quarta-feira, 26 de maio de 2021

UMA NOITE DE CHUVA, OU SIMÃO DILETANTE DE AMBIENTES - RIBEIRO COUTO

  Má experiência. Eu descera as escadas do Clube dos Aliados, onde perdera duzentos mil-reis na roleta, e olhava, aborrecido, a chuva cair na rua deserta, negra. Dera-me assim um desejo súbito de passar um quarto de hora numa baiú; então procurava aquele clubezinho reles da Lapa. Agora um arrependimento enraivecedor me fazia subir o sangue à cabeça, em mil projetos de reivindicação honesta daqueles duzentos mil-reis.

     A última vez que eu visitara minha mãe, em Iguape - porque eu sou de Iguape - ainda ela me dissera, com um sorriso magoado:

   - Não trouxe nenhum presentinho para sua mãe...Deixe estar...

   E fora perder duzentos mil-reis para os capadócios do Clube dos Aliados! Eis aí no que dava minha mania de ambientes.

   Táxis, na porta do clube, esperavam fregueses. Vendo-me parado a escolher destino, com um ar de lorde perdulário( o ar com que todo pobre diabo saí de um clube). os choferes me acenavam, oferecendo as máquinas. 

  Deu-me vontade, então, de passar pela rua Morais e Vale. Uma rua de mulheres perdidas, numa noite de chuva, é triste, infinitamente. Poças d'água refletem os lampiões. Trechos de cantigas saem pela gretas das venezianas cerradas. Não se vê ninguém. Apenas, vago, o vulto do guarda rondante, representante sonolento da lei.

   - Ora, vamos, Simão!

   Assim falei a mim mesmo, vencendo a última hesitação da virtude. Eu não ia comprometer a virtude, entretanto. Era apenas a satisfação de um capricho da sensibilidade. O ambiente, queria o ambiente.

  - Boa noite!

   - Boa noite.

  Um conhecido. Exatamente quando menos se espera, numa noite de chuva, ao virar uma esquina de rua viciosa, surge o contratempo fatal; o conhecido, o conhecido que nos vê, nos cumprimenta, faz um ar camarada e passa. Quem? Um sujeito com que temos relações apenas de vista e cuja função na vida parece ser essa; aparecer assim. Um sujeito que existe somente para aborrecer-nos.

  - Sssssiu...

  - Ó beleza!

  As primeiras portas misteriosas. Principiei a sofrer. O amor...Dentro de mim começou a estranha sensação pungente. Ninguém podia adivinhar, na minha sombra, uma dor ambulante, a dor especial e saborosa de sentir o ambiente.

   A rua estendeu-se, dobrada a esquina. Deserta, naquela noite. Passava de duas da manhã e poucas mulheres ainda havia disponíveis, atrás da janelas, à espera. Pela calçada, nem mesmo um marinheiro japonês. Será que muitos homens pensam às vezes, como eu, nos marinheiros japoneses que desembarcam cheirando a suor e a óleo, e vêm por aqui, em grupos, metendo o nariz nas casas, procurando, escolhendo? Oh, que desgraça imensa a destas mulheres!

   Plaf, enfiei os pés num buraco cheio d'água. Bonito! É o resultado de andar distraído, a fazer reflexões piegas. Ia apanhar um resfriado. Não, não: havia um recurso: o botequim da rua Joaquim Silva estava aberto, graças a Deus. Tomaria um cálice de conhaque. Apressei o passo para reagir contra a friagem.

   - Simão!

   Simão? uma mulher chamara Simão?

   - Sssssiu! Venha cá, Simão, não se faça de besta. Não havia dúvida: tinham chamado por mim. Voltei, procurando ver de que janela partira a voz desafinada. (Nossa Senhora, como é possível que alguém me conhecesse naquela rua?)

   - Ó seu coisinha, entra aqui.

    Uma porta abriu-se para mim. Do escuro uma cabeça me acenava, com ar de mando. "Coisinha"? Era extraordinário.

    Parei, indeciso.

   - Já se esqueceu, hein? Entre aqui.

   Entrei. A mulher trancou a porta atrás de mim. 

  -Suba, Simão.

  Subi a escada meio às escuras. Parecia-me um sonho.

   - Como vai D. Candoca?

  D. Candoca! O nome de minha mãe às duas horas de manhã numa casa da rua Morais e vale! Ah, Simão, diletante de ambientes!

   Ela subira atrás. No patamar, voltei-me. A luz do quarto, com a porta escancarada, incidiu sobre um rosto bexigoso de mulata: Maricota!

    - Você aqui, meu Deus?

   - Não, ali na esquina - escarneceu ela.

   Uma comoção profunda me pungiu. Tive vontade de chorar, Maricota....

  -Todo elegante, Simão. Hum, hum!

   ....que dormia no meu quarto, junto à minha cama porque eu tinha medo do invisível e da escuridão...

   - Não fala nada? Está mudo?

   ....do tempo de meu avô, que me mandava com ela à venda do seu Hilário, para impor certo respeito aos homens...

   - Bom se você está disposto a não conversar, então vá-se embora. Perdeu a língua? - Fiz gesto de recuar Maricota agarrou-me pelo braço e empurrou-me pra o quarto. Deu uma ordem; - Sente aí.

   Apontava a cama, A colcha estava amarfanhada. Manchas de terra acusavam contatos de botas. No criado-mudo, uma nota de cinco mil-réis atirada, pontas de cigarro espalhavam-se pelo chão.

   - Sente! Está com luxo? Bom.

   Preferi sentar em cima da mala, que um pano de crochê cobria.

  -Maricota, sinto-me abalado com a surpresa.

  - Estou vendo.

    - Que é feito de você, neste tempo?

   - Ora, se eu fosse contar?

   - Há quantos anos, sim senhora? Quantos mesmos?

   - Ué, conta pelos dedos.

