sexta-feira, 16 de abril de 2021

Peregrino Júnior - Gapuiador


























 O Brasil acabou lá atrás. O Brasil e o mundo . Ali é o inferno. Inferno verde? Qual o quê!  Literatura...Inferno de terra podre, de águas envenenadas, de espectros miseráveis e tristes.

   No ventre encharcado daquela terra empapada d'água onde o pelo hirsuto da floresta é povoado de bichos feios, os igapés lentos e turvos deslizam como negras jiboias de morno lombo oleoso.

  O  rebotalho humano que ali agoniza é a borra dos seringais abandonados, o resíduo imprestável da prosperidade que morreu com a borracha.

  Nasceram de um amor anônimo de acaso. São filhos da luxúria passiva das  caboclas errantes dos seringais e dos apetites recalcados dos seringueiros enfermos e dos  regatões sem pátria.

   Foi assim que arribou neste mundo Chico Domingos. Não conheceu os pais.   

             Não sabe donde veio nem para onde vai. Já depois que havia parado o corte do seringal. Seringueira pra ele é planta estéril e inútil.

    - Pra que cortá seringá? Borracha não vale  um vintém de mel coado....

   A terra, porém, não deixa ninguém morrer de fome naquele mundo de Deus; assaí, popunha, cacau não faltam no mato. E só subir o iguarapé e trepar nos paus... Na frente da barraca o peixe brinca contente no putirum das piracemas, ao alcance do anzol. O busto, porém, é amplo e rijo. E na cara linfática de empalemado, cor de tauá, onde a barba é uma penugem ridícula, os olhos miúdos são apagados e enespressivos: só servem mesmo para a função fisiológica de enxergar.

   Chico Domingos, abandonado na faiscação tropical daquele sol trepa na mata e espia da copa decotada das palmeira, fazendo caretas de luz na barriga oleosa do igarapé, não tem olhos para ver a surpresa espetacular da Natureza. 

  Indiferente a tudo, Chico Domingos, que só conhece  na vida a mais elementar das alegrias instintiva - a  alegria de comer - conseguiu no entanto um dia animar as sua pupilas opacas com uma visão de encantamento  Vicência.

  Descobriu a curiboca numa beiira de rio e engraçou-se dela.

  - Qué casá, cum eu, muié?

  - Se sinhô quisé, eu quero...

   Mas a curiboca não quis ie à cidade para casar ao padre.

   - Vá sozinho, seu Chico.

 - Mas assim o padre não casa nós...

  - Ora se casa, seu Chico!...Leve um paneiro de castanha  e uma pele de borracha, pro sacristão, seu Chico, e deixa está, que ele casa!

   A cabocla era ladina. E era simpática. Tinha vindo da cidade com um regatão, que, enjoado dela, a largara afinal  naquela beira do igarapé, onde Chico Domingos a encontrara por acaso e fortuna.

   Ela não queria ir à cidade com medo de encontrar o regatão, ou o pai, de cuja companhia o turco a tirara. Preferia ficar no sossego da mata.

   Chico Domingos desamarrou a montaria, botou dentro dela um paneiro de castanha e uma pele de borracha, e mupicou pra cidade.

  Mal chegou na igreja, o caboclo disse sem rodeios a que ia: queria se casar.

  - E a noiva?

- Ela não veio não...

  Mas foi logo mostrando ao sacristão os argumentos decisivos:

  - Eu trago aqui, mode pagá o casamento, este paneiro de castanha e esta pele de borracha, cunhado!

  O sacristão compreendei tudo - e não relutou; foi chama o vigário.

   - Ajoelhe-se, meu filho! E me diga como se chama você e sua noiva.

  - Eu me chamo Francisco Domingos de alcunha Chico; mas ela eu não sei como se chama não. È conhecida lá em riba por Vicência do Regatão.

   - E onde é que ela está? Preciso saber o rumo certo...

  - É na direitura do Igapé Grande.

   E indicou com um gesto largo a direção da sua barraca.

   O padre repetiu o nome dele e o da noiva, misturando-os com um grave palavreado de frases latinas, e tomando um ar concentrado de quem pretende varar as distâncias com o pensamento, abençoou com a mão generosa, no rumo indicado.

   O noivo, para que o casamento tivesse efeito mais seguro e o regatão não lhe pudesse mais disputar a mulher, corrigiu em tempo:

   - Seu vigário, pra via das duvidas, quebre a mão um bocado mais pra esquerda...

   E Chico Domingos e Vicência do Regatão, casados  pelo rumo, foram tranquilos na solidão verde da sua barraca.

 Tiveram um filho. O tejupar ficou mais alegre. E a miséria doméstica, que era repartida entre o casal, um cachorro e meia dúzia de xerimbabos, teve nesse dia mais um sócio: Elesbão.

   Elesbão cresceu, sapiranquento e pançudo, na mesma barraca triste daquele beiço de barranco. Aprendeu a nadar na porta da casa e na porta da casa aprendeu a remar, a pescar, a caçar  e a beber cachaça. Era o companheiro inseparável de Chico Domingos. E p ajudava que nem gente grande. Agarrado sempre com ele que só mucuim.

   A barraca escanchada na barranca desdentada do rio,  tinha todas as vantagens: água ao alcance da mão pra lavar os mulambos e as panelas; lameiro vasto para os xerimbabos; peixe farto para o anzol; e a montaria sempre amarrada à porta. Era só o trabalho de esticar o braço...

