sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O ISQUEIRO - CONTOS DE ANDERSEN

  Ia um soldado andando pela estrada com passo marcial: um dois! um, dois! Levava o sabre ao lado e a mochila às costas. voltava da guerra, e ia a caminho de casa.
   Encontrou no caminho uma feiticeira velha, de feiura espantosa! O lábio inferior pendia-lhe até o peito. Ela o cumprimentou:
  - Bom dia, soldado! Que linda espada levas, e que mochila grande! Também, se quiseres, poderás ter tanto dinheiro como te der na fantasia.
    - Obrigada, velha feiticeira! - replicou o soldado.
   - Vês essa enorme árvore? Pois está toda ôca. Sobe até o topo e verás que tem um buraco. Por ele poderás descer até o interior da árvore. Levarás esta corda amarrada ao corpo, e eu te içarei quando me deres o sinal.
    - E que terei de fazer lá embaixo? - indagou ele.
   - Apanhar dinheiro. Devo dizer-te que lá embaixo, no fundo da árvore, há uma enorme sala muito bem iluminada; pendem do teto mais de cem lâmpadas. Verás três portas, que poderás abrir, porque as chaves estão na fechadura. Abrindo a primeira, verás no meio da sala uma arca de madeira; e deitado em cima dela um cão, cujos olhos são do tamanho de um pires. Não tenhas medo: vou dar-te meu avental azul, que estenderás no chão, e , sem perder tempo, porás o cão em cima dele. Só então abrirás a arca, e tirarás dela quanto dinheiro quiseres. São só moedas de cobre, e, se preferes prata, terás de abrir a segunda porta. Lá verás outro cão, de olhos do tamanho de mós de moinho. Não tenhas medo: mete-o no meu avental e junta quanto dinheiro quiseres. Agora, se preferes ouro, poderás também tirar quanto quiseres, mas no terceiro quarto. Ah! Mas lá encontrarás um cão de olhos tão grandes como a torre redonda de Copenague. Aquele sim, é um senhor cão! Não tenhas medo: pondo-o no meu avental poderás apanhar quanto ouro quiseres, tirando-o do terceiro cofre.
    - Tudo isso é muito bom- disse o soldado -mas que queres que eu faça em troca disso? Porque certamente que hás de querer alguma coisa, velha feiticeira.
   - Não, não quero nem um vintém; só te peço que me tragas um isqueiro velho, que minha avó esqueceu lá embaixo, da última vez que entrou na árvore.
   - Pois bem: ata-me a corda à cintura.
   - Pronto! E aqui está também o meu avental.
    E o soldado subiu à arvore, escorregou pelo tronco oco, e foi ter a uma grande sala, toda iluminada, conforme dissera a feiticeira.
    Abriu a primeira porta. Credo! Lá estava o cão, que fixava nele olhos do tamanho de um pires!
   - És um velo rapaz! - disse logo o soldado, enquanto pegava no cão e o depositava sobre o avental da bruxa. 
   Encheu então os bolsos de moedas de cobre, fechou de novo a arca, pôs de novo o cão em cima dela e dirigiu-se para a segunda porta. Abriu-a, e a primeira coisa que viu foi o cão de olhos enormes, do tamanho de mós de moinho.
   - Não me olhes assim, tão fixamente- disse ele. - Podes ficar vesgo!
   E pôs o cão no avental!; mas, quando viu quanta prata havia no cofre, deitou fora todas as moedas de cobre e atulhou os bolsos e a mochila de moedas de prata. E dali foi para a terceira porta, que abriu. E...que horror! Aquele cão tinha, na verdade, os olhos do tamanho da torre de Copenague! E ainda por cima, girava nas órbitas, como rodinhas de fogo de artifício.
   - Boa tarde! - disse ele, levando a mão ao boné.
    Cumprimentava o cão, porque  jamais na vida vira animal que inspirasse tanto respeito. Encarou-o um instante, como se lhe pedisse licença, e depois ergue-se e o depôs no avental e abriu  a arca. Deus nos acuda! Quanto ouro! Daria para comprar a cidade inteira de Copenague, com todas as confeitarias, e todos os soldadinhos de chumbo, e chicotinhos, e cavalos de balanço do mundo! Era muito dinheiro! E o soldado lançou fora toda a prata que recolhera, para levar ouro, só ouro. Encheu os bolsos, a mochila, o boné, até nas botas meteu moedas de ouro - tantas e tantas que quase  nem podia andar. Agora sim, que estava rico!
   Pôs o cão outra vez sobre o cofre, fechou a porta e gritou:
   - Puxa a corda, velha feiticeira!
   - Achaste o isqueiro? - perguntou ela antes de içá-lo.
  - E esta! Tinha-se esquecido dele!
   Foi em busca do isqueiro, e, quando o achou, deu o sinal. A velha puxou-o para cima, e logo o soldado se viu de novo na estrada, com os bolsos, as botas, a mochila e o boné cheios de ouro.
  - Para que queres tu este isqueiro? - perguntou à bruxa.
   - Isso agora não é da tua conta; já tens o dinheiro, dá-me o que me pertence.
   - Escuta, velha feiticeira: se não me disseres para que queres este isqueiro, corto-te a cabeça com o meu sabre!
   - Pois não te digo!
    E então o soldado cortou-lhe a cabeça. A velha ficou ali estendida; ele fez uma trouxa de dinheiro com o avental dela, lançou a trouxa aos ombros, meteu o isqueiro no bolso e marchou para a cidade.
   Era uma cidade muito bonita; ele se dirigiu ao melhor hotel, pediu o melhor apartamento, o melhor jantar. Pois que era agora rico, havia de aproveitar bem a riqueza.
    O criado que o servia estranhou que homem tão opulento tivesse botas tão velhas e acalcanhadas; mas é que ele não tivera tempo de comprar outras. No dia seguinte, porém, tratou de se vestir e calçar como lhe convinha. Agora sim, parecia um cavalheiro  elegante; e todos lhe falavam nas grandezas da cidade, e no seu rei, e na amável princesa, sua filha.
   - E onde poderei vê-la? - indagou o soldado.
   - Ah! quanto a isso, não é possível. Ela mora em um castelo de bronze, cheio de torres, e cercado de altas muralhas. Ninguém lá entra, a não ser o rei, porque uma profecia diz que ela casará com um soldado raso, e o rei quer impedir a todo o transe que a profecia se realiza.
   - Ah! Se eu pudesse vê-la - pensou o soldado.
   Mas era impossível obter licença para entrar no castelo.
   Começou então a levar uma vida muito alegre e divertida: ia teatro, passeava de carro no Parque Real, e dava muito dinheiro aos pobres - coisa muito digna de louvor. Lembrava-se bem de quanto é triste não ter a gente dinheiro para gastar! Agora que estava tão rico, também tinham muitos amigos; todos o elogiavam, dizendo que era um moço muito distinto - um perfeito cavalheiro - palavras que muito lisonjeavam a sua vaidade.
  Mas, como gastava sem medida, e nada ganhava, chegou por fim um dia em que se viu com duas moedas apenas. Acabara o dinheiro; viu-se forçado a deixar os quartos elegantes em que morava, trocando-os por um sótão; e tinha de limpar as botinas, e até  remendá-las, com uma agulha de cerzir. E já nenhum amigo ia mais visitá-lo - eram muitos degraus para subir até lá.
   Uma noite não tinha já nem um vintém para comprar uma vela, e estava às escuras, quando se lembrou do velho isqueiro que tirara do oco da árvore. Foi buscá-lo. quando bateu com o fuzil na pederneira e saltou dela uma faísca, abriu-se a porta e apareceu um cão - aquele cão de olhos do tamanho de pires, que vira lá dentro da árvore. E o cão perguntou-lhe:
   - Que ordena, meu senhor?
   - Mas que é isto! - exclamou o soldado. - Este isqueiro não tem preço, se eu puder obter dele tudo o que desejo!
   Dirigindo-se então ao cão, disse-lhe:
   - Traze-me dinheiro.
    Desapareceu o cão como um relâmpago, e voltou também com a mesma presteza, tendo na boca um saquinho cheio de moedas de cobre.
   Via agora o soldado que tesouro possuía naquele isqueiro velho, de poder prodigioso. Se dava uma pancada, aparecia o cão do cofre de cobre; se dava duas, vinha o da arca de prata; e se dava três batidas era o da arca de ouro que aparecia.
   Pode assim o soldado voltar à sua vida regalada, vestir-se com a mesma elegância, e morar em quartos de luxo. E de novo seus amigos antigos o conheciam, e testemunhavam-lhe tanta amizade com dantes.
   Mas um dia veio-lhe à memoria o caso da princesa.
   - Afinal é estranho que ninguém a possa ver! Dizem todos que é tão linda - mas de que serve isso, se tem de viver sempre encerrada em um castelo de bronze cheio de torres? Não poderei mesmo vê-la? Onde está meu isqueiro?
   Fez fogo e apareceu o cão de olhos do tamanho de pires.
   - É tarde da noite - disse o soldado - mas eu estou ansioso por ver a princesa, ainda que seja por um só momento!
   Sumiu-se o cão no mesmo instante, e, antes que o soldado tivesse tempo sequer de pensar, já estava de volta com a princesa. Estava adormecida, sobre o lombo do animal; e era de fato tão formosa que logo se via que era uma princesa! O soldado- porque era um verdadeiro soldado - não pode deixar de lhe dar um beijo.
   Saiu o cão levando a princesa; mas, à hora do almoço, disse ela aos pais que tinha tido um sonho maravilhoso, em que entravam um cão e um soldado: tinha andado nas costas do cão, e o soldado a beijara.
   - É uma história linda - disse a rainha.
   E naquela noite ficou uma dama de honor ao pé da cama da princesa,  para lhe velar o sono e ver se de fato ela sonhara, ou se haveria nisso alguma coisa estranha.
    Ora o soldado tinha  um desejo tão grande de rever a princesa, que o cão tornou a ir buscá-la. Mas a velha dama de honor se pôs no encalço do animal; e quando viu que ele desaparecia com a princesa em uma grande casa, fez na porta uma cruz, com um pedaço de giz, para poder reconhecê-la mais tarde. Foi então para casa e deitou-se. Dali a um momento tornou o cão a sair com a princesa, e, ao ver a cruz branca na porta, pegou também em um pedaço de giz e fez cruzes em todas as portas da cidade; era um cão sagaz, pois assim a dama de honor não poderia saber qual a casa marcada por ela, uma vez que todas as portas tinham cruzes de giz.
   De manhã cedo saíram o rei, a rainha, a dama de honor e todos os oficiais da casa real, para ver onde tinha estado a princesa.
  - É ali - disse o rei, ao ver a primeira a porta com uma cruz.
   - Não, querido, foi aqui - disse a rainha, vendo uma cruz em outra porta.
   - Mas...ali está outra, e outra, e mais outra! - gritavam agora todos os da comitiva.
    E viram que era inútil continuar a busca - pois que havia uma cruz em cada porta.
   Mas a rainha era dama de muito engenho, e sabia mais coisas do que andar de carro pelas ruas. Ela tomou sua tesoura de ouro e cortou e recortou um pedaço de seda; fez dali um saquinho e encheu-o de trigo mourisco. Amarrou-o na cintura da princesa e depois fez um buraquinho na ponta do saco; assim iriam caindo os grãozinhos por onde a princesa andasse.
   À noite voltou o cão e levou a princesa de novo para o quarto do soldado, subindo com ela pela parede: estava o rapaz tão enamorado dela, que só desejava ser um príncipe, para poder casar com a linda princesa.
   Não notou o animal que a princesa ia semeando trigo por onde passava. No dia seguinte não foi difícil ao rei e à rainha descobrir a casa onde estivera sua filha, e mandaram logo prender o soldado, que foi parar na cadeia. Sentado no calabouço, refletia ele na sua triste situação. Como era escuro e desagradável aquele lugar! E pior ainda foi quando ouviu a sentença:
   - Serás enforcado amanhã!
   Não era nada alegre a notícia; e ainda por cima verificou que tinha deixado seu isqueiro no hotel.
    De manhã viu a multidão de gente que ia correndo para as portas da cidade, para assistir à execução. Através das grades da janelinha viu também passar o pelotão de soldados que marchavam para o lugar da forca. Ouvia o toque dos tambores; via que todos estavam ansiosos para vê-lo enforcado, e entre aquela gente toda avistou um aprendiz de sapateiro, de avental de couro e chinelas. Corria tão açodado que uma das chinelas lhe escapou do pé e foi bater mesmo na grade da janela, onde estava o soldado, que gritou por ele:
   Olá! Não corras tanto! A festa não começará enquanto eu não  chegar. Escuta: se queres ir à minha casa e trazer-me um isqueiro que ficou lá, dar-te-ei quatro xelins. Mas tens que correr com vontade, rapaz!
   Ora, a aprendiz ficou muito contente de poder apanhar aquelas moedas; saiu pois a toda a pressa e voltou num instante com a caixinha, e...mas vamos ver o que aconteceu.
   Tinham erguido uma alta forca; em torno dela premia-se enorme multidão - centenas de milhares de pessoas. Os soldados mal conseguiam manter toda aquela gente no lugar a ela destinado.  Os reis ocupavam um trono magnífico, em frente dos juízes e do Conselho.
   Já o soldado tinha subido ao patíbulo, e iam passar-lhe a corda pelo pescoço, quando pediu que lhe concedessem uma graça insignificante, conforme era costume fazer-se com todos os criminosos antes da execução. Desejava muito tirar algumas fumaçadas do seu cachimbo antes de morrer: seria a última vez que fumava neste mundo.
   Não quis o rei negar essa graça, e o soldado puxou pelo isqueiro e feriu a pederneira - uma, duas, três vezes! E num relance estavam ali todos os cães -  dos olhos do tamanho de um pires, o dos olhos do tamanho de mós de moinho, e os dos olhos tão grandes como a torre redonda de Copenague.
   -Acudam-me, que não me enforquem! - disse-lhes o soldado.
   Caíram os cães imediatamente sobre os juízes e todo o Conselho, apanharam um pelas pernas, outro pelo nariz e atiraram-nos tão alto, que quando caíram em terra estavam em pedaços.
  - Não consinto...- gritou o rei, ao ver aquilo.
   Mas o maior de todos atirou-se a ele e à rainha, e num instante estavam ambos também rodopiando no ar, como acontecera com os outros.
   Então o soldados e povo, amedrontados, puseram-se a gritar:
   - Soldadinho, soldadinho! Serás agora o nosso rei, e casarás coma bela princesa!
   Instalaram o soldado na carruagem real, e os três cães iam à frente, bradando:
  - Viva! Viva!
  Os moleques assobiavam nos dedos, e os soldados apresentavam armas. A princesa saiu enfim do seu castelo de bronze, e foi proclamada rainha, o que muito lhe agradou, na verdade!
   As festas do noivado duraram uma semana; os três cães também se sentaram à mesa do festim, arregalando mais que nunca os enorme olhos para tudo quanto viam.
 FIM