  Contei pelos dedos, como ela aconselhava por ironia: um, dois, três, quatro...doze.

  - Doze anos! Como e que você me reconheceu?

    - Ora, eu criei você, Simão. Me dá um cigarro na minha carteira:

   - Você passou, olhou do lado da minha porta e eu pela fresta reconheci logo. Mas fiquei pensando: será? Não podia deixar de ser:o mesmo focinho! Está'i. 

   Pedi a Maricota que me abrisse um pouco a janela. O quarto estava abafado. Um cheiro de roupa suja e de água-de-colônia de turco impregnava-me as narinas.

   Maricota sentou-se na cama e ficou me olhando, a fumar.

   - Você não envelheceu, Maricota.

  - Não pouco!

   - Não mesmo.

   Não envelhecera. è verdade que perdera a frescura da primeira mocidade, quando, com a sua carne dura e flexível de mulatinha nova, ao passar  vincava um silêncio intencional nos grupos da porta  da venda. Só o que sempre a enfeara um bocado era aquelas marcas de bexiga. Porém, não envelhecera: encorpara. Ficara madura, com adiposidades fofas de vida ociosa.

  - Você casou, Maricota?

  - Qual casar! Com aquele porqueira?

  Ela fugira da nossa casa com um barbeiro chamado Malaquias. Malaquias tocava violão, cantava modinhas e possuía um cacho grosso na testa. Quando Malaquias fazia serenata em nossa rua. Maricota saía do quarto pé ante pé e ia para o muro do jardim. Uma vez desapareceram. Meu avô ficou três dias com uma veia querendo rebentar na testa, latejando forte,, O Major Rabelo, que era o delegado de polícia, desenvolveu toda a sua atividade para descobrir os fugitivos. Porém, o sargento do destacamento era primo de Malaquias e desconfiou-se de que estivessem conluiados. E nunca mais se soube de Maricota, nem de Malaquias.

   - Nós pensávamos que o Malaquias tivesse casado com você....

     -UM vagabundo daquele? Deus me livre.

   - Então você se arrependeu do passo....

   - Fez um muxôxo, com o beiço grosso.

 - E há quanto tempo você anda nesta vida?

   Maricotas sacudiu os ombros, as pernas esticadas, os olhos fitos na ponta das chinelinhas.

  Começou a fazer perguntas por minha mãe, por todos de casa. Teve tristeza quando soube que meu avô morrera.

  - Coitado! De quê?

   - Coração.

   Deu outro muxôxo. Abanou a cabeça com filosofia:

   - De uma coisa ou de outra a gente tem de ir mesmo.

  Mudou o curso das ideias e perguntou de golpe:

  - Você está empregado aqui no Rio?

    - Estou estudando.

  - O que?

   - Medicina.

  - De muito estudar é que os burros morrem.

  Riu-se. Houve uma pausa.

   - Por que não se emprega? Há tanto médico!

   - Não faz mal! 

  - Hum, hum!Está adiantado? quando se forma?

   - No ano que vem.

  - Já?

   Depois, mudando de tom:

    - D. Candoca está muito velha?

   Insistia no nome da minha mãe. E eu tinha sempre a impressão, ao escutá-lo. dito por aquela boca e naquele quarto, de ver uma flor arrastada por um esgoto.

   - Responda, simão! Ficou mudo outra vez!? Porqueira!

   - Está moça ainda, Maricota. Está moça.

   Levantei-me. No meu coração aquele cinismo, aquelas maneiras obscenas, aquela definitiva decadência doíam como uma machucadura.

    - Espere mais um pouco, Simão.

   - Tenho pressa.

   - Quer dizer que a francesa está te esperando.

   - Qual!

   - Se passar da hora, leva tabefes. Gigolô!

   - Opa! Não tenho francesa nenhuma. Vou dormir, é que é.

   Eu estava numa impaciência atroz. Agarrei o chapéu. Que nojo! E que angústia!

   - Conte mais alguma coisa do povo lá em Iguape. Vocês ainda moram na mesma casa? Às vezes tenho saudades.

   - Moramos.

   As paredes estavam cheias de cartões postais e retratos, como escudos numa sala de armas. No espelho do lavatório, na fenda entra a moldura e o vidro, Maricota enfiara mais retratos, mais cartões. Aproximei-me para ver: um sargento da Brigada Policial, mulato, de bigodes agressivos; um instantâneo de piquenique, numa praia, com mulheres e homens exibindo garrafas, em triunfo; um "Boas- Festas e Feliz Ano Novo", em letras doiradas, cercando um par de noivos a beijar-se; uma negra de vestido curto, de braço com uma sujeita branca, esta de cabelos cortados muito gorda, monstruosa, como uma sapa; uma criança de colo espantadinha, sentada sobre uma almofada, olhando a objetiva, sem compreender; e outras lembranças de amigos, de capadócios, de domingos de festa, de coisas tristemente banais.

     Um pedaço de sabonete de côco jazia no mármore do lavatório, atirado. Uma abotuadura  de homem ficara esquecida.As peças de louças estavam arrumadas sobre paninhos de crochê com fitas vermelhas.

      - Maricota, adeus.

    - Tá bom, adeus. Apareça pra conversar..

   - Está direito.

   - Eu quase nunca paro aqui. Passo uns meses no Rio e moro o resto do ano em Taubaté. Sabe, Taubaté. Tenho lá um português. Ainda não ficou faz três semanas que cheguei e ele já me escreveu.

   -Paixão é uma coisa sério, Maricota.

    Meu desencanto era tão doloroso que me pus a dar conselhos figidos, mascaradndo o sarcasmo com um tom de prudência:

   - É, Maricota, paixão é uma coisa séria. Tome cuidado com esse português. A gente lê sempre tantos crimes nos jornais!

   - Adeus...

   - Adeus, Simão.

   Pôs-se a rir.

   - De que é que você se ri?