  Quando as águas baixam, que o rio no caixão, Chico chama o filho e o cachorro, pula pra dentro da montaria, rema para os aguaçús conhecidos, atira a linha  - e  tem o almoço certo. Enquanto espera que o peixe belisque a isca, toma chité e cachaça. Os mosquitos, dançando em volta dele e do curumim, azucrinam a solidão do rio com a sua canção de embalar...

   Quando o paneiro está cheio de tucumarés e aparaís, ele ruma a montaria pra barraca- chaco-chaco-chaco - em remadas rápidas, cantando com o filho, em cadência frouxa, uma canção mole e sem  sentido:


    Montaria deles é que nem asa de pássaro, ligeira e maneira. E quando um enterra o jacumã n'água, o outro  enterra também, sempre "mupicando" certo.

  A cocorada na beira do igarapé, os pés atolados no tijuco e as mãos imundas de sangue e lama. Vicência estrípa o pescado a golpes rápidos do quicé, atirando as gueiras e as víceras à fome paciente e resignada do cachorro Panema, que ao lado se coça melancolicamente, numa resignação silenciosa, sob a vaia incômoda da mosqueira importuna.

     Estirando na rede, o filho ao lado  num silêncio contemplativo de fatalismo, Chico Domingos espia pela porta aberta o igarapé que  corre manso lá fora, levando no lombo preto e luzidio a imagem decorativa das primeira estrelas... De quando em vez, passa de bubuia o garrancho florido de um matupá, onde as aves de plumagem pura navegavam tranquila rio abaixo.

   - Achí, até parece a boiúna!

 O peixe cozido na água e  sal, com um prato de pirão de farinha d'água, eis o banquete triste daquela família sem exigências e sem ambições. Só um gesto ágil tem eles na vida: é na mesa, quando atiram dentro da boca com as pontas dos dedos, os punhados gostosos de farinha d'água. Tem outro: quando amassam o " capitão" de mojica pro curumim engolir.

     Elesbão creceu tão pegado ao pai, que Chico Domingos não sabia arredar uam palha sem o filho. A montaria não se equilibrava n1água sem o peso deles dois. E o remo de Chico Domingos não tinha ritmo quando na popa de canoa não corta a água o jacumã de Elesbão.  Vicência às vezes tinha até ciúmes:

   - Chico mundiou o curumim de um jeito, chega deixou ele panema.

  Mas pai e filho só sabiam andar encangados; eram unha e carne. pareciam mais dois irmãos mangauas. Não se apartavam nunca. Onde um ia,levava o outro- fosse à pesca, fosse à caça, fosse no iguarapé, fosse na mata. È o curumim, apesar de pitorra e molongó, era um companheiro ágil, resistente e corajoso.

  O pessoal da vizinhança caçava:

   - O água-morna do Chico até pra comê precisa da ajuda do curumim!...

   Malgrado ter andado uns dias encarangado, Chico Domingos resolveu ir ao lago buscar qualquer coisas para comer. O Último repiquete do rio - arrastando na barriga inchada o lodo vermelho das 

"terras caídas" e os troncos feridos das árvores mortas - tangera o peixe pra longe. Não havia mais piracemas fervilhentas no perau do igarapé. E o terreiro da barraca não tinha mais pichhé dde peixe. A fomitura começava a apertar a barrriga da família.

   - Vamos gapuiar na mupeia lá de riba, curumim!

  Vicência espantou-se da coragem dele:

  - Você vai gapuiar, será?

  - E bem....

   Atirou no bucho vazio uma pussanga de pajauaru e cachaça, esqueceu a caruara que o botara molongó, pôs de banda  a mofineza que lhe quebrava a o corpo, chamou curumim, desamarrou a montaria  - e varou o igarapé,águas acima, em busca de peixe e castanha, que só podia encontrar nas mupeías e iguaçais das cabeceiras do rio.

    Agachado na proa da montaria, o traseiro apiado nos calcanhares, descarregando o peso todo do corpo nas pontas dos dedos dos pés, Chico Domingos vai espiando água, pra ver onde o peixe ciriringa. O curumim, na popa, de jacumã na mão, é o jacumaúba do barco, e não tem canso de lhe dar andamento e dir.

   De quando em vez, enjoado de tanto  bater água saru, Chico, arregaçando as calças, deixava a montaria e pulava e canarana, com água pelos joelhos, pra ver se mariscava alguma coisa. Perdido no meio dos matupás, só a cabeça  dele  aparecia, tesa  e calada ue nem uma imagem.

    Mas estava mesmo panema; nem o pari que eles botaram na boca da mupeúa não conseguiu dar nada que prestasse. A água estava saru: não batia nada...

   Após dois dias de luta estéril na mupeúa estorricada sem achar peixe, eles amarraram a montaria na barranca e vararam a mata em busca de alimento.Alguns cachos de assaí e uma cuia d'água lhes deram cabo da fome e da sede. Mas a bombeira era tamanha, que não tiveram  coragem de voltar pra casa. Chico domingos acamou umas folhas coma s mãos e deitou-se no chão, na sombra silenciosa da floresta, para descansar os ossos.

   - Estou tão panema, e malafento, filho, que não dou mais acordo de mim!

    - Estazinho doente , pai? Antão, vortemo pra trás!

   - É nada não, parente. Peresque lombeira da labuta.

   Mas vencido pela fadiga, derrreou o corpo no chão, pegando no sono de repente.