   

   

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

NO QUARTO DAS CRIANÇAS - CONTOS DE ANDERSENN

 O papai e a mamãe e os irmãos tinham ido ao teatro. Só ficaram em casa a Ana, que era muito pequena, e  o avô.
   Mas o avô disse:
   - Nós também havemos de ter uma comédia. E vai começar já, já.
   - Mas nós não temos teatro - disse a menina.- E não temos ninguém para representar...A minha boneca velha não pode, porque ela é muito feia; e a nova, a nova não há de amarrotar assim o vestido, que é tão fino...
   - Ora, atores a gente arranja: é só contentar-se com o que tem. Vamos construir o teatro. Aqui vai este livro de pé, lá outro, e mais outro...uma fila oblíqua. Agora  outros  três do outro lado, assim. Pronto: já temos os bastidores. Aquela caixa velha pode servir de fundo: é só virar o fundo para cima. O cenário representa uma sala, isso logo se vê. Precisamos agora arranjar os personagens.Vejamos o que há nesta caixa de brinquedos...Primeiro, os personagens, depois faremos a comédia: uma coisa depois outra, e tudo sairá bem. Aqui está um fornilho de cachimbo, e ali uma luva sem par: serão pai e filha.
  - Pois sim, vovô!  Mas são só dois...Oh! Aqui está o colete velho do meu irmão...Ele poderá também desempenhar um  papel?
   - Tem tamanho suficiente para isso...Pode fazer o galã. Não tem nada nos bolsos, e isso não deixa de ser interessante: é a metade de um namorado infeliz...E aqui temos um quebra-nozes em forma de bota, e com espora. Arre! Como a bota se pavoneia, e pisoteia tudo...Pois ela vai set o pretendente antipático, que a mocinha aborrece...E agora que gênero de peça preferes?  Uma tragédia, ou um drama de família?
   - Um drama de família, sim, vovô? Todos gostam tanto disso...O senhor conhece algum?
   - Sim, centenas! Os que o público preferem são traduzidos do francês, mas esses não convêm para uma meninazinha como tu...Mas a gente pode escolher um mais conveniente. No fundo, todos são iguais. Pois bem! Vamos lá! Entrem por aqui, senhoras e senhores...O drama de família mais novo! Quinhentas representações, com a casa lotada! Vejamos agora qual é o elenco.
   E o avô pegou o jornal, fingindo que lia:
       
 " O FORNINHO E O BOM RAPAZ"
        - Drama familiar em uma ato - 
          Personagens:
Senhor Fornilho - pai.
Senhorita Luva - filha.
Senhor Colete - galã.
Senhor de Bota - pretendente.


     -Vamos começar. Levanta-se o pano - como não temos pano, já está levantado. Todos os personagens estão presentes, não nos falta nada. Agora vou falar, como se eu fosse o Senhor Fornilho. Ele está muito zangado hoje...Bem se vê que foi feito de espuma-do-mar, e amarelada!
   Fala então, como se fosse o Fornilho:
  - Que tolice! Tudo isso é asneira, ora essa! Quem manda nesta casa sou eu! Sou o pai da minha filha! Ouçam, pois, o que estou dizendo: o Senhor da Bota é uma pessoa em que a gente pode mirar-se como em um espelho. Por cima é de marroquim,  e embaixo tem espora. Ora essa! É ele quem há de casar com  a minha filha!
   - Agora, Aninha, presta atenção ao que diz o Colete; agora é o Colete quem fala. Ele tem a gola virada e é muito modesto, mas sabe o que vale, e tem toda a razão quando diz:
  - Sou imaculado! E devem tomar também em consideração a fazenda! Fui feito de legítima seda, e tenho galões.
   A isso acudiu logo o Senhor Fornilho:
   - Mas é só no dia do casamento! Depois, acabou-se! A sua cor não se mostrou muito firme na lavagem. Agora o Senhor de Bota é a prova d'água, é feito de couro forte, e muito macio. Sabe ranger, sabe fazer a espora tinir! E tem feições italianas.
  - Mas eles deviam falar em verso! - exclamou a Aninha. - Dizem que é a coisa mais linda que há...
  - Pois sim, podem falar em verso, podem. Se o público assim o determina, fala-se em verso...Olha para a Senhorita Luva, vê como estende as mãos...e diz:
  
   " Hei de me empenhar, hei de me empenhar,
          Hei de ter um par!
    Mas não o consigo...não posso alcançar...
    Já sinto meu couro, de dor, estalar!"