   Sacudia-se toda, numa violenta expansão. parecia que estava sob a obsessão de uma ideia comicíssima.

   - Vá, Maricota, explique o que é isso.

    Ela pode falar, afinal:

   - Você se lembra daquelas nossas maluqices de noite?

   Senti-me envergonhado pela evocação.

   - Você era danadinho,Simão....

Eu tinha apenas nove anos naquele tempo....Não sabia o que fazia. Despudorada, Maricota vinha reabrir agora o esquecido cofre das minhas lembranças de pequeno Stendhal iguapense. Oh! o balbuciar do instinto, as ansiedades vagas, os gestos vagos na meninice intuitiva!Todos os homens da cidade provocavam Maricota. Boliam com ela, quando passava. Era uma atmosfera, ardente em torno da minha pajem. Só eu, porém, conhecia a sua cálida nudez de chocolate, só eu conhecia a sua cálida nudez de chocolate, só eu conhecia o cheiro excitante, que vinha daquele coro. Como o escuro me fizesse medo, muitas noites eu descia da cama e pedia para dormir junto dela. Ficava acolhido, confortado, sob o peso dos braços grossos que me envolviam. Tinha uma sensação confusa, indistinta, de que aquele volume enorme de carne quente encerrava uma coisa desconhecida para mim, exercia uma função que escapava ao meu entendimento, mas que o meu sangue agitado queria adivinhar. Maricota, então apertava-me, beijava-me. Minhas pequeninas mãos apalpavam-na toda, agarravam-lhe carnes úmidas, no silêncio da casa adormecida.

   - Não vá cair na escada,

  - Não há perigo.

 - Então, boa-noite, Simão. Apareça.

 - Sim, Maricota.

   Abriu-me a porta.Saí para o ar gelado da noite.

  - Até outro dia, Maricota.

   - Quando escrever para D. Candoca, dê lembranças minhas.

        Ah, isto era o cúmulo! Segui tonto. Dei um esbarrão num preto que vinha pela calçada. Eu ia como que bêbedo. Dentro de mim havia mágoa, saudade, pena, revolta...A vida!

 Um  frio ganhava-me as pernas, endurecendo-as. Lembrei-me então de que tinha os sapatos encharcados. Bonito! Agora não escapava. Ia apanhar um resfriado! Belo negócio.

   Rápido, entrei no Botequim. Cheguei ao balcão e pedi um conhaque. O garção foia ao  armário e tirou a garrafa: ia já me servir quando, picado por um desejo novo, suspendi a ordem. Hesitei comigo....

   Não há um reservado aqui?

   - Ali no fundo, por aquela porta. Quer que o sirva lá?

   Hesitei mas....Enfim, aquela noite estava mesmo perdida para a retidão e a virtude. O ambiente do botequim( decerto havia bêbedos no reservado) ia fazer-me bem. O meu acabrunhamento pedia álcool, álcool....

        - Leve  lá a garrafa;

   E embarafustei pela porta do fundo.    

        FIM

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Peregrino Júnior - Gapuiador


























 O Brasil acabou lá atrás. O Brasil e o mundo . Ali é o inferno. Inferno verde? Qual o quê!  Literatura...Inferno de terra podre, de águas envenenadas, de espectros miseráveis e tristes.

   No ventre encharcado daquela terra empapada d'água onde o pelo hirsuto da floresta é povoado de bichos feios, os igapés lentos e turvos deslizam como negras jiboias de morno lombo oleoso.

  O  rebotalho humano que ali agoniza é a borra dos seringais abandonados, o resíduo imprestável da prosperidade que morreu com a borracha.

  Nasceram de um amor anônimo de acaso. São filhos da luxúria passiva das  caboclas errantes dos seringais e dos apetites recalcados dos seringueiros enfermos e dos  regatões sem pátria.

   Foi assim que arribou neste mundo Chico Domingos. Não conheceu os pais.   

             Não sabe donde veio nem para onde vai. Já depois que havia parado o corte do seringal. Seringueira pra ele é planta estéril e inútil.

    - Pra que cortá seringá? Borracha não vale  um vintém de mel coado....

   A terra, porém, não deixa ninguém morrer de fome naquele mundo de Deus; assaí, popunha, cacau não faltam no mato. E só subir o iguarapé e trepar nos paus... Na frente da barraca o peixe brinca contente no putirum das piracemas, ao alcance do anzol. O busto, porém, é amplo e rijo. E na cara linfática de empalemado, cor de tauá, onde a barba é uma penugem ridícula, os olhos miúdos são apagados e enespressivos: só servem mesmo para a função fisiológica de enxergar.

   Chico Domingos, abandonado na faiscação tropical daquele sol trepa na mata e espia da copa decotada das palmeira, fazendo caretas de luz na barriga oleosa do igarapé, não tem olhos para ver a surpresa espetacular da Natureza. 

  Indiferente a tudo, Chico Domingos, que só conhece  na vida a mais elementar das alegrias instintiva - a  alegria de comer - conseguiu no entanto um dia animar as sua pupilas opacas com uma visão de encantamento  Vicência.

  Descobriu a curiboca numa beiira de rio e engraçou-se dela.

  - Qué casá, cum eu, muié?

  - Se sinhô quisé, eu quero...

   Mas a curiboca não quis ie à cidade para casar ao padre.

   - Vá sozinho, seu Chico.

 - Mas assim o padre não casa nós...

  - Ora se casa, seu Chico!...Leve um paneiro de castanha  e uma pele de borracha, pro sacristão, seu Chico, e deixa está, que ele casa!

   A cabocla era ladina. E era simpática. Tinha vindo da cidade com um regatão, que, enjoado dela, a largara afinal  naquela beira do igarapé, onde Chico Domingos a encontrara por acaso e fortuna.