   Era à boca da noite. O sol se escondera por trás da mata espessa, e as estrelas que abençoavam o silêncio da solidão verde brincavam esconde-esconde no remanso das águas rasas da mupeúa.

    Elesbão, com a cara piririca de assaí, ficou vadiando perto do pai, até que a noite, coagulando sobre a mataria as sombras negras e compactas, apagou os olhos das pessoas e das coisas

   O curumim, vendo em volta de si apenas a iluminação intermitente dos caga -fogos, estremeceu num súbito calafrio e cutucou o pai, para acordá-lo.

   - Pai Chico, acorde que eu estou com, frio...

   Chico Domingos não respondeu. E Elesbão, agarrando-o pelo braço, para despertá-lo, sentiu-lhes as  carne geladas e imóveis. estava morto!

     O Curumim, engrolando na garganta seca os soluços de dor  de medo, acocorou-se ao lado do corpo, e velou-o a noite inteira.

   Mal riscou na mata a madrugada policrômica da Amazônia, sonora de pássaros e úmida de orvalho, Elesbão pulou pra dentro da montaria, tentando descer o igarapé, à procura de gente ou de socorro. Mas cedo se convenceu da inutilidade do seu esforço: não tinha mais talento pra remar e a sua inexperiência não lhe permitia navegar em rumo certo no labirinto difícil daqueles furos e igarapés, que ora se anastomosavam, ora se dicotomizavam, aqui aglutinando paranás, ali afogando florestas, numa desordem de caos.

   Receando perder-se, voltou ao lugar onde deixara o corpo do pai. Trouxe da montaria o terçado - e ali ficou, dia e noite, numa vigília macabra, velando o cadáver que apodrecia. O cheiro do corpo podre atraía urubus e bichos vorazes. Mas Elesbão, com o terçado em punho, lutava bravamente contra uns e outros, espantando-o com gritos sinistros de terror e de ódio:

   - Chô, bicho! Isto aqui não é carniça não...

   Os tapurus e as varejeiras iam desfibrando as carnes miseráveis de Chico Domingos, em cujas entranhas podres fervilhavam num alvoroço. E o menino, numa alucinação sem remédio, era o espectador único e forçado daquela cena dantesca. Devorado pelos vermes, decomposto pela podridão, o corpo de Chico Domingos, inchado e roxo, perdia a forma, estourava, desconjuntava-se, mutilava-se lentamente, com o arcabouço do esqueleto à mostra e as víscera túmidas a escorrer uma salmoura infecta.

  Os dia passavam, e o menino, no horror do espetáculo dramático, era um guarda silencioso, e resignado daqueles restos podres da sua carne e do seu sangue, que os bichos do mato incessantemente tentavam devorar e mutilar com uma voracidade aterradora. Quando a noite da mata engolia o sol, Elesbão tremia de terror, numa certeza de ver repetir-se a ameça brutal a que ja habituara os seus olhos pisados de espanto e fadiga: uma onça famélica, que uivava e ciscava furiosamente quebrando galhos no bambual com os pés ágeis e macios, que estalavam pisando os sacais.

   - Saí, condenada! - berrava, aterrado, o curumim, brandindo no ar a lâmina suja do  terçado. E o animal, acuado com os gritos desapoderados do caboclo, fugia sem fazer-lhe mal, não tocando no corpo decomposto que os vermes da putrefação iam liquidando sem pressa numa obra tenaz de destruição minuciosa e implacável.

   Estranhando a ausência prolongada do marido e do filho, que havia mais de duas semanas não davam sinal de vida. Vivência botou a boca no mundo e pediu socorro à vizinhança.

   Uma montaria partiu, com Vicência e os vizinhos, em busca do Chico Domingos e Elesbão, igarapé acima, sem rumo certo.

   Aqui, ali, numa forquilha de rio, eles paravam os remos, abicavam à beira d'água e gritava pro mato, com a mão em concha na boca:

   - Seu Chico! Oô seu Chico! ...Elesbão! Oô Elesbão!...

   E o apelo angustiado perdendo-se impotente na amplidão verde da mataria braba, fundia-se no quirir mal-assombrado e apagava-se sem eco na distância misteriosa e infinita.

  Depois de muito errarm assim à toa, varando igarapés e atravessando furos, penetrando igarapós e cortando mupeúas, ele dera d ecara inesperadamente com uma montria amrrada na ribanceira. Aproximaram-se: era a montaria de Chico Domingos e estava vzaia e abandonada.

  O grito dolçorido e trágico furou a mata com mais energia e confiança.

  - Seu chico!...Oô seu Chico! ...Elesbão!....Oô Elesbão....

   E, como um eco sinistro do outro mundo, de dentro da mata silenciosa veio como resposta apenas um soluço débil de desespero. Era Elesbão que já não tinha forças para gritar....


                FIM  ( Histórias da  Amazônia)




gapuiador
/ô/

adjetivo substantivo masculino
  1. AMAZONAS
    que ou aquele que pesca nos baixios, ao acaso.





LADINA

Significado de ladino. Esperto; que expressa muita inteligência, esperteza, agudeza de espírito. Espertalhão; diz-se da pessoa astuciosa que age desonestamente.   




adjetivo substantivo masculino
  1. 1.
    que ou aquele que regata ou regateia muito.
  2. 2.
    substantivo masculino
    aquele que compra por atacado e vende a retalho.