O Senhor Fornilho:
  - Asneiras...

- Agora é o Colete quem fala:

"Luva, minha bem-amada!
 Oponha-se quem quiser;
 Eu aqui declaro a todos:
 Hás de ser minha mulher!"


Aqui o Senhor de Bota começa a dar pontapés, e derruba três bastidores, enquanto Aninha grita:
   - Mas que maravilha!
   - Silêncio! Silêncio! - branda o avô. - O aplauso silencioso mostra que o público que está na platéia- porque tu estás na platéia - é um público culto. Agora a Senhorita Luva vai fazer uma mesura, e depois cantará a sua grande ária, acompanhada de castanholas:
    " E quem não tem boa voz,
      E não canta de verdade,
      Cantará ' coricocó!'
     Na frente da sociedade.  

 - E agora é que chega o momento mais empolgante, Aninha!  O que há de mais  importante, em uma comédia . Olha, o Senhor Colete entreabriu-se; vai falar. E é a ti que ele se dirige, para que batas palmas no fim. Mas...não, não batas palmas; é mais distinto. Repara...ouve o ruge-ruge da seda...Ele começa:
   - Estou extraordinariamente exasperado! Cuidado! Começa agora a intriga! O senhor é o Fornilho, bem sei: mas eu sou o bom rapaz...Zás-trás! Pronto! Sumiu-se o Fornilho!
- Vês, Aninha, como o cenário e a mímica são perfeitos? O Senhor Colete pega no velho Fornilho e mete-o no bolso... O Fornilho lá fica escondido, e o Colete diz:
   - Agora está o senhor dentro do meu bolso, e não poderá sair daí enquanto não me prometer em casamento a sua filha, a Senhorita Luva da Esquerda, a quem darei a minha Direita!
    - Mas é extraordinário! - gritava aninha.
   - Ouve agora o que responde o velho Fornilho:

 " Eu ouço perfeitamente,
  Mas...parece que estou tonto...
  Que é do meu antigo espirito,
  Que dantes era tão pronto?
  Meu tubo onde foi parar?
  Se saio desta armadinha,
  Prometo; Com minha filha,
  Irás depressa casar!"

- Acabou-se a comédia? - perguntou Aninha.
 - Qual! Acabou somente para o Senhor de Bota. Agora os namorados ajoelham, e ela canta:

   " Ó meu pai!"
 e o namorado canta também:

   " ...sai escondido!
   Vem teus filhos abençoar!"

  Ambos recebem a benção, celebra-se o casamento. Os móveis cantam em coro;

     "Tilintintim! Tilintintim!
   Já se acabou a comédia!
    Tilinrintim!"

- Agora sim, vamos bater palmas; vamos  chamar todos os atores, e os móveis também, porque são de acaju!
  - Vovô, a nossa comédia não foi tão boa como a que eles foram ver lá no teatro de verdade?
  - A nossa é muito melhor! É mais curta, não custa nada, e serviu para nos entreter até a hora do chá.
FIM




terça-feira, 13 de setembro de 2016

MÃE - CONTOS DE ANDERSEN

  Sentada ao pé do leito do filhinho, a mãe angustiada receia que ele morra. O rosto da criança empalideceu, e ela fechou os olhinhos. Respirava com dificuldade, e de vez em quando parecia suspirar. E nesses momentos o olhar da mãe era ainda mais cheio de ternura.
   Batem à porta. Entra uma velha pobre, envolta em um velho manto: bem precisava ela de alguma roupa quente, na verdade, pois esta história se passou em pleno inverno. Lá fora tudo estava coberto de gelo e de neve, e soprava um vento tão cortante, que gretava o rosto.
   A velha tiritava, e  como a criancinha adormecera por um instante, a mãe foi por na lareira uma caneca de cerveja, para que a velha a bebesse quentinha. A visitante sentou-se na cadeira, e ficou acalentando a criança, enquanto a mãe se acomodou em uma cadeira velha, ao seu lado; tinha os olhos fixos no filhinho doente, que respirava com dificuldade, e segurava-lhe a mãozinha.
   - Não te parece que não vou perdê-lo? Deus Nosso Senhor não me tirará, não é?
    A velha - que era a Morte- sacudiu a cabeça de uma maneira estranha, que tanto podia significar sim, como não. A mãe baixou os olhos, derramando lágrimas. Pesava-lhe a cabeça; havia três dias e três noites que não pregava olho. E adormeceu, por um único minuto. Despertou sobressaltada, transida de frio; olhou em roda, aflita. Sumira-se a velha, sumira-se a criança. No seu canto, o velho relógio sussurrava e rangia. O forte peso de chumbo ia até o chão. E de repente...Pum! ...O relógio parou .
   Saiu a pobre mãe correndo, e gritando pelo filhinho.
   Lá fora, no meio da neve, estava sentada outra mulher, com um vestido preto muito comprido, que lhe disse:
   - Quem esteve no teu quarto foi a morte. Vi quando ela fugiu, levando teu filhinho. Anda mais veloz que o vento, e nunca devolve o que tirou.
    -Dize-me que caminho ela tomou- é só o que te peço! Dize-me por onde ela foi, hei de encontrá-la!
   - Eu sei o caminho - disse a mulher de preto- Mas antes que o mostre, canta-me todas as canções que cantaste para o teu filhinho. Gosto delas: ouvi-as, em tempos passados. Sou a noite, e vi tuas lágrima, quando as cantava.
    - Cantá-las-ei para ti - todas, todas! Mas tem piedade! Não faças perder tempo: preciso alcançá-la, preciso recuperar o meu filhinho.!
  Mas a noite ali ficou, muda e imóvel. Então a mãe, torcendo as mãos, cantou: cantava, chorando. Foram muitas as canções, mas ainda as lágrimas. E a Noite disse então:
   - Entra à direita daquele pinheiral tenebroso. Vi a Morte tomar esse  rumo, levando o teu filhinho.
   Dentro da floresta cerrada o caminho bifurcava-se e ela ficou sem saber que lado tomar. Mas viu um espinheiro, despido de flores ou folhas, porque era inverno rigoroso; os galhos estavam cheios de flocos de gelo.
   - Não viste passar a Morte com o  meu filhinho?
   - Vi, sim. Mas só te direi que caminho tomou, se me aqueceres no teu seio. Estou morrendo de frio! Já estou gelado!
   E ela apertou o espinheiro firmemente ao peito para que ele degelasse. Os espinhos se lhe cravavam na carne, o sangue escorria em grandes gotas. Mas o espinheiro brotou: na noite glacial, rebentou em folhas e flores- tão grande é o calor , junto ao coração dolorido de uma mãe. Então lhe mostrou o caminho.
   E a mãe chegou a um grande lago, sem barco nem balsa. Não estava tão gelado que pudesse suportar o seu peso; nem tão livre e raso, que desse passagem a vau.Todavia ela precisava atravessá-lo, para encontrar o filho. Então a mãe se deitou, para beber o lago e assim esgotá-lo. Nenhum ser humano pode conseguir semelhante coisa. Mas a mãe, no meio da sua imensa dor, esperava que se produzisse um milagre.
   - Não, nunca o conseguirás! - disse o lago. - Vamos ver se podemos chegar a um acordo. Eu gosto de colecionar pérolas, e teus olhos são duas das mais fascinantes que já vi. Se quiseres deixá-los cair em mim, juntamente com as tuas lágrima, levar-te-ei para a grande estufa onde mora a Morte, cultivando flores e árvores. Cada planta ali é uma vida humana.
   - Que não daria eu para chegar até onde está meu filhinho! - disse a mãe.
   E ela chorou e chorou, e seus olhos caíram no fundo do lago, e lá viraram em duas pérolas preciosas. Mas o lago, como se fosse um balanço, ergueu-a e, num tirão só, levou-a até a outra margem. havia lá uma casa, maravilhosa, de uma légua de comprimento; nem se sabia bem se aquilo era um cerro, cheio de bosques e cavernas, ou uma obra de carpintaria. A pobre mãe, contudo, não a podia ver, porque chorara os olhos, juntamente com as lágrimas.
  - Onde poderei encontrar a Morte, que carregou meu filhinho?
  - Ela ainda não chegou- disse uma velha de cor embaciada, que andava por ali vigiando a estufa da Morte. - Mas como encontraste o caminho? Quem  te auxiliou?
   - O Senhor Deus me ajudou. Ele é misericordioso e tu também o serás agora. Onde poderei encontrar meu filhinho?
   - Não o conheço. E tu não enxergas. Esta noite murcharam muitas flores e muitas árvore. A Morte não tardará a chegar, para as transplantar. Sabe bem que cada criatura humana tem uma árvore ou uma flor da vida, conforme a sua índole. Tem a aparência de plantas comuns, mas possuem coração, que bate. O coração das crianças também pode pulsar. Guia-se pelas pulsações: talvez  reconheças a do teu menino. Mas que me darás tu para que te diga o que ainda será preciso fazeres?
   - Nada tenho para dar- respondeu a mãe, angustiada. - Mas irei para ti até o fim do mundo, se quiseres.
    - Não tenho negócios por lá - disse a velha. - Mas podes dar-me teu lindo cabelo preto. Sabes, certamente, que é lindo, não é? Pois gosto muito deles! Em troca, podes levar o meu, todo branco. sempre é alguma coisa...
   - Se é o que desejas - exclamou a mãe- dou-te meu cabelo com muita alegria.
   E deu-lhe os lindos cabelos, recebendo em troca a cabeleira branca da velha.
    Entraram então na grande estufa da Morte, onde cresciam em maravilhosa convivência, árvores e flores. Havia ali belos jacintos, abrigados em redomas, e grandes peônias, vigorosas como árvores. e plantas aquáticas, umas bem frescas e viçosas, outras meio doentes, que tinham cobras d'água na corola, e caranguejos pretos seguros à haste. Viam-se também palmeiras esplêndidas, carvalhos e plátanos; salsa e tomilho em flor. Todas as árvores e flores tinham nome, e cada uma representava uma vida humana. E esse seres humanos estavam ainda vivos, um na China, outro na Groenlândia -por todas as partes do mundo. Havia árvores grande em vasos pequenos, de modo que as raízes ficavam apertadas, e vasos estavam a ponto de estourar; outras flores frágeis e franzinas , achavam-se em terra forte, rodeadas de musgo, mimadas e bem tratadas. A mãe aflita debruçava-se sobre todas as plantas pequenas, para escutar-lhes as pulsações do coração. E, entre milhões, reconheceu o coração do seu filhinho.
    - Aqui está ele! - gritou ela, estendendo os braços para um pequeno açafrão, que, doentio, já estava derreado.
   - Não toques na flor! - gritou a velha. - Quando a Morte chegar - espero-a a todo instante - não a deixes a arrancar a planta; dize-lhe que arrancarás todas as outras flores. Ela ficará assustada com essa ameaça, porque é responsável perante Deus. Nenhuma delas deve ser arrancada antes que Ele o permita.
    Nesse momento passou pela sala um sopro glacial, e a mãe cega sintou que era a Morte que chegava.
   - Como conseguiste achar o caminho? Como foi que chegaste mais cedo do que eu?
  - Sou mãe.
   A Morte estendeu o braço em direção à pequenina flor fanada, mas a mãe a cerrava entre as  mãos, abrigando-a com firmeza - com tanto carinho, que não tocava em uma só pétala, A Morte soprou-lhe nas mãos, e a mãe sentiu que aquele hálito gelado era mais frio do que o vento mais gélido. E as mãos penderam-lhe inerte.
  - Nada podes contra mim! - disse ela.
   - Mas Deus pode - respondeu a mãe.
   - Eu faço apenas o que Ele manda Sou o Seu  jardineiro. Tomo todas as Suas flores e árvores, a fim de transplantá-la para o grande jardim do paraíso, no país desconhecido. Não te posso dizer, porém, de que modo elas crescem ali, nem como vivem.
   - Devolve-me meu filho! - suplicou a mãe. exclamando:
   E segurou as mãos as duas flores mais bonitas,
   - Apanharei todas as tuas flores...tamanho é o meu desespero!
   - Não toques nelas! - gritou a Morte. - Dizes que és tão infeliz , e queres fazer com que outra mãe seja igualmente infeliz?
   - Outra mãe?- murmurou a pobre mulher, largando imediatamente as duas flores.
  - Toma teus olhos! - disse a Morte. - Pesquei-os no lago, Seu brilho subia do fundo, e eu não sabia que eram teus. Fica com eles: agora estão ainda mais límpidos do que eram antes. Lança um olhar para o fundo desse poço profundo. Direi o nome das duas flores que querias arrancar, e verás o que tencionava destruir e aniquilar.
   A mãe olhou para dentro do poço. Grande alegria era ver uma das flores, que se tornava uma benção para ao mundo, espalhando felicidade e alegria ao redor de si. Depois apareceu a vida da outra, formada de preocupação e de miséria, de tristeza e calamidades.
  - Ambas as coisas saem da vontade de Deus -disse a Morte.
  - Qual das duas é a flor da desgraça, e qual é a abençoada?
 - Não te direi. mas fica sabendo: uma dessas flores é a do teu filho. O que viste é o destino do teu filhinho, o futuro do teu próprio filho!
   Ouvindo essas palavras a mãe lançou um grito de aflição.
  - Qual é a de meu filho: Dize-me! Liberta a inocente criança! Redime o meu filho daquela miséria! Antes leva-o contigo!Leva-o para o reino de Deus! Esquece as minhas lágrimas! Esquece os meus rogos, esquece tudo o que fiz!
   - Não te compreendo- disse a Morte. - Queres que eu te devolva o teu filho, ou devo levá-lo para aquele lugar que não conheces?
   E a mãe, torcendo as mãos, ajoelhou-se, para suplicar a Deus:
  - Senhor! Não me escutes, se eu te pedir uma coisa contra a Tua vontade, que é sempre a melhor! Não me escutes, não me escutes!
   E baixou a cabeça sobre o peito.
   E a Morte foi embora, levando a criança para o país desconhecido.
FIM
  

