artisticamente esculpidas, cobertas de mármore polido, ostentem livros encadernados em marroquim, com os cantos dourados. Não há dúvida de que é uma residencia de gente de gosto : é a morada do barão e de sua família.
Tudo ali se harmoniza: móveis e cores não destoam dos ornatos e alfaias. E o lema da família continua sendo; "Cada coisa no seu lugar! " E em obediência a esse princípio é que os quadros, que em outro tempo tinham sido a glória e a honra da casa, foram relegados para o corredor dos quartos da criadagem. Estavam já alterados pela pátina e carcomidos, principalmente os retratos, um dos quais representava um homem de peruca e casaca escarlate, e outro, uma dama de cabeleira empoada, e segurava na mão uma rosa. Esses dois quadros tinham uma cercadura de ramos de salgueiro; e estavam ambos crivados de orifícios, porque os filhos do barão se serviam deles para alvo de seus tiros - a despeito de serem os retratos do conselheiro e de sua esposa, dos quais descendia toda a família.--------------------
- Em rigor - dizia um dos barõezinhos - não pertencem à nossa estirpe : ele era mascate, e ela, pastora. Não se pareciam nem de longe com o papai e a mamãe!
E como os retratos estavam muito estragados, cheios de manchas, trastes velhos, enfim, foram estragados, foram os bisavós confinados nos aposentos da criadagem: " Cada coisa no seu lugar!"
Era professor da família o filho do pastor. Passeava um dia com os discípulos, entre os quais se achava a irmã mais velha, e seguiam pelo caminho estreito que ia dar ao salgueiro. A mocinha ia colhendo flores silvestres. " Cada coisa no seu lugar!" E, de fasto, o ramalhete nas suas mãos formava um belo conjunto, e não a impedia de ir escutando o que se dizia; gostava muito de ouvir o professor falar sobre a natureza, ou sobre os personagens que desempenham nobilíssimos, e de uma alma que transbordava de amor por toda a obra do Criador.
Detiveram-se à sombra do salgueiro, e , para satisfazer o menor dos irmãos, que queria uma flauta de salgueiro, o filho do pastor quebrou um ramo da árvore.
- Oh! Que fez o senhor! - exclamou a jovem. - Enfim... Agora já não há remédio! Essa é a nossa árvore lendária. Meus irmãos riem de mim, porque lhe tenho amor, mas isso pouco me importa. Ela possui a sua história, não sabe?
Contou-lhe então o que já sabemos a respeito do salgueiro, do velho solar, do mascate e da menina que cuidava dos patos; contou que se viram pela primeira vez à sombra daquela árvore; que vieram a ser os fundadores da família; e que essa, com andar do tempo, tinha sido empossada também no antigo baronato. E explicou afinal:
- Esses nossos antepassados não quiseram incorporar-se à nobreza, porque, aferrados ao sue lema - "Cada coisa no seu lugar!" não achavam acertado adquirir um título nobiliárquico à custa de dinheiro. Foi meu avô, que era filho daquele casal, o primeiro barão da família. Era justamente reputado homem erudito, e gozava do favor dos príncipes, que o convidavam para as festas da Corte. Em casa, todos o membros da família lhe tributam muito respeito e carinho; contudo, não sei dizer por que sempre me vai o coração em busca do velho casal, filho do povo, e que me atrai... Que espírito de família, tão singelo e tão íntimo, devia presidir à vida do antigo solar patriarcal, onde a dona fiava na roca com as suas aias, enquanto o marido lia a Bíblia em voz alta!
- Era certamente gente boa e sensata -disse o filho do pastor.
E passaram a conversar sobre nobre nobres e burgueses; e dir-se-ia que o moço não procedia da burguesia, quando falava do significado na nobreza.
- É grande felicidade pertencer a uma família distinta, possui uma espécie de acicate do sangue, que nos impele a praticar boas ações, e ter um nome de família que vale por um cartão, que nos abre as portas dos círculos mais elevados. A nobreza do sangue, unida à nobreza da alma, é a moeda de ouro que tem o cunho do valor próprio. E é um erro do nosso tempo afirmar, como fazem muitos escritores, que toda a nobreza é má e estúpida, e que quanto mais se desce na escala social, mais brilhantes são as virtudes. Não partilho dessa opinião. Encontra-se também nas classes elevadas muita bondade e rasgos de grande e comovente beleza. Ouvi de minha mãe alguns episódios e eu mesmo poderia apontar muitos caso semelhantes. Contou-me ela que estava um dia de visita em uma casa nobre, na cidade. Se bem me recordo, minha avó fora ama da senhora. Conversava ela na sala com o dono da casa, cavalheiro distintíssimo, quando viu ele que uma velhinha de muletas entrava no jardim. Ia receber a esmola de todos os domingos, mas andava com grande dificuldade, apoiada nas muletas. Ao avistá-la, exclamou o fidalgo:
" - Coitada da velinha... como lhe custa caminhar!"
E antes que minha mãe compreendesse o que se passava, já ele tinha saído da sala e descido a escada, a fim de poupar à pobre velha o penoso trabalho de subir, para receber o auxílio que lhe dava. É claro que o caso em si não passa de um pequeno exemplo, mas como o óbulo da viúva pobre, de que fala a Escritura, vai ecoar no íntimo do coração, nas profundezas da natureza humana. Esses fatos é que os escritores deviam buscar e mostrar: porque são coisas que consolam, comovem e trazem reconciliação - principalmente nos dias de hoje. Mas quando um homem, só porque é de sangue azul, se empina em plena rua, como um cavalo árabe, para gritar a nobreza de sua linhagem, e, ao entrar em uma sala onde tenha estado uma pessoa humilde diz que ali andou gente da plebe, porque o ar cheira a povo - então é senão a máscara daquele tipo criado por Téspis, o pai da tragédia; e não passa de objeto de escárnio, que a sátira se encarrega de ridicularizar.
Fora talvez um tanto estirado e sermão do filho do pastor. Mas a flauta estava pronta.
Na mansão senhorial celebrava-se uma grande festa, a que assistiam muitos convidados, dos arredores e da capital. Era grande o número de senhoras, trajadas com ou sem elegância, conforme o gosto de cada uma. Os representantes do clero ficaram discretamente de lado, como se estivessem em um velório; contudo, era bem uma festa, e festa alegre: apenas a alegria ainda não tinha começado.
Consistia uma das atrações em um grande concerto, e por isso o menino tinha pedido ao professor que lhe fizesse uma flauta. Mas, por mais que tentasse, não pode tirar dela som algum, nem tampouco seu pai o conseguiu, de modo que o instrumento de nada servia.
Não faltaram as músicas e canções, daquele gênero que deleita antes ao executante do que a quem o ouve. A não ser esse senão, tudo era encantador. Um dos presentes, um jovem fidalgo, virou-se para o professor e perguntou:
- O senhor também é artista, não? Toca flauta e fabrica-a por suas mãos... Que coisa genial! Merece ser exibido.
E, dizendo isto, ofereceu-lhe a flauta, aquela flauta feita da vara do salgueiro do fosso. E, em voz bem alta, proclamou que o professor ia regalá-los com um solo.
Compreendendo - o que era evidente - que queriam divertir-se à sua custa, negou-se o moço a tocar, embora pudesse desempenhar-se admiravelmente dessa incumbência. Tanto, porém, instaram e porfiaram com ele, que acabou por pegar na flauta.
Mas era uma flauta singular, aquela! Lançou primeiro um som estridente e confuso, como o silvo de uma locomotiva; depois soou ainda com mais força que a máquina, pois aquele silvo foi ecoar no jardim, no parque, nos bosques, e foi ouvindo a muitas milhas de distância. A nota ferida produziu um vendaval, que bramia incessantemente:
- Cada coisa no seu ligar!
E o dono da casa, o barão saiu voando, arrebatado pela ventania, e lá se foi, até parar na choça do porcariço; esse também voou, não para a sala de festas do castelo, onde não era o seu lugar, mas para a sala da criadagem, onde os fâmulos se pavoneavam, de meias de seda. Ficaram todos mudos de assombro, ao verem aquele intruso, que ousava assim sentar-se à sua mesa.
Na sala do banquete a filha do barão voou para o lugar de honra, à cabeceira da mesa, onde merecia sentar-se; e a seu lado veio parar o filho do pastor: assim juntos pareciam um casal de noivos. Um conde velho, membro de uma das famílias de mais alta linhagem do país, permaneceu no seu lugar, imóvel: a flauta distribuía justiça. O jovem inconsequente que provocara todo aquele estrondo, e que era um fidalgo, fez , de cabeça para baixo, um voo até o curral, onde outro o acompanharam.
O som da flauta troou em toda a região, produzindo fenômenos estranhos. Os filhos de um rico banqueiro, que viajava em um carro puxado por duas parelhas, viram-se lançados fora da carruagem e não acharam lugar sequer na boleia. Dois granjeiros, ricos demais para a terra que possuíam, e que os tempos modernos tinham alcançado acima dos seus trigais, foram arrojados ao açude. Era uma flauta perigosa, aquela! Por sorte partiu-se ao dar a primeira nota. e ainda bem que assim foi ! O professor mete-a no bolso, dizendo:
- Cada coisa no seu lugar!
No dia seguinte ninguém mais falou no caso; e foi então que nasceu a expressão: " meter a flauta no bolso", que noutros países significa: " meter a viola no saco."
Quanto ao mais , tudo voltou ao antigo estado, isto é, continuou como dantes. A única modificação foi a dos retratos do casal de velhos: o mascate e a pastora estavam na parede do salão de festas, no lugar onde os colocara a ventania.
E como um perito de arte declarou que eram obra de mão de mestre, foram devidamente restaurados, e ali ficaram : " Cada coisa no seu lugar!"
Longa é a eternidade - e o mundo dá muita volta!
FIM
Na margem do grande lago, junto ao bosque, assentava uma velha mansão cercada de profundos fossos, todos cheios de juncos; junto à ponte um frondoso salgueiro curvava os galhos sobre os caniços.
Ouviu-se de repente, subindo a vereda que ali ia dar, um som de trompas de caça; e a pastorinha que cuidava dos patos apressou-se a apartá-los da ponte, antes que os espezinhasse o bando de caçadores, que se aproximavam a galope. Contudo, vindo à rédea solta, chegaram antes que ela tivesse escapado; e a pastorinha teve de escalar precipitadamente um pilar da ponte, para não ser atropelada.
Era quase uma menina, e de frágil compleição; o olhar, suave, traía-lhe a inteligência e a bondade. Mas o barão, esse não atentou em nada disso: ao passar, a toda disparada, empurrou-a com o cabo do chicote, atirando-a de costas no fosso. E gritou:
- Cada coisa no seu lugar! O teu é no fosso!
Soltou então uma gargalhada, como se tivesse dito coisa muito espirituosa. imitaram-no os companheiros, e às risadas estrepitosas de todo o bando, juntaram-se também os latidos dos perdigueiros.
A sorte foi que a pastorinha, ao cair, tivesse podido agarrar-se a um galho do salgueiro, ficando assim suspensa sobre a água; e, quando o barão e sua comitiva desapareceram com a matilha, tratou ela de içar-se, conforme podia. mas o galho quebrou-se, e ela teria caído entre os juncais, se um pulso forte, vindo de cima da ponte, não a tivesse segurado. era um mascate que, tendo visto de alguma distancia o que acontecera, corria em seu auxílio.
- Cada coisa no seu lugar! - disse ele, arremedando o nobre barão, quando depunha a menina em terra enxuta.
Tentou então endireitar o galho quebrado, que não se separara totalmente do tronco; mas como não o conseguiu, convencido de que nem sempre se pode por cada coisa no seu lugar, fincou-o na terra fofa.
- Cresce aí, se puderes - disse ele- e produz boas flautas para aquela gente lá de cima...
É que, a seu ver, o barão e toda a sua malta mereciam boas varadas.
Contudo, atravessou a ponte e foi direito à casa nobre. Não se dirigiu, porém. à sala do banquete - era muito humilde para isso, é claro. Entrou pelos fundo, onde se encontrava a criadagem. Todos eles, homens e mulheres, remexeram nas bagatelas que carregava, regateando. E enquanto isso, vinham lá de cima a grita e os bramidos dos hóspedes, pois que aquelas vozes dissonantes não mereciam o nome de canções. Pelas janelas abertas ouviam-se as risadas estridentes e os latidos dos cães; nos copos e canecas espumavam o vinho e a cerveja. os cães de estimação comiam com os donos, e não era raro ver um daqueles fidalgos segurar a longa orelha do seu favorito, limpar-lhe com ela o focinho e depois pespegar-lhe um beijo.
Querendo divertir-se à custa do mascate, ordenaram-lhe que subisse com a sua mercadoria. O vinho velava-lhes a razão, e a luz do entendimento, já de si escassa, extinguira-se por completo naqueles cérebros. deitaram vinho em um pé de meia, e queriam que o mascate o bebesse a toda pressa. Achavam extraordinária graça na brincadeira, e riam a bom rir. Depois, já cansados, passaram a jogar- e campos, granjas e outros bens foram ganhos e perdidos no baralho.
- Cada coisa no seu lugar! - disse o mascate, afastando-se daquela casa de perdição. - O meu é na estrada livre. Não me sentia bem ali.
E a menina dos patos, vendo-o atravessar o pátio, enviou-lhe um adeus, sorridente.
Passaram-se os dias, passaram-se as semanas, e o galho de salgueiro, plantado pelo mascate à beira do fosso conservava-se fresco, e ia brotando. Compreendeu a menina que o ramo criara raízes, e ficou muito contente, porque aquela nova arvorezinha era a sua árvore, segundo dizia. E, à medida que crescia a planta, ia a casa solarenga desmoronando, entre as libações, e a jogatina- dois passatempos admiráveis, que levam depressa à ruína. E seis anos depois, o barão, de cajado e sacola, atravessava pela última vez a porta do castelo, adquirido havia pouco por um rico negociante.
Ora, o rico negociante outro não era senão aquele mascate, a quem ele pretendera obrigar a tomar vinho em um pé de meia, para divertimento seu e dos amigos. E como a honestidade e o trabalho levam à prosperidade, era agora o mascate o dono e senhor da baronia. E desde então foi terminantemente proibido o jogo de cartas em todo o feudo.
-É um péssimo divertimento - dizia ele .- Quando o demônio viu a Bíblia pela primeira vez, procurou uma arma para guerreá-la e inventou o baralho.