Paneiro de castanha




Sapiroquento
 e um adjetivo.
adjetivo é a palavra que acompanha o nome para determiná-lo ou qualificá-lo.

Os adjetivos "sapiranguento" e "sapiroquento" se aplicam aos olhos atacados de sapiranga ou sapiroca, isto é, aos olhos inflamados ou sem pestana .


substantivo masculino
BRASILEIRISMOBRASIL
  1. 1.
    animal de criação ou estimação; mumbavo.


 tejupar.

 Mucambo (cabana). Mucambo ou mocambo, palhoça ou tejupar são denominações dadas a moradias ...


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

oi

 OI. Amigo eu desejo que tu fique bem e com saúde.

Orígenes Lessa - SHONOSUKÉ Obras primas do Conto Brasileiro

 





Clemente Vidal  deixou o carro à porta do bar e entrou para um rápido aperitivo. Sempre era melhor estar ali à vontade solitário na sua mesa, do que ouvir o matracar odioso e pretensioso dos seus colegas de clubes encharutados e maledicentes. Passeou o olhar preguiçoso pela modéstia do bar, pelos bebedores esparsos, bebendo pelo gosto simples de beber, sem imposições sociais, sem determinismos elegantes.

   Surge uma figurinha amarela. Dois traços telegráficos, fingindo olhos. Uma ligeira elevação, com dois furinhos, fazendo nariz. Boca larga e branca, os dentes salientes.

   - Retrato, senhor?

  Clemente Vidal examinou-o com atenção, enquanto a figurinha estranha, sem colarinho, camisa suja, paletó enrolado, um bonezinho sobre o cabelo pretíssimo,insistia, mostrando uns calungas.

   - Retrato,, senhor?

  Clemente mediu-o com um sorriso.

  - Quanto?

  - Cinco mil-reis.

   - Faça...

   O japonesinho retirou do bolso o crayon, pôs sobre o joelho uma folha de papel, fixou um olhar apertadinho no cavaleiro elegante, e começou a riscar rapidamente no papel fumaça. Um , dois, tês riscos. Zás, zás, zás...Lá saía o homem, com a curva aquilina do nariz, as olheiras empapuçadas, o  ar desdenhosos de olhar e sorrir, o charuto grande a ajudar o jeito orgulhosos da boca.

  Enquanto riscava, Clemente Vidal o examinava. Era uma figura comum de caricaturista internacional, a cinco ou dez mil-réis a careta, desses vagabundos que se aguentem por qualquer coisa e em qualquer terra, armados com um crayon barato e uma folha barata de papel cartão.

    - Gosta, senhor?

   Clemente gostou. Pelo preço...Pela extravagância da ideia....Aquilo seria Natural num bar ou num cabaré de Paris ou de Londres. Num de São Paulo, à hora movimentada do triângulo, era uma originalidade sua que havia de ser comentada com sucesso no seu clube...

   - Você quer beber?

   - Obrigado, senhor.

   Ele insistiu. Pôs o japonesinho a seu lado, fez vir um "americano", começou a correr os outros desenhos que ele trazia, como amostra. Curiosos, um traço  interessante, uma certa originalidade, uma linha muito  pessoal. Quem seria ele? Indagou. O rapazinho informou, sumariamente com um sorriso. Filho de operários. Seis anos de Brasil. Família faminta. Antigo pasteleiro, ex- vendedor de amendoim, aprendiz fracassado de pedreiro, garção sem sucesso. Um grande amor pela arte. Sem estudos, sem dinheiro. Um amigo desesperado dos livros. Um pouquinho de inglês. Um português bastante desenvolto. Leituras. Uma coleção inútil de desenhos. Agora, como artista ambulante, geralmente almoçando e jantando, coisa  que muito tempo desconhecera.

   Clemente  Vidal, interessado, começou a ver na cara sem expressão do rapaz a possibilidade de uma blague(piada) formidável. Riquíssimo, culto, várias viagens à Europa, várias cópulas em Paris, várias bebedeiras em Roma e Veneza. Vidal era um Mecenas em São Paulo. Conhecia e discutia arte. Centenas de quadros e estátuas da sua galeira haviam alimentado muito artista patrício e  provocaram a admiração e o espanto dos amigos. Fazia  estudar dois cantores pobres em Paris, alimentava e vestia, em Roma, três futuros gênios da pintura indígena. Isso, do seu bolso.À custa do estado, quando senador precoce e preclaro, facilitara os estudos de dezenas de outros, e era olhando como pai da futura arte brasileira, como um animador , como um Médicis ou figurão da Renascença, espantosamente surgido no país da maledicência. Papai Vidal, como o chamavam. Seu nome patrocinava todas as mostras de arte, seu dinheiro financiava concertos, sua palava estimulava os estreantes, sua adega embebedava artistas, críticos e admiradores. Tudo aquilo fora feito a sério. Não estimulava por pilhéria, não animava por blague. Quando falava em arte, estrangeira e  mesmo  nacional, quando discutia cubismo, dadaísmo, futurismo, surrealismo, coisas da Rússia, de Paris ou da favela, era sempre como entendido, como autoridade, como crente. Mas olhando  aquele japonesinho, que devorava muito canhestro as empadas que fizera vir, Clemente Vidal começou a imaginar uma blague, a primeira que se aninhava nos seu cérebro desenhador prematuro. E se lançasse aquele rapaz? E se  lançasse mãos daquele garoto para pregar uma peça infinita, um bluff imortal na papalvice incomensurável do público? Vidal sabia, no fundo, que as admirações literárias e artísticas, como as glórias mais incondicionais, são efeito simplesmente da sugestão e do esnobismo.