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

BONS VIZINHOS - CONTOS DE ANDERSEN

    Quem visse aquilo havia de supor que alguma coisa muito importante se passava em frente ao tanque dos patos.
     Todos os patos que estavam descansando na superfície da água, e os que se apoiavam sobre a cabeça- porque eles podem ficar de cabeça para baixo - nadavam agora em tumulto para terra e iam deixando impresso o rasto no chão úmido, enquanto o alarido das grasnadas repercutia, perto e longe. A água, um momento antes tão clara e lisa como um espelho, estava garota agitada. Ainda há pouco todas as árvores, todos os arbustos que ficavam perto do velho chalé de teto esburacado, cheio de ninhos de andorinhas - e principalmente a grande roseira literalmente coberta de rosas - tudo se espelhava distintamente na superfície da água - A roseira cobria a parede e ficava suspensa sobre a água, onde se via toda a paisagem como um quadro - mas de pernas para o ar. Quando, porém, a água se encrespou, tudo aquilo pareceu ir nadando,  e a paisagem desapareceu. Duas penas, que tinham caído dos patos que nadavam, embalavam-se ao sabor das ondas; de súbito moveram-se rapidamente, como se tivessem sido impelidas, enquanto a água ia alisando e serenando de novo. Já as rosas podiam espelhar-se. Eram muito lindas, ainda que não os soubessem, porque ninguém jamais lhes tinha dito isso. O sol espiava por entre as folhas tenras, vagava no ar uma aroma suave, e todas as coisas sentiam o que nós mesmos sentimos, quando nos vem alegrar a ideia da nossa felicidade.
   - Como é bela a vida! - dizia cada uma daquelas rosas. - O único desejo que tenho é de beijar o sol, tão quente e tão brilhante. Gostaria muito de beijar também as rosas que estão lá embaixo na água, e os passarinhos que metem a cabeça fora do ninho, e piam:  " Tuiii!" com uma vozinha fraca, e não tem penas, como as dos pais. São bons vizinhos, tanto os de cima como os de baixo. Que bela é a vida!
   Os filhotes de baixo e de cima - os de baixo eram apenas o reflexo na água - eram pardais; os pais também eram  pardais, que tinham tomado posse de um ninho vazio de andorinha, do ano anterior, e agora moravam nele como se fosse seu.
   - São os filhos dos patinhos que vão nadando lá? - Perguntaram os filhotes de pardal, olhando para as penas de pato que vogavam na água.
   - Se querem fazer peguntas, façam - disse a mãe - mas ao menos que sejam perguntas sensatas. Pois vocês não veem que aquilo são penas, matéria-prima para vestuário, com as que nós usamos- e vocês hão de usar também? A única diferença é que as nossas são mais bonitas. Ainda assim... bem quisera eu tê-las aqui no ninho, porque conservam muito o calor! Estou curiosa por saber o que foi que tanto assustou os patos...Certamente não seria de nós que se espantaram - apesar de ter eu dito "Tuiii!" bem alto para vocês. É claro que essas rosas não sabem nada, e nada mais fazem senão olhar para si próprias e cheirar...Estou farta de semelhante vizinhança!
    - Escutem os lindos passarinhos de cima! - diziam as rosas. -Também eles começam a cantar; mas ainda não conseguem grande coisa. Tudo virá a seu tempo! Que prazer teremos então! É muito agradável ter vizinhos tão alegres!
    Subitamente apareceu uma parelha de cavalos, cabriolando; iam tomar banho. Montado em um deles vinha um rapaz um camponês, que tirou toda a roupa, ficando somente com o chapéu preto, de aba larga. Assobiava como um passarinho; entrou, a cavalo, até o ponto mais fundo do açude, e ao passar pela roseira colheu uma rosa. Espetou-a no chapéu e continuou a cavalgar, achando-se muito elegante. Às outras rosas ficaram olhando para aquela irmã, e perguntavam consigo:
   - Onde irá ela?
   Mas ninguém  o sabia.
   - Eu gostaria de ir por esse mundo - disse uma - apesar de ser tão lindo o nosso lar verdejante. De dia o sol brilha e nos dá calor, e à noite o céu brilha ainda com maior encanto, com a gente vê pelos buraquinhos!
   Elas queriam dizer -  as estrelas, mas não sabiam que eram estrelas.
   - Nós tornamos a casa muito agradável - dizia a mãe pardoca; - e como as pessoas dizem que ninho de andorinha traz sorte, elas estão contentes conosco. Agora quanto aos nossos vizinho, uma roseira como aquela só traz umidade. Provavelmente ela será retirada dali, e tomara que plantem em seu lugar nem que seja uma espiga de trigo. As rosas não prestam  para nada, a não ser para serem vistas e cheiradas, ou, quando muito, para serem postas no chapéu. Ouvi minha mãe dizer que elas caem todos os anos. A mulher do lavrador conserva-as então em sal, e depois elas recebem um nome francês, que eu nem posso nem quero pronunciar; polvilham com elas o fogo, para sentirem um cheiro agradável. E esta é a sua  carreira no mundo: são destinadas apenas a alegrar  os olhos e o nariz. E agora já vocês sabem em que consiste a vida das rosas.
   Quando anoiteceu, e os mosquitos andavam brincando no ar tépido e entre as nuvens rosadas, veio o rouxinol e cantou para as rosas: que beleza se assemelha o sol neste mundo, e que a beleza vive para sempre. Mas as rosas pensavam que o rouxinol cantava seu próprio louvor- o que não é de admirar; porque se há coisa que jamais sonharam é que aquele canto se referisse a elas. Ficaram  deliciadas com a canção, ainda assim, e perguntavam lá consigo se todos os filhotes de pardal viriam a ser também rouxinóis. E os filhotes diziam:
   - Eu compreendo perfeitamente o canto deste passarinho. Há só uma palavra que não sei o que significa...Que é " beleza"?
   - Ora! Não é nada importante , não- replicou a mãe pardoca. - Refere-se apenas ao exterior. Lá em cima, na casa grande, onde os pombos são alimentados diariamente com ervilhas e trigo -já tenho tomado parte em suas refeições algumas vezes, e vocês hão de também participar delas, quando for tempo, porque minha máxima é esta: " Dizem-me com quem andas, dir-te-ei quem és"-pois bem: lá em cima, na casa grande, como tu ia dizendo, há duas aves de pescoço verde, que tem topete, e podem abrir a cauda como uma enorme roda. As cores são tão brilhantes, que ofuscam os olhos da gente, quando nelas bate o sol. Essas aves chamam-se pavões, e representam  a beleza; mas se lhes arrancassem alguma daquelas penas, não ficariam diferente de nós. E eu teria certamente arrancado, se não fossem aves tão grandes!
   - Pois eu vou arrancá-las! - guinchou o menorzinho dos filhotes, que ainda não tinha penas.
   No chalé morava um casal novo; os esposos amavam-se ternamente, e eram diligentes e ativos- por isso tudo quanto os cercava estava em ordem e bem cuidado. Todos os domingos, de manhã cedo, a moça colhia algumas rosas, que arranjava em um copo d'água, sobre a comoda.
   - Agora estou vendo que é domingo -dizia o marido, beijando-a,
   Sentavam-se então, de mãos dadas, e liam o livro de orações; e os sol iluminava com seus brilhantes raios as rosas e o jovem par.
   - Que vista monótona, está! disse um dia a mãe pardoca, que lá do   seu ninho via o que se passava na sala. - Sempre a mesma coisa!
    E ela voou do ninho.
   No domingo seguinte repetiu-se a mesma coisa- novas rosas foram colhidas e postas no copo; e apesar disso a roseira continuava cheia de flores e de beleza. Os filhotes de pardal já estavam emplumados, e gostariam bem de voar com a mãe, mas a pardoca não lhes deu licença; e eles tiveram de ficar em casa. Ela saiu voando; mas de repente viu que estava presa em uma rede de sedenho que uns meninos tinham amarrado a um galho de árvore. O sedenho apertou-lhe tanto as pernas, que parecia cortá-las. Que susto, e que angústia! Os meninos vieram correndo, subiram à árvore, e seguraram o passarinho sem nenhum cuidado.
  - Ora! É um pardal! - disseram eles desapontados.
   Contudo, não a soltaram: levaram-na para casa; e cada vez que ela piava, batiam-lhe no bico.
    Os meninos conheciam um velho, em uma granja próxima, que sabia preparar sabão, para lavar roupa e para barbear também. Era um velhote alegre, que vivia andejando pela região. Ouviu os meninos se queixarem de que aquele passarinho não servia para nada, e disse-lhes:
   - Querem ver com ele vai ficar bonito?
    A pardoca sentiu pelo corpo todo ao ouvir estas palavras.
   O velho tirou então da sua caixa, cheia de tintas de várias cores, uma porção de folhas douradas, e pediu aos meninos que lhe trouxessem uma clara de ovo; untou com ela todo o corpo da avezinha, assentou por cima as folhas, e a mãe pardoca ficou toda dourada, da cabeça às patinhas. E ela, porém, pouco se lhe dava aquele esplendor, e tremia de susto. O saboeiro tirou então um pedaço do forro vermelho do seu casaco velho, cortou-o em bicos, fingindo uma crista de galo, e amarrou-o na cabeça da pardoca.
   - Agora vocês vão ver o casaco-de-ouro voar! - disse o velho, libertando o animalzinho.
   E a pardoca saiu voando, meio morta de medo, à luz do sol ardente. E como brilhava!
   Não foi só aos pardais que ela assustou, não: um corvo velho, apesar de toda a sua experiência, ficou espantado diante daquela estranha visão. E foram todos voando atrás da mãe pardoca, na esperança de descobrir quem poderia se aquele pássaro estrangeiro.
   Desesperada de aflição e de medo, a pardoca voou para casa; mas ia quase caindo, por não ter forças para sustentar o corpo. O bando de pássaros que a perseguia aumentava cada vez mais; alguns tentaram mesmo dar-lhe bicada. E gritavam:
   - Olhem o bicho! Olhem o bicho!
   - Olhem o bicho! Olhem o bicho! - repetiam os filhotes no ninho, quando viram que a ave se aproximava. Isto há de ser um pavãozinho novo, porque tem todas as cores, e elas ofuscam os olhos da gente, como disse a mamãe! Tuiii! Tuiii! Isto é a beleza!
  E davam bicadas na mãe, com os biquinhos ainda  tão pequenos; e ela não podia chegar ao ninho. Estava tão fraca que não se animava a dizer sequer "Tuiii! quanto mais explicar que " era mamãe"! E as outras aves caíram em cima da pardoca, e arrancam-lhe as penas, até ela cair, toda ensaguentada, sobre a roseira.
     - Coitadinha! - disseram as rosas. - Fica tranquila; nós te escondemos. Deita a cabecinha no nosso peito.
    A pardoca abriu ainda uma vez as asas, depois cingiu-as ao corpo e caiu morta no meio de suas vizinhas, as frescas e lindas rosas.
   - Tuiii! Tuiii! - pipilavam lá do ninho. - Mas que poderá reter nossa mãe tanto tempo? É inconcebível! Será um ardil dela, para mostrar que devemos cuidar de nossa vida? Ela nos deixou a casa de herança; mas a qual de nós pertencerá, quando tivermos nossas famílias?