   Ela não queria ir à cidade com medo de encontrar o regatão, ou o pai, de cuja companhia o turco a tirara. Preferia ficar no sossego da mata.

   Chico Domingos desamarrou a montaria, botou dentro dela um paneiro de castanha e uma pele de borracha, e mupicou pra cidade.

  Mal chegou na igreja, o caboclo disse sem rodeios a que ia: queria se casar.

  - E a noiva?

- Ela não veio não...

  Mas foi logo mostrando ao sacristão os argumentos decisivos:

  - Eu trago aqui, mode pagá o casamento, este paneiro de castanha e esta pele de borracha, cunhado!

  O sacristão compreendei tudo - e não relutou; foi chama o vigário.

   - Ajoelhe-se, meu filho! E me diga como se chama você e sua noiva.

  - Eu me chamo Francisco Domingos de alcunha Chico; mas ela eu não sei como se chama não. È conhecida lá em riba por Vicência do Regatão.

   - E onde é que ela está? Preciso saber o rumo certo...

  - É na direitura do Igapé Grande.

   E indicou com um gesto largo a direção da sua barraca.

   O padre repetiu o nome dele e o da noiva, misturando-os com um grave palavreado de frases latinas, e tomando um ar concentrado de quem pretende varar as distâncias com o pensamento, abençoou com a mão generosa, no rumo indicado.

   O noivo, para que o casamento tivesse efeito mais seguro e o regatão não lhe pudesse mais disputar a mulher, corrigiu em tempo:

   - Seu vigário, pra via das duvidas, quebre a mão um bocado mais pra esquerda...

   E Chico Domingos e Vicência do Regatão, casados  pelo rumo, foram tranquilos na solidão verde da sua barraca.

 Tiveram um filho. O tejupar ficou mais alegre. E a miséria doméstica, que era repartida entre o casal, um cachorro e meia dúzia de xerimbabos, teve nesse dia mais um sócio: Elesbão.

   Elesbão cresceu, sapiranquento e pançudo, na mesma barraca triste daquele beiço de barranco. Aprendeu a nadar na porta da casa e na porta da casa aprendeu a remar, a pescar, a caçar  e a beber cachaça. Era o companheiro inseparável de Chico Domingos. E p ajudava que nem gente grande. Agarrado sempre com ele que só mucuim.

   A barraca escanchada na barranca desdentada do rio,  tinha todas as vantagens: água ao alcance da mão pra lavar os mulambos e as panelas; lameiro vasto para os xerimbabos; peixe farto para o anzol; e a montaria sempre amarrada à porta. Era só o trabalho de esticar o braço...

  Quando as águas baixam, que o rio no caixão, Chico chama o filho e o cachorro, pula pra dentro da montaria, rema para os aguaçús conhecidos, atira a linha  - e  tem o almoço certo. Enquanto espera que o peixe belisque a isca, toma chité e cachaça. Os mosquitos, dançando em volta dele e do curumim, azucrinam a solidão do rio com a sua canção de embalar...

   Quando o paneiro está cheio de tucumarés e aparaís, ele ruma a montaria pra barraca- chaco-chaco-chaco - em remadas rápidas, cantando com o filho, em cadência frouxa, uma canção mole e sem  sentido:


    Montaria deles é que nem asa de pássaro, ligeira e maneira. E quando um enterra o jacumã n'água, o outro  enterra também, sempre "mupicando" certo.

  A cocorada na beira do igarapé, os pés atolados no tijuco e as mãos imundas de sangue e lama. Vicência estrípa o pescado a golpes rápidos do quicé, atirando as gueiras e as víceras à fome paciente e resignada do cachorro Panema, que ao lado se coça melancolicamente, numa resignação silenciosa, sob a vaia incômoda da mosqueira importuna.

     Estirando na rede, o filho ao lado  num silêncio contemplativo de fatalismo, Chico Domingos espia pela porta aberta o igarapé que  corre manso lá fora, levando no lombo preto e luzidio a imagem decorativa das primeira estrelas... De quando em vez, passa de bubuia o garrancho florido de um matupá, onde as aves de plumagem pura navegavam tranquila rio abaixo.

   - Achí, até parece a boiúna!

 O peixe cozido na água e  sal, com um prato de pirão de farinha d'água, eis o banquete triste daquela família sem exigências e sem ambições. Só um gesto ágil tem eles na vida: é na mesa, quando atiram dentro da boca com as pontas dos dedos, os punhados gostosos de farinha d'água. Tem outro: quando amassam o " capitão" de mojica pro curumim engolir.

     Elesbão creceu tão pegado ao pai, que Chico Domingos não sabia arredar uam palha sem o filho. A montaria não se equilibrava n1água sem o peso deles dois. E o remo de Chico Domingos não tinha ritmo quando na popa de canoa não corta a água o jacumã de Elesbão.  Vicência às vezes tinha até ciúmes:

   - Chico mundiou o curumim de um jeito, chega deixou ele panema.

  Mas pai e filho só sabiam andar encangados; eram unha e carne. pareciam mais dois irmãos mangauas. Não se apartavam nunca. Onde um ia,levava o outro- fosse à pesca, fosse à caça, fosse no iguarapé, fosse na mata. È o curumim, apesar de pitorra e molongó, era um companheiro ágil, resistente e corajoso.

  O pessoal da vizinhança caçava:

   - O água-morna do Chico até pra comê precisa da ajuda do curumim!...

   Malgrado ter andado uns dias encarangado, Chico Domingos resolveu ir ao lago buscar qualquer coisas para comer. O Último repiquete do rio - arrastando na barriga inchada o lodo vermelho das 

"terras caídas" e os troncos feridos das árvores mortas - tangera o peixe pra longe. Não havia mais piracemas fervilhentas no perau do igarapé. E o terreiro da barraca não tinha mais pichhé dde peixe. A fomitura começava a apertar a barrriga da família.

   - Vamos gapuiar na mupeia lá de riba, curumim!