   Ele mesmo admirara assim muita gente e fora forçado a pagar milhares de francos por obras de arte em que francamente nada havia senão uma obrigação esnobe de admirar. Era coisa assinada por fulano,por sicrano. Paris dizia que fulano era gênio. Beltrano clamara, em Roma, que sicrano compendiava e empacotava a história da arte.E lá ele e os  outros conhecedores se haviam forçados ao "colosso", "extraordinário", "genial", ao desembolso dos pacotes de liras ou de francos. Um pouco de vaidade pessoal acariciavam ainda o seu pensamento. Ele tinha prestígio. Ele era ouvido. Lançara artistas de valor. Parte por mérito seu, parte maior pelo mérito deles. Mas aquele japonesinho, sem valor pessoal, se ele o fizesse, era obra sua.pilhéria inconfundível.

  Sorria, enquanto falava o rapaz. A ideia tomava vulto. Havia de lançá-lo. Dentro de um ano, ele seria famoso, seria aclamado como gênio, venderia quadros por fortunas e então Clemente Vidal contaria a toda gente a  extensão e eo sentido da peça que pregara ao público.

   - Como se chama você?

   - Shonosuké Shini...

   - Basta Shonosuké. Não é preciso mais. Escute: Você é um grande artista. Apareça amanhã em minha casa....

   Deixou-lhe um cartão e saiu.

   Clemente Vidal vestiu o rapaz, fotografando-o antes com os seus trajes miseráveis e, antegozando a pilhéria, chamou três amigos de confiança,  contou-lhes os planos expôs a forma de ação, instalou o japonês num " atelieir" e iniciou a publicidade.

    Dias depois começaram a sair as notícias. Um jornal da tarde publicava uma longa reportagem romanceada  sobre o artista estranho e original que passara fome, que vendera pasteis, que fora garção, mas trazia em si a posse de uma arte vigorosa, fortíssima, pessoal, liberta de todos os moldes clássicos( era tão fácil quem não os conhecia...) diferentes de tudo o que faziam, de Apele a Foujita, com todos os altos e baixo da escala, todos os artistas presentes e passados.

    O jornalista era do conchavo. Agia de acordo com o plano traçado. Lançara a coisa como uma reportagem imprevista, cheia de afirmações vagas, sem responsabilidade, falando em coisas gerais,, arte pessoal, ausência de influência clássicas, fuga aos modelos, tradicionais, traço original.

      Uma semana depois vinha um crítico. dizia ter visitado o "atelier" de Shonosuké. Não se comprometia também, mas aproveitara a ocasião para desancar violentamente a arte nacional, insinuar perfídias sobre a mulher de um pintor em voga, ridicularizar a Academia Nacional de Belas Artes, e maldizer o público pela sua indiferença das coisas do espírito. Sobre Shonosuká, mesmo, pouca coisa. Mas o leitor desprevenido ficava imaginando que o artista humilde era tudo aquilo que os outros não eram.

  O diretor de um terceiro jornal, e terceiro iniciado na tramoia, aceitou logo algumas ilustrações em página nobre feitas pelo rapaz.

  Começaram a aparecer as notas de redação, as sugestões aos cronistas desprevenidos, por parte da direção. Na crônica social, na página de arte, nas mundanidades surge o nome de Shonosuké.


  Um cronista de coração sensível, sabendo-lhe das horas de fome e da origem humilde, aclamou-o, sem lhe ter visto os quadros, um futuro  Foujita, o Foujita brasileiro. O jornal tem grande circulação. O homem tem admiradores. A bobagem é lida. A frase pega.

    E Clemente Vidal e seus amigos, de acordo com a combinação prévia, começam a falar com seriedade no pintor, que trabalha com entusiasmo, inspirado e surpreso, produzindo febrilmente.

    Dentro de um ano - garantira Vidal - dentro dum ano, Shonoskè será tido como gênio por todo São Paulo...

  A profecia prometia realizar-se. Por parte pela sugestão, parte pela necessidade de agradar, toda a imensa confraria da sua galeria de arte e especialmente da sua adega começava a concordar. Comentava-se as ilustrações publicadas. Apresentações assinadas por Vidal abriram ao moço as portas de poucas revistas da cidade. Os representantes das revistas cariocas enviavam para o Rio reproduções de desenhos seus. D. fulana, d. fulaninha, que entendiam de arte, falavam com reserva, mas já falavam no japonês.

   - Ele promete...

   Quem ouvia dizer " ele promete" ia dizer mais adiante que ouvira: "ele é um colosso".

   E os jornais insistindo. E as notas sucedendo-se. E a seriedade dos conjurados. E o japonesinho trabalhando.

           @@@


 Veio a exposição. Foi um escândalo, um clamor. Vidal ordenara preços altíssimos nos quadros. Os estudos mais modestos custavam seiscentos, oitocentos mil réis. o preço impunha....E, para dar o exemplo, no dia da inauguração Vidal adquiria dois quadros, um de  15 e outro de 12 contos, que o artista, como era natural não cobraria. Mas a notícia correu, a massa acreditou, a exposição encheu-se, os comentários foram rumorosos, a imprensa acorreu, e as notícias, as críticas, as discussões, multiplicaram-se.