     - Não me agrada que fiquem aqui comigo, quando eu aumentar minha família: quando tiver mulher e filhos! - disse o mais novo.
   - Mas eu hei de ter mais mulheres e mais filhos do que tu, certamente- disse o segundo.
   - Mas e eu, eu sou o mais velho! - bradou outro.
   Estavam todos, davam bicadas, e de repente - Bum! - foram caindo, uma um, para fora do ninho. Lá ficaram, furiosos, com a cabecinha inclinada para um lado, e piscando e revirando os olhos. Era  a  sua maneira de mostrar zanga.
   Podiam apenas dar voos muito curtos, mas com exercício constante, conseguimos mais destreza. Concordaram em combinar uma senha, para se reconhecerem mutuamente, caso se encontrassem ainda algum dia no mundo. Consistia ela em uma espécie de "tuiii! " particular, ao mesmo tempo que arranhavam o chão três vezes com o pé.
   O mais novo, que ficou de posse do ninho, espichou-se o mais que pode, pois que era agora o dono da casa. Mas o seu regozijo não durou muito: nessa mesma noite rebentaram das janelas do chalé labaredas vermelhas, e toda casa desmoronou em chamas; e o pardalzinho pereceu, enquanto o casal novo escapava com vida, felizmente!
   Ergueu-se o sol mais uma vez, e a natureza inteira parecia renovada, como se saísse de um sono tranquilo; do chalé nada mais restava, senão alguns barrotes carbonizados, que se apoiavam na chaminé, agora solitária. Subiam ainda das ruínas rolos de fumaça; mas cá fora a roseira, intata, continuava a florescer, sempre fresca, e todas as flores,e  todos os brotinhos espelhavam-se ainda na água límpida.
  Um homem que passava exclamou:
   - Que lindas estão aquelas rosas, assim em frente do chalé queimando! Não se pode imaginar mais belo quadro! Vou esboça-lo.
    E o estranho tirou do bolso um livrinho de folhas em branco, pois era pintor, e desenhou um esboço das ruínas fumegantes, dos barrotes carbonizados, e da chaminé, que dominava o quadro, e parecia cada vez mais vacilantes; e no fundo aparecia a grande roseira florida, que fazia um belo efeito. na verdade, a roseira sugerira ideia do quadro.
   No mesmo dia dois do pardais que tinham nascido ali, voltaram.
  - Mas ...onde está a casa? - perguntavam eles. - Onde está o ninho? Tuiii! ...Tudo pegou fogo, e com a casa lá se foi o nosso valente irmão! Aí está o que ele ganhou, em ficar com o ninho! As rosas é que se livraram lindamente! E ainda conservam as faces rosadas...Não se importam nada com a infelicidade dos vizinhos! Por isso mesmo nem vou falar com elas! Além de tudo, este lugar aqui é muito feio, para meu gosto.
   E os pardais foram embora.
  No outono, num dia claro e luminoso, que mais parecia de pleno verão, um bando de pombas, brancas, cinzentas e manchadas, andavam passeando  em frente da larga escada, no pátio da casa grande. Sua plumagem luzia ao sol. E a velha mãe pomba dizia aos filhotes:
   - Vamos! Formem grupos! Formem grupos! Fica melhor assim!
   - Que é aquilo? Aquelas criaturinhas cinzentas, que andam saracoteando ao redor de nós? - perguntou uma pomba velha, de olhos verdes e vermelhos.
    E pôs-se a gritar.
   - Casaquinhos pardos! Casaquinhos pardos!
   - São pardais - muito boas criaturas, por sinal; e como nós temos sido sempre reconhecidos como gente bondosa, vamos deixá-los  comer alguns grãos conosco, porque não interrompem a nossa conversa, e espicham a perna com tanta graça...
     Era certo, sim, que estavam espichando uma perna- por sinal que a esquerda! - e dizendo: "Tuiii!" Reconheceram-se, pois: eram os pardais que em tempos tinham morado no ninho do chalé que o incêndio destruiu.
   - Há aqui comida boa, e abundante - disseram os pardais.
   As pombas empertigavam-se, pavoneando-se, aferrando-se cada uma aos seus próprios pensamentos e opiniões.
    - Estás vendo aquele pombo " papo de vento"? - disse uma delas, falando de outra. - Vês como ele engole ervilhas? Come tanto - e o que há de melhor, além disso! Cou!...Cou!...Como aquela criatura suja, feiosa e perversa ergue a crista! Cou...Cou!...
   E, com os olhos luzentes de maldade:
   - Formem grupos! Formem grupos! Casaquinhos pardos! Casaquinhos pardos! Cou!...Cou!...
  Os pardais comiam sofregamente, escutando com atenção, e chegaram a formar fila com os outros; mas como não estava habituados, não deu resultado. Assim, depois de fartos, deixaram as pombas, trocaram opiniões a respeito delas, e depois meteram-se por baixo dos sarrafos que cercavam o jardim; e um deles, achando aberta a porta da sala. arrojado agora, depois da boa refeição, saltou para o limiar, dizendo:
   - Tuiii! Eu voarei bem longe!
   - Tuiii! - disse outro. - Eu voarei também, e mais longe ainda! - E saltou para dentro da sala.
   lá não havia ninguém, e, vendo isso, o terceiro voou ainda mais longe, para o fundo da sala, dizendo:
  - Agora ou nunca! Isto é um velho ninho humano, não há dúvida, e...mas...que é que puseram ali? Que pode ser aquilo?
   Bem na frente dos pardais estavam as rosas, em plena floração, refletidas na água ; e os barrotes chamuscados inclinavam-se contra a chaminé, que torreava acima das ruínas. Mas- que acontecera? Que seria aquilo? Como viera tudo aquilo parar dentro de uma sala, na casa grande?
   E os três pardais quiseram voar para a chaminé; mas bateram contra uma superfície plana, porque era um quadro - um grande e belo quadro - que o artista pintara daquele pequenino esboço.
   - Tuiii! - disseram os pardais. - Isto não é nada! Isto só parece alguma coisa. Não, não é nada! Tuiii! Isto é a beleza! Vocês acham que isto tem sentido! Eu, não!
   E, como naquele momento entrava alguém na sala, saíram voando.
Passaram-se um ano e um dia. As pombas tinham muitas vezes arrulhado, para não dizer brigado - criaturinhas perversas, aquelas! Os pardais tinham tremido de frio no inverno, e vivido na fartura durante o verão; todos se haviam acasalado, ou casado; todos tinham filhotes, e, é claro, cada um achava que o seu era o mais bonito e inteligente. Um voou para um lado, outro para outro; e quando se encontravam, reconheciam-se pelo outro ; e quando se encontravam, reconheciam-se pelo"Tuiii! e porque estendiam três vezes a perna esquerda. A pardoca mais velha ficou solteira, e nunca teve ninho nem filhotes; seu maior desejo era ver uma cidade grande, e voou para Copenague.
   Junto do castelo e do canal, onde flutuavam navios carregados de maças e de cascos de vinho, via-se uma grande casa, pintada de várias cores. As janelas eram mais largas embaixo do que em cima, e os pardais, espiando pelas vidraças, viram uma sala que parecia uma tulipa, pintada com as cores mais alegres do mundo. No centro da tulipa viam-se criaturas humanas, umas feitas de mármore, outras de gesso - o que, para os pardais, é a mesma coisa. No teto via-se um carrinho de metal, com cavalos de metal, guiado por uma Deusa da Vitória, também de metal. Era o Museu Thorwaldsen.
   - Mas que coisa brilhante! Que coisa brilhante!= disse a pardoca solteirona - Aquilo deve ser a beleza! Tuiii! Mas é maior que o pavão...
  Lembrava-se ainda do tempo da infância, em que ouvira sua mãe proclamar o pavão como o mais perfeito exemplo do belo. Baixou o voo e entrou no pátio, cujos muros eram pintados com muito gosto, representando plameiras e folhagens; no centro do pátio florescia uma grande e bela roseira, que espalhava os ramos frescos e suaves sobre um túmulo. E a pardoca, avistando gente da sua espécie, voou para lá, dizendo: "Tuiii!" e espichando o pé - maneira de cumprimentar que muitas vezes tinha experimentado durante todo o ano, sem receber a devida resposta, porque os que se dispersam não se encontram todos os dias! Mas é aquela forma de saudação já se fizera hábito nela.
   Mas agora dois pardais velhos e um novo replicaram; "Tuiii!" esticando três vezes a perna esquerda.
   - Ah! Bom dia! Então, como passas?
   Eram dois pardais velho, daqueles que primitivamente moravam no ninho, e um novo, da mesma família. E continuaram:
   - Quem havia de imaginar, hem? Encontrarmo-nos aqui! Isto é um lugar muito aristocrático, mas falta o que comer; isto é a beleza! Tuiii!
   Saíam agora muitas pessoas, que vinham das salas cheias de esplêndidas estátuas de mármore, e aproximavam-se do túmulo, onde jazem os restos mortais do célebre mestre, cujo gênio formara aquelas estátuas. E todas, com expressões de admiração ardente, paravam ao pé do túmulo do Thorwaldsen; algumas juntavam as pétala de rosas que estavam espalhadas ali, para guardá-las. Toda aquela gente viera do estrangeiro: uns da poderosa Inglaterra, outros da Alemanha, outros ainda da França. Uma dama muito linda colheu uma rosa e escondeu-a no seio. E os pardais pensaram então que as rosas eram onipotentes naquele lugar, e que a casa inteira fora construída em sua intenção, o que, seja dito de passagem, achavam que era demasiada honra. Contudo, como todos lhes prestavam tantas homenagens, também eles não queriam ficar atrás em matéria de cortesia.
   -Tuiii! - disseram então, varrendo o chão com a cauda.
   Deitaram um olhar de esguelha às rosas, e convenceram-se sem demora de que eram as suas velhas vizinhas. E eram, de fato. O pintor que tinha feito aquele esboço da roseira vizinha do chalé incendiado obtivera permissão para transportá-la, e dera-a de presente ao arquiteto, porque nunca tinha visto rosas mais belas; e o arquiteto plantara-a no túmulo de Thorwaldesen, onde ela continuou a florescer, como a imagem da beleza, semeando no chão suas pétalas rosada e cheirosas, para que pudessem ser levadas para terras estrangeiras, como lembrança daquele sítio reverenciado.
  - Então vocês obtiveram nomeação para a cidade? - perguntaram os pardais.
   E as rosas acenaram com a cabeça - que sim; porque reconheceram também seus vizinhos pardacentos, e ficaram muito contentes de tornar a vê-los.
   - Como é agradável - disseram elas - viver, e florescer, e tornar a encontrar velhos amigos...e ver diariamente rostos alegres! É como se todos os dias fossem domingos!
   - Tuiii! responderam os pardais. - Sim, elas são mesmo as nossas antigas vizinhas. Lembramos-nos muito bem da sua origem, junto do açude. Tuiii! Como subiram de categoria! E que honras, as que recebem! Ah! É bem certo que algumas pessoas nascem com uma colher de prata na boca! Mas lá está uma folha seca...
   E deram bicadas e bicadas na folha,a té vê-la cair ao chão.
   Mas a roseira continuou a florescer, mais fresca e mais verdejante que nunca; e rosas, ao calor do sol, espalhavam o seu perfume sobre o túmulo de Thorwaldsen, a cujo nome imortal ficaram assim ligadas.
FIM    
   