Um dia casou o novo proprietário. E com quem ? Ora, com quem havia de ser? Com aquela pastorinha que cuidava dos patos, e que conservou sempre a mesma meiguice e bondade de coração. E era tão bela agora nos seus ativios elegantes como se tivesse nascido em um berço nobre . Como se processou tanta mudança é uma história muito longa para contar agora, nestes tempos em que tudo corre com tanta precipitação; mas isso aconteceu- e é que importa ao caso.
Corria a vida agora tranquila e feliz na velha mansão: a mãe cuidava do governo da casa, enquanto o pai atendia os negócios, de dia em dia mais prósperos, como se a benção do céu os protegesse. É que a prosperidade atrai a prosperidade.
O castelo foi restaurado e todo pintado de novo; limparam-se os fossos, plantaram-se árvores frutíferas. Naquela casa tudo tinha aspecto acolhedor e amigo. O soalho brilhava como um espelho. Nas longas noites de inverno a dona da casa e suas aias trabalhavam, fiando na roca, instaladas na sala principal. Todos os domingos o conselheiro - porque o mascate, na idade madura, chegou a ser o representante da lei- lia a Bíblia em voz alta. Aos filhos, que foram nascendo, deu o casal a melhor educação, ainda que nem todos mostrassem a mesma inteligência, o que não é caso raro. Entretanto o salgueiro da estrada convertera-se em uma bela árvore: crescera sempre em liberdade, sem que nunca ninguém a podasse.
- É a árvore genealógica - dizia o casal.
Era preciso, pois, honrá-la e tratá-la com respeito. E isso mesmo advertiam aos filhos, até aos que não tinham lá muito boa cabeça.
Transcorreu um século. Vemo-nos transportados à época. O lago transformou-se em um charco, e o velho solar quase desapareceu. Do fosso profundo só resta hoje um valo de água estagnada, ao pé de uns restos de muros em ruínas, sobre as quais se eleva, magnífico, um belo salgueiro; a árvore genealógica, sobrevivendo a tudo, e demonstrando a que ponto pode chegar a beleza de um salgueiro, quando ninguém o mutila. É certo que o tronco está fendido da raíz à copa - é a honrosa cicatriz a recordar os combates que sustentou contra as tempestades; mas ainda se ergue altaneiro, e em cada fenda, que o vento e as chuvas encherem de terra, crescem plantas e flores - condecorações da sua galhardia. Na copa, onde os ramos se entrelaçam, floresce todo um jardim de fetos e framboesas, que lhe dão um aspecto pitoresco; até uma pequena sorveira ali enraizou, elevando-se , esbelta e delicada, no meio da folhagem do salgueiro, que se mira na água pardacenta do valo, quando o vento impele o limo para um lado.
No topo do cerro próximo, cercado de bosques, onde se descortina esplendida vista, ergue-se a nova casa solarenga. É vasta e magnifica:os vidros das janelas são tão transparente, que elas parecem sempre abertas. A ampla escadaria que conduz à entrada sobe à sombra de um verdadeiro caramanchão de flores e folhagens trepadeiras. A grama do prado é tão verde, que dá impressão de que alguém a lava todos os dias. E dentro, nos salões suntuosos, pendem das paredes quadros de grande valor. Sofás e poltronas , estofados de veludo e de seda, podem ser transportados facilmente de um lado para outro, sobre os rodízios. Mesas artisticamente esculpidas, cobertas de mármore polido, ostentem livros encadernados em marroquim, com os cantos dourados. Não há dúvida de que é uma residencia de gente de gosto : é a morada do barão e de sua família.
Tudo ali se harmoniza: móveis e cores não destoam dos ornatos e alfaias. E o lema da família continua sendo; "Cada coisa no seu lugar! " E em obediência a esse princípio é que os quadros, que em outro tempo tinham sido a glória e a honra da casa, foram relegados para o corredor dos quartos da criadagem. Estavam já alterados pela pátina e carcomidos, principalmente os retratos, um dos quais representava um homem de peruca e casaca escarlate, e outro, uma dama de cabeleira empoada, e segurava na mão uma rosa. Esses dois quadros tinham uma cercadura de ramos de salgueiro; e estavam ambos crivados de orifícios, porque os filhos do barão se serviam deles para alvo de seus tiros - a despeito de serem os retratos do conselheiro e de sua esposa, dos quais descendia toda a família.--------------------
- Em rigor - dizia um dos barõezinhos - não pertencem à nossa estirpe : ele era mascate, e ela, pastora. Não se pareciam nem de longe com o papai e a mamãe!
E como os retratos estavam muito estragados, cheios de manchas, trastes velhos, enfim, foram estragados, foram os bisavós confinados nos aposentos da criadagem: " Cada coisa no seu lugar!"
Era professor da família o filho do pastor. Passeava um dia com os discípulos, entre os quais se achava a irmã mais velha, e seguiam pelo caminho estreito que ia dar ao salgueiro. A mocinha ia colhendo flores silvestres. " Cada coisa no seu lugar!" E, de fasto, o ramalhete nas suas mãos formava um belo conjunto, e não a impedia de ir escutando o que se dizia; gostava muito de ouvir o professor falar sobre a natureza, ou sobre os personagens que desempenham nobilíssimos, e de uma alma que transbordava de amor por toda a obra do Criador.
Detiveram-se à sombra do salgueiro, e , para satisfazer o menor dos irmãos, que queria uma flauta de salgueiro, o filho do pastor quebrou um ramo da árvore.
- Oh! Que fez o senhor! - exclamou a jovem. - Enfim... Agora já não há remédio! Essa é a nossa árvore lendária. Meus irmãos riem de mim, porque lhe tenho amor, mas isso pouco me importa. Ela possui a sua história, não sabe?
Contou-lhe então o que já sabemos a respeito do salgueiro, do velho solar, do mascate e da menina que cuidava dos patos; contou que se viram pela primeira vez à sombra daquela árvore; que vieram a ser os fundadores da família; e que essa, com andar do tempo, tinha sido empossada também no antigo baronato. E explicou afinal:
- Esses nossos antepassados não quiseram incorporar-se à nobreza, porque, aferrados ao sue lema - "Cada coisa no seu lugar!" não achavam acertado adquirir um título nobiliárquico à custa de dinheiro. Foi meu avô, que era filho daquele casal, o primeiro barão da família. Era justamente reputado homem erudito, e gozava do favor dos príncipes, que o convidavam para as festas da Corte. Em casa, todos o membros da família lhe tributam muito respeito e carinho; contudo, não sei dizer por que sempre me vai o coração em busca do velho casal, filho do povo, e que me atrai... Que espírito de família, tão singelo e tão íntimo, devia presidir à vida do antigo solar patriarcal, onde a dona fiava na roca com as suas aias, enquanto o marido lia a Bíblia em voz alta!
- Era certamente gente boa e sensata -disse o filho do pastor.
E passaram a conversar sobre nobre nobres e burgueses; e dir-se-ia que o moço não procedia da burguesia, quando falava do significado na nobreza.
- É grande felicidade pertencer a uma família distinta, possui uma espécie de acicate do sangue, que nos impele a praticar boas ações, e ter um nome de família que vale por um cartão, que nos abre as portas dos círculos mais elevados. A nobreza do sangue, unida à nobreza da alma, é a moeda de ouro que tem o cunho do valor próprio. E é um erro do nosso tempo afirmar, como fazem muitos escritores, que toda a nobreza é má e estúpida, e que quanto mais se desce na escala social, mais brilhantes são as virtudes. Não partilho dessa opinião. Encontra-se também nas classes elevadas muita bondade e rasgos de grande e comovente beleza. Ouvi de minha mãe alguns episódios e eu mesmo poderia apontar muitos caso semelhantes. Contou-me ela que estava um dia de visita em uma casa nobre, na cidade. Se bem me recordo, minha avó fora ama da senhora. Conversava ela na sala com o dono da casa, cavalheiro distintíssimo, quando viu ele que uma velhinha de muletas entrava no jardim. Ia receber a esmola de todos os domingos, mas andava com grande dificuldade, apoiada nas muletas. Ao avistá-la, exclamou o fidalgo:
" - Coitada da velinha... como lhe custa caminhar!"
E antes que minha mãe compreendesse o que se passava, já ele tinha saído da sala e descido a escada, a fim de poupar à pobre velha o penoso trabalho de subir, para receber o auxílio que lhe dava. É claro que o caso em si não passa de um pequeno exemplo, mas como o óbulo da viúva pobre, de que fala a Escritura, vai ecoar no íntimo do coração, nas profundezas da natureza humana. Esses fatos é que os escritores deviam buscar e mostrar: porque são coisas que consolam, comovem e trazem reconciliação - principalmente nos dias de hoje. Mas quando um homem, só porque é de sangue azul, se empina em plena rua, como um cavalo árabe, para gritar a nobreza de sua linhagem, e, ao entrar em uma sala onde tenha estado uma pessoa humilde diz que ali andou gente da plebe, porque o ar cheira a povo - então é senão a máscara daquele tipo criado por Téspis, o pai da tragédia; e não passa de objeto de escárnio, que a sátira se encarrega de ridicularizar.
Fora talvez um tanto estirado e sermão do filho do pastor. Mas a flauta estava pronta.
Na mansão senhorial celebrava-se uma grande festa, a que assistiam muitos convidados, dos arredores e da capital. Era grande o número de senhoras, trajadas com ou sem elegância, conforme o gosto de cada uma. Os representantes do clero ficaram discretamente de lado, como se estivessem em um velório; contudo, era bem uma festa, e festa alegre: apenas a alegria ainda não tinha começado.
Consistia uma das atrações em um grande concerto, e por isso o menino tinha pedido ao professor que lhe fizesse uma flauta. Mas, por mais que tentasse, não pode tirar dela som algum, nem tampouco seu pai o conseguiu, de modo que o instrumento de nada servia.
Não faltaram as músicas e canções, daquele gênero que deleita antes ao executante do que a quem o ouve. A não ser esse senão, tudo era encantador. Um dos presentes, um jovem fidalgo, virou-se para o professor e perguntou:
- O senhor também é artista, não? Toca flauta e fabrica-a por suas mãos... Que coisa genial! Merece ser exibido.
E, dizendo isto, ofereceu-lhe a flauta, aquela flauta feita da vara do salgueiro do fosso. E, em voz bem alta, proclamou que o professor ia regalá-los com um solo.
Compreendendo - o que era evidente - que queriam divertir-se à sua custa, negou-se o moço a tocar, embora pudesse desempenhar-se admiravelmente dessa incumbência. Tanto, porém, instaram e porfiaram com ele, que acabou por pegar na flauta.
Mas era uma flauta singular, aquela! Lançou primeiro um som estridente e confuso, como o silvo de uma locomotiva; depois soou ainda com mais força que a máquina, pois aquele silvo foi ecoar no jardim, no parque, nos bosques, e foi ouvindo a muitas milhas de distância. A nota ferida produziu um vendaval, que bramia incessantemente:
- Cada coisa no seu ligar!
E o dono da casa, o barão saiu voando, arrebatado pela ventania, e lá se foi, até parar na choça do porcariço; esse também voou, não para a sala de festas do castelo, onde não era o seu lugar, mas para a sala da criadagem, onde os fâmulos se pavoneavam, de meias de seda. Ficaram todos mudos de assombro, ao verem aquele intruso, que ousava assim sentar-se à sua mesa.
Na sala do banquete a filha do barão voou para o lugar de honra, à cabeceira da mesa, onde merecia sentar-se; e a seu lado veio parar o filho do pastor: assim juntos pareciam um casal de noivos. Um conde velho, membro de uma das famílias de mais alta linhagem do país, permaneceu no seu lugar, imóvel: a flauta distribuía justiça. O jovem inconsequente que provocara todo aquele estrondo, e que era um fidalgo, fez , de cabeça para baixo, um voo até o curral, onde outro o acompanharam.
O som da flauta troou em toda a região, produzindo fenômenos estranhos. Os filhos de um rico banqueiro, que viajava em um carro puxado por duas parelhas, viram-se lançados fora da carruagem e não acharam lugar sequer na boleia. Dois granjeiros, ricos demais para a terra que possuíam, e que os tempos modernos tinham alcançado acima dos seus trigais, foram arrojados ao açude. Era uma flauta perigosa, aquela! Por sorte partiu-se ao dar a primeira nota. e ainda bem que assim foi ! O professor mete-a no bolso, dizendo:
- Cada coisa no seu lugar!
No dia seguinte ninguém mais falou no caso; e foi então que nasceu a expressão: " meter a flauta no bolso", que noutros países significa: " meter a viola no saco."
Quanto ao mais , tudo voltou ao antigo estado, isto é, continuou como dantes. A única modificação foi a dos retratos do casal de velhos: o mascate e a pastora estavam na parede do salão de festas, no lugar onde os colocara a ventania.
E como um perito de arte declarou que eram obra de mão de mestre, foram devidamente restaurados, e ali ficaram : " Cada coisa no seu lugar!"
Longa é a eternidade - e o mundo dá muita volta!
FIM
sexta-feira, 6 de novembro de 2015
A PEQUENA SEREIA - CONTOS DE ANDERSEN
Longe, muito longe da terra, mar a dentro, a água é azul, tão azul como céu e tão límpida como o cristal mais transparente. E atinge tamanha profundidade que jamais âncora alguma lhe tocou o leito.
E é lá, no seio profundo das águas, que vive o povo do mar.
Crescem ali plantas e flores maravilhosas, de folhas e hastes flexíveis, que ondeiam ao mais leve vaivém da água, como se fossem criaturas vivente. Por entre a ramaria deslizam peixes de toda a espécie, como as aves esvoaçam entre as árvores aqui na terra. E no sítio mais profundo assenta o palácio do rei dos mares. As paredes são de coral e as altas janelas ogivais, do mais puro âmbar; o teto é todo coberto de conchas que se abrem e fecham ao movimento das marés- e isso dá ao palácio um efeito deslumbrante, pois cada concha contém uma pérola tão preciosa, que poderia adornar, sem deslustre, a coroa de uma rainha.
O rei dos mares enviuvara havia muitos anos, e sua velha mãe é quem lhe dirigia a casa. Dama de grande sabedoria era ela, sem dúvida nenhuma; mas dotada também de um orgulho desmedido pela nobre estirpe de que descendia. Ocupava tão alto grau na escala hierárquica, que usava doze pérolas na cauda, ao passo que outras pessoas, também de nobre nascimento, só podiam usar seis. Quanto mais, era dama de excelentes qualidades, entre as quais ressaltava o grande amor que dedicava às netas- as princesas do mar.
Eram seis meninas lindíssimas, mas a mais moça ainda sobressaía às outras em formosura. Tinha a cútis tão fina e tão delicada como uma pétala de rosa, e os olhos azuis como o mar profundo. Mas, como as irmãs, não tinha pé, e rematava-lhe o corpo uma cauda de peixe.
