terça-feira, 24 de novembro de 2015

O COMPANHEIRO DE VIAGEM - CONTOS DE ANDERSEN

Estava muito triste o pobre João; seu pai encontrava-se muito, muito doente, e ia morrer. Achavam-se ambos sozinhos no quartinho estreito. A vela que ardia sobre a mesa chegara já no fim, pois era muito tarde da noite.
    - Tens sido um bom filho, João -disse o pai - e o Senhor te protegerá neste mundo.
     Olhou ainda uma vez para o filho - um olhar ansioso e cheio de ternura - e expirou.
      João chorou amargamente; agora não lhe restava mais ninguém no mundo - nem pai, nem mãe, nem irmão, nem irmã. Coitado! Ajoelhou-se ao pé da cama e beijou a mão do pai morto. E chorou, chorou, até que seus olhos se fecharam, e pegou no sono, com a cabeça apoiada no encosto duro da cama.
      Teve então um estranho sonho: sonhou que via o Sol e a Lua inclinando-se diante dele. Viu também no sonho o pai, vivo, e forte, rindo como nos dias felizes de outrora. Uma linda moça, que trazia uma coroa de ouro sobre os longos cabelos, estendia a mão a João, enquanto o pai lhe dizia:
   - Vê que linda noiva a tua, João! É a moça mais linda do mundo!
     Nisto acordou, e todas aquelas belas visões se desvaneceram: o pai jazia na cama, morto e gelado, e não havia mais ninguém ao pé dele. coitado do João!
     No dia seguinte foi o enterro. João acompanhou o esquife do pai, que tanto o amara, e que já não veria mais. Ouviu caírem as pazadas de terra sobre o caixão, e ficou olhando, até que a terra encobriu o último cantinho do ataúde. estava triste, tão triste, que lhe parecia sentir o coração despedaçar-se dentro do peito. Depois, os que tinham acompanhado o morto cantaram um hino tão comovente, que o rapaz sentiu outra vez as lágrima lhe subiram aos olhos. Chorou, e isso lhe fez bem: abrandou-lhe a dor. Sentiu-se mais consolado. O sol, que brilhava por entre as folhas verdes das árvores, parecia dizer-lhes:
    - Não te desespere, João! Ergue os olhos, e  vê como o céu está azul e lindo. E lá que está teu pai, rogando ao Senhor que vele sempre por ti!
    - Também eu quero andar sempre reto na vida- disse João. - Assim me reunirei a meu pai, lá no céu. Que alegria, ver-nos de novo! Quanta coisa terei então para lhe contar! E ele me guiará e me ensinará, explicando-me os esplendores do céu, como me ensinava tudo aqui na terra. Como seremos felizes!
     E joão via tudo aquilo, com tamanha certeza e tão grande fé, que sorria já por entre as lágrima. Os passarinhos chilreavam nos castanheiros - "tu-iii! tu-iii! " Estavam muito alegres, mesmo na hora do enterro, porque sabiam que o morto fora para o céu, e que agora tinha asas maiores e mais belas do que as deles. Sabiam que ele era feliz agora, porque tinha sido um homem bom aqui na terra- e alegravam-se muito com isso.
    Viu-os João a voar; saíram das árvores verdes e seguiram pelo vasto mundo. e ele sentiu também um grande desejo de acompanhá-los. Antes, porém, de partir, quis fazer uma grande cruz de madeira, para assinalar a sepultura do pai. Quando foi cravá-lo no túmulo, achou-o todo coberto de areia e de flores. Mãos de estranhos, que tinham amado seu pai, porque era um homem bom, tinham ornado sua sepultura.
    De manhã bem cedo João empacotou o que lhe pertencia, meteu no cinto toda a sua herança, que consistia apenas em cento e poucos cruzeiros, e com essa bagagem saiu a correr mundo. Primeiro, porém, foi ao cemitério; ajoelhou-se ao  pé da sepultura do pai e rezou o Pai Nosso. Depois afastou-se, dizendo:
     - Adeus, pai querido! Serei sempre um homem honesto para que possas sempre rogar a Deus que me proteja!
     Os campos que atravessou estavam cheios de florzinhas que desabrochavam ao sol, embalando-se ao sopro da brisa; pareciam dizer-lhe:
   - Bem- vindo sejas às nossas verdes campinas, bem-vindo! Não achas lindo este prado?
    João voltou-se para ver ainda uma vez a igreja antiga, onde fora batizado,  e aonde ia todos os domingos rezar, em companhia do pai. Avistou então lá no alto, na janelinha do campanário, o anãozinho da igreja, com seu gorrinho vermelho e pontudo; fazia pala com a mão, para defender os olhos da luz,  e olhava para ele. João disse-lhe adeus cá de baixo, e anãozinho pôs a mão sobre o coração, agitou o gorro vermelho, e depois atirou-lhe beijos com os dedos unidos em pinha- era a sua maneira de dizer que lhe desejava boa viagem e felicidade.
    Pensando sempre nas coisa esplêndidas que ia ver no grande e belo mundo que ficava além do horizonte, ia andando para a frente, sem parar, e achou-se em lugares onde nunca estivera antes. Não conhecia as cidades que ia atravessando,nem as pessoas que encontrava no caminho. Estava já em país estrangeiro.
