segunda-feira, 23 de novembro de 2020

MARQUES REBÊLO - CIRCO DE COELHINHOS

 Isabel, Beatriz dos olhos cor de mel, e Loló e Silvino, na farândola infantil dos meu amores, dançaram com Dodô e dois coelhos.

   Sim, dois coelhos. Chegaram numa cesta de tampa em certo domingo morno de novembro, quando na casa de tia Bizuca, onde eu morava e que era o Andaraí, apontavam os ramos do pomar os primeiros sapotis inchados.

   São de raça - disse seu Manuel, chacareiro, valorizando o presente que me trazia - Angorás legítimos - mostrava, suspendendo-os pelas orelhas, que ao meu protesto por tamanha barbaridade foi explicado ser o processo usual e correto de se pegar coelhos.

   Angorás, ou não, jamais houve coelhos tão queridos, lindos que eu os achava, brancos, peludos, olhos vermelhos, orelhas róseas - dois amores.

    Minha vida até aí era um suceder de brinquedos e mais brinquedos, pique, cabra-cega, traquinadas na chácara que subia até o morro, barulhentas correrias nas salas vazia do porão habitável, nem eu podia acreditar que outra fosse a finalidade das crianças. Foram eles, aqueles alvíssimos pompons, que me fizeram ver, além do mundo despreocupado dos folguedos, um outro mundo maior, que o colégio desvendava aos outros meninos - o das obrigações. È que a escola para mim fora suave. Longas as férias, poucas as aulas no pavilhão aberto dos menores, que assistia quando bem queria. Nas mãos inteligentes de D. Judite, maternal, paciente, os métodos modernos dulcificavam asperezas. E havia, sobretudo, a ordem expressa dede titia, que "não puxassem" por mim. Foram eles, repita-se, que me trouxeram a noção das primeiras obrigações, mas, longe de me rebelar contra elas, com que amor e alegria a elas me entreguei! " Está na hora de botar água para os coelhos" - e cataclismo nenhum teria a força de me impedir. Penteava-os, catava-os, levava-os a passear no jardim, roseiras, só roseiras, que no reino das flores eram a paixão de titia; recusava ao Taninho passeios dominicais no automóvel de seu pai, uma Bez, que ficava com eles, móveis fontes dos meus meticulosos cuidados. Um escravo, um escravo, confesso, fiquei das suas necessidades, pequeninos tiranos inocentes. 

Não só tirano, também de sábios aventurei chamá-los( advinha-se lá sob tanta brancura quantos segredos traziam) tanto assim que não deixaram parar no mundo as obrigações a série  de revelações que a mim, naturalmente, se propuseram, e trouxeram-me o amor.

   Amei-o com a ternura dum namorado. Enfartava-os de carícias. Aos meus sôfregos abraços desabava a chuva de protestos de titia: "Você, um dia, acaba  matando estes bichos de tanto os espremer". Cobria-os de beijos, deixava-os nos quartos solitários da casa, ignorante das horas  em intermináveis conversas com eles, respondendo-lhes coisas como se mas perguntassem. Perdi a realidade, deixei de distingui-los, fundia-os num  único coelho, um coelho maior que todos os coelhos jamais vistos, quase do meu tamanho, vivendo como gente, falando e rindo como gente, vestindo-se à marinheira como eu.

   Veio com o amor e séquito das suas dores. Que torturadas horas da minha meninice vocês, adorados bicharocos, foram a causa! Amava-os demais para não sofrer com o meu amor. O ciúme fez a sua  estreia  no meu coração e, feroz me consumia. Também não era para menos: tinha um rival, e de que força, anjos do céu - um rival terrível, Silvino, molequinho de dois anos mais velho do que eu, que tia Bizuca tomara para criar, com três dias apenas, por morte da mãe, preta que, fielmente lhe servindo, gastara sem usura a mocidade.

 

   Se na casa eu tinha o prestígio do sangue, ele mantinha o do tempo, de que se servia com sucesso, principalmente entre a criadagem. " Isso se deu antes do senhor ter vindo pra cá`", diziam-me de quando falavam de acontecimentos passados. " O Silvino é que sabe tudo direitinho".Realmente sabia e, olhando-me de lado, um sorriso zombeteiro  que mal se percebia, contava tintim por tintim, detalhado, supérfluo, pois não ignorava que assim fazendo me humilhava. Era o antigo, era, não se podia nega aproveitava-se disso. Defendia-se do intruso, afinal, o intruso que era eu, finório e humaníssimo Silvino.

    Terrível rival,astuto como passam a sê-lo os mais, rival da oportunidades esquivas como me lembro dele,agora, os olhos bisbilhoteiros.

      Doeu-lhe o presente do chacareiro. Por que não ganhara também! Que fizera eu para merecê-lo? Ele, sim, teria direito. Ajudava o Manuel na chácara, carregando estrume no carrinho de mão, varrendo a estufa das begônias, levando-lhe a comida, regando-lhe as plantas,auxiliando-o na podação sistemática dos ficus Benjamim, tapume verde e compacto que defendia o terreno dos olhos devassadores da vizinhança. Era justo. E fora eu quem recebera o presente, eu , grande patife o Manuel, miserável chaleira, " quando tinha raiva de português não era à toa". Só porque eu era o sobrinho, só. Ah! não ganhara? que importa?! saberia disputar a mim o afeto dos bichos. Saberia e soube. Se, por exemplo, eu lhes dava alface, ele a substituía logo pela que corria a buscar, pois que somente ele conhecia, na horta que não lhe guarda segredos, o canteiro que vicejavam as folhas mais frescas, os grelos mais tenros.

   Na luta aberta, tomava o meu partido: era meus, não eram? Pois então, tome, bacurau beiçola, e trazia-os ao colo, dia e noite, não consentindo que ele lhes tocasse com um dedo. " Visse com os olhos!" Afagava-os na sua frente para lhe fazer pirraça: " Meus anjinhos". Que ele sofria, sofria, mas não se dava por achado e sorria-me: " Dia virá", pensava. A paciência foi premiada e o dia veio, negro dia em que tive de ir para o colégio, um colégio diferente, sério, rigoroso, com horários  a que não podia fugir, pois como dizia tia Bizuca, já estava um marmanjão, era preciso entrar feio e forte no estudo para ser gente na vida.