   - Para o Vidal pagar aquela fortuna...

   - Para o jornal dizer aquilo...

   Choveram os compradores. Ninguém queria ficar atrás. A galeria de d. fulana, as paredes de d, fulaninha tinham que se ornamentar com outros contos de reis em poucos dias estava tudo vendido. Shonosuké enriquecera espantado boquiaerto sem poder compreender

            E as discussões em torno de seu nome. - O jogo das cores na arte de Shonosuké ...Shonosuké e as mulheres...Os coelhos de Shonosuké...O preto e o branco no pincel de  Shonosuké...a expressão de sentimentos na obras de um pintor nipônico....Ainda é possível o gênio? - e outros temas e problemas atulhavam jornais e revistas.

    Havia detratores, é claro. Artistas, críticos, professores. Mas via-se bem: invejosos, despeitados, passadistas, fósseis, cérebros obtusos, impotentes do espírito, eunucos da arte..

    Fulano falava porque nunca vendera um quadro por 500. Aquele outro berrava porque tivera a exposição às moscas. O crítico tal protestara porque não lhe ofereceram dinheiro.

  E assim os verdadeiros entendidos se encarregavam de defender a obra do artista imprevisto e vitorioso.

  Um ano depois, já não havia mais dúvidas. O Foujita nacional vencera em toda a linha. Não somente São Paulo, todo o país acreditava. Até de Paris o chamavam. Foi quando Clemente Vidal e seus amigos resolveram desmascarar a troça. Contar tudo. Revelar a pilhéria. Mostrar que haviam passado uma peça infinita, memorável, na papalvice do público. provar que pouquíssimos não haviam caído. Mostrar que até Paris fora no conto... Clemente Vidal aguardava com uma volúpia sem nome o dia da revelação, que chegara mesmo a assustá-lo. A glória criada era realmente impressionante. Não ficava bem a um homem como ele, cheio de responsabilidades políticas, respeitado nos meios artísticos, zombar do público- que valia dizer: do seu eleitorado - com uma blague assim. Talvez não ficasse bem. Mas a glória de realizar uma partida assim inédita e o respeito pelo seu nome, que ficaria prejudicado quando se estudasse a obra de Shonosuké, deram-lhe a coragem final para revelar. Havia alguns que não tinham concordado. Esses fariam côro em seu favor, aclamando o seu espírito e vingando-se nos otários. Só d. fulana e d. fulaninha não haviam de gostar, mas essas não gostavam nunca de tudo o que o senador prematuro praticava. Não fazia mal...

         @@@


 Quando a notícia rebentou, o escândalo chegou a Abalar paredes. Houve gargalhadas, insultos e censuras:

    - Isso não se faz...- disse um crítico que caíra...

  - Isso é um desrespeito para cm o publico...

   Um cabo eleitoral que compara quadros deu um murro noa r:

   - E pensar que é um senador. Mas o eleitorado há de vingar-se.

  - Coisa mais sem graça...- disse d. fulana.

  Mas quem mais se divertiu foram os passadistas, impotentes, fósseis, eunucos e outros pejorativos, de acordo com os que haviam admirado. Vingavam-se agora. Humilhavam os compradores, os apologistas, os ingênuos.

   - Passadismo, heim? Impotência, não é?

   E um rumor de gargalhadas se alastrava pelos salões elegantes, pelos clubes, pelas redações. Tão grande, que deixou quase despercebido o suicídio do japonesinho, no seu "atelier" abandonado.

   @@@

 O interessante é que Shonosuké era realmente um homem de gênio. 



                             FIM        






Sobre a obra do autor: A espontaneidade e frescura da sua prosa, a agudeza das suas observações, a finura da "verve" e habilidade que punha na fidelidade das suas fotografias instantâneas de pedaços da vida diária. 

substantivo feminino
  1. 1.
    entusiasmo e inspiração que animam a criação e o desempenho do artista, do orador, do poeta.
    "a v. de Picasso e de suas obras"
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    graça ou vivacidade que caracterizam uma personalidade, ou o que ela produz.

  3. Um pouco mais lirismo para  suavizar o realismo descaridoso e a ironia perversa  com que impregna quase todos os seus trabalhos. Um pouco mais de mentira à dura e áspera realidade.



substantivo masculino de dois números
  1. indivíduo rico que protege artistas, homens de letras ou de ciências, proporcionando recursos financeiros, ou que patrocina, de modo geral, um campo do saber ou das artes.


cópula. Significado de Cópula. substantivo feminino Ligação, união. O ato sexual; coito, copulação. Linguística Palavra que une dois termos de uma oração ou ...



preclaro
adjetivo
  1. 1.
    de origem nobre; distinto, ilustre, insigne.
    "vem de p. estirpe"
  2. 2.
    que se distingue pelo mérito, pelo saber; ilustre, notável, famoso.

  3. "p. mestre"

PASSADISTA
caturras, retrógrados, saudosistas.

Caturra.

 substantivo masculino e feminino Pessoa teimosa, de opiniões extravagantes, que gosta de contradizer e de discutir. Pessoa apegada a usos e coisas antigas. [Brasil] Planta da família das euforbiáceas
  1.  

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Monteiro Lobato - Colcha de Retalhos Obras- Primas do Conto Brasileiro

 










Upa!

Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblinas e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho luminosos do sol.