    Dormiu na primeira noite em um monte de feno. em pleno campo, porque não tinha outra cama. Achou-a, contudo, muito comoda, e pensou que nem o rei a teria melhor. Que quarto poderia ser mais belo do que aquele- o campo extenso, o arroio, o monte de feno, e tudo coroado pelo céu azul? Era na verdade um quarto maravilhoso. Tapete era o campo verde, todo estrelado de florzinhas vermelhas e brancas . os sabugueiros e as cercas de roseira silvestre eram as guirlandas de flores, e para lhe servir de toucador ali estava o riacho , cheio de água fresca e cristalina. os caniços inclinavam-se com querendo dizer: "Boa noite!" e "Bom dia !" E a lua era mesmo uma imensa lamparina, pendurada lá em cima , no céu azul; e não havia perigo de pegar fogo ao cortinado!
    João podia pois dormir a sono solto, e foi o que ele fez: dormiu como uma pedra, e só acordou quando o sol apareceu e os passarinhos todos começaram a cantar em volta dele:
     - Bom dia ! Bom dia! Não acordas hoje, dorminhoco?
      Já os sinos repicam, porque era domingo. Dirigiam-se os camponeses à igreja, e João acompanhou-os. E quando ouvia a palavra de Deus, parecia-lhe que se achava na mesma velha igreja onde fora batizado e onde rezava ao lado de seu pai.
     No cemitério, ao pé da igreja, havia muitos túmulos; alguns estavam cobertos de ervas daninhas. Lembrou-se o moço da sepultura do pai, que havia de ficar também assim mesmo, agora que ele não estava lá para tratar dela. Ajoelhou-se e começou a arrancar as ervas silvestres, endireitou as cruzes de madeira caídas, e pôs no lugar os ramos de flores que o vento espalhara. E ia pensando consigo:
    - Talvez alguém faça o mesmo no túmulo de meu pai, já que eu não posso cuidar dele.
     No portão do cemitério encontrou um velho mendigo, apoiado a uma muleta. deu-lhe o dinheiro miúdo que levava e continuou seu caminho - ia correr mundo- contente e tranquilo. Ao anoitecer o tempo transtornou-se; estava iminente uma tempestade terrível. João apurou o passo para ver se encontrava abrigo nalguma parte, mas depressa escureceu de todo. Avistou afinal uma capelinha solitária, no alto de um outeiro. Encaminhou-se para lá e verificou, contente, que a porta estava entreaberta; entrou para esperar ali até que a tempestade amainasse.
     - Vou acomodar-me num cantinho - disse consigo.
    - Estou tão cansado que o repouso me fará bem.
      Sentou-se, pôs as mãos e disse as orações da noite. E pegou no sono, quase sem mentir, e enquanto a tormenta rugia lá fora, ele sonhava.
     Acordou pelo meio da noite. Passara a tormenta, e agora o luar entrava pela janela. Viu então que no centro da igreja havia um ataúde com um morto dentro, esperando o enterro. João não era nada medroso. Tinha a consciência tranquila, e sabia bem que os mortos não fazem mal a ninguém; os vivos, sim - e justamente lá estavam dois homens vivos, parados junto do morto, que fora deposto ali até a hora do enterro. Tinham um plano indigno, que era impedi-lo de descansar tranquilamente no seu caixão. Queriam tirar o corpo para fora da igreja - aquele corpo indefeso do homem morto.
      - Mas por que querem fazer isso? - perguntou João. - É uma ação má e um pecado! Pelo amor de Deus, deixem o homem descansar!
     - Tolices! - exclamaram os dois malandros. - Ele nos logrou. Devia-nos e não pode pagar. E agora, que tornou a nos lograr, morrendo, não vamos receber dele nem um centavo. por isso nos vingaremos dele. Há de ficar do lado de fora da igreja, como um cão!
     - Não possuo mais que cem cruzeiros - disse o bondoso rapaz. - É toda a minha fortuna. Mas dou-lhes tudo de boa vontade se me prometem deixar em paz o pobre homem. Ora! Posso ficar sem dinheiro:  Tenho saúde, braços fortes, e Deus há de ajudar!
     - Sim, sim! - responderam logo os malfeitores. - Se estás disposto a pagar a sua dívida, não lhe poremos a mão: podes contar isso!
     E pegaram no dinheiro e foram embora, rindo às gargalhadas da simplicidade do rapaz. Enquanto isso, este acomodava de novo o cadáver no caixão: cruzou-lhe as mãos e saiu, metendo-se por dentro do mato, contente consigo mesmo.
    Por onde filtrava um raio de luar, via pequeninos elfos, que se divertiam com suas danças, sem se importar com ele, pois sabiam que era bom e honesto. Só os maus nunca podem ver os elfos. Havia alguns do tamanho de um dedo, e tinham os longos cabelos louros presos com grampos de ouro. Embalavam-se , dois a dois, nas gotas de orvalho que cintilavam nas folhas de grama. De vez em quando as gotas rolavam e eles caíam entes as hastes do capim. E os bonequinhos minúsculos riam e divertiam-se muito com isso, porque era na verdade engraçado mesmo. Cantavam e João entendia suas lindas cantigas: eram as mesmas que ele cantava quando era pequenino.