  Vicência espantou-se da coragem dele:

  - Você vai gapuiar, será?

  - E bem....

   Atirou no bucho vazio uma pussanga de pajauaru e cachaça, esqueceu a caruara que o botara molongó, pôs de banda  a mofineza que lhe quebrava a o corpo, chamou curumim, desamarrou a montaria  - e varou o igarapé,águas acima, em busca de peixe e castanha, que só podia encontrar nas mupeías e iguaçais das cabeceiras do rio.

    Agachado na proa da montaria, o traseiro apiado nos calcanhares, descarregando o peso todo do corpo nas pontas dos dedos dos pés, Chico Domingos vai espiando água, pra ver onde o peixe ciriringa. O curumim, na popa, de jacumã na mão, é o jacumaúba do barco, e não tem canso de lhe dar andamento e dir.

   De quando em vez, enjoado de tanto  bater água saru, Chico, arregaçando as calças, deixava a montaria e pulava e canarana, com água pelos joelhos, pra ver se mariscava alguma coisa. Perdido no meio dos matupás, só a cabeça  dele  aparecia, tesa  e calada ue nem uma imagem.

    Mas estava mesmo panema; nem o pari que eles botaram na boca da mupeúa não conseguiu dar nada que prestasse. A água estava saru: não batia nada...

   Após dois dias de luta estéril na mupeúa estorricada sem achar peixe, eles amarraram a montaria na barranca e vararam a mata em busca de alimento.Alguns cachos de assaí e uma cuia d'água lhes deram cabo da fome e da sede. Mas a bombeira era tamanha, que não tiveram  coragem de voltar pra casa. Chico domingos acamou umas folhas coma s mãos e deitou-se no chão, na sombra silenciosa da floresta, para descansar os ossos.

   - Estou tão panema, e malafento, filho, que não dou mais acordo de mim!

    - Estazinho doente , pai? Antão, vortemo pra trás!

   - É nada não, parente. Peresque lombeira da labuta.

   Mas vencido pela fadiga, derrreou o corpo no chão, pegando no sono de repente.

   Era à boca da noite. O sol se escondera por trás da mata espessa, e as estrelas que abençoavam o silêncio da solidão verde brincavam esconde-esconde no remanso das águas rasas da mupeúa.

    Elesbão, com a cara piririca de assaí, ficou vadiando perto do pai, até que a noite, coagulando sobre a mataria as sombras negras e compactas, apagou os olhos das pessoas e das coisas

   O curumim, vendo em volta de si apenas a iluminação intermitente dos caga -fogos, estremeceu num súbito calafrio e cutucou o pai, para acordá-lo.

   - Pai Chico, acorde que eu estou com, frio...

   Chico Domingos não respondeu. E Elesbão, agarrando-o pelo braço, para despertá-lo, sentiu-lhes as  carne geladas e imóveis. estava morto!

     O Curumim, engrolando na garganta seca os soluços de dor  de medo, acocorou-se ao lado do corpo, e velou-o a noite inteira.

   Mal riscou na mata a madrugada policrômica da Amazônia, sonora de pássaros e úmida de orvalho, Elesbão pulou pra dentro da montaria, tentando descer o igarapé, à procura de gente ou de socorro. Mas cedo se convenceu da inutilidade do seu esforço: não tinha mais talento pra remar e a sua inexperiência não lhe permitia navegar em rumo certo no labirinto difícil daqueles furos e igarapés, que ora se anastomosavam, ora se dicotomizavam, aqui aglutinando paranás, ali afogando florestas, numa desordem de caos.

   Receando perder-se, voltou ao lugar onde deixara o corpo do pai. Trouxe da montaria o terçado - e ali ficou, dia e noite, numa vigília macabra, velando o cadáver que apodrecia. O cheiro do corpo podre atraía urubus e bichos vorazes. Mas Elesbão, com o terçado em punho, lutava bravamente contra uns e outros, espantando-o com gritos sinistros de terror e de ódio:

   - Chô, bicho! Isto aqui não é carniça não...

   Os tapurus e as varejeiras iam desfibrando as carnes miseráveis de Chico Domingos, em cujas entranhas podres fervilhavam num alvoroço. E o menino, numa alucinação sem remédio, era o espectador único e forçado daquela cena dantesca. Devorado pelos vermes, decomposto pela podridão, o corpo de Chico Domingos, inchado e roxo, perdia a forma, estourava, desconjuntava-se, mutilava-se lentamente, com o arcabouço do esqueleto à mostra e as víscera túmidas a escorrer uma salmoura infecta.

  Os dia passavam, e o menino, no horror do espetáculo dramático, era um guarda silencioso, e resignado daqueles restos podres da sua carne e do seu sangue, que os bichos do mato incessantemente tentavam devorar e mutilar com uma voracidade aterradora. Quando a noite da mata engolia o sol, Elesbão tremia de terror, numa certeza de ver repetir-se a ameça brutal a que ja habituara os seus olhos pisados de espanto e fadiga: uma onça famélica, que uivava e ciscava furiosamente quebrando galhos no bambual com os pés ágeis e macios, que estalavam pisando os sacais.

   - Saí, condenada! - berrava, aterrado, o curumim, brandindo no ar a lâmina suja do  terçado. E o animal, acuado com os gritos desapoderados do caboclo, fugia sem fazer-lhe mal, não tocando no corpo decomposto que os vermes da putrefação iam liquidando sem pressa numa obra tenaz de destruição minuciosa e implacável.

   Estranhando a ausência prolongada do marido e do filho, que havia mais de duas semanas não davam sinal de vida. Vivência botou a boca no mundo e pediu socorro à vizinhança.

   Uma montaria partiu, com Vicência e os vizinhos, em busca do Chico Domingos e Elesbão, igarapé acima, sem rumo certo.