   Como padeci, Deus o sabe. Intermináveis aulas de seu Silva, que ensinava tudo, menos ginástica, explicando sempre, aborrecidamente, numa lição o que iria tomar na outra. Gramática, geografia, que me importava saber verbos e substantivos, se o mundo era redondo ou quadrado, que me importava, se o meu mundo era os meus coelhos! Seu Silva falava alto, eu, porém, não o ouvia; meu pensamento mergulhava-se na dúvida cruel:  que estará fazendo o Silvino com os meus coelhos? Devorava com os olhos impacientes o implacável relógio do corredor, infinito corredor sonoro, com dez janelas para o recreio, pista de astúcia onde os bedéis se exercitavam, surgindo inesperadamente na porta das classes, surpreendendo os desprevenidos alunos faltosos. Que estará fazendo? E os ponteiros não andavam. Perdiam-me n labirinto das conjeturas: estará acarinhando-os, coçando-os, levando-os para pastar no quintal!/....Das problemáticas suposições, seu Silva me despertava:

   - "De que é que estou tratando seu Francisco?"

   Não sabia. Ganhava castigos.

    Em casa, mal chegando, sacola para um lado, um beijo apressado em titia, e corria a vê-los. A brancura dos pelos não guardava a marca das pretas mãos odiadas. Os olhos vermelhos nada denunciavam. Batia-lhes, ciúme furioso. Amedrontava-os, queriam fugir, orelhas caídas, eu os abraçava. quase chorando, com loucura.

   No serão da sala de jantar, titia tricotando, eu preso aos deveres passados para fazer em casa, era ele, o bandido, que puxava o assunto para me ferir:

    - Eu hoje, sabe, seu Francisco?, fui com os seus coelhos até a padaria. 

  Eu me mordia:

   - É?...

   Silvino via que a chaga estava aberta, sangrando e remexia-a, deliciando-se com a minha agonia:

   - Ta bom, vou até la embaixo ver se eles estão direitinho - e saía devagar, empurrando as mãos nos bolsos, em esgar de vingança satisfeita no canto da boca.

   Meu desespero chegava ao auge. Um pouco mais estourava. A caneta na mão nervosa fazia uma letra mil vezes pior do que verdadeiramente era: pulava palavras na cópia do"Coração", trinta e nove menos quinze davam doze no problema das laranjas. 

            *   *   *

Maio plácido, ameno, aio das sinetas tocando para a a benção, pelo tombar das tardes, na capela dos asilo, maio trouxe, na casa de titia, além da muda dos canários, algumas tangerinas temporãs e um infausto acontecimento; a morte de Silvino, atropelado pelo caminhão do gelo, quando fora à praça botar uma carta no correio.

   Não morreu logo. Veio berrando lancinantemente nos braços de transeuntes solícitos, o caixiero de venda à frente,abrindo caminho, gesticulando, explicando o acidente.

   À noite delirou e o delírio fê-lo autor confesso duma infinidade de malandragens miúdas, tijolos de goiabada furtados da despensa, carreteis de linha que voavam da cesta de costura, colherinhas de prata enterradas no terreiro. Mais ainda, fez aclarar o grande mistério das rosas. É, que, durante meses, diariamente aparecia juncado de pétalas o chão do roseiral, sem que nenhum vento noturno tivesse soprado, destruidor. Como o roseiral era fechado por altos muros, a repetição quotidiana do fro preocupava bastante tia Bizuca, que já aceitava a suposição de D. Marocas Silveira, espírita, que fosse obra de algum espírito gaiato e mistificador. E  era ele, Silvino, o vândaço das flores, que possuído de não sei que estranha volúpia, ia, na clada das madrugadas, pois acordava com os galos, ocultamente desfolhá-las, sem que ninguém o papanhasse.

   Titia chegou a rir com a inesperada desocberta.

   - Ah, gibi sonso, então era você, hein, seu pândego?... Deixe ficar bom que vai ver só....- ameaçou-o.

   Ela ignorava a gravidade do acidente. Soube-a no diagnóstico do seco Dr. Gouveia, que abanava a cabeça:

   - Nada, minha senhora, nada é possível fazer, além do que está feito. Só um milagre - fratura da bacia interessado seriamente a espinha...- só um milagre!- repetia com um nítido acento materialista.

   - Mas doutor...

   Ele atalhou, piedoso:

  - Vou dar-lhe morfina para que sofra menos.

   Titia, então, dedicou-se-lhe toda. Incansável, extremosa, dum lado para o outro, vê isto, vê aquilo, o dia inteiro, velou-o quatro noites, sem pregar olho.

  Na quinta noite, seriam onze horas, a lâmpada envolta com um papel pardo, porque ele não suportava a luz. Silvino despertou da pesada letargia que lhe provocara a última injeção:

  - Madrinha - sussurrou.

  - Que é? Estou aqui - e titia, rápida, saiu da sombra , donde, encolhida num banquinho, ficara insone, vigiando-o.

  - Sei. Me dá a sua mão.

   Deu-lhe e ele levou-a, dificilmente, aos lábios. Lágrimas escorriam-lhe dos olhos que foram tão redondos e espertos e se mostravam naquele instante, tão esbugalhados e baços.

   - Benção.

  Titia adivinhou qualquer coisa:

- Que tolice, meu filho, dorme.

Filho? Silvino fez um esforço, procurou a boca que se confessava maternal e repetiu:

 - Benção. Estou cansado de sofrer, madrinha.

   Apertou-lhe a mão com mais força, apertou-lhe, largou-a bruscamente. A cabeça tombara para o lado da parede,

  - Francisco! Alexandrina! Meu Deus! Uma vela!

   Todos correram. Titia j[á se encontrava ajoelhada. Caímos de joelhos, també rezando. A vela começou a arder, branca, muito branca, trêmula e brilhante na mão crioula do pequenino morto. Titia soluçava alto.

     ****

    Tia Bizuca, olheiras roxas, marcadas, mais magra, mais acabada, no largo vestido preto, nada poupou para o enterro. " Pobre Silvino? - chorava pelos cantos, entre os braços consolativos das vizinha. A casa se encheu, que o traquinas , muito alegre, muito serviçal, era estimado nas redondezas.

   Acompanhei-o ao Inhaúma, no primeiro táxi após o côche, levando no rosto o prazer da novidade, através das ruas que os homens descobriam. Lá o deixei para sempre, na tarde tépida, opalina, sorridente, lá o deixei  coberto com rosas, com todas as rosas que o roseiral precioso de titia ofereceu naquele dia, rosas brancas irmãs das que el, por tanto tempo, tão prodigamente despetalara.