    Enormes aranhas, coroadas de ouro, estavam muito atarefadas: fiavam longas pontes e palácios entre as moitas, e quando se formavam finas gotinhas de orvalho sobre aquelas teias, elas brilhavam como espelhos ao luar. Tudo isso continuou assim até romper do sol; quando este surgiu, os elfos esconderam-se no seio das flores. O vento despedaçou as pontes e os palácios, que esvoaçaram pelos ares como teias de aranha.
     João saía do mato quando ouviu uma voz forte de homem que o chamava:
    - Olá, meu rapaz! Aonde vais nesse passo?
      - Vou indo pelo vasto mundo - disse João. - Não tenho família. Sou pobre, mas sei que o Senhor olhará por mim.
    - Pois eu também ando correndo mundo - disse o desconhecido. - Bem poderíamos ir juntos!
      E lá se foram. Dentro de pouco tempo estavam amigos, pois ambos eram boas criaturas. Mas não tardou que João descobrisse que lhe faltava muito para igualar o outro em conhecimentos. O companheiro tinha visto muito mundo e sabia discorrer sobre todas as coisas.
    Já o sol estava alto quando se sentaram à sombra de uma árvore para almoçar. Nesse momento avistaram uma velinha que vinha manquejando. Era tão velha e encurvada, que parecia dobrada pelo meio, e caminhava apoiada a uma muleta. Trazia às costas um feixe de lenha que juntara no mato. No seu avental dobrado, João notou que levava dentro daquela espécie de bolsa grandes feixes de fetos e varas de salgueiro. Ao chegar perto deles, a velhinha escorregou e caiu no chão; pôs-se então a gritar, porque a coitada tinha quebrado uma perna.
    João disse logo que ambos levariam para casa a pobre velha, mas o estrangeiro abriu o saco de viagem e tirou dele um pequenino pote de unguento, declarando que aquela pomada podia curá-la completamente no mesmo instante, de sorte que ela poderia ir para casa caminhando tão bem como se nada lhe tivesse acontecido. Em troca, pedia-lhe os três feixes de varas que ela levava no avental.
     -É muito caro! É um preço muito alto! - disse a velha , sacudindo a cabeça, a considerar:
   Não queria desfazer-se daquelas varas, é claro : mas também não era nada agradável ficar ali com a perna partida; assim é que consentiu em pagar o preço pedido. Nem bem ele acabava de esfregá-la com o unguento, já a velinha se levantava e saía caminhando, e muito melhor do que antes - milagre do unguento, que infelizmente não se encontra à vontade na farmácia!
    Para que queres essas varas?- perguntou João ao companheiro.
    - São três lindos feixes de folhagem! Despertaram-me atenção, e gostei deles, porque sou um sujeito meio esquisito.
    Quando já iam longe, João observou:
   - Como o céu está ficando escuro! Vê que enormes nuvens negras!
    - Não, não são nuvens - disse o outro; são montanhas, cujos picos ficam acima das nuvens.Lá a gente respira um ar fresco e puríssimo. E é uma vista magnífica! Amanhã estaremos, com certeza , muito acima disto aqui, bem lá no alto!
    Mas as montanhas não ficavam tão próximas como pareciam. Andaram ainda um dia inteiro para alcançá-las. Estavam cobertas de matas sombrias, que se erguiam para o céu, e de rochedos que à distancia pareciam verdadeiras cidades. A escalada exigia grande dispêndio de energias, por isso João e seu companheiro resolveram ficar em uma pousada, para refazerem as forças antes da ascensão.
    A grande sala da estalagem estava cheia, porque lá se achava naquele dia um pelotiqueiro, com seu teatrinho de bonecos. Acabava de instalá-lo, e toda aquela gente estava sentada, esperando o espetáculo. Na fila da frente, e no melhor lugar, sentaram-se um açougueiro, gordo e velho, com seu enorme buldogue ao pé de si. E que medonho focinho tinha o cão! Lá estava ele, com os olhos saltados, e tão arregalados como os de todos os mais.
     Começou o espetáculo. Era uma peça linda, em que apareciam um rei e uma rainha, sentados em um trono de veludo. Tinham coroas de ouro, e trajes deslumbrantes, com longa cauda -coisa que eles podiam usar, certamente! Bonecos lindíssimos, de olhos de vidro e  grandes bigodes, abriam e fechavam as portas, para manter a ventilação da sala. Era uma  peça muito linda; e não era triste, nem um pouquinho triste. Mas justamente quando a rainha se levantou para atravessar a cena - só Deus pode saber o que impeliu o enorme buldogue a fazer semelhante coisa!- Como o rotundo açougueiro não o mantinha seguro, o cão deu um salto e foi parar no meio do palco; segurou a rainha pelo frágil peito e só largou em pedaços! Foi uma cena  trágica!
    O pobre do dono do teatrinho ficou desesperado e profundamente abatido, pois a rainha era mais linda das bonequinhas, e o horrendo buldogue lhe arrancara a cabeça.
     Mas depois que tinham saído os espectadores, o estrangeiro que viera com João declarou que podia consertá-la. Tirou do saco um pote de unguento e untou com ele a boneca- era o mesmo unguento que tinha  curado a pobre velha da perna quebrada. No mesmo instante a boneca ficou como nova - não: ficou muito melhor. Podia agora mover-se por si , não precisando dos cordéis. Era exatamente como uma pessoa viva-só  lhe faltava falar. O pelotiqueiro ficou encantando ao ver que não tinham mais que se preocupar com os cordões daquela boneca, Nenhuma das outra era assim.