   Aqui, ali, numa forquilha de rio, eles paravam os remos, abicavam à beira d'água e gritava pro mato, com a mão em concha na boca:

   - Seu Chico! Oô seu Chico! ...Elesbão! Oô Elesbão!...

   E o apelo angustiado perdendo-se impotente na amplidão verde da mataria braba, fundia-se no quirir mal-assombrado e apagava-se sem eco na distância misteriosa e infinita.

  Depois de muito errarm assim à toa, varando igarapés e atravessando furos, penetrando igarapós e cortando mupeúas, ele dera d ecara inesperadamente com uma montria amrrada na ribanceira. Aproximaram-se: era a montaria de Chico Domingos e estava vzaia e abandonada.

  O grito dolçorido e trágico furou a mata com mais energia e confiança.

  - Seu chico!...Oô seu Chico! ...Elesbão!....Oô Elesbão....

   E, como um eco sinistro do outro mundo, de dentro da mata silenciosa veio como resposta apenas um soluço débil de desespero. Era Elesbão que já não tinha forças para gritar....


                FIM  ( Histórias da  Amazônia)




gapuiador
/ô/

adjetivo substantivo masculino
  1. AMAZONAS
    que ou aquele que pesca nos baixios, ao acaso.





LADINA

Significado de ladino. Esperto; que expressa muita inteligência, esperteza, agudeza de espírito. Espertalhão; diz-se da pessoa astuciosa que age desonestamente.   




adjetivo substantivo masculino
  1. 1.
    que ou aquele que regata ou regateia muito.
  2. 2.
    substantivo masculino
    aquele que compra por atacado e vende a retalho.



Paneiro de castanha




Sapiroquento
 e um adjetivo.
adjetivo é a palavra que acompanha o nome para determiná-lo ou qualificá-lo.

Os adjetivos "sapiranguento" e "sapiroquento" se aplicam aos olhos atacados de sapiranga ou sapiroca, isto é, aos olhos inflamados ou sem pestana .


substantivo masculino
BRASILEIRISMOBRASIL
  1. 1.
    animal de criação ou estimação; mumbavo.


 tejupar.

 Mucambo (cabana). Mucambo ou mocambo, palhoça ou tejupar são denominações dadas a moradias ...


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

oi

 OI. Amigo eu desejo que tu fique bem e com saúde.

Orígenes Lessa - SHONOSUKÉ Obras primas do Conto Brasileiro

 





Clemente Vidal  deixou o carro à porta do bar e entrou para um rápido aperitivo. Sempre era melhor estar ali à vontade solitário na sua mesa, do que ouvir o matracar odioso e pretensioso dos seus colegas de clubes encharutados e maledicentes. Passeou o olhar preguiçoso pela modéstia do bar, pelos bebedores esparsos, bebendo pelo gosto simples de beber, sem imposições sociais, sem determinismos elegantes.

   Surge uma figurinha amarela. Dois traços telegráficos, fingindo olhos. Uma ligeira elevação, com dois furinhos, fazendo nariz. Boca larga e branca, os dentes salientes.

   - Retrato, senhor?

  Clemente Vidal examinou-o com atenção, enquanto a figurinha estranha, sem colarinho, camisa suja, paletó enrolado, um bonezinho sobre o cabelo pretíssimo,insistia, mostrando uns calungas.

   - Retrato,, senhor?

  Clemente mediu-o com um sorriso.

  - Quanto?

  - Cinco mil-reis.

   - Faça...

   O japonesinho retirou do bolso o crayon, pôs sobre o joelho uma folha de papel, fixou um olhar apertadinho no cavaleiro elegante, e começou a riscar rapidamente no papel fumaça. Um , dois, tês riscos. Zás, zás, zás...Lá saía o homem, com a curva aquilina do nariz, as olheiras empapuçadas, o  ar desdenhosos de olhar e sorrir, o charuto grande a ajudar o jeito orgulhosos da boca.

  Enquanto riscava, Clemente Vidal o examinava. Era uma figura comum de caricaturista internacional, a cinco ou dez mil-réis a careta, desses vagabundos que se aguentem por qualquer coisa e em qualquer terra, armados com um crayon barato e uma folha barata de papel cartão.

    - Gosta, senhor?

   Clemente gostou. Pelo preço...Pela extravagância da ideia....Aquilo seria Natural num bar ou num cabaré de Paris ou de Londres. Num de São Paulo, à hora movimentada do triângulo, era uma originalidade sua que havia de ser comentada com sucesso no seu clube...

   - Você quer beber?

   - Obrigado, senhor.

   Ele insistiu. Pôs o japonesinho a seu lado, fez vir um "americano", começou a correr os outros desenhos que ele trazia, como amostra. Curiosos, um traço  interessante, uma certa originalidade, uma linha muito  pessoal. Quem seria ele? Indagou. O rapazinho informou, sumariamente com um sorriso. Filho de operários. Seis anos de Brasil. Família faminta. Antigo pasteleiro, ex- vendedor de amendoim, aprendiz fracassado de pedreiro, garção sem sucesso. Um grande amor pela arte. Sem estudos, sem dinheiro. Um amigo desesperado dos livros. Um pouquinho de inglês. Um português bastante desenvolto. Leituras. Uma coleção inútil de desenhos. Agora, como artista ambulante, geralmente almoçando e jantando, coisa  que muito tempo desconhecera.