- Passavam o dia inteiro brincando nos imensos salões, no palácio submarino, em cujas paredes cresciam belas flores. Os peixes entravam nadando pelas largas janelas, como as andorinhas entram pelas nossas casas, quando as acham abertas; nadavam em direção às princesinhas, e comiam migalhas nas suas mãos; e elas os acariciavam.
O jardim do palácio oferecia um verdeiro espetáculo de beleza. A ramagem das árvores era vermelha como o fogo, e, ao mesmo tempo, despendia reflexos azuis, tão zuis como o mar profundo; os frutos brilhavam como o ouro, e as flores desprendiam chamas. E os galhos estavam sempre ondulando. Cobria o solo do jardim uma areia finíssima, azul como a chama do enxofre. E tudo era iluminado por uma luz azulina, maravilhosa.
Mais parecia que os seres estavam suspensos no ar, envoltos em céu, do que mergulhados no fundo do mar. E, quando não soprava vento algum, via-se o sol lá em cima, como uma resplandecente flor vermelha.
Cada princesinha tinha no jardim o seu recanto, onde podia semear e plantar o que mais lhe agradecesse. Uma semeou flores, formando um desenho, de modo que, quando crescessem as plantas, apresentariam a forma de uma baleia; outra preferiu a figura de uma sereia mesmo; mas a menorzinha deu ao seu canteiro o formato do sol e semeou nele somente flores da cor de seus raios, conforme os via de dentro da massa líquida e azulada. Era uma criança singular, silenciosa e pensativa; e, enquanto as irmãs se entusiasmavam com os pequenos objetos que encontravam, provenientes de navios naufragados, ela apenas se interessava- além das suas flores chamejantes, que se assemelhavam ao sol lá de cima- por uma estátua de mármore, que algum naufrágio atirou ao fundo do mar, e que representavam um belo mancebo. Plantou junto da estátua um salso-chorão vermelho, e quando a árvore cresceu e deu sombra à linda estátua, seus galhos desciam até o fundo, tocando as areias azuis e projetando uma sombra cor de violeta; e as sombras dançavam no fundo, como os ramos dentro d'água, dando a impressão de que a copa brincava com as raízes.
A princesinha ouvia com avidez as histórias que avó contava a respeito do mundo de cima. Pedia-lhe constantemente que contasse mais alguma coisa, tudo o que sabia dos navios e das cidades, de pessoas e animais. Maravilhava-se de saber que as flores da terra exalam perfumes-pois que as do mar não tem cheiro algum- e os bosques são verdes; e gostava sobretudo de ouvir contar dos "peixes" de cima, que andam esvoaçando por entre as árvores, e cantam com voz tão suave que encantam a quem os ouve. É que a vó chamava peixes aos passarinhos, para que a sereiazinha a entendesse, ela que nunca vira um pássaro.
- Quando tiveres quinze anos- dizia a avó- subirás à superfície; poderás sentar nos rochedos, lá em cima, e verás à luz do luar os navios que passam as cidades e as florestas.
No ano seguinte a mais velha completou quinze anos. Cada uma das irmãs era mais moça que a precedente justamente uma ano, de modo que a menor ainda teria esperar cinco, para subir à tona d'água e ver como era o nosso mundo, o dos humanos. Entretanto, a mais velha prometeu às irmãs contar o que mais lhe interessasse, o que visse de mais lindo no primeiro dia; porque a avó certamente não tinha contado tudo, e elas ansiavam por conhecer todos os aspectos da terra.
Nenhuma, entretanto, desejava tão ardentemente subir à tona como a menor, a que tinha de esperar mais tempo e que era tão reservada e pensativa. Costumava ela ficar à noite à janela,e via então os peixes que nadavam, agitando as águas azuis com a cauda e as barbatanas. Via também a lua e as estrelas, que lá dentro d'água pareciam mais pálidas, mas maiores do que nós a vemos daqui. Se uma nuvem negra as furtava ao olhar da menina, ela já sabia que era uma baleia que nadava lá em cima, ou algum navio que passava, repleto de passageiros. E certamente nenhum deles poderia sonhar que lá estava uma linda sereia pequenina, de olhos ansiosos, seguindo a quilha do seu navio!
Completara, pois, a princesa mais velha quinze anos, e recebera permissão de subir à superfície do mar.
Á volta tinha mil e uma coisas para contar; mas o que lhe parecia mais belo era ficar sentada na areia da praia, ao luar, contemplando a grande cidade que se entendia não muito distante, toda pontilhada de luzes, que brilhavam como estrelas; e ouvir os sons da multidão; e ver os altos campanários e ouvir o repique dos sinos. E a princesinha desejava ardentemente misturar-se à vida de todas aquelas coisas, exatamente porque lhe era vedado aproximar-se delas.
Escutava-a a irmãzinha atentamente. E mais tarde, quando chegou à janela, à noite, para olhar através das águas, veio-lhe tudo aquilo à memoria; viu a grande cidade, cheia de ruído e de tumulto, até lhe parecia ouvir os sinos da igreja repicando lá em cima!
No ano seguinte a segunda irmã obteve a permissão para subir e nadar à vontade. Subiu mesmo na hora do pôr do sol, e apareceu-lhe que nunca vira coisa tão bela! Contou que todo o céu parecia de ouro, e que a beleza das nuvens ninguém poderia descrever; umas eram vermelhas e outras cor de violeta, e corriam rapidamente acima da sua cabeça. Um bando de cisnes selvagens, semelhantes a um longo manto branco, voava ainda mais longe do que elas, atravessando o mar, rumo ao sol poente. Também ela mudou em direção ao sol, mas ele entrou no horizonte, e as belas cores rosadas desapareceram da superfície da água e da curva dos céus.
Um ano depois foi a terceira irmã quem subiu. Era a mais arrojada: nadou ousadamente para um rio que ia desembocar no mar. Avistou lindas colinas verdes cobertas de parreiras; viu imponentes castelos, que espiavam por entre bosques magníficos; ouviu o canto dos passarinhos. tamanho era o calor que o sol despendia, que ela mergulhava a cada instante para refrescar o rosto afogueado. Nisso enxergou ao longe, em uma pequena enseada, um grupo de crianças , que se banhavam alegremente nas águas. Quis associar-se aos seus brinquedos, mas as crianças assustaram-se e fugiram. E no mesmo momento apareceu um animal preto, desconhecido. Era um cão, mas a sereia julgou que fosse uma fera. O cão latia com fúria. E ela, também assustada, tratou de ganhar o mar largo. Mas a jovem princesa jamais esqueceria as lindas florestas, nem as crianças, tão belas, e que podiam nadar na água, mesmo sem possuir cauda de peixe!
Era a quarta a mais tímida das irmãs. Manteve-se no meio das ondas e afirmava que assim gozara uma vista mais bela, porque dali via tudo quanto a rodeava, na extensão de muitas milhas. Vira navios, que passavam distantes, e lhe pareceram gaivotas.Os golfinhos brincalhões davam saltos mortais, e as enormes baleias esguichavam água pelas narinas, parecendo que ela estava cercada de fontes, às centenas.
Chegou a vez da quinta. Nascera no inverno, de sorte que viu coisas que as outra não tinham podido observar da primeira vez que subiram à flor das águas. O mar era todo verde e flutuavam por toda parte enormes blocos de gelo- parecidos com pérolas, segundo descreveu, mas muito maiores do que as igrejas que o humanos constroem. Tinham formas fantásticas e brilhavam como diamantes. Colocou-se sobre o maior deles, e todos os navios que passavam por ali fugiam a toda a pressa, aterrados, como se tivessem medo de se aproximar do sítio em que ela estava, com os longos cabelos voando ao sabor do vento. Mas ao escurecer o céu for ficando tenebroso: reboava o trovão, os relâmpagos rasgavam a escuridão incessantemente. e as ondas escuras erguiam os enormes blocos de gelo, que se iluminavam ao clarão dos raios. Todos os navios colheram o velame, e, enquanto os passageiros eram tomados de pânico, a sereia lá estava, tranquilamente sentada no seu bloco de gelo flutuante, olhando para os relâmpagos azuis, que ziguezagueavam sobre o mar fosforescente.
Quando uma sereia fazia a primeira ascensão à superfície, ficava encantada diante da novidade e da beleza do que via; já crescidas agora, e podendo subir quantas vezes quisessem à flor d'água, foram perdendo aquele interesse primitivo pelas coisas de cima. Mal subiam, já desejavam ver-se de novo no fundo do mar, e ao fim de um mês diziam todas que o seu mundo era mais bonito, e que sentiam mais prazer em ficar em casa.
Às vezes as cinco irmãs subiam, à noite, de braços dados, formando uma fila. eram todas dotadas de magníficas vozes, como nenhuma criatura humana jamais possuiu. Quando se aproximava uma tempestade, e elas pressentiam algum naufrágio, vinham cantar à frente dos navios, exaltando as maravilhas do fundo do mar, e dizendo aos marinheiros que podiam descer até lá sem temor algum. Mas eles não as entendiam, julgavam que era as vozes da tempestade ; e nunca chegavam a ver as magnificências submarinas, porque se a nave naufragava, morriam afogados, e somente seus corpos iam dar ao fundo, ao palácio do rei do mar.
Quando as cinco irmãs subiam à tona, de braços dados, à hora do sol posto, a menor ficava sozinha, e, vendo-as assim suspender-se na água, sentia vontade de chorar; mas a sereia não tem lágrimas, como se sabe, e isto é que torna seu sofrimento mais aflitivo.
- Quem dera já ter quinze anos! - suspirava ela. - sei bem que havia de amar esse mundo lá de cima e as criaturas que nele vivem!
Afinal chegou o dia tão almejado. e a avó, a velha rainha disse-lhe:
- É a tua vez, querida. Vem, quero adorna-te.
Cingiu-a com um diadema de lírios d'água, formados de metades de pérolas. E determinou que oito grandes ostras se pegassem à cauda da princesa, como insígnia de sua elevada categoria.
- Mas isso me magoa! - disse a princesinha.
- Sim, mas é assim mesmo: o orgulho nos traz sofrimento.
Ah! Com que alegria arrancaria da cabeça aquela coroa e lançaria longe de si os símbolos de nobreza! As flores vermelhas do seu jardim lhe assentariam muito melhor do que aquele adorno... Mas tinha de sujeitar-se àquilo!
E, erguendo-se para a superfície, com a rapidez de uma bolha de ar, gritou:
- Adeus! Adeus!
Já o sol tinha desaparecido no poente, quando ela ergueu a cabeça fora d'água, mas as nuvens vermelhas e franjadas de ouro ainda lhe refletiam o esplendor. E a tarde, já vizinha da noite, brilhava em toda a sua beleza, através daquelas tintas rosadas que se diluíam. O ar era suave e fresco e o mar completamente sereno. Ao seu manso ondular embalava-se um grande navio de três mastros; tinha uma única vela içada, pois que não soprava a menor brisa, e os marinheiros descansavam, sentados em grupos, pelos convés. De bordo vinham sons de canto e de música; e ao anoitecer acenderam-se centenas de lanternas coloridas. A sereiazinha foi nadando, nadando, até se aproximar da grande nave. Viu então lá dentro, através dos vidros das vigias, passageiros ricamente trajados. Mas o mais belo de todos era um príncipe, um adolescente de grandes olhos negros, que não teria mais de dezesseis anos, e cujo aniversário se celebrava justamente naquela hora, com grande magnificência. Os marinheiros dançavam no convés, e quando o jovem príncipe subiu, foram soltos mais de cem foguetes, que iluminaram o céu como se fosse dia dia. E a sereia teve tamanho medo, que se escondeu na água. Mas imediatamente se refez do susto e voltou à superfície. Viu então, que o céu chovia sobre sua cabeça uma chuva de estrelas. Nunca tinha visto fogos de artifícios: eram enormes sois, que giravam, espalhando faíscas; eram peixes ígneos, que fendiam o ar azul; e todas aquelas maravilhas se refletiam na água tranquila. O navio inteiro estava inundado de tanta luz, que se distinguiam perfeitamente todos os objetos, até as cordas - e, é claro, viam-se com mais precisão ainda as pessoas. E como era formoso o príncipe, que apertava, sorrindo, as mãos das pessoas presentes, enquanto a música soava, na noite linda!
Era já muito tarde, e a princesa não podia apartar os olhos do navio nem do belo príncipe. Foram apagando-se as luzes multicores. Já não subiam foguetes, nem troavam os canhões. Mas do fundo do mar vinha um surdo rumor. A sereia ainda se conservava ali, espiando pelas vigias. Mas agora o navio vogava mais depressa: as velas foram-se enfunando uma após outra. as ondas iam crescendo, nuvens pesadas se acumulavam no céu e os relâmpagos rasgavam a escuridão. Era uma tempestade tremenda que se aproximava, e os marinheiros tornaram a arriar as velas. O grande navio balançava aos embates do mar, agora enfurecido. As ondas erguiam-se, como gigantescas montanhas negras, que amaçavam cair sobre a mastaréu.
Para sereia era aquele um modo de viajar encantador; já não pensavam assim, porém, os marinheiros. O navio estalava, rangia, as grossas pranchas cediam às investidas repetidas das vagas; começou a fazer água, e o mastro partiu-se pelo meio, como um caniço. A nave adernou e a água invadiu o porão.
Compreendeu então a sereiazinha o perigo que corria a gente do navio; e ela própria tinha de se acautelar para não ser apanhada pelas vigas. Por momentos o mar tão negro que ela nada via, mas a luz dos relâmpagos o iluminava a cada passo, e nesse curto instante podia ver tudo a bordo; procurava então o príncipe, e exatamente no momento em que o navio soçobrava, viu-o submergir. Alegrou-se com a ideia de que ia tê-lo por companheiro no fundo do mar, mas lembrou-se imediatamente de que homens não podem viver dentro d'água e que ele chegaria já morto ao palácio de seu pai. Não! Isso não! Ele não havia de morrer! Nadou na sua direção, por entre as vigas e pranchas que vogavam acima das vagas, sem se lembrar de que os destroços do navio podiam reduzi-la a migalhas. Mergulhou profundamente e depois, subindo de novo à tona, procurou alcançar o jovem príncipe, que mal podia sustentar-se naquele mar revolto. Já lhe desfaleciam os membros, tinha fechados os belos olhos, e teria morrido se a sereia não corresse em seu socorro. Ela o segurou, mantendo-lhe a cabeça acima da água, e abandonou-se à mercê das ondas.
