segunda-feira, 9 de março de 2020

JÚLIA lOPES DE ALMEIDA - A CAOLHA - CONTOS ANTIGOS

 A  caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco e sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contacto parece dever ser áspero e espinhiento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
    O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fisura continuamente porejante.
   Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa oficna de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, desclarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...
  Ela finguiu não perceber a verdade, e resignou-se.
      Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
     Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu adorado lhe apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?
   Um beijo dele era melhor que um dia de sol era a suprema carícia para seu triste coração de mãe! Mas...os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e encha-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
   Ela conpreendia tudo e calava-se.
   O filho nao sofria menos.
   Quando criança entrou para escola pública da freguesia começaram logo os colegas, que o vinha ir e vir com a mãe, chamá-lo - filho da caolha.
   Aquilo exasperava-o; respondia sempre:
   - Eu tenho nome!
  Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.
   Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
    Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
   As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
   - Taí, isso é pra o filho da caolha!
    O Antonio preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:
   - Filho da caolha, filho da caolha!
   O Antonio pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas!
   A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
   As onze anos o Antonio pediu para sair da escola: levava a brigar como os condiscípulos, que o intrigavam e maoqueriam. pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprederam depressa a chamá-lo - o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
   Além de tudo, o serviço era pesado ele começou a ter vertigens e desmaios. Arrajou então um lugar de caxiero de venda;  embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma continua saraivada de cereias sobre o pobre Antonico!
   Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupoava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem se quer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho que suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo que os fizesse terem caridade!
   Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonio, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso. se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
   Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonio se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariginha adorável, de olhos negros como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonio voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia em que os olhos da morena fixarem o seus, entrou como um louco no quarto da caolha e brijo-a mesmo na face esquerda num transbordamento de esquecida terenura!
   Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara a encontrar o seu querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:
      - Sou muito feliz....o meu filho é um anjo?
   Entretanto, o Antonilo escrevia, num papael fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe a carta. A reposta fês-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.
   Ao princípio pensava:
   - "É o pudor". Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse comletamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coissa semelhante!
   O Antonio chorou!" Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!
   Depois o seu rancor voltou-se a mãe.
   Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher pertubara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido  mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considera-se-ia humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente....
   Salvara assim a respondsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor;....
    Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.
   A  velha, agachada  à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonio pensou:"A dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de ....uma tal criatura?" Estas úlitmas palavra foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face,  disse:
   - Limpa a cara, mãe...
  Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
    - Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
    - Foi um doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor não lembrar isso!
   - E é sempre  a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
   - Porque não vale a pena; nada se remedeia....
   - Bem! agora escute: trago-lhe uma novidade: o patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade alguma coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!
   Ele. magrinho curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e medroso.
   A caolha levantou-se,e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:
   - Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que eu tembém já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
  O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
   Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e dasabou em soluços.
   O Antonica o passou uma tarde e uma noite de angústia.
   Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - sujo de pus; via a sua titude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontado-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o seu grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.
   Providencialmente, lembrou-se  da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.
   Foi pedir-lhe que intervisse, e contou-lhe sinceramente tudo que houvera.
   A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
   - Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!
   - Que verdade, madrinha?
   - Hei de dizer-ta perto dela; anda, vamos lá!
   Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas...Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarram-lhe toda a ação.
   A madrinha do Antonico começou logo:
   - O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!"
   - Cala-te! - murmuraou com voz apagada a caolha.
   - Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! olha! rapaz, quem cegou tua mãe foste tuu!
   O afilhado tornou-se lÍvido; e ele concluio:
   - Ah, não tiveste culpa! era muito pequeno quando um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
   O Antonico caía pesadamente de bruços, com um desmaio: a mãe acercou-se rapidemente dele, murmurando trêmula:
   - Pobre filho! vês? era por isto que eu não lhe queria dizer nada!

   (ÂNSIA ETERNA)




adjetivo de dois gêneros e dois números
  1. 1.
    em que há pieguice, sentimentalismo extremo.
    "filme p."
  2. 2.
    adjetivo e substantivo de dois gêneros e dois números
    que ou quem é ridiculamente sentimental.

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