   Na casa deserta das suas gargalhadas, rascantes, comprimidas -hi,hi,hi- me senti único no amor dos meus coelhos. Pouco, porém, durou a alegria da exclusividade.  A falta de concorrência me tirou, talvez, o apaixonado estimulo, talvez o futebol a que , então, me entreguei com ardor, não posso dizer, certo foram ficando abandonados os alvos objetos da minha  primeira paixão. Aliás já não se mostravam possuidores da famosa brancura dos passados dias de rivalidade. Sujos, maltratados, vagavam esquecidos pelo quintal, pela horta, onde quisessem, livres, se emporcalhando na lama no pó, no depósito de carvão, pegado ao galinheiro.

   Deixei de vê-los, nem mais ia ao quintal. O Manuel quando me encontrava na cozinha, não mudava a chapa

   - Seu Francisco está ficando um moço. Não quer saber mais de coelhos - e piscava o olho com sobrancelhas carregadas.

   - É, é - respondia confuso e, me esquivando pelo corredor, passei a fugir deles às léguas. Morreram, um dia, cegos; os olhos como contas vistosas perderam a cor, se cobriram de um véu opaco. Morreram, um dia cheios de calombos na barriga, que amedrontavam titia: "Será bubônica, Virgem Santíssima?! Não, era velhice, explicou Manuel que, ao que parece, tudo sabia a respeito de semelhantes animais. Morreram. Titia, penalizada, epserou que também me entristecesse, Como, porém, não sentisse tristeza alguma, procurei esconder-lhe este indício de perigosa insensibilidades:

   - Foi melhor assim, minha tia. Coitados, estavam sofrendo tanto.

   Titia se afastou:

   - Tem razão, meu filho. Foi melhor assim.

   No íntimo o que eu sentia era uma completa libertação. A bola era minha ideia fixa. Jogava de "back", jogava mal. jogava como criança, mas jogava.  

   ( TRÊS CAMINHOS)



Usura

substantivo feminino
  1. 1.
    juro, renda ou rendimento de capital.
  2. 2.
    ECONOMIAJURÍDICO (TERMO)
    contrato de empréstimo com cláusula de pagamento de juros por parte do devedor.
Semelhantes
lucro
ágio
benefício
emolumento
gança
ganço
ganho
interesse
maneio
proveito


Significado de dulcificar

Tornar doce.

Significado de Bicharoco

substantivo masculinoBicho grande.Bicho asqueroso.
Séquito séquito

/qu,qü/
substantivo masculino
  1. 1.
    conjunto das pessoas que acompanham outra(s); cortejo que acompanha uma pessoa, ger. distinta, para servi-la ou honrá-la; comitiva.
  2. 2.
    ANTIGO
    ação ou efeito de seguir; seguimento.