Ao amanhecer serenou a tempestade; não se avistava, porém, em parte alguma nenhum sinal do navio. Ergue-se o sol radiante do meio das águas, e parecia que ia reanimar o príncipe; mas ele continuava de olhos fechados. A sereia beijou-lhe a fronte, alta e lisa, e deitou-lhe para trás os cabelos. parecia-se o príncipe com aquela estátua de mármore do seu jardim. e ela tornou a beijá-lo, desejando ardentemente que voltasse à vida.
Estavam agora à vista de terra. Perto da costa estendia-se uma floresta magnífica, e, destacando-se do fundo verde, uma igreja ou convento-ela não sabia bem o que era- levantava para o alto suas torres esguias. no jardim havia laranjeiras e limoeiros, e em frente mesmo da entrada erguiam-se altas palmeiras. Naquele lugar o mar formava uma pequena enseada, e a água ali, ainda que muito profunda, era completamente calma. Ela nadou com o príncipe para essa baía, e ali o deitou, com o maior cuidado, para que a cabeça ficasse mais alta que o corpo, e bem exposta ao sol.
Retiniram todos os sinos da casa branca e um grupo de moças apareceu no jardim. A sereia nadou então para os recifes, e escondeu-se atrás das pedras, ocultando o rosto entre os flocos de espuma, para que ninguém a descobrisse; e ficou espiando, a ver se alguém viria socorrer o príncipe.
Dali a pouco uma das mocinhas aproximou-se do lugar onde ele estava. A princípio pareceu assustada, mas logo chamou outras pessoas; a sereia viu o príncipe voltar a si, e viu-o sorrir para os que o cercavam . Não lhe dirigiu sequer um olhar- nem sabia que fora ela quem o salvara. E, quando ele foi levado para a grande mansão, o coração da sereia se encheu de melancolia. Triste e abatida, mergulhou na água e voltou para o castelo do pai.
Se já era calada e taciturna, mais ainda se mostrava agora. As irmãs perguntavam-lhe o que tinha visto, na sua primeira ascensão à tona d'água, mas a sereiazinha nada dizia.
Subiu muitas vezes, pela manhã e à tarde, ao lugar onde deixara o príncipe. Viu amadurecerem as frutas do jardim, viu quando fizeram a colheita; viu a neve derreter-se no alto das montanhas; só não avistou o príncipe - e cada vez voltava mais triste para casa. Sua única consolação era sentar-se no jardinzinho e contemplar a linda estátua de mármore, tão parecida com ele; mas já nem tratava das flores, que agora cresciam como plantas silvestres, entrelaçando-se com os galhos das árvores e formando recantos sombrios.
Afinal não pode mais conter-se , e abriu o coração a uma das irmãs, que imediatamente contou a história às outras. Essas, porém, guardaram o segredo, confiando-o unicamente a duas outras sereias, que por sua vez não o divulgaram: narraram-o apenas às suas amigas mais íntimas. Acontece que uma dessas conhecia o príncipe. Também presenciara a festa a bordo do navio, e informou as outras: contou-lhes de onde vinha ele, e onde ficava o seu reino.
- Vem, irmãzinha! - disseram as outra.
E, de braços dados, subiram à superfície, em uma longa fila; e lá se foram para o sítio onde ficava o palácio do príncipe.
Era todo de pedra amarela e resplandecia; a escadaria de mármore descia até o mar. Coroavam o teto magníficas cúpulas douradas, e por entre as colunas que cercavam o edifício, erguiam-se estátuas de mármore que pareciam ter vida. Pelas janelas viam-se, através os vidros transparentes, salões magníficos, ornados de tapeçarias e cortinas esplêndidas, e quadros preciosos. Era um prazer para os olhos ver todo aquele esplendor.
Agora, que sabia onde morava o príncipe, a sereia ia nadar muitas vezes pelos arredores do palácio. Aproximava-se da praia e ia até onde nenhuma das outras se aventurava a nadar. Chegava a subir o estreito canal que passava debaixo do belo balcão de mármore, que projetava sua longa sombra sobre a água. ali, sentava-se, contemplando o jovem príncipe, que se julgava completamente só, ao luar.
Muitas vezes viu-o passear à noite, no seu lindo barco todo adornado de bandeiras, ouvindo a música. Punha-se então a escutar, escondida entre os juncos; e, se por acaso o vento lhe agitava o longo véu prateado, sob a luz do luar, as pessoas que a viam pensavam que era um cisne, batendo as asas brancas.
E quando os pescadores saíam à noite, para estender as redes à luz das tochas, e ela ouvia os grandes louvores que faziam ao seu príncipe, regozijava-se de lhe ter salvo a vida, quando o encontrou no meio das ondas, meio morto. Lembrava-se então com alegria dos beijos que lhe dera, enquanto lhe amparava no peito a cabeça desfalecida - mas ele nada sabia disso e nem sequer sonhava com a sua existência.
Ela cada vez gostava mais dos seres humanos, cada vez desejava mais ardentemente viver entre eles; parecia-lhe que viviam em um mundo mais vasto e mais belo que o seu. Podiam voar por sobre o mar nos seus navios, podiam escalar montanhas altíssimas, que chegavam até as nuvens; e as terras que possuíam - seus campos e florestas - estendiam-se ao longe, a perder de vista.
Queria saber um mundo de coisas que suas irmãs não lhe podiam explicar; foi então perguntar à avó, que conhecia bem o mundo superior, a que chamava, com muita propriedade - as terras acima do mar.
- Se os homens não se afogam, podem viver eternamente? - indagou ela. - Não morrem, como nós, aqui no mar?
- Eles também tem de morrer - explicou a anciã- e o ciclo de sua existência é mesmo mais curto que o nosso. Nós podemos viver trezentos anos; mas quando desaparecemos daqui somos transformadas em espuma, e nem sequer seremos enterradas entre aqueles a quem amamos. Nossa alma não é imortal. Nunca teremos uma nova vida: somos como as algas verdes, que não podem florescer de novo, uma vez cortadas. Os seres humanos, porém, tem uma alma que vive eternamente. Sim, mesmo depois que o corpo é entregue à terra, a alma vive ainda, e ascende então, através do ar puro e transparente, até as estrelas brilhantes lá de cima! Assim como nós subimos à superfície das águas, para ver as habitações dos homens, sobem eles para regiões desconhecidas e esplêndidas, que jamais teremos o privilégio de ver.
- E por que não temos também uma alma imortal? - perguntou a sereiazinha, acabrunhada. - Eu daria de boa vontade os centos de anos que posso viver para ser uma criatura humana, ainda que por único dia - e ter assim a esperança de partilhar as alegrias do mundo celestial.
- Nem é bom pensar nisso! - exclamou a velha dama.- Sabemos bem que somos melhores e muito mais felizes do que a raça humana lá em cima.
- E eu hei de morrer e andar vagando pelo mar afora, feito espuma? E não ouvirei mais a música das vagas, nem verei as flores, tão lindas, nem o sol vermelho? E não há nenhum meio de obter uma alma imortal?
- Não - disse a velha rainha do mar - a não ser que um homem venha a te amar tão profundamente que sejas para ele mais que pai e mãe. Se ele concentrar em ti todos os seus pensamentos e todo o seu amor, e se deixar que um sacerdote ponha a sua mãe direita na tua, prometendo ser-te fiel nesta vida e na eternidade, então a sua alma se transferirá para o teu corpo, e obterás uma parte na felicidade que espera os humanos. E ele te dará uma alma, sem perder a sua. Mas isso jamais acontecerá! Tua cauda de peixe, que entre nós, gente do mar, constitui um símbolo de beleza,é considerada na terra uma deformidade: lá é preciso ter dois espeques fortes, que eles chamam pernas, para ser uma criatura bela!
A sereiazinha suspirou, olhando tristemente para sua cauda de peixe.
- Não devemos ficar tristes - disse a velha dama. - Trataremos de saltar e dançar durante nossos trezentos anos de vida - o que já não é pouco, convenhamos! Estaremos assim mais dispostas a descansar, no último quartel. Hoje teremos um baile na Corte.
- Nessas ocasiões de festa, o palácio apresentava um esplendor que as pessoas da terra jamais imaginariam. As paredes e o teto do salão de baile eram de cristal transparente, apesar da sua grande espessura. Centenas de conchas de mexilhões colossais- umas vermelhas, outras verdes como a relva macia- estavam penduradas em filas de ambos os lados, desprendendo chamas azuis, que iluminavam o imenso salão, e sua luz se projetava através das paredes de cristal, de modo que se via perfeitamente à grande distância. Uma multidão de peixes, de todo o tamanho, nadavam na água; uns de escamas reluzentes e purpurinas, outros que pareciam de ouro e prata.
Atravessava o salão um rio largo, em cujas águas dançavam, ao som de seus próprios cantos, melodiosos e suaves, as sereias e os tritões. Nenhum ser humano possui voz como aquelas! A sereiazinha cantou também: e seu canto foi mais suave e mais belo que todos os outros; por isso aplaudi-a a Corte inteira. Sentiu-se a princesinha por um momento transportada de alegria, pois sabia que tinha a voz mais doce que jamais foi ouvida na terra ou no próprio mar,. Mas seus pensamentos logo se voltaram de novo para o mundo de cima, porque não podia esquecer por muito tempo nem o belo príncipe, nem a dor de não possuir uma alma imortal como a dele. Saiu, pois, furtivamente do palácio paterno, onde tudo era canto e festa, e foi esconder-se, desconsolada, no seu jardinzinho. Ouviu então uma buzina, que soava através da água.
- A esta hora- pensou ela- vai ele navegando lá em cima; ele, em que penso incessantemente, e a cujas mãos eu confiaria, alegremente a felicidade de minha vida inteira...... Ah! Tentarei tudo, tudo arriscarei para conquistá-lo, e para obter uma alma imortal! Vou procurar a bruxa do mar, que dantes me inspirava tamanho terror: quem sabe se ela me pode ajudar ou aconselhar agora?
E a sereiazinha saiu do jardim e encaminhou-se para o sorvedouro atroador onde morava a feiticeira. Nunca andara por semelhante caminho; ali não cresciam flores nem algas: era só o chão nu, cinzento, coberto de areia. As águas precipitavam-se na gruta da feiticeira em um redemoinho espumante, e para lá levavam tudo quanto apanhavam nas profundezas do mar. Para chegar aos domínios da feiticeira, a sereiazinha era obrigada a atravessar aquela medonha voragem que podia sorvê-la num instante; e boa parte do caminho passava por um lamaçal quente, que fervia sempre e ao qual a feiticeira chamava a sua turfeira. Além desse caminho ficava a casa, no meio de uma estranha floresta: as árvores e arbustos eram polvos- meio animais, meio plantas- que pareciam serpentes de cem cabeças a brotar do chão. Os galhos eram braços compridos e viscosos, cujos dedos pareciam vermes flexíveis; seguravam fortemente tudo quanto podiam apanhar do mar,e, uma vez arrebatada a presa, não a abandonavam mais. Ao ver aqueles monstros, a princesinha ficou aterrada; o coração batia-lhe violentamente, e esteve a ponto de dar volta. Mas pensou no príncipe e na alma que os seres humanos possuíam, e criou novo ânimo. Amarrou os longos cabelos flutuantes, para que os polvos não a apanhassem pelos cachos,e, cruzando os braços junto ao corpo, foi atravessando, como um peixe, por entre os horrendos monstros, que estendiam os tentáculos para agarrá-la.
Chegava agora a um grande pantanal, na floresta e viu cobras-d'água, grandes e gordas, que se espojavam na lama, distendendo o horrendo corpo amarelo-esbranquiçado. No meio daquele lodaçal asqueroso erguia-se uma casa, construída com destroços de naufrágios; lá dentro estava a bruxa do mar, dando de comer, com a própria boca, a um sapo, tal e qual como algumas pessoas fazem com os canários, oferecendo-lhes um torrão de açúcar. Chamava seus pintinhos às cobras gordas e repugnantes, que lhe subiam pelo corpo, enlaçando-lhe o colo.
- Já sei o que queres- disse ela - É uma loucura, mas terás o que desejas, exatamente porque isso te trará a infelicidade, minha bela princesa! Queres livrar-te de tua cauda de peixe e obter em lugar delas duas pernas, como as que as criaturas humanas tem para caminhar- e isso para que o príncipe venha a te amar e casar contigo, doando-te uma uma imortal, ainda por cima!
E a velha bruxa riu - uma risada repulsiva, e tão estrondosa, que o sapo e as cobras caíram ao chão.
- Vens justamente a tempo- continuou a bruxa - porque de amanhã em diante eu não poderia prestar-te auxílio, durante um ano inteiro. Vou preparar uma poção , deve nadar para terra manhã, antes que nasça o sol, e bebê-la. Desaparecerá então tua cauda, que se transformará naquilo que os homens chamam de duas lindas pernas - mas nota bem: isso será tão doloroso como se fosses atravessada por uma espada afiadíssima. Quantos te virem dirão logo que és a mais bela criatura do mundo. Conservarás no andar a elegância e a graça com que nadas na água; ninguém dançará com mais leveza e donaire do que tu - mas cada passo que deres será como se fosses pisando sobre facas de ponta, e pensarás que teu sangue está jorrando dos pés feridos. Estás disposta a suportar tamanho sofrimento?
A sereia pensou no príncipe e na sua alma imortal, e disse com voz trêmula:
- Sim, estou pronta!
- Mas pensa bem nisto; uma vez que obtenhas a figura humana, não poderás voltar à condição de sereia! Nunca mais descerás ao fundo do mar, onde vivem tuas irmãs, nem tornarás ao palácio de teu pai. E, se não conseguires conquistar o coração do príncipe, de modo que ele por ti esqueça pai e mãe, e se una a ti em corpo e alma, levando-te diante do sacerdote, para que ponha a sua mão sobre a tua, como marido e mulher - tampouco obterás uma alma imortal! E quando ele casar com outra, mesmo no dia seguinte ao do casamento, teu coração estalará e te dissolverás em espuma sobre as ondas.
- Estou resolvida a tudo ! - disse a sereiazinha, pálida como uma morta.
- Mas terás de pagar meu trabalho, e previno-te de que não exijo pouco: possuis a voz mais linda que já se ouviu no fundo do mar e sobre a terra, e contas com ela certamente, para encontrar o príncipe. Pois é a tua bela voz que quero: em troca de meus serviços deves dar-me o que tens de melhor, porque preciso preparar a beberagem com meu sangue, para que ela tenha a força de uma espada de dois gumes.
- Ma se me tiras a voz, que me fica então?
- Tua formosura, a graça de teus movimentos, teu olhar cheio de encantos: é suficiente para conquistares o coração de um homem. mas que é isso? Tua coragem se evaporou? Vamos! Espicha a língua! Quero o meu salário: em troca terás a bebida maravilhosa.