   Clemente  Vidal, interessado, começou a ver na cara sem expressão do rapaz a possibilidade de uma blague(piada) formidável. Riquíssimo, culto, várias viagens à Europa, várias cópulas em Paris, várias bebedeiras em Roma e Veneza. Vidal era um Mecenas em São Paulo. Conhecia e discutia arte. Centenas de quadros e estátuas da sua galeira haviam alimentado muito artista patrício e  provocaram a admiração e o espanto dos amigos. Fazia  estudar dois cantores pobres em Paris, alimentava e vestia, em Roma, três futuros gênios da pintura indígena. Isso, do seu bolso.À custa do estado, quando senador precoce e preclaro, facilitara os estudos de dezenas de outros, e era olhando como pai da futura arte brasileira, como um animador , como um Médicis ou figurão da Renascença, espantosamente surgido no país da maledicência. Papai Vidal, como o chamavam. Seu nome patrocinava todas as mostras de arte, seu dinheiro financiava concertos, sua palava estimulava os estreantes, sua adega embebedava artistas, críticos e admiradores. Tudo aquilo fora feito a sério. Não estimulava por pilhéria, não animava por blague. Quando falava em arte, estrangeira e  mesmo  nacional, quando discutia cubismo, dadaísmo, futurismo, surrealismo, coisas da Rússia, de Paris ou da favela, era sempre como entendido, como autoridade, como crente. Mas olhando  aquele japonesinho, que devorava muito canhestro as empadas que fizera vir, Clemente Vidal começou a imaginar uma blague, a primeira que se aninhava nos seu cérebro desenhador prematuro. E se lançasse aquele rapaz? E se  lançasse mãos daquele garoto para pregar uma peça infinita, um bluff imortal na papalvice incomensurável do público? Vidal sabia, no fundo, que as admirações literárias e artísticas, como as glórias mais incondicionais, são efeito simplesmente da sugestão e do esnobismo.

   Ele mesmo admirara assim muita gente e fora forçado a pagar milhares de francos por obras de arte em que francamente nada havia senão uma obrigação esnobe de admirar. Era coisa assinada por fulano,por sicrano. Paris dizia que fulano era gênio. Beltrano clamara, em Roma, que sicrano compendiava e empacotava a história da arte.E lá ele e os  outros conhecedores se haviam forçados ao "colosso", "extraordinário", "genial", ao desembolso dos pacotes de liras ou de francos. Um pouco de vaidade pessoal acariciavam ainda o seu pensamento. Ele tinha prestígio. Ele era ouvido. Lançara artistas de valor. Parte por mérito seu, parte maior pelo mérito deles. Mas aquele japonesinho, sem valor pessoal, se ele o fizesse, era obra sua.pilhéria inconfundível.

  Sorria, enquanto falava o rapaz. A ideia tomava vulto. Havia de lançá-lo. Dentro de um ano, ele seria famoso, seria aclamado como gênio, venderia quadros por fortunas e então Clemente Vidal contaria a toda gente a  extensão e eo sentido da peça que pregara ao público.

   - Como se chama você?

   - Shonosuké Shini...

   - Basta Shonosuké. Não é preciso mais. Escute: Você é um grande artista. Apareça amanhã em minha casa....

   Deixou-lhe um cartão e saiu.

   Clemente Vidal vestiu o rapaz, fotografando-o antes com os seus trajes miseráveis e, antegozando a pilhéria, chamou três amigos de confiança,  contou-lhes os planos expôs a forma de ação, instalou o japonês num " atelieir" e iniciou a publicidade.

    Dias depois começaram a sair as notícias. Um jornal da tarde publicava uma longa reportagem romanceada  sobre o artista estranho e original que passara fome, que vendera pasteis, que fora garção, mas trazia em si a posse de uma arte vigorosa, fortíssima, pessoal, liberta de todos os moldes clássicos( era tão fácil quem não os conhecia...) diferentes de tudo o que faziam, de Apele a Foujita, com todos os altos e baixo da escala, todos os artistas presentes e passados.

    O jornalista era do conchavo. Agia de acordo com o plano traçado. Lançara a coisa como uma reportagem imprevista, cheia de afirmações vagas, sem responsabilidade, falando em coisas gerais,, arte pessoal, ausência de influência clássicas, fuga aos modelos, tradicionais, traço original.

      Uma semana depois vinha um crítico. dizia ter visitado o "atelier" de Shonosuké. Não se comprometia também, mas aproveitara a ocasião para desancar violentamente a arte nacional, insinuar perfídias sobre a mulher de um pintor em voga, ridicularizar a Academia Nacional de Belas Artes, e maldizer o público pela sua indiferença das coisas do espírito. Sobre Shonosuká, mesmo, pouca coisa. Mas o leitor desprevenido ficava imaginando que o artista humilde era tudo aquilo que os outros não eram.

  O diretor de um terceiro jornal, e terceiro iniciado na tramoia, aceitou logo algumas ilustrações em página nobre feitas pelo rapaz.

  Começaram a aparecer as notas de redação, as sugestões aos cronistas desprevenidos, por parte da direção. Na crônica social, na página de arte, nas mundanidades surge o nome de Shonosuké.


  Um cronista de coração sensível, sabendo-lhe das horas de fome e da origem humilde, aclamou-o, sem lhe ter visto os quadros, um futuro  Foujita, o Foujita brasileiro. O jornal tem grande circulação. O homem tem admiradores. A bobagem é lida. A frase pega.

    E Clemente Vidal e seus amigos, de acordo com a combinação prévia, começam a falar com seriedade no pintor, que trabalha com entusiasmo, inspirado e surpreso, produzindo febrilmente.

    Dentro de um ano - garantira Vidal - dentro dum ano, Shonoskè será tido como gênio por todo São Paulo...

  A profecia prometia realizar-se. Por parte pela sugestão, parte pela necessidade de agradar, toda a imensa confraria da sua galeria de arte e especialmente da sua adega começava a concordar. Comentava-se as ilustrações publicadas. Apresentações assinadas por Vidal abriram ao moço as portas de poucas revistas da cidade. Os representantes das revistas cariocas enviavam para o Rio reproduções de desenhos seus. D. fulana, d. fulaninha, que entendiam de arte, falavam com reserva, mas já falavam no japonês.

   - Ele promete...

   Quem ouvia dizer " ele promete" ia dizer mais adiante que ouvira: "ele é um colosso".