CONTINUA

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

NÍZIA FIGUEIRA. SUA CRIADA - MARIO DE ANDRADE









Belazarte me contou:
Pois eu acho que tem. Você já sabe que sou cristão...Essas coisas de felicidade e infelicidade não tem significado nenhum, se a gente se compara consigo mesmo. Infelicidade é fenômeno de relação , só mesmo a gente olhando pro vizinho é que diz o " atendite et videte".Macaco olhe para seu rabo! Isso sim me parece o cruzamento da filosofia cristã com a precisão de felicidade neste mundo duro. Inda é bom quando a gente inventa a ilusão da vaidade, e, em vez de falar que é mais desinfeliz, fala que é mais feliz...Toquei em rabo, e estou lembrando o caso do elefante, você sabe?...Pois não vê que um  dia o elefante topou com uma penuginha de beija-flor caída numa folha, vai, amarrou a penuginha no rabo com uma corda grossa. E principiou todo passeando na serrapilheira da jungla. Uma elefanta mocetona que já estava carecendo de homem pra cumprir destino, viu o bicho tão bonito, mexe pra cá, mexe pra lá, ondulando feito onda quieta, e se engraçou. Falou assim: - "Que elefante mais bonito, porca la miséria!" Pois ele virou pra ela encrespado e: - " Dobre a língua, sabe! Elefante não senhora! sou beija-flor". E foi-se. Eis aí um tipo que  ao menos soube criar felicidade com uma ilusão sarapintada. É ridículo, é, mas que diabo! nem toda a gente consegue a grandeza de se tomar como referência de si mesmo! Quanto a que lhe suceda como com aNízia, homem! Isso estou imaginando que só com ela mesmo...Que Nízia?
     ....se chamava...não me lembro vem se Ferreira, Figueira...Qualquer coisa em "eira". Creio que era Nízia Figueira. Essa sim, de família nacional da gema, carijó irumoguara com Figueira ascendente até o século dezessete.
    Quando em 1886, tendo vendido o sítio porcaria perto de Pinda, o pai dela veio para São Paulo, virou mexeu até que teve coragem de comprar com o dinheiro guardado esse fiapo de terra baixa, então bem longe da cidade, no hoje bairro da Lapa. Em 88 Nízia com dezesseis anos de mocidade, guardada com olho de Figueira pai sempre em casa, foi com o velho e a criada preta que tinham morar na chacrinha recem-comprada. Figueira pai, nem bem mudou, deu com o rabo na cerca por causa dum antraz que o panema dum boticário novato imaginou que era furúnculo. Resultado:antraz tomou conta de Figueira que morreu apodrecido. Dores tamanhas, que, si tivesse vizinho perto, não podia dormir de tanto gemido  que todo orgulho daquela carne tradicional não podia que não saísse, arrancado do coração meio com bastante  vergonha até.
   Nízia se via só neste mundo, contando apenas dezessete anos e uma inocência ofensiva, bimbalhando estupidez, valha a verdade. Só mais a "prima Rufina!, como ela desde criancinha se acostumara a chamar a criada preta. Prima Rufina tinha vinte e muitos, e era bem enérgica...Plantaram pereira, pessegueira, uma horta grande. Nízia tricotava, tricotava, fazendo sapatinho, paletozinho, touquinha de lã pros filhos desses homens. Prima Rufina vendia tudo na cidade , couve hoje, pêssegos verde pra doce amanhã, trabalhinho de lâ todos os dias. Eu sei que chegava muito pra elas viverem e até Nízia guardava um pouco para a velhice.
   Prima Rufina saía com o baú na mão, ia na casa dum, na casa doutro, se afreguesou num instante, com tanta lábia... Pera de presente pra filha de Dona Maria, bala de açúcar pros filhos de seu Guimarães, saber seu Quintinho como passou: trazia sempre dinheiro pro sustento. Menos o tostão ficado na venda, em troca da boa pinga de Deus.
   Nízia olhava a dinheirama se engrossando, porém não sabia que dinheiro se gasta noutras coisas; e os mil-reis continuavam empilhados na gavetinha da cômoda. Prima Rufina é que aprendeu a vida...Não contava nada, quieta, preparando a janta, cachimbo no beiço grosso. No entanto bem que  aprendeu... Não durou muito, se enrabichou por um canhambora safado que vivia ali mesmo, nas barbas da cidade. O filho da mãe abusou dela quanto quis, deixou prima Rufina barriguda e inda por cima desapareceu de repente, levando trinta e seis mil-reis que pedira emprestado para ela. Nízia olhava aquela barriga redondinha que nem arandela, afinal perguntou.
   -Uaí! nha Nízia, é doença! Estamo trabaia má, barriga empina. A ,muié de nho Marconde já me premeteu limão-brabo pra mim. Limão brabo sara eu!
    Nízia pensava no antraz do pai - e tinha medo.
   Barriga, de tanto crescer, teve um dia em que careceu botar o desgraçadinho pra fora. Prima Rufina veio correndo pra chácara, deixou o baú por aí, nem sabia mais na casa de quem, só portando na venda pra comprar a garrafa de caninha.
   - Olha que tu vais por bom caminho, rapariga!
   - Cuida de seu negócio, viu?
   Chegou, fechou-se por dento no quarto, e o filho veio vindo sem prima Rufina desse um gemido, tal e qual os animais do mato. Nízia mandara ela preparar a janta. " Não posso prepare mecê!" ela roncava apertado. Que seria que tinha sucedido pra prima Rufina!....Era o antraz, na certa...Nízia teve mortes, do medo de ficar sozinha.
   - Mecê se deite, num s'incomofr cum eu!
   Quando ela vinha chamada por aqueles guinchos abafados, que nem choro de criança. Não era choro, não naturalmente prima Rufina que sofria com o antraz...Que havia de fazer? Deitou. Perguntou pra escuridão. Não era nada. Meia inquieta adormeceu.
   Prima Rufina, quando viu que não tinha mais vida na casa. se levantou. Pinga já estava toda no lugar do tiziu saído e sonhando na capa do xadrez. Carecia de coragem. Pois foi na guarda-comida buscar o espírito-de-vinho e mamou na garrafa mesmo. Enrolou bem a criancinha e saiu. Saiu sim! De vez em quando sentava no caminho, suor correndo bica de dor, vista feito vidraça de neblina...Não era madrugada ainda a preta ja naão tinha mais filho no braço. Dinheiro? não vê que se esquecera de trazer: primeira venda entreaberta, pronto: entrou. Foi um pifão daquelas! sò dia velho, empurrou a porta da casa, rindo boba, com os olhos derretidos num choro sem quere, cantando o "Nossa Gente, Toca zumba, zumbam zumba"...Nízia até chorou de susto, pensando que prima Rufina estava maluca. Que maluca nada! era mais infelicidade saindo de mistura com bebida.
  Prima Rufina ficou doente uns dias. Depois sarou e aprendeu. Quando tinha vontade, ia nas vendas procurando homem disposto. Porém não sei como fazia, sei que nunca mais teve antraz. E foi desde aquela bebedeira que ela pegou chamando Nízia de "mia fia".
   Nízia, vinte , vinte e um, vinte e dois, continuava esquecida naquela chacrinha sem norte. Não tinha nada de feia, principiou se enfeitando, foi na cidade algumas vezes...Ficava no portão parada, sempre  de hora em hora alguém havia de passar...Passava porém mal reparava  em Nízia. Pois até, uma feita, ela foi numa loja concorrida da cidade, se encostou no balcão esperando. Os caixeiros passavam, serviam todo mundo, pois não é que esqueceram de servir Nízia! Esqueceram meu caro! Não estou fantasiando não! Então ela  chamou um e pediu entremeio.