     Noite alta, quando todos da hospedaria já estava, deitados, ouviram-se suspiros tão altos e tão tristes que todos pularam da cama para verificar o que seria aquilo. O pelotiqueiro foi direto ao teatrinho, porque pareciam vir dali os suspiros. E viu  todas as boneca de pau amontoadas uma por cima das outras, e de mistura com elas o próprio rei - e era dali que saíam aqueles profundos suspiros. Tinham nos olhos de vidro um olhar tão suplicante...queriam todos ser também untados, como a rainha, com aquele unguento, para que pudessem ter movimento. A rainha ajoelhou-se, erguendo a sua bela coroa de ouro, como se quisesse dizer:
   - Tira-me até isto, se quiseres, mas esfrega também, o rei e seus cortesões!
     O pobre pelotiqueiro ficou com tanta pena que não pode reter as lágrima. Prometeu ao viajante todo o dinheiro que apurasse na primeira representação, se ele ao menos untasse quatro ou cindo bonecas, entre as melhores. Mas o estrangeiro disse que não aceitaria pagamento algum em dinheiro; queria apenas a grande espada que pendia da cinta do homem. Recebida a paga, tratou logo de esfregar meia dúzia de bonecas, que começaram imediatamente a dançar; e tão bem dançavam que todas as moças, as moças vivas, que assistiam à operação, começaram também a dançar. O cocheiro dançava com a cozinheira e o criado com a camareira. Os hóspedes também se associaram ao baile, e o mesmo fizeram a pá e as tenazes... mas estas caíram logo ao ensaiar os primeiros passos. Foi um serão bem alegre, na verdade!
     De manhã cedo puseram-se os dois viajantes a caminho: começaram a subir a encosta íngreme da montanha altíssima, coberta de pinheiros. Subiram tão alto que lá de cima as torres da igreja pareciam apenas cerejinhas vermelhas entre a verdura. Avistaram ao redor, e a milhas e milhas de distância, lugares que nunca tinham visto. E, quanto a João, não vira jamais tamanha glória como a que lhe oferecia aquele mundo desconhecido. O sol brilhava no azul do firmamento; nas encostas ressoavam  as trompas dos caçadores. E tudo era tão cheio de beleza e de doçura, que ele sentiu os olhos inundados de lágrimas exclamando em altas vozes:
    - Deus Todo-Poderoso! Queria beijar o chão que pisaram teus pés
    O seu companheiro também olhava, de mãos postas, para os bosques e as cidades que se estendiam diante dele, aos quentes raios de sol. Nesse instante ouviram ambos um som admirável, que vinha de cima. Ergueram os olhos e viram um grande cisne branco  que voava acima deles; cantava, cantava, como nunca tinham ouvido nenhum pássaro cantar. Mas o canto foi ficando aos poucos , mais fraco , e por fim a ave abaixou a cabeça e veio descendo lentamente, até cair aos pés dos dois homens - morto, o lindo cisne!
     - Que magníficas asas! - disse o companheiro de João. - Assim tão grandes e tão alvas, valem muito dinheiro! Vou levá-las. Vê como foi bom ter trazido esta espada!
     E de um só golpe cortou ambas as asas da ave morta.
    Andaram ainda léguas e léguas pelas montanhas, até que avistaram uma grande cidade; mais de cem  torres brilhavam como prata à luz do sol. No centro dela erguia-se um magnífico palácio de mármore, com teto de ouro. Era a morada do rei.
   Os dois viajantes não entraram imediatamente na cidade. Ficaram em uma hospedaria dos arredores para mudar de roupa, pois queriam apresentar-se corretamente vestidos pelas ruas. contou-lhes o albergueiro que o rei era um bom homem, que a ninguém fazia mal; mas a filha - Deus nos acuda! - que  princesa malvada!
     Era muito linda . Ninguém podia ser mais bela, nem mais interessante do que ela - mas de que servia isso? Era uma feiticeira perversa, que já causara a morte de muitos príncipes encantadores.
    A princesa tinha declarado que quem quisesse podia apresentar-se como seu pretendente. Fosse lá quem fosse, príncipe ou mendigo, para ela era indiferente : só exigia que o candidato respondesse a três perguntas suas. Se acertasse as respostas, casaria com ela e reinaria sobre  toda aquela terra quando morresse o rei seu pai. Mas se não atinasse com a resposta certa, mandava enforcá-lo, ou decapitá-lo. Era assim tão perversa a bela princesa!
    O velho rei vivia ralado de desgosto; mas nada podia fazer contra aquela malvadez, porque tinha prometido à filha que não havia de intervir no seu casamento: deixava-lhe a liberdade de escolher quem quisesse e de fazer dos pretendentes também o que bem lhe parecesse. E quantos príncipes se haviam apresentado para obter a mão da princesa, falhando na tentava; e todos  haviam morrido na forca, ou perdido a cabeça, porque cada um era avisado antes de enfrentá-la, ainda o tempo de evitar o perigo. Tão aflito vivia o rei, que todos os anos passava um dia inteiro, com os seus soldados, de joelhos, orando para que a princesa se modificasse; mas o caso é que ela não mudava. E , em sinal de luto, as velhas que bebiam aguardente a tingiam de negro antes de engoli-la - tamanho era o seu sentimento- porque nada mais lhes restava senão se lamentar.