- Seja! - disse e sereia.----------------------------------------------------------------------
E a bruxa pôs ao fogo o caldeirão, para preparar a droga mágica. Tirou então algumas cobras de um feixe que tinha amarrado e com elas esfregou o caldeirão dizendo:
- Grande virtude é a limpeza!
Feriu-se então no peito, deixando escorrer o sangue enegrecido na vasilha. Ergueu-se dali um vapor espesso, formando as figuras mais fantásticas, e tão horrendas, que ninguém poderia vê-las sem estremecer. A cada momento ela deitava um novo ingrediente no caldeirão e este fervia, com lamentos que pareciam o pranto do crocodilo. Afinal a poção ficou pronta, e o líquido tinha agora a aparência da água mais pura e cristalina.
- Aqui está- disse a bruxa.- Se os polvos te segurarem quando atravessares meus bosques, basta que deites sobre eles uma gora deste líquido para que seus braços e dedos se desfaçam em mil pedaços.
Mas a princesinha não teve necessidade de recorrer ao seu talismã: os polvos davam volta, assustados, ao ver a poção, que desprendia chispas, como uma estrela cintilante. E ela atravessou rapidamente a floresta, o banhado e a voragem escachoante.
Ficou por algum tempo contemplando o palácio paterno; as tochas do salão de baile estavam apagadas: toda a família dormia àquela hora. Não ousou ir ver as irmãs, nem o pai nem a vó- agora que estava muda e ia deixá-los para sempre. O coração doía-lhe tanto que parecia estalar de dor. Entrou de mansinho e colheu uma flor de cada um dos canteiros das irmãs; atirou mil beijos para o palácio, e nadou para a superfície, atravessando as águas azuis.
Ainda não tinha nascido o sol quando avistou o castelo do príncipe. Num instante alcançou a magnífica escadaria de mármore, banhada de luar. Bebeu então aquele líquido ardente, e foi como se uma espada de dois gumes lhe trespassasse o corpo delicado. Desmaiou e ficou ali, como morta.
Quando o sol se levantou das águas, despertou, e sentiu então uma dor agudíssima; mas, ali, defronte dela, estava o príncipe, que a contemplava docemente. A sereia baixou os olhos; e nesse instante viu que já não tinha cauda de peixe: possuía o mais belo par de pernas que uma moça pode desejar. Mas viu-se também nua, e, cheia de vergonha, envolveu-se nos seus longos cabelos. Perguntou-lhe ele quem era e como viera ter aquele lugar. Em resposta, dirigiu-lhe a jovem um longo melancólico olhar. Como não falasse, o príncipe tomou-a pela mão e conduziu-a ao palácio. Cada passo que dava, como advertira a bruxa, causava-lhe dores atrozes; era como se pisasse sobre pontas de agulhas e facas afiadas. Mas tudo suportava com alegria, e caminhava de mãos dadas com o príncipe, tão leve como se fosse uma bolha de sabão. E ele, como quantos a viam, maravilhava-se de graça do seu andar.
Vestiram-lhe roupas de seda e musselina, e não havia em todo o palácio criatura tão bela; mas era muda: não falava nem cantava. Lindas escravas, vestidas de seda e ouro, vieram cantar diante do príncipe e de toda a família real, e como uma cantasse melhor que as outras, o jovem senhor bateu palmas e sorriu para ela. Isso afligiu muito a sereia, que sabia que já cantara muito melhor...
E pensava consigo:
- Se ele soubesse que, para estar ao seu lado, sacrifiquei para sempre a minha voz!...
-As escravas agora dançavam: executavam movimentos cheios de elegância, ao som de uma música deliciosa. Então a sereiazinha ergueu-se; distendeu graciosamente os braços, pôs-se na ponta dos pés, e saiu flutuando pelo vasto salão. Executou uma dança tão etérea como ninguém tinha visto igual. Cada movimento revelava uma beleza nova, e seu olhar falava ainda mais ardentemente ao coração do que os cantos das escravas. Todos estavam encantados, mas quem mais se entusiasmou foi o príncipe, que a chamava " seu achado precioso". E ela dançou e tornou a dançar, ainda que sentisse, cada vez que seus pés tocavam o solo, que agudas facas os retalhavam. Declarou o príncipe que não se separaria dela, e permitiu-lhe que dormisse diante da sua porta, em uma grande almofada de veludo.
Determinou logo que lhe dessem vestes masculinas, para que o acompanhasse em seus passeios a cavalo. Iam então pelas florestas cheirosas, sentindo nos ombros o roçar dos galhos das árvores, e ouvindo o canto dos passarinhos, pousados na verde folhagem. E a princesinha subiu montanhas ao lado do príncipe; sangravam-lhe os pés delicados, mas, apesar do martírio, ela sorria, e continuava a segui-lo na escalada. E lá de cima viam as nuvens, que fugiam a seus pés, como bandos de aves migratórias em busca de terras distantes.
À noite, enquanto todos dormiam no palácio, a sereia ia sentar-se nos últimos degraus da escada de mármore, para refrescar os pés ardentes na água do mar; e pensava então naqueles que deixara e que viviam lá no fundo.
Uma noite suas irmãs, de braços dados, subiram à superfície da água,cantando cantigas melancólicas. Ela lhe fez sinal. As sereias, reconhecendo-a, aproximaram-se e contaram quanto se tinham afligido com a sua falta. E desde então se habituaram a ir visitá-la todas as noites; uma noite viu até a avó, que há muitos anos não subia à tona, e também viu seu pai, o rei do mar, de coroa à cabeça. Ambos estenderam-lhe os braços , porque não ousavam, como as moças chegar tão perto da terra.
De dia em dia aumentava seu amor pelo belo príncipe, que também tinha afeição àquela menina encantadora e boa. Nunca, porém, lhe passara pela cabaça a ideia de casar com ela. E, contudo, era preciso casar com ele, sem o que jamais alcançaria uma alma imortal! Mais ainda - se ele viesse a desposar outra, no dia seguinte ao casamento ela se desfaria em espuma!
E, quando ele a abraçava, beijando-lhe a linda fronte, seus olhos pareciam perguntar:
- Não me amas mais que a todas as outras, então?
- Sim, és a minha predileta - disse-lhe ele- porque tens o melhor coração, entre todas, e porque me és tão devotada; e, principalmente, porque te pareces com uma menina que vi um dia, mas a quem nunca mais encontrei na vida. Meu barco naufragou e as ondas me arrastaram para terra, atirando-me para junto de um templo, onde serviam várias donzelas. Uma delas encontrou-me na praia e salvou-me a vida. Vi-a somente duas vezes, mas é a única jovem a quem poderia amar. Tu te pareces com ela e quase apagaste já da minha alma a sua imagem. Ela pertence ao templo sagrado: por isso minha boa estrela te enviou para o meu lado- e jamais nos separaremos!
- Ai de mim! - suspirou consigo a sereia.- Não sabe que quem lhe salvou a vida fui eu! Eu, que o levei, nadando, até o bosque onde está o templo sagrado, e escondida entre a espuma, fiquei ali, à espera de que algum ser humano viesse socorrê-lo! Ah! conheço, sim, a linda jovem a quem ele ama mais do que a mim!
Suspirava, muito triste - porque as sereias não podem chorar- dizendo no íntimo do coração dolorido:
- Diz que a moça pertence ao templo sagrado, e por isso jamais retornará ao mundo, e que nunca mais a verá- enquanto eu estou aqui, ao pé dele, e vejo-o todos os dias... Pois bem: hei de velar por ele, hei de amá-lo, e sacrificarei por ele a minha vida!
Não tardou que aparecesse rumores de que o príncipe ia casar com a bela filha do rei vizinho, e para isso estava aparelhando um magnífico navio. O príncipe ia fazer, de fato, uma viagem de recreio àquele país. Devia acompanhá-lo numeroso séquito. Mas a sereiazinha sorria, sacudindo a cabeça: conhecia, melhor que ninguém, os pensamentos do príncipe, que lhe dissera:
- Tenho de viajar; preciso ver essa linda princesa, pois que meus pais assim o querem; mas a ninguém me obrigará a trazê-la como esposa, não! Não a amo, não posso amá-la: ela não pode parecer-se como tu, com a donzela do templo. E se eu fosse compelido a escolher uma noiva, casaria contigo, meu mudo achado, com um olhar tão expressivo.
E beijo-lhe os lábios rosados, acariciou-lhe os longos cabelos, e descansou a cabeça sobre o coração da sereia, que batia descompassadamente, na esperança da felicidade humana, e de uma alma imortal
E, quando se acharam no magnífico navio que os levava para os domínios do rei vizinho, perguntou-lhe:
- Não tens medo do mar, minha pobre pequena?
E falou-lhe das tempestades e das clamarias, dos peixes singulares que vivem nas profundezas das águas, e das coisas admiráveis que os mergulhadores tinham visto no fundo do mar. E, ouvindo-o, sorria a sereia, que sabia mais de tudo isso do que qualquer ser humano.
Á noite, à luz do luar, quando todos dormiam a bordo,a sereia sentou-se na amurada e, olhando fixamente para as águas claras, imaginou que via o palácio de seu pai. E acima dele pairava sua velha avó, coroada de prata, que olhava intensamente para a quilha do navio. depois as irmãs subiram à tona: olhavam tristes para ela e torciam as mãos aflitas. acenou-lhes sorrindo; desejava dizer-lhes que estava bem, e era feliz; mas nesse momento aproximou-se o grumete, e as sereias submergiram depressa, deixando-o a pensar que as formas alvas que lhe parecia ter avistado não eram mais que a espuma que sobrenadava.
No dia seguinte o navio aportou à esplêndida capital do reino vizinho. Todos os sinos repicavam, soavam trombetas no alto dos torreões; e a tropa, de vistosos uniformes e armas brilhantes, estava a postos para prestar as honras devidas ao ilustre estrangeiro.
Eram festas diárias; sucediam-se incessantemente os bailes e espetáculos. Mas a princesa ainda não chegara: diziam que fora educada em longínquo convento, onde adquirira todas as prendas da realeza. Mas afinal chegou. A sereia estava ansiosa por vê-la a ajuizar por si própria da beleza da outra. E teve de reconhecer que nunca vira rosto mais belo.
Ao avistá-la, exclamou o príncipe:
- És tu! Tu, que me salvaste, quando estava estendido na areia da praia morto!
Tangiam todos os sinos; os arautos proclamavam pelas ruas o próximo casamento. Em todos os altares ardiam óleos perfumados em lâmpada de prata. Os sacerdotes agitavam os turímbulos, enquanto os noivos uniam as mãos , para receber a benção. A sereiazinha, vestida de seda e ouro, segurava a cauda da noiva; mas seus ouvido não ouviam a música solene, e seus olhos não viam nada da cerimônia; ela pensava na morte sombria que se aproximava e em tudo o que perdera no mundo, e perdera irremediavelmente.
Na mesma tarde foram os noivos para bordo. Troavam os canhões e as bandeiras esvoaçavam ao sopro da brisa. No convés tinha sido armada rica tenda de ouro e púrpura, toda forrada de lindas almofadas, para repouso do casal de príncipes.
Aproveitando o vento favorável, o navio desfraldou as velas e deslizou suavemente no mar sereno.
Á noite foram acesas luzes multicores, e a maruja dançou alegremente na coberta. Não podia a sereia deixar então de recordar a primeira vez que subiu à flor d'água e presenciou uma festa semelhante. E entrou na ronda da dança, equilibrando-se no ar, como uma andorinha perseguida: e todos admiravam aquela dança maravilhosa, porque nunca ela havia dançado com tanta graça e leveza. Sentia nos pés agudas facadas - mas isso não lhe importava, pois que dor mais cruciante lhe despedaçava o coração. Sabia que era a última noite que passava ao pé daquele por quem tinha abandonado a família e o lar, pelo qual sacrificara a linda voz e padecera dores pungentes. Era a última noite em que podia contemplar a imensidão do mar e o céu estrelado. Noite eterna que nenhum sonho, nenhum pensamento animaria, era aquela que a esperava - porque não tinha alma e já não lhe era dado conquistá-la.
Tudo era sossego agora, a bordo todos dormiam- todos, menos o timoneiro que dirigia a nau, e a sereiazinha, que, junto à amurada, examinava o Oriente, esperando o primeiro raio de sol, que devia matá-la. Viu então as irmãs, que se erguiam da branca espuma. Estavam tão pálidas que quase não as reconheceu, e já não possuíam aquela cabeleira longa e flutuante.
- Nós entregamos os cabelos à bruxa velha para que nos ajudasse agora e não morresses hoje. Ela nos deu em troca uma faca- e que afiada! Olha aqui! Agora, antes que o sol nasça, enterra-a no coração do príncipe. Quando o sangue quente te salpicar os pés, voltarão eles à sua primitiva forma de cauda de peixe e tornarás a ser sereia: poderás então descer como nós ao fundo do mar, voltarás ao nosso lar, e viverás trezentos anos. Nossa avó tem vivido tão triste... Depressa! Tu ou ele - um tem de morrer antes que o sol nasça.
E, lançando à irmã um último olhar, cheio de súplica, desapareceram as sereias no redemoinho das ondas.
Ela ergueu a cortina escarlate da tenda e entrou.Curvou-se e contemplou o príncipe. Olhou depois para o céu, onde a aurora aumentava de esplendor de instante a instante; olhou para o agudo punhal, e tornou a olhar para o príncipe, que em sonhos pronunciava o nome da noiva. Ah! Como ele a ama! E a sereia sentiu os dedos apertarem convulsivamente a faca... Mas ergueu a cabeça e, num gesto resoluto, atirou o punhal ao mar. Olhou ainda o príncipe, com um olhar já meio apagado. Lentamente, alcançou a amurada, e, ao confundir-se com as ondas, sentiu que seu corpo se ia diluindo em espuma.
FIM
E é lá, no seio profundo das águas, que vive o povo do mar.
Crescem ali plantas e flores maravilhosas, de folhas e hastes flexíveis, que ondeiam ao mais leve vaivém da água, como se fossem criaturas vivente. Por entre a ramaria deslizam peixes de toda a espécie, como as aves esvoaçam entre as árvores aqui na terra. E no sítio mais profundo assenta o palácio do rei dos mares. As paredes são de coral e as altas janelas ogivais, do mais puro âmbar; o teto é todo coberto de conchas que se abrem e fecham ao movimento das marés- e isso dá ao palácio um efeito deslumbrante, pois cada concha contém uma pérola tão preciosa, que poderia adornar, sem deslustre, a coroa de uma rainha.