   E os jornais insistindo. E as notas sucedendo-se. E a seriedade dos conjurados. E o japonesinho trabalhando.

           @@@


 Veio a exposição. Foi um escândalo, um clamor. Vidal ordenara preços altíssimos nos quadros. Os estudos mais modestos custavam seiscentos, oitocentos mil réis. o preço impunha....E, para dar o exemplo, no dia da inauguração Vidal adquiria dois quadros, um de  15 e outro de 12 contos, que o artista, como era natural não cobraria. Mas a notícia correu, a massa acreditou, a exposição encheu-se, os comentários foram rumorosos, a imprensa acorreu, e as notícias, as críticas, as discussões, multiplicaram-se.

   - Para o Vidal pagar aquela fortuna...

   - Para o jornal dizer aquilo...

   Choveram os compradores. Ninguém queria ficar atrás. A galeria de d. fulana, as paredes de d, fulaninha tinham que se ornamentar com outros contos de reis em poucos dias estava tudo vendido. Shonosuké enriquecera espantado boquiaerto sem poder compreender

            E as discussões em torno de seu nome. - O jogo das cores na arte de Shonosuké ...Shonosuké e as mulheres...Os coelhos de Shonosuké...O preto e o branco no pincel de  Shonosuké...a expressão de sentimentos na obras de um pintor nipônico....Ainda é possível o gênio? - e outros temas e problemas atulhavam jornais e revistas.

    Havia detratores, é claro. Artistas, críticos, professores. Mas via-se bem: invejosos, despeitados, passadistas, fósseis, cérebros obtusos, impotentes do espírito, eunucos da arte..

    Fulano falava porque nunca vendera um quadro por 500. Aquele outro berrava porque tivera a exposição às moscas. O crítico tal protestara porque não lhe ofereceram dinheiro.

  E assim os verdadeiros entendidos se encarregavam de defender a obra do artista imprevisto e vitorioso.

  Um ano depois, já não havia mais dúvidas. O Foujita nacional vencera em toda a linha. Não somente São Paulo, todo o país acreditava. Até de Paris o chamavam. Foi quando Clemente Vidal e seus amigos resolveram desmascarar a troça. Contar tudo. Revelar a pilhéria. Mostrar que haviam passado uma peça infinita, memorável, na papalvice do público. provar que pouquíssimos não haviam caído. Mostrar que até Paris fora no conto... Clemente Vidal aguardava com uma volúpia sem nome o dia da revelação, que chegara mesmo a assustá-lo. A glória criada era realmente impressionante. Não ficava bem a um homem como ele, cheio de responsabilidades políticas, respeitado nos meios artísticos, zombar do público- que valia dizer: do seu eleitorado - com uma blague assim. Talvez não ficasse bem. Mas a glória de realizar uma partida assim inédita e o respeito pelo seu nome, que ficaria prejudicado quando se estudasse a obra de Shonosuké, deram-lhe a coragem final para revelar. Havia alguns que não tinham concordado. Esses fariam côro em seu favor, aclamando o seu espírito e vingando-se nos otários. Só d. fulana e d. fulaninha não haviam de gostar, mas essas não gostavam nunca de tudo o que o senador prematuro praticava. Não fazia mal...

         @@@


 Quando a notícia rebentou, o escândalo chegou a Abalar paredes. Houve gargalhadas, insultos e censuras:

    - Isso não se faz...- disse um crítico que caíra...

  - Isso é um desrespeito para cm o publico...

   Um cabo eleitoral que compara quadros deu um murro noa r:

   - E pensar que é um senador. Mas o eleitorado há de vingar-se.

  - Coisa mais sem graça...- disse d. fulana.

  Mas quem mais se divertiu foram os passadistas, impotentes, fósseis, eunucos e outros pejorativos, de acordo com os que haviam admirado. Vingavam-se agora. Humilhavam os compradores, os apologistas, os ingênuos.

   - Passadismo, heim? Impotência, não é?

   E um rumor de gargalhadas se alastrava pelos salões elegantes, pelos clubes, pelas redações. Tão grande, que deixou quase despercebido o suicídio do japonesinho, no seu "atelier" abandonado.

   @@@

 O interessante é que Shonosuké era realmente um homem de gênio. 



                             FIM        






Sobre a obra do autor: A espontaneidade e frescura da sua prosa, a agudeza das suas observações, a finura da "verve" e habilidade que punha na fidelidade das suas fotografias instantâneas de pedaços da vida diária. 

substantivo feminino
  1. 1.
    entusiasmo e inspiração que animam a criação e o desempenho do artista, do orador, do poeta.
    "a v. de Picasso e de suas obras"
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    graça ou vivacidade que caracterizam uma personalidade, ou o que ela produz.

  3. Um pouco mais lirismo para  suavizar o realismo descaridoso e a ironia perversa  com que impregna quase todos os seus trabalhos. Um pouco mais de mentira à dura e áspera realidade.



substantivo masculino de dois números
  1. indivíduo rico que protege artistas, homens de letras ou de ciências, proporcionando recursos financeiros, ou que patrocina, de modo geral, um campo do saber ou das artes.


cópula. Significado de Cópula. substantivo feminino Ligação, união. O ato sexual; coito, copulação. Linguística Palavra que une dois termos de uma oração ou ...



preclaro
adjetivo
  1. 1.
    de origem nobre; distinto, ilustre, insigne.
    "vem de p. estirpe"
  2. 2.
    que se distingue pelo mérito, pelo saber; ilustre, notável, famoso.

  3. "p. mestre"

PASSADISTA
caturras, retrógrados, saudosistas.

Caturra.

 substantivo masculino e feminino Pessoa teimosa, de opiniões extravagantes, que gosta de contradizer e de discutir. Pessoa apegada a usos e coisas antigas. [Brasil] Planta da família das euforbiáceas
  1.