sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Contos de Andersen - Bom Humor

  Recebi de meu pai a melhor parte da herança: um bom humor.
   Mas quem era meu pai? Ora, isso nada tem a ver com o caso do humor. Era um homem vivo, cheio de corpo, gordo mesmo; e redondo. Tanto o seu exterior como o interior estavam em desacordo completo com o ofício que exercia.
    Mas que era ele - em razão do ofício e da sua posição na sociedade?
   Ah! Se tudo isso estivesse escrito e impresso logo no começo de um livro, muita gente, mal o abrisse, tornaria a fechá-lo, dizendo:
   - Que coisa sinistra!...Não, não gosto disso!
    Todavia meu pai não era carrasco, nem esfolador. Pelo contrário: em razão do ofício, ficava à frente dos homens mais ilustres da cidade. E tinha todo o direito de ocupar esse lugar: tinha de ser o primeiro, tinha de ir antes do bispo, antes dos príncipes reais. E ia mesmo à frente de todos eles: era o cocheiro do carro fúnebre.
   E agora, que a história saiu a lume, posso bem dizê-lo: quando a gente via meu pai sentado lá no alto da boleia do ônibus da morte, envergando a ampla e longa capa preta, touçado como unicórnio guarnecido de preto, e exibindo, a despeito de tudo isso, um rosto que se parecia com um desenho do sol, redondo e risonho - oh! então não podia a gente pensar em luto e nem em túmulo: aquela cara dizia:
    -Não faz mal, não faz mal.Tudo há de acabar melhor do que a gente pensa.
    - Vê-se, pois, que dele  herdei o meu bom humor, assim como o hábito de frequentar o cemitério. É muito divertido, quando a gente lá vai com bom humor. Além disso, sou assinante da Gazeta da Inteligência, como ele mesmo o era.
      Já não sou moço; não tenho mulher nem filhos; nem possuo biblioteca. Mas, como já disse, assino a Gazeta da Inteligencia  e isso me basta. É par mim o melhor jornal, e também o foi para meu pai. É de grande utilidade, traz tudo o que um homem precisa saber: quem prega nas igrejas, e quem ensina nos novos livros. E a quantidade de atos de beneficência, e a multidão de versinhos inocentes e amáveis que a gazeta contém! Casamentos que se solicitam, encontros que se arranjam! Tudo tão simples, tão natural! Realmente, agente pode viver uma vida boa e feliz, quando assina a Gazeta da Inteligencia! E sem contar ainda que ao fim da existência tem tanto jornal que poderá repousar agradavelmente sobre uma camada de papel, se não gosta de um leito de serradura.
    Assim é que a Gazeta da Inteligencia e o cemitério foram sempre para mim passeios que despertam o espírito, espécie de estabelecimentos de banhos para o meu bom humor.
    E agora quem quiser, pode ir sozinho dar um passeio pelas colunas da Gazeta da Inteligencia. Mas acompanhem-me ao cemitério. Vamos até enquanto o sol brilham e as árvores estão verdes! Andemos por entre os túmulos...Cada um é um livro fechado, com a lombada para cima. Podemos ler o título que, embora indique o que contém o livro, nada diz verdadeiramente. Mas eu sei mais alguma coisa nesse sentido. Aprendi-o de meu pai, e também por mim mesmo. E escrevi tudo isso no meu livro de túmulos, um livro feito por mim, para meu uso e gozo. E aí é que jazem todo eles, e mais alguns.   
   Pois bem: estamos no cemitério.
   Ali, por detrás daquela grade pintada de branco, onde outrora se enlaçava uma roseira - agora ela já não existe, mas algumas sempre-vivas do túmulo vizinho introduzem lá dentro seus rebentos verdes, para que não fique de todo desordenado - ali repousa um homem muito infeliz. E, contudo, enquanto vivia, passava bem, como se costuma dizer. Tinha recurso para viver folgadamente, e até na abastança. Mas o mundo, isto é, a arte, preocupava-o demais. Quando se achava à noite no teatro, para apreciar uma peça que lhe agradava, ficava fora de si, só porque o técnico dirigia uma luz muito forte sobre uma das faces da lua; ou porque as bambolinas ficavam suspensas diante dos bastidores, em vez de ficarem atrás, ou ainda quando aparecia uma palmeira em um parque berlinense, ou um cacto no Tirol; ou faias nas montanhas da Noruega. Mas acaso tudo isso não vem a dar no mesmo? Quem se preocupa com essas coisas? Aquilo não é mais que uma comédia para divertir a gente. E o público, que ora plaude demais, ora de menos...