    - Esta princesa abominável devia levar uma boa sova! - disse João. - É  o que ela merece. E se eu fosse o velho rei, havia de surrá-la até escorrer sangue!
     Nesse momento ouviram uma gritaria na frente da pousada:
      - Viva! Viva!
     A princesa passava com seu séquito. E tanta era sua beleza que o povo esquecia, ao vê-la , toda a maldade do seu coração, e saudava-a:
     - Viva! Viva!
     Acompanhavam-na doze belas moças, vestidas de seda branca, e levando tulipas de ouro; montavam cavalos negros como carvão. O cavalo da princesa era branco como  a neve, todo ajaezado de diamantes e rubis. Seu traje de montar era de ouro puro e o chicotinho brilhava como um raio de sol. Cingia-lhe a cabeça uma coroa resplandecente como as estrelas do céu, e o seu manto era todo recamado de milhares de asas de borboletas, muito brilhantes. Mas a própria princesa era ainda mais bela do que tudo isso.
    Ao vê-la, João ficou muito vermelho - seu rosto tornou-se cor de sangue - e nem achou voz para dizer uma palavras. É que a princesa era o retrato vivo da linda jovem coroada de ouro que vira em sonhos, na noite em que lhe morrera o pai. Achou-a tão linda que a amou desde aquele momento.
     - Não!- dizia consigo.  - Ela não pode ser uma feiticeira malvada, que manda enforcar ou degolar os que  não lhe adivinham os pensamentos! E, visto que qualquer um pode pretendê-la, ainda que seja um pobre mendigo, irei ao castelo. Não posso deixar de ir!
      Quantos o ouviram disseram-lhe que desistisse daquela ideia, se não quisesse acabar como os outros. Seu companheiro também procurou dissuadi-lo; mas ele achava que tudo acabaria bem. Escovou a roupa e os sapato, lavou o rosto e as mãos, penteou o belo cabelo louro, lá se foi sozinho; atravessou toda a cidade, rumo ao palácio.
     - Entra! - disse  o rei, quando ele bateu à porta.
     O moço abriu a porta e entrou, e o próprio rei veio ao seu encontro. estava de roupão e chinelas bordadas; mas tinha a coroa na cabeça, trazendo em uma das mãos  o cetro e na outra o globo. Pediu licença a João, enquanto colocava o globo debaixo do braço para poder cumprimentá-lo.
    Mas quando se inteirou de que era um novo pretendente à mão da filha, rompeu em pranto. Soluçava com tanta força que caíram ao chão o cetro e o globo, e teve de recorrer ao roupão para enxugar os olhos. Coitado do velho rei!
    - Não te metas nessa empresa! - disse ele. -Vais ter a mesma sorte dos outros. Vem quero mostrar-te que é feito deles.
    Levou-o ao jardim de recreio da princesa. O que o rapaz viu era espantoso! De cada árvore pendiam três ou quatro filhos de rei, que tinham querido desposar a princesa, e que não puderam decifrar seus enigmas. A cada sopro da brisa os esqueletos se entrechocavam, produzindo um ruído macabro , que espantava os passarinhos; estes  já nem ousavam entrar naquele jardim. Todas as flores estavam escoradas com ossos humano, e nos vasos de plantas viam-se caveiras mostrando os dentes. Que belo jardim, na verdade, para uma princesa!
    - Estás vendo? - perguntou o rei. - Pois é o que te espera. Ouve-me: renuncia a teu projeto, que me aflige profundamente, porque tudo isto me atormenta a vida!
     João beijou a mão do bom rei, dizendo-lhe que estava certo de que tudo iria bem. É que estava enfeitiçado pela beleza da jovem. Justamente naquele momento chegava ela, com todas as suas damas, entravam no pátio do palácio; eles foram cumprimentá-la. Era muito linda, e, quando estendeu a mão ao moço, sentiu-se ele ainda mais enamorado do que nunca.
     Entraram no salão do palácio, onde pequenos pajens serviram biscoitos de gengibre e geleia. Mas o rei estava tão triste que nem pode comer nada. Além disso, os biscoitos de gengibre eram muito duros para os seus dentes.
    Ficou combinado que João voltaria ao palácio na manhã seguinte, quando estariam ali juízes e todo o conselho para julgar as suas respostas. Se saísse bem da prova, teria de voltar lá ainda duas vezes - o que não tinha acontecido com nenhum candidato.
    João, porém, não receava aquela prova. Longe disso! Estava muito alegre a só pensava na formosura da princesa. estava persuadido de que Deus o judaria, não sabia por que meios, mas tinha certeza de se sair bem; e entendia que era melhor não ficar a matutar no caso. E de volta à hospedaria, onde o esperava o companheiro, fez todo o caminho a dançar de alegria. Não se cansava de repetir como era bela a princesa e com quanta amabilidade o tratara. Nem sabia como havia de esperar o dia seguinte e a hora de ir ao palácio para tentar a sorte pela segunda vez. Mas o amigo sacudia a cabeça, muito triste.
    - Estimo-te tanto - dizia ele - e poderíamos viver em boa camaradagem ainda por tanto tempo! Mas  agora estou arriscando a perde-te para sempre, meu caro João! Meu pobre João! Só tenho vontade de chorar! Mas reagirei! Não quero empanar a felicidade desta noite, talvez a última que nos resta para estarmos juntos. Vamos dar expansão à alegria por hoje, que não faltará tempo para lágrimas amanhã!