domingo, 4 de setembro de 2016

OS SAPATOS VERMELHOS - CONTOS DE ANDERSEN

    Era uma vez uma meninazinha - uma menina muito linda, muito delicada. No verão ela andava descalça, porque era muito pobre. No inverno usava uns sapatos de pau, grosseiros e pesados, de modo que o peito do pé ficou todo vermelho, bem vermelho.
   No centro da aldeia morava a mulher do velho sapateiro, uma senhora já muito idosa; ela se pôs a coser, e fez um par de sapatinhos, de umas tiras de pano vermelho. Esmerou-se e fez o melhor que pode, mas os sapatos eram muito esquisitos. Contudo, foram feitos com boa intenção, e ela os deu a Karen.
    A boa mulher deu-lhe os sapatos, e ela teve de calça-los, pela primeira vez, mesmo no dia em que sua mãe foi sepultada. Certamente não eram próprios para o luto; mas a menina não tinha outros, por isso meteu neles os pezinhos nus e foi seguindo atrás do pobre esquife de pinho.
   Aconteceu que passou uma grande carruagem, levando uma velha senhora, que ficou com muita pena da menina. E ela disse ao pároco:
    - Dê-me essa menina! Eu me encarreguei de educá-la, e serei boa para ela.
   Karem pensou que tinha agradado a senhora por causa dos sapatos. mas a velha dama declarou que eram horrorosos, e mandou queimá-los. E a menina recebeu roupas boas e apropriadas, e aprendeu a ler e a coser. Diziam que ela era agradável; mas seu espelho, esse, dizia-lhe:
   - És muito mais do que agradável: és linda!
   Naqueles dias andava a rainha de viagem pelo país, e levava consigo a filhinha, a princesa. O povo amontoava-se ao redor do palácio para vê-las - e Karen lá estava também. A princesa postou-se a uma sacada para que todos a vissem; não tinha comitiva, nem trazia coroa de ouro: vestia um lindo vestido branco, e calçava uns sapatos muito lindos, de verniz vermelho.
  Karen recebera um vestido novo, e precisava também de um par de sapatos para completar o traje. O rico sapateiro da cidade encarregou-se de fazê-los. A loja, em que ela foi para que ele tomasse as mediada, estava cheia de vitrinas, onde se viam muitos sapatos lindos, de couros brilhantes. Era uma vista encantadora; mas a velha dama, que não enxergava bem, não se interessou em examiná-los, porque não tinha nenhum prazer nisso. Entre os sapatos havia um par vermelhos, exatamente como os da princesinha. E que lindos eram! Disse o sapateiro que tinham sido feitos para a filha de um conde, mas que ficaram justos demais.
   - Isto deve ser verniz - disse a velha senhora- são tão brilhantes!
   - Sim, eles brilham! - replicou Karen.
   E ficaram-lhe bem nos pés, e foram comprados. Mas a velha dama não sabia que eram vermelhos.
   No domingo seguinte seria celebrada a Sagrada Comunhão, e Karen iria participar dela pela primeira vez. Ela olhou para os sapatos brancos, olhou para os vermelhos; olhou de novo para os vermelhos - e acabou por calça-los.
   Era um dia muito luminoso; Karen e a velha dama iam pelos campos, pelo meio dos trigais, e havia muito pó. À porta da igreja estava um velho soldado barbudo, com a sua muleta porque era inválido. A barba do velho era esquisita: mais vermelha do que banca. Era de fato quase completamente vermelha. O velho inclinou-se até o chão e perguntou à velha senhora se podia escovar-lhe os sapatos. E Karen também estendeu o pezinho.
    - Vejam que lindos sapatos de dança! - disse o soldado velho. - Não se esqueçam de apertar bem, quando dançarem!
   E, dizendo isto, deu palmadinha nas solas. A velha dama  deu-lhe uns cobres e entrou na igreja com Karen.
   E todas as pessoa na igreja olhavam para os sapatos vermelhos de Karen. Quando ajoelhou à mesa da Comunhão, ela só pensava nos sapatos vermelhos: parecia-lhe vê-los flutuando diante dos olhos. E ela se esqueceu de rezar as orações.
   Saíram todos da igreja, e a velha dama entrou na carruagem. Já Karen ia erguendo o pé para subir também, quando o velho soldado, que ainda estava aparado ali, disse:
   - Olhem que lindos sapatos de dança!
   E Karen não pode resistir: deu alguns passos de dança: e, sem poder dominar-se, seus pés continuavam a dançar. Parecia que os sapatos tinham adquirido poder sobre ela. Saiu dançando, rodeou, dançando, a igreja, sem conseguir parar - o cocheiro teve de ir buscá-la e erguê-la nos braços, para metê-la no carro. Mas os pés continuavam dançando, de sorte que ela batia com eles na boa velha, machucando-a. Afinal, tiraram-lhe os sapatos e os pés ficaram quietos.
   Quando chegaram a casa os sapatos foram guardados em um armário; mas Karen não podia deixar de ir olhar para eles.
   Um dia a velha dama adoeceu, e disseram que não poderia sarar. Precisava agora que alguém tratasse dela, e ninguém mais do que Karen devia incumbir-se dessa tarefa. Mas ia realizar-se um baile na cidade, e ela foi convidada. Karen olhou para a sua mãe adotiva, que talvez não escapasse da morte; olhou para os sapatos vermelhos, e achou que não tinha obrigação de ficar junto à doente. Calçou-os e foi para o baile - ou antes, eles foram para o baile, e começaram a dançar!  Mas quando Karen queria ir para a direita, eles dançaram para esquerda; quando ela quis dançar em uma ponta, desceram a escada, saíram para a rua, atravessaram as portas da cidade. Dançando saíram dela, e dançando foram para a floresta sombria- e ela tinha de dançar! Viu então que alguma coisa brilhava acima das árvores, e pensou que fosse a lua, porque parecia uma cara. Mas enganara-se: era o rosto do soldado velho de barba vermelha, e e ele acenou-lhe, dizendo:
   - Vejam que lindos sapatos de dança!
   Ficou a menina muito assustada, e quis lançar fora os sapatos vermelhos; mas eles se lhe apegaram aos pés com tanta força, que não pode tirá-los. Rasgou as meias e arrancou-as, mas os sapatos pareciam enraizados nos pés, e continuavam a dançar, e ela teve de ir dançando pelos campos e pelas pastagens, à chuva e ao sol, de dia e de noite.
   Dançou no cemitério, que estava aberto; mas os mortos não a companharam na dança: tinham coisa melhor a fazer. Quis sentar-se em um túmulo pobre, onde crescia a losna, mas para ela não havia descanso nem repouso. Quando ia dançando para a porta da igreja, que estava aberta, viu  que lá estava parado um anjo de longas vestes brancas e de asas tão compridas que chegavam até os pés; o rosto era severo e grave, e tinha na mãos uma espada larga e brilhante.
  - Piedade! - gritou Karen.
   Mas nem chegou  a ouvir a resposta do anjo, porque os sapatos a arrastaram - levando-a porta fora para os campos, para as estradas, para os caminhos, por cima de tocos e de pedras; por toda a parte era ela obrigada a dançar.
   Uma manhã passou dançando pela frente de uma porta aberta, e que ela conhecia muito bem: vinham trazendo para fora um esquife, coberto de flores. Viu então que a velha dama tinha morrido, e pareceu-lhe que estava agora abandonada de todos, e condenada pelo Anjo do Senhor.
   E ela dançava sempre; era compelida a dançar, mesmo dentro da noite negra. Os sapatos arrastavam-na por sobre as sarças e os espinheiros, e ela já tinha os pés escorrendo sangue.
    Foi, então, sempre dançando, pelo trigal afora, e chegou a uma linda casinha solitária. Sabia que morava ali o carrasco, e bateu com os nós dos dedos na vidraça; e disse:
   - Sai, sai cá para fora! Eu não posso entrar, porque tenho de dançar!
   O carrasco disse-lhe:
   - Acaso não sabes quem sou? Eu sou o homem que corta a cabeça dos malvados; e vê como meu machado está impaciente!
   - Não, não me cortes a cabeça! Senão nunca poderei arrepender-me das más ações. Mas peço-te que me cortes os pés, com estes sapatos vermelhos!
     Contou, então, o que acontecera. O carrasco cortou-lhe fora os pés com os sapatos vermelhos - e eles lá se foram dançando, para as profundezas das floresta.
   Então ele fez para ela um par de pernas de pau, com muletas, e ensinou-lhe um cântico, aquele que os condenados sempre cantavam; e ela beijou a mão que brandia a acha, e foi embora, pelo meio da charneca.
     - Muito tenho padecido por causa daqueles sapatos vermelhos! - disse ela. - Irei agora à igreja, para que  todos me vejam!
     E foi, o mais depressa que pode, para a igreja. Quando lá chegou, viu os sapatos vermelhos que dançavam na sua frente. Ficou muito assustada, e voltou para casa.
   Passou toda a semana muito triste, e chorou muitas lágrima, mas quando chegou o domingo, disse:
   - Agora já sofri e lutei tanto...creio que estou tão boa como qualquer daqueles que entram na igreja de cabeça tão erguida!
    E lá se foi ela, com ar insolente; mas ainda não tinha passado do portão, e já avistou os sapatos vermelhos que dançavam diante dela! Ficou mais assustada do que nunca, e deu volta - mas desta vez tinha no coração um verdadeiro arrependimento. Foi à casa do pároco, e pediu-lhe que a tomasse como criada; que seria diligente, e faria tudo quanto pudesse; que não fazia questão de salário, pois só queria um teto para se abrigar, e viver com pessoas bondosas. A mulher do pastor ficou compadecida da menina e tomou-a ao seu serviço. E ela mostrou-se mesmo diligente e fiel. À noite, quando o pastor lia a Bíblia, ela ouvia atentamente, muito quieta. Todas as crianças gostavam muito dela, mas quando falavam a respeito de vestidos, e de coisas de luxo, ela sacudia a cabeça.
  No domingo, ao saírem para a igreja, perguntaram-lhe se ela queria ir com eles. Mas Karen olhou tristemente para as muletas, com os olhos cheios de lágrima, e foram sem ela; foram ouvir a palavra de Deus, e ela ficou sentada no seu quartinho, sozinha. No quarto só cabiam a cama e uma cadeira. Sentou-se, pois, com o livro de oração nas mãos, e quando estava lendo com um espirito cheio de humildade, ouviu o som do rojão, que o vento trazia da igreja; ergueu o rosto banhado de lágrima, dizendo:
    - Oh! Senhor! Ajuda-me!
   Então o sol brilhou com todo o esplendor, e o Anjo de vestido branco, aquele mesmo Anjo que ela vira naquela noite, à porta da igreja, estava diante dela. Não tinha a espada afiada na mão; trazia agora um ramo verde, coberto de rosas. Tocou com ele o teto - e o teto foi se erguendo, se erguendo...e onde o Anjo tocava aparecia imediatamente uma estrela de ouro. Tocou então as paredes e elas foram-se afastando para longe, para longe...e ela viu o órgão, que ressoava tão belos hinos - porque a igreja tinha vindo ter com a pobre menina, no seu pequenino quarto, ou o seu quarto se havia transformado em igreja. Ela estava, também entre os fieis. Alguém, a seu lado, lhe disse:
   - Que bom que vieste, Karen!
   - Foi pela graça de Deus! - respondeu ela.
    Soou o órgão, espalhado suas notas cheias de alegria. As vozes das crianças ergueram-se, suaves, cantando em coro; o sol, que entrava pela janela, veio direito ao banco onde estava Karen, enchendo-a de fulgor; e seu coração sentiu-se tão cheio de luz, e de paz, e de alegria, que estalou. E sua alma voou para o céu, em um raio de sol.
FIM