   - Hoje estão como a lenha úmida - dizia o homem - não querem, inflamar-se!
   Voltava-se, para ver quem estava no teatro; e quando riam em um passo que não era para rir, exasperava-se - atormentando-se mais ainda. Era, pois, um homem infeliz, o que agora descansa naquele túmulo.
   Naquele outro, entretanto, jaz um homem afortunado - o que quer dizer, um homem distinto, de alta linhagem, o que constituía a sua felicidade. Sem ela, jamais teria chegado a ser coisa alguma, mas a natureza arranja todas as coisas com tamanha inteligência, que dá prazer pensar nelas. O homem pavoneava-se todo, cheio de bordados na frente e nas costas, e ficava instalado no salão de festas, tal qual como está fixado à parede um preciso puxador de campainha, coberto de pérolas, por detrás do qual há sempre uma boa e sólida corda, para fazer o trabalho. Aquele homem tinha também atrás de si uma boa corda, isto é, um substituto que fazia o trabalho - e continua a fazê-lo, atrás do novo puxador bordado. Tudo isso está tão sabiamente organizado, que a gente não pode eximir-se a uma dose de bom humor...
   Lá jaz - devo dizer agora que isto é na verdade muito triste - lá jaz um homem que durante sessenta e sete anos quebrou a cabeça em busca de uma pilheria; só vivia para esse fim. Finalmente encontrou uma, segundo lhe pareceu, e alegrou-se tanto com ela que morreu - morreu de alegria, da alegria de a ter descoberto. Assim ninguém aproveitou o excelente chiste, ninguém o ouviu. E não é difícil imaginar que por causa dele o homem não há de ter encontrado paz nem mesmo no túmulo! Sim: porque suponhamos que foi um desses chistes que só se podem aplicar para que produzam efeito completo à hora do almoço; ora, ele, morto como está, e segundo a opinião geral, só pode aparecer à meia-noite, hora para a qual não se presta a pilheira. E ninguém se divertiria com ela, e o homem teria de voltar ao túmulo com a sua pilheira cheia de graça. Não pode deixar de ser uma sepultura muito triste!
   Lá, mais longe, descansa uma mulher muito avarenta. Quando viva, levantava-se de noite e miava, para que os vizinhos pensassem que ela sustentava um gato - de tão avarenta!
   Adiante, é uma senhorita de boa família. Nos saraus musicais, costumavam pedir-lhe que se fizesse ouvir. Cantava então Mi manca la você!, e era esta a única verdade que ela proferiu em toda a vida.
   Acolá jaz uma rapariga de outra espécie. Quando o canário do coração se põe a cantar, a razão tapa os ouvidos com os dedos. É uma história comum: deixamos em paz os mortos!"
   Aqui repousa uma viúva que tinha na boca a voz do cisne e no coração a bílis da coruja. Andava procurando entre as famílias, à cata dos defeitos do próximo, tal qual como o guarda que, dantes, passava pela rua, para ver se faltava alguma pinguela sobre o arroio.
   Isto aqui é um jazido de família. Cada um dos membros da progênie apegava-se aos outros nesta convicção: ainda que todo o mundo diga, e o jornal também, que uma coisa é assim -se o caçula da família ao voltar da escola disser: " Sei que é assado !" prevalecerá a sua opinião, pois que ele faz parte da família.
   E nenhum deles punha em dúvida que a manhã estivesse raiando quando o galo da família cantava, ainda que o guarda-noturno e todos os relógios da cidade anunciassem a meia-noite.
   O grande Goethe terminou seu Fausto com estas palavras: " Pode ser continuado." O nosso passeio ao cemitério também poderia. Vejo-o muitas vezes neste caso: quando um ou outro de meus amigos - ou não amigos - passa dos limites, saio e venho para aqui, procuro um canto coberto de grama e consagro-o - a ele ou a ela, a qualquer pessoa que desejo sepultar. Enterro-a logo, e ali ficam todos eles, mortos e impotentes, até que voltem, como criaturas novas e melhores. Sua vida e seus feitos, que considero cá à minha maneira, eu os descrevo no meu livro de túmulos. Acho que todos deviam proceder assim sem se exasperar quando alguém se excede. Melhor é enterrá-lo imediatamente, conservar o bom humor, e também ler a Gazeta da Inteligência, esse jornal escrito pelo próprio povo, tantas vezes com "mão inspirada".
    E quando chegar o dia em que eu mesmo, mais a minha biografia, tivermos de ser encadernados na sepultara, que gravem nela esta inscrição:
                              BOM HUMOR
       E é essa a minha história.
FIM

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