O rei dos mares enviuvara havia muitos anos, e sua velha mãe é quem lhe dirigia a casa. Dama de grande sabedoria era ela, sem dúvida nenhuma; mas dotada também de um orgulho desmedido pela nobre estirpe de que descendia. Ocupava tão alto grau na escala hierárquica, que usava doze pérolas na cauda, ao passo que outras pessoas, também de nobre nascimento, só podiam usar seis. Quanto mais, era dama de excelentes qualidades, entre as quais ressaltava o grande amor que dedicava às netas- as princesas do mar.
Eram seis meninas lindíssimas, mas a mais moça ainda sobressaía às outras em formosura. Tinha a cútis tão fina e tão delicada como uma pétala de rosa, e os olhos azuis como o mar profundo. Mas, como as irmãs, não tinha pé, e rematava-lhe o corpo uma cauda de peixe.
- Passavam o dia inteiro brincando nos imensos salões, no palácio submarino, em cujas paredes cresciam belas flores. Os peixes entravam nadando pelas largas janelas, como as andorinhas entram pelas nossas casas, quando as acham abertas; nadavam em direção às princesinhas, e comiam migalhas nas suas mãos; e elas os acariciavam.
O jardim do palácio oferecia um verdeiro espetáculo de beleza. A ramagem das árvores era vermelha como o fogo, e, ao mesmo tempo, despendia reflexos azuis, tão zuis como o mar profundo; os frutos brilhavam como o ouro, e as flores desprendiam chamas. E os galhos estavam sempre ondulando. Cobria o solo do jardim uma areia finíssima, azul como a chama do enxofre. E tudo era iluminado por uma luz azulina, maravilhosa.
Mais parecia que os seres estavam suspensos no ar, envoltos em céu, do que mergulhados no fundo do mar. E, quando não soprava vento algum, via-se o sol lá em cima, como uma resplandecente flor vermelha.
Cada princesinha tinha no jardim o seu recanto, onde podia semear e plantar o que mais lhe agradecesse. Uma semeou flores, formando um desenho, de modo que, quando crescessem as plantas, apresentariam a forma de uma baleia; outra preferiu a figura de uma sereia mesmo; mas a menorzinha deu ao seu canteiro o formato do sol e semeou nele somente flores da cor de seus raios, conforme os via de dentro da massa líquida e azulada. Era uma criança singular, silenciosa e pensativa; e, enquanto as irmãs se entusiasmavam com os pequenos objetos que encontravam, provenientes de navios naufragados, ela apenas se interessava- além das suas flores chamejantes, que se assemelhavam ao sol lá de cima- por uma estátua de mármore, que algum naufrágio atirou ao fundo do mar, e que representavam um belo mancebo. Plantou junto da estátua um salso-chorão vermelho, e quando a árvore cresceu e deu sombra à linda estátua, seus galhos desciam até o fundo, tocando as areias azuis e projetando uma sombra cor de violeta; e as sombras dançavam no fundo, como os ramos dentro d'água, dando a impressão de que a copa brincava com as raízes.
A princesinha ouvia com avidez as histórias que avó contava a respeito do mundo de cima. Pedia-lhe constantemente que contasse mais alguma coisa, tudo o que sabia dos navios e das cidades, de pessoas e animais. Maravilhava-se de saber que as flores da terra exalam perfumes-pois que as do mar não tem cheiro algum- e os bosques são verdes; e gostava sobretudo de ouvir contar dos "peixes" de cima, que andam esvoaçando por entre as árvores, e cantam com voz tão suave que encantam a quem os ouve. É que a vó chamava peixes aos passarinhos, para que a sereiazinha a entendesse, ela que nunca vira um pássaro.
- Quando tiveres quinze anos- dizia a avó- subirás à superfície; poderás sentar nos rochedos, lá em cima, e verás à luz do luar os navios que passam as cidades e as florestas.
No ano seguinte a mais velha completou quinze anos. Cada uma das irmãs era mais moça que a precedente justamente uma ano, de modo que a menor ainda teria esperar cinco, para subir à tona d'água e ver como era o nosso mundo, o dos humanos. Entretanto, a mais velha prometeu às irmãs contar o que mais lhe interessasse, o que visse de mais lindo no primeiro dia; porque a avó certamente não tinha contado tudo, e elas ansiavam por conhecer todos os aspectos da terra.
Nenhuma, entretanto, desejava tão ardentemente subir à tona como a menor, a que tinha de esperar mais tempo e que era tão reservada e pensativa. Costumava ela ficar à noite à janela,e via então os peixes que nadavam, agitando as águas azuis com a cauda e as barbatanas. Via também a lua e as estrelas, que lá dentro d'água pareciam mais pálidas, mas maiores do que nós a vemos daqui. Se uma nuvem negra as furtava ao olhar da menina, ela já sabia que era uma baleia que nadava lá em cima, ou algum navio que passava, repleto de passageiros. E certamente nenhum deles poderia sonhar que lá estava uma linda sereia pequenina, de olhos ansiosos, seguindo a quilha do seu navio!
Completara, pois, a princesa mais velha quinze anos, e recebera permissão de subir à superfície do mar.
Á volta tinha mil e uma coisas para contar; mas o que lhe parecia mais belo era ficar sentada na areia da praia, ao luar, contemplando a grande cidade que se entendia não muito distante, toda pontilhada de luzes, que brilhavam como estrelas; e ouvir os sons da multidão; e ver os altos campanários e ouvir o repique dos sinos. E a princesinha desejava ardentemente misturar-se à vida de todas aquelas coisas, exatamente porque lhe era vedado aproximar-se delas.
Escutava-a a irmãzinha atentamente. E mais tarde, quando chegou à janela, à noite, para olhar através das águas, veio-lhe tudo aquilo à memoria; viu a grande cidade, cheia de ruído e de tumulto, até lhe parecia ouvir os sinos da igreja repicando lá em cima!
No ano seguinte a segunda irmã obteve a permissão para subir e nadar à vontade. Subiu mesmo na hora do pôr do sol, e apareceu-lhe que nunca vira coisa tão bela! Contou que todo o céu parecia de ouro, e que a beleza das nuvens ninguém poderia descrever; umas eram vermelhas e outras cor de violeta, e corriam rapidamente acima da sua cabeça. Um bando de cisnes selvagens, semelhantes a um longo manto branco, voava ainda mais longe do que elas, atravessando o mar, rumo ao sol poente. Também ela mudou em direção ao sol, mas ele entrou no horizonte, e as belas cores rosadas desapareceram da superfície da água e da curva dos céus.
Um ano depois foi a terceira irmã quem subiu. Era a mais arrojada: nadou ousadamente para um rio que ia desembocar no mar. Avistou lindas colinas verdes cobertas de parreiras; viu imponentes castelos, que espiavam por entre bosques magníficos; ouviu o canto dos passarinhos. tamanho era o calor que o sol despendia, que ela mergulhava a cada instante para refrescar o rosto afogueado. Nisso enxergou ao longe, em uma pequena enseada, um grupo de crianças , que se banhavam alegremente nas águas. Quis associar-se aos seus brinquedos, mas as crianças assustaram-se e fugiram. E no mesmo momento apareceu um animal preto, desconhecido. Era um cão, mas a sereia julgou que fosse uma fera. O cão latia com fúria. E ela, também assustada, tratou de ganhar o mar largo. Mas a jovem princesa jamais esqueceria as lindas florestas, nem as crianças, tão belas, e que podiam nadar na água, mesmo sem possuir cauda de peixe!
Era a quarta a mais tímida das irmãs. Manteve-se no meio das ondas e afirmava que assim gozara uma vista mais bela, porque dali via tudo quanto a rodeava, na extensão de muitas milhas. Vira navios, que passavam distantes, e lhe pareceram gaivotas.Os golfinhos brincalhões davam saltos mortais, e as enormes baleias esguichavam água pelas narinas, parecendo que ela estava cercada de fontes, às centenas.
Chegou a vez da quinta. Nascera no inverno, de sorte que viu coisas que as outra não tinham podido observar da primeira vez que subiram à flor das águas. O mar era todo verde e flutuavam por toda parte enormes blocos de gelo- parecidos com pérolas, segundo descreveu, mas muito maiores do que as igrejas que o humanos constroem. Tinham formas fantásticas e brilhavam como diamantes. Colocou-se sobre o maior deles, e todos os navios que passavam por ali fugiam a toda a pressa, aterrados, como se tivessem medo de se aproximar do sítio em que ela estava, com os longos cabelos voando ao sabor do vento. Mas ao escurecer o céu for ficando tenebroso: reboava o trovão, os relâmpagos rasgavam a escuridão incessantemente. e as ondas escuras erguiam os enormes blocos de gelo, que se iluminavam ao clarão dos raios. Todos os navios colheram o velame, e, enquanto os passageiros eram tomados de pânico, a sereia lá estava, tranquilamente sentada no seu bloco de gelo flutuante, olhando para os relâmpagos azuis, que ziguezagueavam sobre o mar fosforescente.
Quando uma sereia fazia a primeira ascensão à superfície, ficava encantada diante da novidade e da beleza do que via; já crescidas agora, e podendo subir quantas vezes quisessem à flor d'água, foram perdendo aquele interesse primitivo pelas coisas de cima. Mal subiam, já desejavam ver-se de novo no fundo do mar, e ao fim de um mês diziam todas que o seu mundo era mais bonito, e que sentiam mais prazer em ficar em casa.
Às vezes as cinco irmãs subiam, à noite, de braços dados, formando uma fila. eram todas dotadas de magníficas vozes, como nenhuma criatura humana jamais possuiu. Quando se aproximava uma tempestade, e elas pressentiam algum naufrágio, vinham cantar à frente dos navios, exaltando as maravilhas do fundo do mar, e dizendo aos marinheiros que podiam descer até lá sem temor algum. Mas eles não as entendiam, julgavam que era as vozes da tempestade ; e nunca chegavam a ver as magnificências submarinas, porque se a nave naufragava, morriam afogados, e somente seus corpos iam dar ao fundo, ao palácio do rei do mar.
Quando as cinco irmãs subiam à tona, de braços dados, à hora do sol posto, a menor ficava sozinha, e, vendo-as assim suspender-se na água, sentia vontade de chorar; mas a sereia não tem lágrimas, como se sabe, e isto é que torna seu sofrimento mais aflitivo.
- Quem dera já ter quinze anos! - suspirava ela. - sei bem que havia de amar esse mundo lá de cima e as criaturas que nele vivem!
Afinal chegou o dia tão almejado. e a avó, a velha rainha disse-lhe:
- É a tua vez, querida. Vem, quero adorna-te.
Cingiu-a com um diadema de lírios d'água, formados de metades de pérolas. E determinou que oito grandes ostras se pegassem à cauda da princesa, como insígnia de sua elevada categoria.
- Mas isso me magoa! - disse a princesinha.
- Sim, mas é assim mesmo: o orgulho nos traz sofrimento.
Ah! Com que alegria arrancaria da cabeça aquela coroa e lançaria longe de si os símbolos de nobreza! As flores vermelhas do seu jardim lhe assentariam muito melhor do que aquele adorno... Mas tinha de sujeitar-se àquilo!
E, erguendo-se para a superfície, com a rapidez de uma bolha de ar, gritou:
- Adeus! Adeus!
Já o sol tinha desaparecido no poente, quando ela ergueu a cabeça fora d'água, mas as nuvens vermelhas e franjadas de ouro ainda lhe refletiam o esplendor. E a tarde, já vizinha da noite, brilhava em toda a sua beleza, através daquelas tintas rosadas que se diluíam. O ar era suave e fresco e o mar completamente sereno. Ao seu manso ondular embalava-se um grande navio de três mastros; tinha uma única vela içada, pois que não soprava a menor brisa, e os marinheiros descansavam, sentados em grupos, pelos convés. De bordo vinham sons de canto e de música; e ao anoitecer acenderam-se centenas de lanternas coloridas. A sereiazinha foi nadando, nadando, até se aproximar da grande nave. Viu então lá dentro, através dos vidros das vigias, passageiros ricamente trajados. Mas o mais belo de todos era um príncipe, um adolescente de grandes olhos negros, que não teria mais de dezesseis anos, e cujo aniversário se celebrava justamente naquela hora, com grande magnificência. Os marinheiros dançavam no convés, e quando o jovem príncipe subiu, foram soltos mais de cem foguetes, que iluminaram o céu como se fosse dia dia. E a sereia teve tamanho medo, que se escondeu na água. Mas imediatamente se refez do susto e voltou à superfície. Viu então, que o céu chovia sobre sua cabeça uma chuva de estrelas. Nunca tinha visto fogos de artifícios: eram enormes sois, que giravam, espalhando faíscas; eram peixes ígneos, que fendiam o ar azul; e todas aquelas maravilhas se refletiam na água tranquila. O navio inteiro estava inundado de tanta luz, que se distinguiam perfeitamente todos os objetos, até as cordas - e, é claro, viam-se com mais precisão ainda as pessoas. E como era formoso o príncipe, que apertava, sorrindo, as mãos das pessoas presentes, enquanto a música soava, na noite linda!
Era já muito tarde, e a princesa não podia apartar os olhos do navio nem do belo príncipe. Foram apagando-se as luzes multicores. Já não subiam foguetes, nem troavam os canhões. Mas do fundo do mar vinha um surdo rumor. A sereia ainda se conservava ali, espiando pelas vigias. Mas agora o navio vogava mais depressa: as velas foram-se enfunando uma após outra. as ondas iam crescendo, nuvens pesadas se acumulavam no céu e os relâmpagos rasgavam a escuridão. Era uma tempestade tremenda que se aproximava, e os marinheiros tornaram a arriar as velas. O grande navio balançava aos embates do mar, agora enfurecido. As ondas erguiam-se, como gigantescas montanhas negras, que amaçavam cair sobre a mastaréu.
Para sereia era aquele um modo de viajar encantador; já não pensavam assim, porém, os marinheiros. O navio estalava, rangia, as grossas pranchas cediam às investidas repetidas das vagas; começou a fazer água, e o mastro partiu-se pelo meio, como um caniço. A nave adernou e a água invadiu o porão.