   Espalharam-se pela cidade a notícia de que a princesa tinha um novo pretendente, e reinava por toda a parte uma tristeza profunda. Os teatros cerraram as portas; as mulheres que vendiam doces amarraram uma tira de crepe nos seus porquinhos de açúcar; o rei e os sacerdotes ajoelharam-se nas igrejas, em ferventes preces; e as lamentações que se erguiam de toda a parte eram ouvidas a grande distância. Porque todos estavam convencidos de que João não poderia ter mais sorte que os outros.
     Já tarde da noite o seu companheiro preparou uma grande caneca de ponche e disse-lhe:
    - Vamos! devemos estar alegres: bebamos à saúde da princesa!
    Mas quando João acabou de beber o segundo copo daquele ponche, sentiu-se de repente tomado de sono tão forte, que não pode manter os olhos abertos : dormiu ali mesmo. O companheiro ergueu-o da cadeira com o maior cuidado e levou-o para a cama.
     Assim que escureceu por completo pegou nas asas que tinha cortado do cisne morto e amarrou-as aos ombros: meteu no bolso o maior dos feixes de varas que lhe dera a velha que tinha quebrado a perna na queda. abriu a janela e saiu voando pelos ares; voou por cima das casas e foi ter ao palácio; e ali sentou-se em uma saliência de pedra, debaixo da janela do quarto da princesa.
    A cidade inteira estava mergulhada em completo silêncio. Quando os relógios deram as onze e três quartos, abriu-se a janela da princesa e ela saiu voando; vestia roupagens brancas  e tinha asas negras. Atravessou a cidade e dirigiu-se para uma alta montanha. O companheiro de João tornara-se invisível, de sorte que a princesa não podia descobri-lo; saiu voando também e durante o vôo ia batendo nela com o feixe de varas, e tão rijo, que cada varada lhe fazia sangrar a carne. E como voavam! O vento enfunava o manto branco da princesa, como se fosse uma vela de barco, e o luar se espalhava nele. Que noite, aquela!
      - Ai!  Quanta geada! Quanta geada! - gritava a princesa a cada golpe de vara.
    Mas era o que ela merecia mesmo.
    Chegou afinal à encosta do cerro e bateu. Abriu-se o flanco da montanha com um ribombo de trovão e ela entrou. Ele também entrou, mas ninguém o viu, porque se tornara invisível.
    Atravessaram uma passagem muito larga e extensa, iluminada de maneira estranha. Milhares de aranhas fosforescentes corriam pelas paredes, produzindo uma luz viva. Entraram em um grande salão, todo de ouro e prata. Flores enormes, como grandes girassóis, azuis e vermelhas, cobriam as paredes, mas ninguém podia colhê-las, porque as hastes eram cobras medonhas e venenosas, e as próprias flores não passavam de chamas vivas, que dardejavam de suas garras. O teto era vivente: formado de vaga-lumes e morcegos, que agitavam constantemente as asas. Era um lugar medonho! No centro erguia-se um trono, sustentado por quatro esqueletos de cavalos, ajaezados de teias de aranha chamejantes. O trono era de vidro de cor leitosa,  e as almofadas que forravam consistiam em ratinhos pretos, que mordiam as caudas uns dos outro. Encimava-o um dossel de teia de aranha rosada, toda semeada de lindas moscas verdes, que cintilavam como esmeraldas.
     Ocupava o trono um feiticeiro velho, horrendo, de coroa na cabeça e cetro na mão. Beijou a testa da princesa e sentou-a a seu lado, no trono riquíssimo, enquanto a música começava a soar. Enormes gafanhotos negros tocavam gaita de boca, e uma velha coruja batia no estômago, fazendo-o rufar como um tambor. Mas que concerto fantástico! Miríades de duendezinhos anões, com fogos-fátuos pregados nos capuzes, saltavam ao redor do salão.
    Deram entrada no salão os cortesões e as damas, todos com ares de grandes personagens; mas quem observasse com atenção veria logo que tudo aquilo não passava de fingimento: eram cabeças de repolho, espetadas em cabos de vassoura, que o velho feiticeiro tinha enfeitiçado e revestido de roupas bordadas. Isso não tinha, porém, importância alguma, pois que serviam apenas para dar aparência de gente de verdade.
    Quando as danças foram interrompidas, a princesa contou ao feiticeiro que aparecera um novo pretendente e perguntou-lhe que adivinhas lhe a havia de propor.
     - Deves pensar - disse o feiticeiro - em alguma coisa simples, que o desconcerte. Pensa em um de teus sapatos, por exemplo. Ele nunca se lembrará de semelhante coisa. E então - zás! cabeça fora! E quando vieres amanhã à noite, não te esqueças de me trazer seus olhos, que quero comê-los.
     Fez a princesa uma grande reverência, prometendo cumprir o que lhe pedira. o feiticeiro abriu o cerro e ela saiu voando de volta a casa. Mas o amigo de João saíra junto e de novo a vergastava com varadas tão rijas, que ela gemia alto, queixando-se dos granizos que caíam - e apressava o vôo a fim de chegar mais depressa ao seu quarto, onde entrou pela janela. Ele então voltou para a estalagem, onde João continuava adormecido. Desprendeu as asas dos ombros e deitou-se, muito cansado - e com toda razão!