    A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

    Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada descorar passos adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante dalguns angiqueiros marginais.

   Agora, uma porteira.

  Ali, a encruzilhada do Labrego.

   Tomo à destra, em direitura ao sítio do José Alvorada.

   Este sujeito mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté, legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

   Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

  Três alqueires, só do bom. Talvez quatro. A noventa por um - nove vezes quatro trinta e seis: trezentos e seis: trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontados as bandeiras(qualquer trecho do milharal) que o porco estraga e o que comem a paca e o rato.

   Será a filha do Alvorada?

  - Bom-dia, menina. o pai está em casa?

    É a filha única. Pelo jeito não vai além de quatorze anos. Que frescura! Lembra os pés d'avenca viçados nas grotas noruegas(grota fria, onde nunca bate o sol). Mas arredia e itê ( sabor agreste, adstringente, ácido) como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! D'olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás naquela moita de taquaris, ao ver-me.

   - O pai está lá? - insisti.

   Respondeu um 'está" enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

    Como a vida do mato asselvaja estas veadinhas?

 Nota-se que os Alvoradas não são caipiras. O velho, quando comprou a situação dos Periquitos, vinha da cidade; lembro-me até que entrava em sua casa um jornal.

    Mas a vida  lhes correu dura na luta contra terras ensapezadas e secas, que encurtaram as safras por mais que dê de si o homem. Foram-se rareando as idas à cidade e, ao cabo, de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina , rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo - uma tamina( ninharia, coisa de nada), três mil pés - o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

  Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de pião para o resto da vida. Costuma dizer: mulher da roça via à vila três vêzes - uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.

  Com tias casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo D'Água ( tinha esse apelido a Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo à gente. Fôra uma vez à vila, com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos quartoze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

   Ler? Escrever? Patacoadas, falta de serviço, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora se des'que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

  Deixei a menina ás voltas coma rodilha e embrenhei-me por um atalho condicente à morada.

  Que ruinaria!...

   Da casa antiga aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

   O velho pomar, roído de formigas, sucumbira de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro na laranjeiras macilentas, furadas de broca, sopesando o polvo retrancado da erva-de-passarinho, abrolhavam ainda rebentos cheios de compridos espinhos. Fora disso, mamoeiros a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só repeitava o terreirinho batido, fronteiriço à casa. Tapera, quase,e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

   Bati palmas.

  - Ó de casa!

 Apareceu a mulher.

   - Está seo Zé?

    - Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na massaranduva no pasto. Apeie e entre.

   Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

   Acabadinha, a Sinh"Ana. Toda rugas na cara - e uma cor...Estranhei isso.

    Doença, gemeu. Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda...Casa velha, é o que é.

   - Metade é cisma - disse-lhe, para consolo.

   - Eu é que sei! - retrucou-me suspirando.

  Entrementes, surgiu na cozinha uma velhota bem apessoada, no cerne, rija e tesa que me saudou e:

   - Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta pra nada....Olhe: eu com setenta no lombo não me troco por ela...Criei a minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso sim!....

   - Mecê é gobola porque nunca padeceu doença - nem de dor de dente....Mas eu ? Pobre de mim! Só admiro de inda estar fora da cova....Aí vem o Zé.

   Chega o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara.

   - Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim....È só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num ôco muito alto  e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não!  É mel de pau.

  Depois num mochô a cuia dos favos e se foi à janela lavar as mãos sob a cuia d"água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo:

    - Hoje veio no picaço...Bom bicho! Eu sempre digo: animais, aqui no redor, são este picaço e a ruana do Izè de Lima. O mais é eguada de moenda.

   Neste momento entrou a menina de pote à cabeça.

   Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.

   - Está ai, filha, o doce a aposta. perdi, paguei.

  Que aposta? Ah!ah! Brincadeira. À gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse, à toa, são mais de dez! Pingo negou: não chega lá! Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo, não é o que parece não!

   A loquacidade do Alvorada não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dado corda, ressurgia nela o tagarela da cidade.

  Expus-lhe o meu negócio. O homem enrugou a testa e refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

   - Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Des"que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo dinheiro. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos não livrei o jornal.

    Desde então fiz cruz em serviços alheios. Se inda teimo neste sapezeiro é por via da menina; se não,  largava tudo e ia viver no mato, como bicho. È pingo que inda me dá um pouco de coragem, concluiu com ternura.

   A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixa, pusera-se a coser, de óculos no nariz.

  Aproximei-me admirativo.

  - Sim, senhora! Com setenta anos!

  Sorriu-se, lisonjeada.

   - É pra ver. E isto aqui tem coisa! É uma colcha de retalhos que venho cosendo há quatorze anos, des"que |Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela, vou guardando nesta caixa cada retalho que sobeja e um dia eu os coso. Veja que galantaria de serviço!...

   Estendeu-se ante os olhos um pano variegado, de quadradinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

   - Esta colcha é o meu presente de noivado. O último,o retalho há de ser o vestido de casamento, não é, Pingo?

   Pingo D"Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta. Mais dois dedos de prosa, ruim cafezinho ralo - escolha com rapadura - e,

   -Está bem - rematei, levantando-me do môcho de três pernas.  _ Como não pode ser, paciência. Apesar disso, acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os raçados a oitenta mil-réís o alqueire. Dá para ganhar, não?

   - Que dá, eu sei que dá - mas também sei para quem, dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitas peguei a sessenta, e não me arrependi. Mas hoje....