Compreendeu então a sereiazinha o perigo que corria a gente do navio; e ela própria tinha de se acautelar para não ser apanhada pelas vigas. Por momentos o mar tão negro que ela nada via, mas a luz dos relâmpagos o iluminava a cada passo, e nesse curto instante podia ver tudo a bordo; procurava então o príncipe, e exatamente no momento em que o navio soçobrava, viu-o submergir. Alegrou-se com a ideia de que ia tê-lo por companheiro no fundo do mar, mas lembrou-se imediatamente de que homens não podem viver dentro d'água e que ele chegaria já morto ao palácio de seu pai. Não! Isso não! Ele não havia de morrer! Nadou na sua direção, por entre as vigas e pranchas que vogavam acima das vagas, sem se lembrar de que os destroços do navio podiam reduzi-la a migalhas. Mergulhou profundamente e depois, subindo de novo à tona, procurou alcançar o jovem príncipe, que mal podia sustentar-se naquele mar revolto. Já lhe desfaleciam os membros, tinha fechados os belos olhos, e teria morrido se a sereia não corresse em seu socorro. Ela o segurou, mantendo-lhe a cabeça acima da água, e abandonou-se à mercê das ondas.
Ao amanhecer serenou a tempestade; não se avistava, porém, em parte alguma nenhum sinal do navio. Ergue-se o sol radiante do meio das águas, e parecia que ia reanimar o príncipe; mas ele continuava de olhos fechados. A sereia beijou-lhe a fronte, alta e lisa, e deitou-lhe para trás os cabelos. parecia-se o príncipe com aquela estátua de mármore do seu jardim. e ela tornou a beijá-lo, desejando ardentemente que voltasse à vida.
Estavam agora à vista de terra. Perto da costa estendia-se uma floresta magnífica, e, destacando-se do fundo verde, uma igreja ou convento-ela não sabia bem o que era- levantava para o alto suas torres esguias. no jardim havia laranjeiras e limoeiros, e em frente mesmo da entrada erguiam-se altas palmeiras. Naquele lugar o mar formava uma pequena enseada, e a água ali, ainda que muito profunda, era completamente calma. Ela nadou com o príncipe para essa baía, e ali o deitou, com o maior cuidado, para que a cabeça ficasse mais alta que o corpo, e bem exposta ao sol.
Retiniram todos os sinos da casa branca e um grupo de moças apareceu no jardim. A sereia nadou então para os recifes, e escondeu-se atrás das pedras, ocultando o rosto entre os flocos de espuma, para que ninguém a descobrisse; e ficou espiando, a ver se alguém viria socorrer o príncipe.
Dali a pouco uma das mocinhas aproximou-se do lugar onde ele estava. A princípio pareceu assustada, mas logo chamou outras pessoas; a sereia viu o príncipe voltar a si, e viu-o sorrir para os que o cercavam . Não lhe dirigiu sequer um olhar- nem sabia que fora ela quem o salvara. E, quando ele foi levado para a grande mansão, o coração da sereia se encheu de melancolia. Triste e abatida, mergulhou na água e voltou para o castelo do pai.
Se já era calada e taciturna, mais ainda se mostrava agora. As irmãs perguntavam-lhe o que tinha visto, na sua primeira ascensão à tona d'água, mas a sereiazinha nada dizia.
Subiu muitas vezes, pela manhã e à tarde, ao lugar onde deixara o príncipe. Viu amadurecerem as frutas do jardim, viu quando fizeram a colheita; viu a neve derreter-se no alto das montanhas; só não avistou o príncipe - e cada vez voltava mais triste para casa. Sua única consolação era sentar-se no jardinzinho e contemplar a linda estátua de mármore, tão parecida com ele; mas já nem tratava das flores, que agora cresciam como plantas silvestres, entrelaçando-se com os galhos das árvores e formando recantos sombrios.
Afinal não pode mais conter-se , e abriu o coração a uma das irmãs, que imediatamente contou a história às outras. Essas, porém, guardaram o segredo, confiando-o unicamente a duas outras sereias, que por sua vez não o divulgaram: narraram-o apenas às suas amigas mais íntimas. Acontece que uma dessas conhecia o príncipe. Também presenciara a festa a bordo do navio, e informou as outras: contou-lhes de onde vinha ele, e onde ficava o seu reino.
- Vem, irmãzinha! - disseram as outra.
E, de braços dados, subiram à superfície, em uma longa fila; e lá se foram para o sítio onde ficava o palácio do príncipe.
Era todo de pedra amarela e resplandecia; a escadaria de mármore descia até o mar. Coroavam o teto magníficas cúpulas douradas, e por entre as colunas que cercavam o edifício, erguiam-se estátuas de mármore que pareciam ter vida. Pelas janelas viam-se, através os vidros transparentes, salões magníficos, ornados de tapeçarias e cortinas esplêndidas, e quadros preciosos. Era um prazer para os olhos ver todo aquele esplendor.
Agora, que sabia onde morava o príncipe, a sereia ia nadar muitas vezes pelos arredores do palácio. Aproximava-se da praia e ia até onde nenhuma das outras se aventurava a nadar. Chegava a subir o estreito canal que passava debaixo do belo balcão de mármore, que projetava sua longa sombra sobre a água. ali, sentava-se, contemplando o jovem príncipe, que se julgava completamente só, ao luar.
Muitas vezes viu-o passear à noite, no seu lindo barco todo adornado de bandeiras, ouvindo a música. Punha-se então a escutar, escondida entre os juncos; e, se por acaso o vento lhe agitava o longo véu prateado, sob a luz do luar, as pessoas que a viam pensavam que era um cisne, batendo as asas brancas.
E quando os pescadores saíam à noite, para estender as redes à luz das tochas, e ela ouvia os grandes louvores que faziam ao seu príncipe, regozijava-se de lhe ter salvo a vida, quando o encontrou no meio das ondas, meio morto. Lembrava-se então com alegria dos beijos que lhe dera, enquanto lhe amparava no peito a cabeça desfalecida - mas ele nada sabia disso e nem sequer sonhava com a sua existência.
Ela cada vez gostava mais dos seres humanos, cada vez desejava mais ardentemente viver entre eles; parecia-lhe que viviam em um mundo mais vasto e mais belo que o seu. Podiam voar por sobre o mar nos seus navios, podiam escalar montanhas altíssimas, que chegavam até as nuvens; e as terras que possuíam - seus campos e florestas - estendiam-se ao longe, a perder de vista.
Queria saber um mundo de coisas que suas irmãs não lhe podiam explicar; foi então perguntar à avó, que conhecia bem o mundo superior, a que chamava, com muita propriedade - as terras acima do mar.
- Se os homens não se afogam, podem viver eternamente? - indagou ela. - Não morrem, como nós, aqui no mar?
- Eles também tem de morrer - explicou a anciã- e o ciclo de sua existência é mesmo mais curto que o nosso. Nós podemos viver trezentos anos; mas quando desaparecemos daqui somos transformadas em espuma, e nem sequer seremos enterradas entre aqueles a quem amamos. Nossa alma não é imortal. Nunca teremos uma nova vida: somos como as algas verdes, que não podem florescer de novo, uma vez cortadas. Os seres humanos, porém, tem uma alma que vive eternamente. Sim, mesmo depois que o corpo é entregue à terra, a alma vive ainda, e ascende então, através do ar puro e transparente, até as estrelas brilhantes lá de cima! Assim como nós subimos à superfície das águas, para ver as habitações dos homens, sobem eles para regiões desconhecidas e esplêndidas, que jamais teremos o privilégio de ver.
- E por que não temos também uma alma imortal? - perguntou a sereiazinha, acabrunhada. - Eu daria de boa vontade os centos de anos que posso viver para ser uma criatura humana, ainda que por único dia - e ter assim a esperança de partilhar as alegrias do mundo celestial.
- Nem é bom pensar nisso! - exclamou a velha dama.- Sabemos bem que somos melhores e muito mais felizes do que a raça humana lá em cima.
- E eu hei de morrer e andar vagando pelo mar afora, feito espuma? E não ouvirei mais a música das vagas, nem verei as flores, tão lindas, nem o sol vermelho? E não há nenhum meio de obter uma alma imortal?
- Não - disse a velha rainha do mar - a não ser que um homem venha a te amar tão profundamente que sejas para ele mais que pai e mãe. Se ele concentrar em ti todos os seus pensamentos e todo o seu amor, e se deixar que um sacerdote ponha a sua mãe direita na tua, prometendo ser-te fiel nesta vida e na eternidade, então a sua alma se transferirá para o teu corpo, e obterás uma parte na felicidade que espera os humanos. E ele te dará uma alma, sem perder a sua. Mas isso jamais acontecerá! Tua cauda de peixe, que entre nós, gente do mar, constitui um símbolo de beleza,é considerada na terra uma deformidade: lá é preciso ter dois espeques fortes, que eles chamam pernas, para ser uma criatura bela!
A sereiazinha suspirou, olhando tristemente para sua cauda de peixe.
- Não devemos ficar tristes - disse a velha dama. - Trataremos de saltar e dançar durante nossos trezentos anos de vida - o que já não é pouco, convenhamos! Estaremos assim mais dispostas a descansar, no último quartel. Hoje teremos um baile na Corte.
- Nessas ocasiões de festa, o palácio apresentava um esplendor que as pessoas da terra jamais imaginariam. As paredes e o teto do salão de baile eram de cristal transparente, apesar da sua grande espessura. Centenas de conchas de mexilhões colossais- umas vermelhas, outras verdes como a relva macia- estavam penduradas em filas de ambos os lados, desprendendo chamas azuis, que iluminavam o imenso salão, e sua luz se projetava através das paredes de cristal, de modo que se via perfeitamente à grande distância. Uma multidão de peixes, de todo o tamanho, nadavam na água; uns de escamas reluzentes e purpurinas, outros que pareciam de ouro e prata.
Atravessava o salão um rio largo, em cujas águas dançavam, ao som de seus próprios cantos, melodiosos e suaves, as sereias e os tritões. Nenhum ser humano possui voz como aquelas! A sereiazinha cantou também: e seu canto foi mais suave e mais belo que todos os outros; por isso aplaudi-a a Corte inteira. Sentiu-se a princesinha por um momento transportada de alegria, pois sabia que tinha a voz mais doce que jamais foi ouvida na terra ou no próprio mar,. Mas seus pensamentos logo se voltaram de novo para o mundo de cima, porque não podia esquecer por muito tempo nem o belo príncipe, nem a dor de não possuir uma alma imortal como a dele. Saiu, pois, furtivamente do palácio paterno, onde tudo era canto e festa, e foi esconder-se, desconsolada, no seu jardinzinho. Ouviu então uma buzina, que soava através da água.
- A esta hora- pensou ela- vai ele navegando lá em cima; ele, em que penso incessantemente, e a cujas mãos eu confiaria, alegremente a felicidade de minha vida inteira...... Ah! Tentarei tudo, tudo arriscarei para conquistá-lo, e para obter uma alma imortal! Vou procurar a bruxa do mar, que dantes me inspirava tamanho terror: quem sabe se ela me pode ajudar ou aconselhar agora?
E a sereiazinha saiu do jardim e encaminhou-se para o sorvedouro atroador onde morava a feiticeira. Nunca andara por semelhante caminho; ali não cresciam flores nem algas: era só o chão nu, cinzento, coberto de areia. As águas precipitavam-se na gruta da feiticeira em um redemoinho espumante, e para lá levavam tudo quanto apanhavam nas profundezas do mar. Para chegar aos domínios da feiticeira, a sereiazinha era obrigada a atravessar aquela medonha voragem que podia sorvê-la num instante; e boa parte do caminho passava por um lamaçal quente, que fervia sempre e ao qual a feiticeira chamava a sua turfeira. Além desse caminho ficava a casa, no meio de uma estranha floresta: as árvores e arbustos eram polvos- meio animais, meio plantas- que pareciam serpentes de cem cabeças a brotar do chão. Os galhos eram braços compridos e viscosos, cujos dedos pareciam vermes flexíveis; seguravam fortemente tudo quanto podiam apanhar do mar,e, uma vez arrebatada a presa, não a abandonavam mais. Ao ver aqueles monstros, a princesinha ficou aterrada; o coração batia-lhe violentamente, e esteve a ponto de dar volta. Mas pensou no príncipe e na alma que os seres humanos possuíam, e criou novo ânimo. Amarrou os longos cabelos flutuantes, para que os polvos não a apanhassem pelos cachos,e, cruzando os braços junto ao corpo, foi atravessando, como um peixe, por entre os horrendos monstros, que estendiam os tentáculos para agarrá-la.
Chegava agora a um grande pantanal, na floresta e viu cobras-d'água, grandes e gordas, que se espojavam na lama, distendendo o horrendo corpo amarelo-esbranquiçado. No meio daquele lodaçal asqueroso erguia-se uma casa, construída com destroços de naufrágios; lá dentro estava a bruxa do mar, dando de comer, com a própria boca, a um sapo, tal e qual como algumas pessoas fazem com os canários, oferecendo-lhes um torrão de açúcar. Chamava seus pintinhos às cobras gordas e repugnantes, que lhe subiam pelo corpo, enlaçando-lhe o colo.
- Já sei o que queres- disse ela - É uma loucura, mas terás o que desejas, exatamente porque isso te trará a infelicidade, minha bela princesa! Queres livrar-te de tua cauda de peixe e obter em lugar delas duas pernas, como as que as criaturas humanas tem para caminhar- e isso para que o príncipe venha a te amar e casar contigo, doando-te uma uma imortal, ainda por cima!
E a velha bruxa riu - uma risada repulsiva, e tão estrondosa, que o sapo e as cobras caíram ao chão.
- Vens justamente a tempo- continuou a bruxa - porque de amanhã em diante eu não poderia prestar-te auxílio, durante um ano inteiro. Vou preparar uma poção , deve nadar para terra manhã, antes que nasça o sol, e bebê-la. Desaparecerá então tua cauda, que se transformará naquilo que os homens chamam de duas lindas pernas - mas nota bem: isso será tão doloroso como se fosses atravessada por uma espada afiadíssima. Quantos te virem dirão logo que és a mais bela criatura do mundo. Conservarás no andar a elegância e a graça com que nadas na água; ninguém dançará com mais leveza e donaire do que tu - mas cada passo que deres será como se fosses pisando sobre facas de ponta, e pensarás que teu sangue está jorrando dos pés feridos. Estás disposta a suportar tamanho sofrimento?
A sereia pensou no príncipe e na sua alma imortal, e disse com voz trêmula:
- Sim, estou pronta!
- Mas pensa bem nisto; uma vez que obtenhas a figura humana, não poderás voltar à condição de sereia! Nunca mais descerás ao fundo do mar, onde vivem tuas irmãs, nem tornarás ao palácio de teu pai. E, se não conseguires conquistar o coração do príncipe, de modo que ele por ti esqueça pai e mãe, e se una a ti em corpo e alma, levando-te diante do sacerdote, para que ponha a sua mão sobre a tua, como marido e mulher - tampouco obterás uma alma imortal! E quando ele casar com outra, mesmo no dia seguinte ao do casamento, teu coração estalará e te dissolverás em espuma sobre as ondas.