    João acordou cedo no dia seguinte. Disse-lhe então o companheiro que sonhara com a princesa - um sonho estranho, em que entrava um sapato da moça. E pediu-lhe que perguntasse se ela não tinha pensado em um dos seus sapatos. É claro que sabia bem de tudo,´pois ouvira a conversa dela com o feiticeiro; mas preferiu não revelar esse segredo ao amigo.
     - Pois sim - disse este - tanto faz uma pergunta como outra. Pode bem ser que teu sonho veja verdadeiro, porque tenho sempre confiado na proteção de Deus. Entretanto, vou despedir-me de ti, porque, se não acertar, já sabes, não nos tornaremos a ver.
     Abraçaram-se e João seguiu para a cidade. E foi direito ao palácio do rei. o salão estava completamente cheio. Os juízes, sentados em suas poltronas reclinavam a cabeça em almofadas de penas, porque tinham de pensar muito. o velho rei, de pé, enxugava as lágrima com seu alvo lenço.
   Entrou a princesa. Estava ainda mais linda do que na véspera, e foi cumprimentando a todos com um sorriso. Mas a seu pretendente ela estendeu a mão, dizendo-lhe:
    - Bom dia ! Como passou?
    João tinha de adivinhar o que ela trazia naquele instante no pensamento. E a princesa ficou a olhar para ele, de maneira muito amável, esperando , até que lhe ouviu a palavra " sapato". Ah! Então seu rosto ficou branco como cal, e ela estremeceu da cabeça aos pés. Mas de nada lhe valia tremer: João tinha adivinhado!
    Justos céus! Como o rei ficou contente! De tão satisfeito, até virou cambalhotas; e todos aplaudiram, tanto a sua proeza como a de João, que acertara a primeira resposta.
    Também o seu amigo alegrou-se muito, quando soube que tudo correra tão bem. E João, de mãos postas, deu graças a Deus, certo de que seria igualmente auxiliado nas duas provas restantes. Porque no dia seguinte teria de responder mais uma vez.
   Á noite tudo se passou como na véspera. Assim que João pegou no sono, seu companheiro voou no encalço da princesa, batendo-lhe ainda com mais vigor, pois desta vez tomara dois feixes de varas. sempre invisível, via e ouvia tudo. Desta vez a princesa devia pensar na sua luva, e ele comunicou isso ao amigo, como se tivesse sonhado.
     Naturalmente João não encontrou a menor dificuldade em acertar a resposta, e o regozijo no palácio não tinha limites. A corte inteira virou cambalhotas, como vira o rei fazer na véspera. mas a princesa ficou imóvel no seu sofá, muda de surpresa.
     Tudo dependia agora da resposta que João desse à terceira adivinhação. se acertasse, casaria com a bela princesa e herdaria o reino inteiro, quando o velho rei morresse. Mas se não adivinhasse , perderia a vida e o feiticeiro comeria seus lindos olhos azuis!
     À noite, João rezou e foi para a cama cedo, não tardou a pegar no sono - um sono muito tranquilo. Seu amigo amarrou as asas às costas, cingiu a espada, e, pegando nos três feixes de varas, voou para o palácio.
    A noite estava escura como carvão; a ventania soprava com tamanha fúria que destelhava as casas. No jardim, onde os esqueletos estavam pendurados , as árvores curvavam-se como juncos. Sucediam-se os relâmpagos sem cessar, e o trovão ribombava, fazendo a terra ressoar a noite inteira. Abriu-se a  janela com estrépito e a princesa saiu voando. Estava mortalmente pálida, mas ria da tormenta; para ela podia ser até mais violenta. Seu longo manto branco voava ao vento, como uma vela de navio; e a tudo isso o seu corpo era vergastado com os três feixes de varas. Já o corpo da princesa gotejava sangue, e ela mal podia manter-se no ar. Afinal chegou à montanha - e mesmo não poderia ir mais longe    - A ventania está furiosa e cai saraiva constantemente - disse ela ao feiticeiro. - Eu nunca tinha saído com um tempo tão espantoso!
    - É que há gente de muita sorte- explicou o feiticeiro.
     Contou-lhe ela que João tinha tornado a adivinhar; e que se acertasse ainda no dia seguinte, ganharia a aposta, e ela não tornaria às montanhas. Nem poderia jamais dedicar-se às suas artes de feitiçaria; e essa ideia a afligia muito.
    - Ele não acertará desta vez - disse o feiticeiro.-
 Hei de achar alguma coisa em que jamais possa pensar - A não ser que seja um mágico mais poderoso do que eu. Mas por agora, vamos dançar!
     Pegou nas mãos da princesa e dançou com ela , girando por entre os gnomos  pequeninos e fogos-fátuos que estavam no salão. As aranhas vermelhas fiavam alegremente, correndo pelas paredes abaixo e acima; as flores chamejantes pareciam lançar faíscas; a coruja tocava tambor; os gritos cricrilavam; e os gafanhotos negros tocavam gaita de boca. Era um baile divertidíssimo!
    A certa altura, a princesa achou que devia voltar antes que dessem falta dela no palácio. Ofereceu-se o  feiticeiro para acompanhá-la; gozaria assim mais algum tempo da sua companhia.
     Saíram voando no meio da tempestade. o feiticeiro teve de confessar que nunca tinha sentido uma chuva de granizos como aquela. e quando se despediu da princesa, junto do palácio, disse-lhe ao ouvido:
    - Pensa na minha cabeça!