    - Sim, senhora, já trago.
   Outro pediu que ele endireitasse a pilha de chita quase caindo, começou a endireitar, endireitou, não sei quem pediu entremeio pra ele, serviu outra freguesa e esqueceu Nízia. Ela ficou ali muito serena,e esperando. Quando viu que entremeio não vinha mesmo,desolada, foi-se embora. e prima Rufina continuou comprando tudo quanto. Nízia precisava.
    Desejos, não posso dizer que não tivesse desejos, teve. Olhava homens passando, alguns eram bem simpáticos, havia de ser bom com eles... Mas iam distraídos na rua republicana já! Nízia voltava murcha pra dentro, sempre matutando que havia de ser bom com eles. Porém isso era  fogo-de-palha. Sapatinho de lã toma atenção se não agente erra o número dos pontos...Quedê tempo pra imaginar nos homens?...
   O que  cresceu foi a intimidade com prima Rufina. Começaram a conversar mais. Nízia inventava curiosidades depois do jantar, ali sentadas na varanda. A filha de nhô Guuimarães enfim tinha casado com o moço médico; o caso da mulher que matou o marido na rua Major Quedino, e assim. Então quando teve aquela dor de dente, por causa duns limões verde que andou chupando e comeram o esmalte dum canino, prima Rufina fez ela beber um trago importante de cachaça. Nízia quase morreu de angústia, ficou tonta, lançou que foi um horror. Prima Rufina sempre junto dela, consolando, limpando a blusa suja, deitando a bêbeda com tanto carinho... A dor de dente passou, isto é que eu sei. E a intimidade entre as duas aumentou muito. Nunca mais Nízia bebeu, mas a outra contava as razões da pinga, e Nízia acabou sabendo as tristezas do nosso mundo.
   Teve um momento em que a humanidade pareceu se lembrar dessa apartada. Foi com o seu Lemos o caso. Seu Lemos era fluminense não sei donde, meio pálido, com bigodinho torcido e cabelo crespo repartido do lado. Vinha pela estrada, sem custo carregando o corpo baixote, saber duas, três vezes por semana o protetor como passou, lá num sítio enorme que ficava mais ou menos onde é o bairro do Anastácio agora. Assim também o graúdo, que já dera pistolão pra ele entrar como carteiro nem bem chegadinho do Estado do Rio, não se esquecia de arranjar coisa milhar. Homem...será mesmo que seu lemos queria coisa milhor?  Indivíduo macio, fala rarra, não olhando. Sentado, ficava ali uma meia hora, respondendo si perguntavam, que ele ia bem, que mamãe também ia passando bem, que o serviço ia muito bem...Tudo ia bem pra seu Lemos! Depois pegava no chapéu, ia-se embora pra casinha, alugada debaixo do viaduto do chá.
     _ Sua benção, mamãe.
    - Como vai seu Anastácio?
    - Bem.
   Comiam. Estou pensando que foi esse Anastácio que decerto de nome pro bairro, não?...Depois seu Lemos ia palitar o dente na janela baixa. A noite vinha descendo, tapando o Anangalbaú com uma escureza solitária. Os quintais molhados do vale, botavam uma paininha de névoa sobre o corpo e ficavam bem quietinhos pra esquentar. Era um silêncio!... Poc, poc, poc,,, Alguém passando no viaduto. Sapo, que era uma quantidade. Euzinha aqui, luzinha ali, mais sapo querendo assustar o silêncio, qual o quê! silêncio matava São Paulo cedinho, não eram nem nove horas, Seu Lemos não tinha mais no que imaginar. Ia direito botar o restico de palito mastigado no lixo, fazia o Nome-do-Padre e caía na cama já dormindo. A mãe inda ficava rezando, uns pares de horas, pra cada santo esquisito que ela escarafunchava lá de quanta alcova tem o paraíso. Santo Anastácio mártir; novena se São Nicolau; oração pra evitar moderdura de cobra; oração pra evitar esbarro-de-esômago; oito Crem-dos-padre para não pegar fogo na cidade. Acabava rezando a missa das almas do outro mundo, de que  ela tinha um vruto dum pavor. Vela também se acavava. Era um despesão de vela naquela casa, porém São Paulo nunca pegou fogo, ninguém não teve esbarro-de-estômago na família. e seu Lemos nunca foi mordido de cobra quando ia na rua do Carmo, rua de Santa Teresa, por ali, entregando carta. Filho bom ele não era não...Respeitar a mãe, respeitava nisso da  gente tomar a benção, não fumar na frente dela, falar bom-dia, boa-noite, levar ela ver Senhor Morto na noite de Sexta-feira Santa. Mas a pobre que cozinhava,inda lavava e engomava toda a roupa do filho, ete. Nem conversa. Aliás seu Lemos não conversava mesmo com ninguém. E quando a mãe morreu de repente, o que sentiu foi o vazio inquieto de quem nunca lidara com pensão nem lavandeira.
   E foi então que, palitando dente, ele afinal principiou reparando naquela moça do portão. No dia seguinte, francamente, foi até lá só para ver que tinha mesmo moça no portão daquela chacra. Nízia estava lá meia lânguida, mui mansa, não pedindo nada, só por costume duma  esquecida que não esperava mais ninguém. Quando palitou de novo a barulhada dos sapos nessa noite, seu Lemos começou a pensar que ali estava uma boa moça para casar com ele. Não refletiu, não comparou, não julgou, não resolveu nem nada, seu Lemos pensava por decretos espaçados. Pois um decreto aparaceu em letras vagarentas no bastunto dele: Ali está uma boa moça para casar com você. Na palitação do dia, estava escrito na cabeça dele: você vai casar com a moça do portão. então seu Lemos foi visitar o Anastácio e, passando, cumprimentou a moça do portão. Nízia estava já tão esquecida de si mesma que nem se assutou que o cumprimento, respondeu. Seu Lemos, que não via razão pra visita todo dia na chacra do padrinho, passava, cumprimentava, andavaa mais meio quilômetro pra disfarçar, ficava por ali dando-de-agarra-compadre do caminho, voltava, e cunprimentava de novo, rumo de Anhangabaú.
   Depois de mês e meio de tanto bate-perna seu Lemos, palitando, soletrou o decreto novo aparecido de repente na cachola: Amanhã é domingo pé-de-cachimbo, e você vai pedir a mão da moça da chacra. Note bem a graça desses decretos: de primeiro so falava em moça do portão, mas agora vinham falando em moça da chacra, mais útil pra casar.
    Ali pelo meio-dia, prima Rufina muito espavorida veio ver quem e estava batendo. Era seu Lemos. Prima Rufina quase que dá o seuíte no indivíduo, mas enfim Dona Nízia devia de saber o que era aquilo. Decerto encomenda....
    -  Mecê entre!
   Seu Lemos não esperou nem dois minutos no copiar, veio Nízia, assim como estava, com o trabalhinho no colo. Ele fitou que vinha pedir a mão dela em casamento. Ela respondeu que estava bom. Foi lá dentro dizer que prima Rufina preparasse também uns bolinhos pro café e voltou. entraram na varanda. Nízia continuando o sapatinho pricipiado.
    - Como é sua graça?
   Olhou pra ele espantada. perguntar como era a graça dela...Decerto que ela é que não sabia! Seu Lemos esclareceu:
   - Me chamo Lemos, José Lemos, seu cirado. Queria também saber o nome da senhora.
   - Nízia Figueira, sua criada.
   - Sim senhora.
   Seu Lemos parou de brincar com os dedos emcima das pernas.
   _ A senhora gosta muito de fazer sapatinhos, Dona Nízia?
   - Já estou muito acostumada.