   - Nesse caso....

   Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Dona Ana falecei. Era fatal a dor respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memoria a imagem daqueles humildes urupês, quando chegou aos meu ouvidos um zunzum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo D"Água aos Periquitos.

   - Como isso? Uma menina tão acanhada!...

   - É para ver! Desconfiem das sonsas....Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade- não para casar, nem para enterrar. Foi ser "moça" a pombinha....

    O incidente ficou a azoinar-se o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da última visita ao sítio, e disse brotou a ideia de lá tornar. para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne. 

Fui

  Setembro intumescia gomos em cada arbusto.. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até as cabeças dos morros  distantes.

     Poe amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesma trilha.

   No córrego vi, com os olhos da imaginação,o vulto da menina envergonhada, com o pote descansado na lage e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto erma já galhaça ressêca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgrebe. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalga-se de moitas  de guanxuma, cordão-de-frade e juás.

    - Ó de casa.

   Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma senhora, acurvada e trêmula.

    - Bom dia, Nhá Joaquina. Está seo Zé?

     Não me reconheceu a velhinha. O Zé fora à vila vender a sitioca para mudar de terra.

   Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

   Entrei para a saleta vazia.

   - Tem coragem de estar aqui sozinha?

   - Eu? Sozinha estou em toda a parte...Morrera-me tudo, a filha, a neta...Senta-se - disse, apontando par ao mocho de dois anos atrás.

   Sentei-me com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

    - O que é a vida, Nhá Joaquina! Parece qeu foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo. Hoje...

   A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

   - Viver setenta e dois anos para acabar assim!.. Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro...

   Confrangia-se-me o coração naquele ermo onde tudo era passado - a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmulo espectro encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

   - Que mais agora? - murmurou, pausadamente, em vez de quem já não é deste mundo. - Até a " desgraça". eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava da vida. morreu-me a filha, mas restava a neta que é duas vezes filha e era o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha...Agora, que mais? Só peço a Deus que me tire, logo e logo...

   Relancei um olhar pela sala vazia. A caixeta de  costura inda estava sobre a arca, no lugar de sempre. Meus olhos pousaram nela, marasmados.

   A velha advinhou-me o pensamento e, erguendo-se, tomou a caixa nas mãos trêmulas.

   Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremura na voz, disse:

    - Dezesseis anos - e não pude acabar a colcha... Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem a sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d'Água. Aqui leio a vidinha dela des'que nasceu.

   Este, olhe foi da primeira camiseta que vestiu...Tão galantinha! Estou a vê-la no meu  braço, tentando pegar os óculos, com a mãozinha gorda...

   Este azul, de listras, lembra um vestido que lhe deu a madrinha aos três anos. Ela já andava pela casa inteira, armando reinações m, perseguindo o Romão, que um dia, poe sinal lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "-óó Aquina".

   Este vermelho, de rosinhas, foi quando completou os cinco anos. estava com ele por ocasíão do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?

   Este cá de xadrezinho foi pelos sete anos, e eu mesmo o fiz, e o fiz de saía comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!

   Pingo D'Água já saiba temperar um virado, quando usou este aqui de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

    Este roxo, usou-o quando tinha dez anos e caiu de sarampo, muito maozinha. Os dia e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias" Como gostava de Gata Borralheira!...

   A velha enxugou na colcha uma lágrima, e calou-se.

    - E este? - perguntei, apontando um retalho amarelo, para avivá-la.

     Pausou um bocado a triste avó, em contemplação. Depois:

   - Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez, num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece-me que a desgraça começa aqui. Ficou um vestido muito assetadinho no corpo, e galante, mas, pelas minhas contas, foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava...

   - Este - disse-lhe eu, fingindo recordar-me - é oq eu vestia quando cá estive.

   - É engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

   - È verdade, é verdade! - menti. - Agora me lembro, era isso mesmo. E estye derradeiro?

   Após uma pausa dorida, a pobre criatura sacudiu a cabeça e balbuciou:

    - Este é o da desgraça. Foi o último que lhe fiz. Com ele fugiu...e me matou.

   Calou-se a lacrimelar, trêmula.

   Calei-me também, opresso dum infinito apertão d'alma.

    Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida, machucado pela mocidade louca!...

   E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos pregados na colcha.

  Ela por fim quebrou o silêncio.

  - Era o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. já pedi que me enterrassem com ela...

   E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.

   Um ês depois morria. Soube que lhe não cumpriram a última vontade.

  Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça~?

  Pieguices....

FIM

                        (CONTOS PESADOS)

  

  








substantivo masculino
  1. 1.
    COSTURAALFAIATARIA
    fita que se prega dobrada à margem de um tecido, para ornar e/ou para evitar que a trama se desfaça; vivo.
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    qualquer espécie de ornamento em forma de filete, ger. de cor diferente, us. para margear uma figura, um desenho etc.


O que é Angiqueiro:
É um tipo de árvore que se chama angico e exitem duas espécies, Angico-branco (Anadenanthera colubrina); angico-vermelho (Anadenanthera macrocarpa).




labrego
/ê/
adjetivo substantivo masculino
  1. 1.
    diz-se de ou homem rude do campo; camponês, vilão.
  2. 2.
    POR EXTENSÃO PEJORATIVO
    que ou aquele que é ignorante.



Nata de terra que pelas bocas do caeté, unha-de-vaca,caquera (Padrões de terra boa)