     Mas ouviu-o o companheiro invisível; e justamente no momento em que a princesa entrava pela janela  e  o feiticeiro dava volta , apanhou-o pela longa barba negra, e de um golpe de espada decepou-lhe a medonha cabeça; e fez tudo com tamanha presteza que o feiticeiro nem chegou a ver o que acontecera. atirou o corpo do feiticeiro ao mar para que os peixes  o devorassem, e, depois de lavar a cabeça, envolveu-a no seu lenço de seda, levando-a para a hospedaria. Chegando lá, deitou-se e adormeceu.
     No dia seguinte entregou aquela trouxa a João, recomendando-lhe que não a desatasse senão quando a princesa lhe perguntasse no  que tinha pensado.
    O salão estava tão cheio de gente que as pessoas se comprimiam umas contra as outras, como rabanetes amarrados em molho. Os juízes lá estavam, sentados nas suas poltronas, com as almofadas macias para a cabeça. o velho rei vestira uma roupa nova, e tinha mandado polir a cora e o cetro, que resplandeciam. Mas a princesa, mortalmente pálida, vestira-se de preto, como se fosse assistir a um  funeral.
    - Em que pensei? - perguntou ela a João.
     Imediatamente ele desatou o lenço; e não foi o menos espantado, é claro, ao ver que rolava de dentro da trouxa a medonha cabeça do feiticeiro. Todos estremeceram àquela vista horrenda, mas a princesa ficou como uma estátua de pedra, sem poder dizer uma palavra.
     Por fim levantou-se e estendeu a mão a seu noivo. E, sem olhar para ninguém, soltou um suspiro, dizendo:
    - Agora és meu senhor. Hoje mesmo nos casaremos.
     -  Muito me alegro com isso! - exclamou o rei. - Agora sim, tudo vai bem!
    E todo povo deu vivas; a banda militar saiu a tocar  pelas ruas e os sinos repicavam ; as confeitarias tiraram os crepes dos porquinhos de açúcar - porque agora a cidade inteira estava em festa. Três bois, recheados de patos e frangos, foram assados inteiros na praça do mercado e postos à disposição do povo. das fontes e chafariz manava vinho - e do melhor! E quem comprava um bolinho recebia de inhapa seis grandes bolos -- e bolos com passas!
     À noite , toda a cidade pôs luminária; os soldados deram salvas e os meninos queimaram bichas da China. No palácio houve um grande banquete, com abundância de manjares e vinhos, e só ouvia o tinir dos copos. As gentis damas de honor dançaram com os cavalheiros da nobreza. À grande distância se ouviam as suas canções:
       "Aqui estão as moças mais bonitas,
         Rodopiando da música aos compassos;
        Pedindo que o tambor soe e ressoe
        A cadência seguindo dos seus passos.
   
        Gira, donzela ! Gira, e não te canses!
        Gira e regira, e faze espalhafato!
         E canta, e rodopia, e salta e dança,
        Até gastar a sola do sapato!"

   Mas a princesa era ainda uma feiticeira, e não tinha amor nenhum a seu noivo.
    O amigo do João, preocupado com esse fato, deu-lhe três penas das asas do cisne e um frasquinho com algumas gotas de certo líquido; recomendou-lhe que pusesse ao pé da cama da princesa uma grande tina com água, na qual lançaria as três penas e aquelas gotas . No momento em que a princesa fosse recolher-se, ele devia dar-lhe um um leve empurrão, de modo que ela caísse dentro da tina. Mergulharia então três vezes a princesa naquela água, e assim a libertaria para sempre das artes da feitiçaria. Ela havia de amá-lo ternamente desde então.
      João seguiu ao pé da letra os conselhos do companheiro, apesar dos gritos que a princesa deu ao se mergulhada  na água. E foi na forma de um grande cisne negro, de olhos de chama, que ela lutou por se desvencilhar das suas mãos. No segundo mergulho ela saiu da água transformada em um cisne branco, com uma coleira negra; e terceira vez que ele forçou a ave a submergir, já saiu da água a bela princesa na sua forma primitiva. Estava mais bela do que nunca, e foi com os olhos rasos dágua que ela agradeceu ao marido de a ter livrado assim do encantamento do feiticeiro.
      Pela manhã o velho rei apresentou-se com toda a corte para congratular o casal. O último a chegar foi o amigo de João; trazia a bengala e o saco de viagem.
      João abraçou-o muitas vezes, dizendo-lhe que não devia abandoná-los. E, pois que lhe devia toda a sua felicidade, pediu-lhe que ficasse morando com eles. Mas o amigo sacudiu a cabeça, dizendo com muita delicadeza:
     - Não, minha hora chegou. Nada mais fiz do que pagar-te uma dívida. não lembras daquele morto  que uns malfeitores queriam maltratar? Deste então tudo quanto tinhas para que o deixassem descansar em paz no seu caixão. Pois eu sou aquele homem.
    E sumiu-se no instante.
   Duraram um mês inteiro as festas do noivado. João  e a princesa amava-se muito. O velho rei ainda viveu bastante para ver seus netos: estes trepavam-lhe nos joelhos e brincavam com o cetro real . E quando o rei morreu, João veio a reinar sobre o reino inteiro.
FIM
 
   

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