 - Muito bonito esse que a senhora está fazendo, é presente?
   - Não senhor, eu vendo.
   - Ahn...
   - Quantos faço; prima Rufina vende nas casas.
    - Sei...Quem é prima Rufina?
   Seu Lemos recomeçou brincando com os dedos em cima das pernas.
   - A preta que recolheu o senhor.
   - Anh...Mas ela não é sua prima da senhora, não?
   - É prima criada. Me acostumei chamando ela de prima Rufina desde criança. E ficou.
  - Engraçado.
  Trinta e seis, trinta e nove, quarenta e oito, pronto, acabava mais uma carreira.
  - Está um dia bonito hoje, não?
   - Está mesmo.
   - Que sol mais claro, não?
  - Quem sabe está incomodando o senhor? eu fecho a janela...
   - Não senhora, até nem me incomoda.
  Veio o café com leite e bolinhos. Tomaram café com leite e comeram dois bolinhos cada um. Fazia uma tarde sublime lá fora. Claro, claro, com o sol quente despencado sobre os campos. E por esse instinto de domingo que a natureza parece ter, aquela baixada estava tão sossegada, tomava um ar de repouso largado, imensamente  largado, esparramado no chão. Eles ficaram ali fechados na varanda, seu Lemos palitava, Nilza tricotava, até que que enxergavam os primeiros rumores longe no horizonte, entardecendo o dia.
   - Bom dia, já vou indo.
  Então Nízia percebeu a ventura inconcebível que lhe trazia aquele homem. olhou. Viu na rede o bigode e o topete simpático. Sorria pra eles. O vestido de casa recortava as redondezas do corpo dela, feito como era costume naquele tempo, quase gordo, mais gordo que magro, peitos enchumaçados, pernas grossas, curtas, mãos parando no meio. Na cara , os olhos castanhos embaçavam de rubor liso que vinha empalidecendo até um queixo  feito barrete frígio. Nariz simples, com as narinas quase grandes, ondulando nas mesmas curvas dos bandós castanhos. A boca sorrindo era pálida, com dentes cerrados e monótonos. Falou um "Já vai" meio pergunta, meio aceitação duma calma dominical.
   - Já vou sim, Dona Nízia, são horas. Tive muito prazer em conhecê-la.
   Inquietação antiga desmanchou a cara dela:
   - O senhor volta!
   - Volto. Não volto sempre porque creio que vou mudar de emprego. Trabalho no correio, é . Meu padrinho parece que vai arranjar qualquer coisa pra mim na Secretaria do Tesouro, mas volto. passe bem.
  Ela entregou-lhe a mão e a vida:
  - Passe bem.
   Acompanhou-o até o portão. Ficou ali, enquanto ele partiu pelo caminho ruim. Tomando a estrada larga seu Lemos nem disse outro adeus. Nízia entrou; andava meia sem serviço pela casa.
  - Essas toalhinhas de crochê estão carecendo lavar, Prima Rufina.
     - Antão num lavei elas na semana retrasada memo!
  - Mas olhe como estão!
   - Num inxergo nada não, porém, mecê qué eu lavo! Tou vendo mas é que seu Lemos veio atrapaiá tuda a vida desta casa! Mecê intá parece que enm num sabe adonde assentá! Cadera num farta! Sente, fique sussegada que é mió!
    - Você  não gostou de eu ficar noiva, é?
   - Até que gostei bem. Mecê carece dum home nesta casa que lhe proteja mas porém ansim! Premero que aparece, vai ficando noiva! Nem sabe si seu Lemes quem é, arre, credo! Será que anda de bem com os puliça! Isso que num posso assigurá pra mecê!
  - Como você está braba comigo. Prima Rufina! Ele é empregado no correio!
   - Isso antão é imprego que se tenha! Gente boa num carece di andá iscrevendo carta não! Veve que nem nóis memo, bem assusssegado no seu canto! Mia fia, vassuncê num cunhece nada deste mundo, mundo é mais ruim que bão...Essa história di sê impregado no correio, num mi parece que seja coisa dereita não, imfim...
    Foram deitar. A felicidade de Nízia fizera dela uma desgraçada. Do passado e esquecimento de dantes não se lembrava, mas  agora é que fazia ela sofrer. Noivo, seu Lemos achou que não carecia mais de passar todo santo dia pela casa tão longe da noiva. Tarde veio e seu Lemos não veio. Nízia vivia num deslumbramento simultâneo de felicidade e amargura. Que amasse não digo, mas tinha alguém que se lembrara da existência dela. Isso lhe dava um gosto inquieto, gosto de comparação, gosto de mais de um, não sei se explico bem. De repente ficara desinfeliz. " Vem amanhã", murmurejou sofrendo de prazer. E repetiu. "Vem amanhã" até na quinta-feira.
    Seu Lemos chegou não eram bem seis horas,jatando. Entregou pra ela o brochinho de ouro escrito LEMBRANÇA.
      - Muito obrigada, seu Lemos!
       - Senhora tem passado bem?
   Etc....
   Ficou lá até oito, creio. Nizia trabalhando, sob o lampião de querosene. Ele assustando as assombrações do teto. Falavam de vez em quando aquelas frases de companheiro que não espera resposta, só pra certidão de existência junta. Um pouco de Correio, um pouco de trabalhinho de lã. Prima Rufina pitando na cozinha. Seu Lemos afirmou que voltava no domingo e então haviam de combinar o casório.
   Não veio no domingo, veio na terça-feira. Que andara muito atrapalhado por causa duma visita que fora obrigado a fazer. Depois tivera de levar uma carta do tal pra um graúdo, estava quase arranjado o lugar na Secretaria. Trazia aquela meia dúzia de lencinhos, desculpasse. Nízia foi lá dentro e voltou. feliz duma vez, com o cachenê feito por ela na mão. Seu Lemos agradece e achou que estava muito bonito. Estava. Era pardo, todo com listas pretas, barra de lã com seda.
   Seu Lemos levou uma semana sem aparecer. Só na outra terça-feira estourou na chacrinha, muito afobado, só tivera tempo pra arranjar aquelas cravinhas, de tão atrapalhado que andava, desculpasse. Saíra a nomeação e no dia seguinte tomava posse.
   - Custou mas enfim!...
   - Quem espera sempre alcança.
   - É mesmo mas custou. Já ia desanimando.
    Seu Lemos estava mais tagarela. Nesse dia sapatinho de lã não entrou na conversa, era só serviço ruim do correio, serviço bom da secretaria, ordenado bem melhor, seu chefe de secção, " me disseram" e outras coisas nessa toada. Nízia escutando. As palavras caíam dentro dela ta, qualmente flor de paína, roseando a alma devagar. Foi-se embora mais cedo? Não fazia mal! Nem soube que eram nove horas, que eram dez e muito mais, ficou sozinha no trabalho, sem saber que trabalhava, acabando carreira numa conta, acabando sapatinho,acabando outro sapatinho, escutando. Não tinha nem bulha na noite fora. Os homens estavam dormindo em São Paulo. Nem poeira, nem grilo, nem vento, que nada. Um silêncio de matar gesto do braço. Nízia tricotando sem saber. A luz do lampião mariposava em volta da cabeça dela e, no calor seco da sala, as palavras de seu Lemos se pronunciavam ainda, sonoras de verdade, como afago doce de companheiro. Nízia sofreu que você não imagina. Sofreu aquele sapatinho de lã; sofrei por causa da Prima Rufina que estava envelhecendo bem depressa; sofreu aqueles vestidos de cassa eternamente ps mesmos, carecia fazer outros; as toalinhas de crochê não ficaram bem lavadas; também Prima Rufina nunca trouxera uns pés de cravina para plantar no jardim! flor tão bonita....