- Estou resolvida a tudo ! - disse a sereiazinha, pálida como uma morta.
- Mas terás de pagar meu trabalho, e previno-te de que não exijo pouco: possuis a voz mais linda que já se ouviu no fundo do mar e sobre a terra, e contas com ela certamente, para encontrar o príncipe. Pois é a tua bela voz que quero: em troca de meus serviços deves dar-me o que tens de melhor, porque preciso preparar a beberagem com meu sangue, para que ela tenha a força de uma espada de dois gumes.
- Ma se me tiras a voz, que me fica então?
- Tua formosura, a graça de teus movimentos, teu olhar cheio de encantos: é suficiente para conquistares o coração de um homem. mas que é isso? Tua coragem se evaporou? Vamos! Espicha a língua! Quero o meu salário: em troca terás a bebida maravilhosa.
- Seja! - disse e sereia.----------------------------------------------------------------------
E a bruxa pôs ao fogo o caldeirão, para preparar a droga mágica. Tirou então algumas cobras de um feixe que tinha amarrado e com elas esfregou o caldeirão dizendo:
- Grande virtude é a limpeza!
Feriu-se então no peito, deixando escorrer o sangue enegrecido na vasilha. Ergueu-se dali um vapor espesso, formando as figuras mais fantásticas, e tão horrendas, que ninguém poderia vê-las sem estremecer. A cada momento ela deitava um novo ingrediente no caldeirão e este fervia, com lamentos que pareciam o pranto do crocodilo. Afinal a poção ficou pronta, e o líquido tinha agora a aparência da água mais pura e cristalina.
- Aqui está- disse a bruxa.- Se os polvos te segurarem quando atravessares meus bosques, basta que deites sobre eles uma gora deste líquido para que seus braços e dedos se desfaçam em mil pedaços.
Mas a princesinha não teve necessidade de recorrer ao seu talismã: os polvos davam volta, assustados, ao ver a poção, que desprendia chispas, como uma estrela cintilante. E ela atravessou rapidamente a floresta, o banhado e a voragem escachoante.
Ficou por algum tempo contemplando o palácio paterno; as tochas do salão de baile estavam apagadas: toda a família dormia àquela hora. Não ousou ir ver as irmãs, nem o pai nem a vó- agora que estava muda e ia deixá-los para sempre. O coração doía-lhe tanto que parecia estalar de dor. Entrou de mansinho e colheu uma flor de cada um dos canteiros das irmãs; atirou mil beijos para o palácio, e nadou para a superfície, atravessando as águas azuis.
Ainda não tinha nascido o sol quando avistou o castelo do príncipe. Num instante alcançou a magnífica escadaria de mármore, banhada de luar. Bebeu então aquele líquido ardente, e foi como se uma espada de dois gumes lhe trespassasse o corpo delicado. Desmaiou e ficou ali, como morta.
Quando o sol se levantou das águas, despertou, e sentiu então uma dor agudíssima; mas, ali, defronte dela, estava o príncipe, que a contemplava docemente. A sereia baixou os olhos; e nesse instante viu que já não tinha cauda de peixe: possuía o mais belo par de pernas que uma moça pode desejar. Mas viu-se também nua, e, cheia de vergonha, envolveu-se nos seus longos cabelos. Perguntou-lhe ele quem era e como viera ter aquele lugar. Em resposta, dirigiu-lhe a jovem um longo melancólico olhar. Como não falasse, o príncipe tomou-a pela mão e conduziu-a ao palácio. Cada passo que dava, como advertira a bruxa, causava-lhe dores atrozes; era como se pisasse sobre pontas de agulhas e facas afiadas. Mas tudo suportava com alegria, e caminhava de mãos dadas com o príncipe, tão leve como se fosse uma bolha de sabão. E ele, como quantos a viam, maravilhava-se de graça do seu andar.
Vestiram-lhe roupas de seda e musselina, e não havia em todo o palácio criatura tão bela; mas era muda: não falava nem cantava. Lindas escravas, vestidas de seda e ouro, vieram cantar diante do príncipe e de toda a família real, e como uma cantasse melhor que as outras, o jovem senhor bateu palmas e sorriu para ela. Isso afligiu muito a sereia, que sabia que já cantara muito melhor...
E pensava consigo:
- Se ele soubesse que, para estar ao seu lado, sacrifiquei para sempre a minha voz!...
-As escravas agora dançavam: executavam movimentos cheios de elegância, ao som de uma música deliciosa. Então a sereiazinha ergueu-se; distendeu graciosamente os braços, pôs-se na ponta dos pés, e saiu flutuando pelo vasto salão. Executou uma dança tão etérea como ninguém tinha visto igual. Cada movimento revelava uma beleza nova, e seu olhar falava ainda mais ardentemente ao coração do que os cantos das escravas. Todos estavam encantados, mas quem mais se entusiasmou foi o príncipe, que a chamava " seu achado precioso". E ela dançou e tornou a dançar, ainda que sentisse, cada vez que seus pés tocavam o solo, que agudas facas os retalhavam. Declarou o príncipe que não se separaria dela, e permitiu-lhe que dormisse diante da sua porta, em uma grande almofada de veludo.
Determinou logo que lhe dessem vestes masculinas, para que o acompanhasse em seus passeios a cavalo. Iam então pelas florestas cheirosas, sentindo nos ombros o roçar dos galhos das árvores, e ouvindo o canto dos passarinhos, pousados na verde folhagem. E a princesinha subiu montanhas ao lado do príncipe; sangravam-lhe os pés delicados, mas, apesar do martírio, ela sorria, e continuava a segui-lo na escalada. E lá de cima viam as nuvens, que fugiam a seus pés, como bandos de aves migratórias em busca de terras distantes.
À noite, enquanto todos dormiam no palácio, a sereia ia sentar-se nos últimos degraus da escada de mármore, para refrescar os pés ardentes na água do mar; e pensava então naqueles que deixara e que viviam lá no fundo.
Uma noite suas irmãs, de braços dados, subiram à superfície da água,cantando cantigas melancólicas. Ela lhe fez sinal. As sereias, reconhecendo-a, aproximaram-se e contaram quanto se tinham afligido com a sua falta. E desde então se habituaram a ir visitá-la todas as noites; uma noite viu até a avó, que há muitos anos não subia à tona, e também viu seu pai, o rei do mar, de coroa à cabeça. Ambos estenderam-lhe os braços , porque não ousavam, como as moças chegar tão perto da terra.
De dia em dia aumentava seu amor pelo belo príncipe, que também tinha afeição àquela menina encantadora e boa. Nunca, porém, lhe passara pela cabaça a ideia de casar com ela. E, contudo, era preciso casar com ele, sem o que jamais alcançaria uma alma imortal! Mais ainda - se ele viesse a desposar outra, no dia seguinte ao casamento ela se desfaria em espuma!
E, quando ele a abraçava, beijando-lhe a linda fronte, seus olhos pareciam perguntar:
- Não me amas mais que a todas as outras, então?
- Sim, és a minha predileta - disse-lhe ele- porque tens o melhor coração, entre todas, e porque me és tão devotada; e, principalmente, porque te pareces com uma menina que vi um dia, mas a quem nunca mais encontrei na vida. Meu barco naufragou e as ondas me arrastaram para terra, atirando-me para junto de um templo, onde serviam várias donzelas. Uma delas encontrou-me na praia e salvou-me a vida. Vi-a somente duas vezes, mas é a única jovem a quem poderia amar. Tu te pareces com ela e quase apagaste já da minha alma a sua imagem. Ela pertence ao templo sagrado: por isso minha boa estrela te enviou para o meu lado- e jamais nos separaremos!
- Ai de mim! - suspirou consigo a sereia.- Não sabe que quem lhe salvou a vida fui eu! Eu, que o levei, nadando, até o bosque onde está o templo sagrado, e escondida entre a espuma, fiquei ali, à espera de que algum ser humano viesse socorrê-lo! Ah! conheço, sim, a linda jovem a quem ele ama mais do que a mim!
Suspirava, muito triste - porque as sereias não podem chorar- dizendo no íntimo do coração dolorido:
- Diz que a moça pertence ao templo sagrado, e por isso jamais retornará ao mundo, e que nunca mais a verá- enquanto eu estou aqui, ao pé dele, e vejo-o todos os dias... Pois bem: hei de velar por ele, hei de amá-lo, e sacrificarei por ele a minha vida!
Não tardou que aparecesse rumores de que o príncipe ia casar com a bela filha do rei vizinho, e para isso estava aparelhando um magnífico navio. O príncipe ia fazer, de fato, uma viagem de recreio àquele país. Devia acompanhá-lo numeroso séquito. Mas a sereiazinha sorria, sacudindo a cabeça: conhecia, melhor que ninguém, os pensamentos do príncipe, que lhe dissera:
- Tenho de viajar; preciso ver essa linda princesa, pois que meus pais assim o querem; mas a ninguém me obrigará a trazê-la como esposa, não! Não a amo, não posso amá-la: ela não pode parecer-se como tu, com a donzela do templo. E se eu fosse compelido a escolher uma noiva, casaria contigo, meu mudo achado, com um olhar tão expressivo.
E beijo-lhe os lábios rosados, acariciou-lhe os longos cabelos, e descansou a cabeça sobre o coração da sereia, que batia descompassadamente, na esperança da felicidade humana, e de uma alma imortal
E, quando se acharam no magnífico navio que os levava para os domínios do rei vizinho, perguntou-lhe:
- Não tens medo do mar, minha pobre pequena?
E falou-lhe das tempestades e das clamarias, dos peixes singulares que vivem nas profundezas das águas, e das coisas admiráveis que os mergulhadores tinham visto no fundo do mar. E, ouvindo-o, sorria a sereia, que sabia mais de tudo isso do que qualquer ser humano.
Á noite, à luz do luar, quando todos dormiam a bordo,a sereia sentou-se na amurada e, olhando fixamente para as águas claras, imaginou que via o palácio de seu pai. E acima dele pairava sua velha avó, coroada de prata, que olhava intensamente para a quilha do navio. depois as irmãs subiram à tona: olhavam tristes para ela e torciam as mãos aflitas. acenou-lhes sorrindo; desejava dizer-lhes que estava bem, e era feliz; mas nesse momento aproximou-se o grumete, e as sereias submergiram depressa, deixando-o a pensar que as formas alvas que lhe parecia ter avistado não eram mais que a espuma que sobrenadava.
No dia seguinte o navio aportou à esplêndida capital do reino vizinho. Todos os sinos repicavam, soavam trombetas no alto dos torreões; e a tropa, de vistosos uniformes e armas brilhantes, estava a postos para prestar as honras devidas ao ilustre estrangeiro.
Eram festas diárias; sucediam-se incessantemente os bailes e espetáculos. Mas a princesa ainda não chegara: diziam que fora educada em longínquo convento, onde adquirira todas as prendas da realeza. Mas afinal chegou. A sereia estava ansiosa por vê-la a ajuizar por si própria da beleza da outra. E teve de reconhecer que nunca vira rosto mais belo.
Ao avistá-la, exclamou o príncipe:
- És tu! Tu, que me salvaste, quando estava estendido na areia da praia morto!
Tangiam todos os sinos; os arautos proclamavam pelas ruas o próximo casamento. Em todos os altares ardiam óleos perfumados em lâmpada de prata. Os sacerdotes agitavam os turímbulos, enquanto os noivos uniam as mãos , para receber a benção. A sereiazinha, vestida de seda e ouro, segurava a cauda da noiva; mas seus ouvido não ouviam a música solene, e seus olhos não viam nada da cerimônia; ela pensava na morte sombria que se aproximava e em tudo o que perdera no mundo, e perdera irremediavelmente.
Na mesma tarde foram os noivos para bordo. Troavam os canhões e as bandeiras esvoaçavam ao sopro da brisa. No convés tinha sido armada rica tenda de ouro e púrpura, toda forrada de lindas almofadas, para repouso do casal de príncipes.
Aproveitando o vento favorável, o navio desfraldou as velas e deslizou suavemente no mar sereno.
Á noite foram acesas luzes multicores, e a maruja dançou alegremente na coberta. Não podia a sereia deixar então de recordar a primeira vez que subiu à flor d'água e presenciou uma festa semelhante. E entrou na ronda da dança, equilibrando-se no ar, como uma andorinha perseguida: e todos admiravam aquela dança maravilhosa, porque nunca ela havia dançado com tanta graça e leveza. Sentia nos pés agudas facadas - mas isso não lhe importava, pois que dor mais cruciante lhe despedaçava o coração. Sabia que era a última noite que passava ao pé daquele por quem tinha abandonado a família e o lar, pelo qual sacrificara a linda voz e padecera dores pungentes. Era a última noite em que podia contemplar a imensidão do mar e o céu estrelado. Noite eterna que nenhum sonho, nenhum pensamento animaria, era aquela que a esperava - porque não tinha alma e já não lhe era dado conquistá-la.
Tudo era sossego agora, a bordo todos dormiam- todos, menos o timoneiro que dirigia a nau, e a sereiazinha, que, junto à amurada, examinava o Oriente, esperando o primeiro raio de sol, que devia matá-la. Viu então as irmãs, que se erguiam da branca espuma. Estavam tão pálidas que quase não as reconheceu, e já não possuíam aquela cabeleira longa e flutuante.
- Nós entregamos os cabelos à bruxa velha para que nos ajudasse agora e não morresses hoje. Ela nos deu em troca uma faca- e que afiada! Olha aqui! Agora, antes que o sol nasça, enterra-a no coração do príncipe. Quando o sangue quente te salpicar os pés, voltarão eles à sua primitiva forma de cauda de peixe e tornarás a ser sereia: poderás então descer como nós ao fundo do mar, voltarás ao nosso lar, e viverás trezentos anos. Nossa avó tem vivido tão triste... Depressa! Tu ou ele - um tem de morrer antes que o sol nasça.
E, lançando à irmã um último olhar, cheio de súplica, desapareceram as sereias no redemoinho das ondas.
Ela ergueu a cortina escarlate da tenda e entrou.Curvou-se e contemplou o príncipe. Olhou depois para o céu, onde a aurora aumentava de esplendor de instante a instante; olhou para o agudo punhal, e tornou a olhar para o príncipe, que em sonhos pronunciava o nome da noiva. Ah! Como ele a ama! E a sereia sentiu os dedos apertarem convulsivamente a faca... Mas ergueu a cabeça e, num gesto resoluto, atirou o punhal ao mar. Olhou ainda o príncipe, com um olhar já meio apagado. Lentamente, alcançou a amurada, e, ao confundir-se com as ondas, sentiu que seu corpo se ia diluindo em espuma.
FIM
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