    Todas essas infelicidades que nunca sentira, e que doem tanto pra que, não pode ter outras: era a voz de eru Lemos que trazia pondo como espelho diante dela, o corpo do companheiro. Foi pro quarto e pela primeira vez depois do antrás da preta, não dormiu logo. Pensar não pesnou, er atambém do genero dos decretos. Como decreto não vinha, ficou espalhada na escuridaão, sentindo apenas que vivia feloz, encostada na vida do companheiro.
    Seu Lemos levou duas semanas sem paarecer.
    - Poisé!si mecê já estivesse priguntado pra ele adonde que ele mora, eu ia até lá sabê si é douença....
   Numa quarta-feira seu Lemos apareceu. Vinha com barba por fazer e de mãos vazias, puxa! que serviceira! estava arrependido. Depois, tanta responsabilidade!....Entregar carta, a gente entrega e pronto, agora? escreve número aqui, escreve número noutra parte, e não se pode errar porque livro de Secretaria não é coisa que a gente ande rabiscando nem raspando. depois: ainda não estava bem enfronhado do serviço, que barafunda! nunca imaginei que fosse tão difícil!....
     O engraçado que ali mesmo, diante de Nízia, sem se lembrar dela, seu Lemos estava lendo os decretos da cabeça. E não pense que lia todos em voz alta que nem estou fazendo, não! Parava de falar às vezes, e lia só consigo. E que diferença agora a cabeça de seu Lemos! Antigamente era vazio, grande sem anda, só de três em cinco palitações um decretinho curto. agora? era ver página do Correio Paulistano, " que barrafunda!, como ele dizia...Foi-se embora remoendo decreto sem parda,
   Nízia ficou na porta, metade do corpo na noite, metade dentro de casa, partida pelo meio. Bem sentiu que seu Lemos, coitado!. não era por querer, porém, estava escapando dela. Voltou pra dentro, e custava se lembrar do que seu Lemos falara. Quis sossegar-se. Coitado! tanta ocupação...Sossegou-se mas num sossêgo, sozinho, de morte e desagragação. Quando ficou bem só, não sofreu mais. Dormiu.
   Seu lemos só apareceu vinte dias depois. Vinha magro, passando. Viu Nízia no portão, aprou pra saudar. Tinha que ir ver o protetor, por causa duns embrulhos na repartição. ela meia que ficou até espantada com a figura do estrangeiro. Teve uma dor terrível.
   - Na volta os enhor entre sempre seu Lemos?
   - Pra falar verdade, Dona Nízia, não sei si posso parar, sii puder , paro. Mas não se incomode por minha causa não.
   - Passe bem.
   Seu lemos tinha revivido nela uma infelicidade pesada. Mas não desejou que seu Lemos voltasse, como seria milhor pra ela e foi. Seu Lemos não voltou. Padrinho deu estrilo com ele por causa de tal encrenca, seu Lemos zangou com o padrinho, seu lemos saiu de secretaria, seu Lemos banzou sem decretos uma porção de dias, seu lemos arranjou emprego numa loja de fazendas. O coitado não queria riqueza, queria sossego...Arranjou uma mulata gorda pra cozinhar, dormiu uma noite no quarto de Sebastiana e depois todas as noites a Sebastiana no quarto dele, que era mais espaçosos. Sebastiana cozinhavaa, porém não era cozinheira mais; dona de casa sempre querendo chinela novo no pé cor de sapota.
   Nízia...Teve um homem que veio morar bem perto da chacrinha dela. Não demorou muito uma família vizinhou com o tal. E aos poucos fdoi se azendo a rua Guaicurus, foi-se fazendo amsi um bairro desta cidade ilustre. Uns se davam com os outros; uns não se davam com os outros, ninguém não se dava com Nizia; Prima Rufina se dava com todos. Nízia serenamente continuava, esquecida  do mundo.
  Deu mais é pra beber. Banzando pela casa, foi matar uma barata e encontrou debaixo da cama de Prima Rufina a garrafa que servia pra  de noite.Roubou um pouco por curiosidade. Muito pouquinho, de medo da outra. A  primeira sensação é ruim, porém o calor que vem depois é bom.
   Não levou nem mês, Prima Rufina percebeu. Não falou nada, só que trouxe um garrafão de pinga, e principiaram bebendo juntas. Cada mona!...Não digo que fosse todo dia, pelo contrário. Nízia trabalhava. Prima  Rufina vendia, sempre as mesmas. Trintonas, quarentonas, isto, é, Prima Rufina, sempre muito mais velha que a outra. Dera para envelhecer rápido, essa sim, uma coitada que não o mundo porém a vida esquecera, quase senil,arrastando corpo sofrido, cada nó destamanho no tronezelo, por cuasa do artritismo. Quando a dor era demais, lá vinha o garrafão pesado:
   - Mecê também qué, mia fia?
  -Me dá um bocadinho pra esquentar.
   - Pois é, mia fia, beba mesmo! Mundo tá ruim, cachaça dexa mundo bonito pra nóis.
   Era dia de bebedeira.Prima Rufina dava pra falar a chorar alto. Nizia bebia devagar, serenamente. Não perdia a calma, nem os traços se descompunham. A boca  ficava mais aberta um pouco, e vinha um filigrana vermelha debruar a fímbria das narinas e dos olhos embaçados. Punha a mão na cabeça e o bandó do lado esquerdo se arrepiava. Ficava na cadeira, meio recurvada, com as mãos  nos joelhos, balanceando o corpo instável, olhar fixo numa visão fora do mundo. prima Rufina se encostando em quanta parede achava, dnado embigada nos móveis puxava Nízia. Nízia se erguia,a garrafa o garrafão em meio, e as duas, se encostando uma na outra, iam pro quarto.
   Prima Rufina quase deixou cair a companheira. Rolou na cama, boba duma vez chorando, perna pedente, um dos pés arrastando no assoalho. Nízia sentava no chão e recostava a cabeça na perna de Prima Rufina.Bebia. Dava de beber pra outra. Prima Rufina punhaa mão sem tato na cabeça de Nízia e consolava a serena:
   - È isso memo. mia fia...Num chore mais não! A gente toma pifão dá gosto e bota disgraça pra fora...Mecê pensa qye pifão num é bão....é bão sim! pifão...pifaãozinho...pra esquentá disgraça dessemundo duro...O fio de mecê, num sei quedê ele não. Fio de mecê deve de andá por aí, rapais, de certo home feito.... De certo já isbarrrô cum ele, mecê nym cunheceu seu fio, seu fio num cunheceu mecê...Num chore mais  ansim não!... Pifão fis mecê esquecê seu fio, pifão..pifão...pifãozinho....
   Nízia piscava os olhos secos, embaçados,entredormindo. Escorregava. Ia babar num beijo mole sobre o pezão de Prima Rufina. Esta queria passar a mão na outra pra Consolar, vinha atpe a borda da cama e caía sobre Nízia, as duas se mosturando num corpo só. garrafão, largado, rolava um pouco, parava no meio do quarto.Prima Rufina ainda se mexia, incomodando Nízia. Acabava se aconchegando entre as penas desta e fazendo daquela barriga estufada um cabeceiro cômodo. Falava pifão não sei qiantas vezes e dormia. Dormia com o corpo todo engruvinhado de tanta vida que passara nele,  gasta , olhos entreabertos, chorando.
   Nízia ficava piscando, piscando devagar, mansamente. Que calma no quarto sem voz na casa...Que calma na terra inexistente pra ela...Piscava mais. Os cabelos meio soltos se confundiam com o assoalho na escureza da noitinha. mas inda restava bastante luz na sereno, um reflexo leve de baba no queixo, rubor mais acentuado na face conservada, sem uma ruga, bonito. Os beiços entreabriam pro suspiro do sono sair. Adormecia calma, sem nenhum sonho e sem gestos.
  Nízia era muito feliz.
                                         (BELAZARTE)








sábado, 25 de julho de 2020

Machado de Assis- Missa do Galo

           



  Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela tinha trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
    A casa em que eu estava hospedado era do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Ás dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez ouvindo dizer a Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe  que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía, e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a pincípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumamar-se, e acabou achando que era muito direito.
   Boa conceição! Chamavam-lhe a "santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos.
  No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar...
       Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Magaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Côrte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala de frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e saíria sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria a outra, a terceira ficava em casa.
   - Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? - Perguntou a mãe de Conceição.
  - Leio, D. Inácia
  Tinha comigo um romance, os "Três Mosqueteiros", velha tradução, creio, do "Jornal do Comércio". Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um cadeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo negro de D'Artagnan e fui-me às aventura. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas; Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas. Mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, eitura. um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da lEram uns passos no corredor que ia da sala de visita à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
  - Ainda não fui? - perguntou ela.
  - Não fui; parece que ainda não é meia-moite.
   - Que paciência!
  Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não despertada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
   - Não! qual! Acordei por acordar.
   Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; parecia não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não aflingir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
   - Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
   - Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos "Mosqueteiros".
   - Justamente: é muito bonito.
   - Gosta de romances?
   - Gosto.
  - Já leu a "Moreninha"?
   - Do Dr. Macedo? Tenho lá em Magaratiba.
   - Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
   Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando so olhos por entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços para umedecé-los. Quando acabei de falar, não me disse nada, ficamos assim alguns segundo. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
   Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
   E logo alto:
   - D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu....
   - Não, não ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia.Tem tempo. Você perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
   - Já tenho feito isso.
   - Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
   - Que velha o que , D. Conceição?
   Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas: agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com os desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custava levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objetto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a  mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
   - É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
  - Acredito, mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça; São João não digo, nem Santo Ântonio...
   Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármote da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços muito claros e menos magros do que se poderia supor. A vista não era nova para  mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar de pouca claridade podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outrras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber  por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrier e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, reprimia-me:
    - Mais baixo. Mamãe pode acordar.
  Então saía daquela posição, que me enchia de gosto tão perto ficavam as nossas caras. realmente, não era preciso falar alto para se ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me  que eram pretas. Conceição disse baixinho:
    - Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
    - Eu também sou assim.
   - O quê? - perguntou ela, inclinando o corpo para ouvir melhor.
   Fui sentar-me na cadeira que ficava oa lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
    - Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando custa-me a dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, tono a deitar-me e nada.
   - Foi o que lhe aconteceu hoje.
   - Não, não - atalhou ela.
   Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu me desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava uma  outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprima-me:
   - Mais baixo, mais baixo...
   Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoas, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite que me aparecem trancadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Umas das que ainda tenho frescas é quem em certa ocasião, ela que apenas era simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respsito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estrmeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espehlo, quie ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
  Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópratra"; não me recordo o asunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareceiam feios.
  - São bonitos - disse eu.
   - Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
   - De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
   - Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode por na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
   A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Pensei que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça a minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeios, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando pensou no passsado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabua que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como o princípio, e quase não saía da mesma atitude. Não tinha os grande olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
  - Precisamos mudar o papel da sala - disse daí a pouco, como se falasse consigo.
   Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie do sono magnético, ou que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os ohos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua o silêncio era completo.
   Chegamos a ficar por algum tempo - não posso dizer quanto -interamente calados. O rumor único e escasso era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou de uma espécie de sonolencia; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estrar devaneando. subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: ! Missa do Galo! Missa do gGalo!"
   - Aí está o companherio - disse ela levantando-se. - Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo e ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
   - Já serão  horas? - perguntei.
   - Naturalmente.
   Missa do galo! repetiam de fora, batendo.
  - Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.
  E com o mesmo balanço do corpo. Conceição enfiou pelo corredor adentro, pisando mansinho. Sai à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fiquei à conta dos meus dezessete anos.
   Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a, como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apolexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que se casara com o escrevente juramentado do marido. 

 FIM







substantivo masculino
  1. LINGÜÍSTICA
    palavra, locução ou acepção mais agradável, de que se lança mão para suavizar ou minimizar o peso conotador de outra palavra, locução ou acepção menos agradável, mais grosseira ou mesmo tabuística: dianho(por ' diabo ', palavra que o povo procura evitar), a interj. caramba (por 'caralho', tabuísmo) etc.


Socapa. substantivo feminino Disfarce. Dissimulação. locução adverbial À socapa, disfarçadamente, dissimuladamente. Meneses trazia amores ci


comborça 

amante de homem casado ou de homem com outra amante. Do céltico *combortìa, «aquela que compartilha ...


Ébrio significa embriagado ou bêbado. O termo é utilizado para designar aquele indivíduo que se embriaga por hábito, que é dado ao vício de beber.