A HISTÓRIA QUE A VELHA JOANA CONTOU - CONTOS DE ANDERSENN

    




   O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entendermos, pergunta à velha Joana do Asilo, a velha Joana que envelheceu na aldeia...
    Há muitos, muitos anos, no tempo em que a estrada real ainda passava por ali, já árvore era alta e bonita. Erguia-se, como ainda hoje se ergue, em frente à cabana de taipa do alfaiate, junto ao charco, onde naquele tempo o gado ia beber, e os filhos dos camponeses, nos dias de verão, corriam nus chapinhando na água. À sombra da árvore erguia-se um marco milionário, de pedra talhada - mas está deitado no chão, coberto da ramagem da amoreira silvestre.
   A estrada nova, foi aberta para além da quinta grande, enquanto a antiga se transformava em um atalho que corta os campos, e o lago se convertia em um charco, coberto de lentilhas-d'água. De vez em quando pula lá dento um sapo; abre-se então a superfície verde, e aparece a água negra. Ainda crescem em roda os mesmos caniços, trevos do banhado e espadanas douradas.
   A casa do alfaiate foi ficando cada vez mais velha, mais inclinada. O telhado era um viveiro de musgos e sempre-vivas. O pombal, em ruínas, servia de morada aos estorninhos. E as andorinhas iam construindo os ninhos, um atrás do outro, no beiral do telhado e na empena, para trazer sorte àquele lugar.
  Em outros  tempos, era esse o aspecto da casa. Morava ali, solitário, o velho Rasmus, meio idiota. Ali nascera, ali brincara, saltando pelas valetas e pelas sebes, varando o charco, todo despido, e trepando ao velho salgueiro.
   Esse erguia, magnífico, a copa cerrada e vasta; apesar de ter o tronco fendido e encurvado ao peso dos anos e das tempestades, ainda era muito lindo. O vento enchera-lhe as fendas de terra, e brotavam nelas a grama e as ervilhas. Até uma sorveira lá se criara.
   Na primavera as andorinhas, já de volta, esvoaçavam ao redor da árvore e do velho telhado, e remendavam e cimentavam seus ninhos. Mas o velho Rasmus deixava o seu ir-se mantendo como estava, ou ir caindo em ruínas: não o remendava nem o escorava . E repetia a frase que já o pai usara:
   - De que serve?
Ficava em casa, quando as andorinhas iam embora; elas, porém, retornavam, como animaizinhos fies.Também os estorninhos iam embora e voltavam assobiando a sua canção. Dantes Rasmus cantava ao desafio com eles.
     O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Murmura ainda hoje. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana do Asilo. ela sabe a  cantiga. Sabe tanta história, que até parece uma crônica viva, cheia de velhas recordações...
   Quando o alfaiate de aldeia, Ivar Olsen, foi morar ali com sua esposa, Maren Olsen, a casinha ainda estava nova e bonita. Naquele tempo a velha Joana era ainda criança. Era filha do tamanqueiro, um dos homens mas pobres da paróquia. A esposa do  alfaiate, que não precisava preocupar-se  com o sustento da família, dava-lhe muitas vezes um pedaço de pão. Maren mantinha boas relações com a senhora da quinta. Andava sempre alegre e risonha, e jamais desanimava. Servia-se tão bem da boca como das mãos, e manejava a agulha com a mesma rapidez que a língua. Ainda assim achava tempo para cuidar da casa e dos filhos, que chegavam quase a uma dúzia: eram onze ao todo, porque o décimo-segundo não aparecera.











    O morgado resmungava:
   - Gente pobre sempre tem o ninho cheio de filhotes. Se ao menos pudessem afogá-los, como os gatinhos novos, conservando somente um ou dois robustos, ainda vá!
   - Deus me livre! - dizia a mulher do alfaiate. - Os filhos são uma benção de Deus, e enchem a casa de alegria. Cada um deles vale um Padre-Nosso a mais. Se houver falta de víveres e forem muitas as bocas a encher, a gente trabalha mais e acha uma solução honesta para o caso. Deus Nosso Senhor não nos abandona, se nós não o abandonarmos.
    Apoiou-a a morgada com um gesto amável, acariciando-lhe as faces, como costumava fazer. Dantes até a beijava: era então uma meninazinha, e Maren a sua aia. Estimavam-se, pois, com uma feição constante e fiel.
   Todos os anos, pelo Natal, iam da quinta para a casa do alfaiate provisões de inverno: uma barrica de farinha, um porco, dois gansos, um barrilzinho de manteiga, queijos e maças. Nessa ocasião Ivar Olsen aparecia contente, de rosto corado; mas dentro de poucos dias tornava à sua frase favorita:
   - De que serve?
  Reinava na casa o asseio e o conforto. As janelas eram veladas por cortinas, e no peitoril floresciam cravos e balsaminas. Da parede pendia, esticado em uma moldura, o pano com os nomes da família, e ao pé dele a carta de noivado, redigida em versos feitos pela própria Maren. E ela mostrava, com prazer, como combinavam bem as rimas. Orgulhava-se muito do nome de Olsen, por ser essa a única palavra da língua dinamarquesa a rimar com "polse".
       -É um tanto agradável ser diferente dos outros em alguma particularidade- dizia ela, rindo.
    Maren estava sempre de bom humor. Nunca dizia, a maneira de seu marido: " Que adianta?" A sua locução preferida era: " Confia no bom Deus!" E cumpra à risca o preceito garantido, assim, o equilíbrio na vida do lar. Os filhos cresciam e prosperavam. Saíam pelo mundo, em busca de ocupação, e tornavam-se homens de valor Rasnmus era o mais moço. Fora criança tão linda que um pintor o tomou por modelo para um de seus quadros. E a tela se achava no castelo do rei: a senhora do morgado a vira num salão e reconhecera nela, imediatamente, o pequeno Rasmus.
    Mas sobreveio uma época difícil. O alfaiate contraiu a gota em ambas as mãos. Nenhum médico pode aliviar o mal, e a benzedeira da sábia Stine também nada adiantou.
    - Não se deve perder a coragem - disse Maren. - A tristeza não ajuda. E, se pararam as mãos que nos sustentavam, é preciso que eu aprenda a usar as minhas com mais rapidez. Além disso, Rasmus também já é capaz de manejar bem a agulha.
     - Ele não deve ficar preso ao trabalho o dia todo - disse a mãe. - Seria um crime contra a criança. É preciso que também tenha tempo para brincar.
   E nas horas de folga estava ele sempre com a Joana do tamanqueiro. A menina era muito pobre e nada bonita, Andava descalça e com roupas rasgadas; não tinha ninguém que as remendasse e ela mesma não se lembrava de que poderia fazer isso com as próprias mãos. Era criança e vivia alegre como um pássaro, à benéfica luz do sol de Deus.
   Rasmus e Joana costumava brincar junto ao marco de pedra, à sombra do grande salgueiro. Ele arquitetava grandes planos: queria tornar-se um alfaiate de nomeada, que morasse na cidade e ocupasse muitos oficiais, como um que o pai conhecia. Lá, principiaria como oficial e chegaria a mestre. Então Joana iria visitá-lo e, se entendesse de cozinha, poderia tratar da comida para todos e ter o seu quarto na casa.
    Joana hesitava em acreditar nesses projetos, apesar de Rasmus falar neles com uma convicção e uma fé inabaláveis.
   E assim permaneciam sob a velha árvore, com o vento a murmurar na ramaria. No outono, caía uma folha após outra, enquanto a chuva pingava dos galhos desnudos.
    - Eles voltarão a brotar - disse Maren.
    - Que adianta? - retrucou o marido. - Ano novo, cuidado novo.
    - A despensa está cheia - tornou Maren - graças à senhora do morgado. E eu ando bem de saúde e com muita força. Seria um crime a gente queixar-se.
    Os senhores demoraram-se no morgado durante as festas de Natal, mas após o dia de Ano Bom seguiram para a cidade, onde passaram o inverno entre prazeres e divertimento. E recebiam convites até para os bailes e festas da Corte.
    A morgada mandara vir da França dois riquíssimos vestidos, tão perfeitos no corte e no acabamento que a mulher do alfaiate não se cansava de admirá-los. Nunca vira coisa igual. E pediu licença para que o marido também os apreciasse.
    - Não houve ainda alfaiate de aldeia que pusesse os olhos em uma obra perfeita assim - disse ela.
    O alfaiate olhou-os e não fez nenhum comentário. De caminho para casa, porém, como se pensasse alto, lá veio a sua frase habitual:" Que adiante? " Mas desta vez suas palavras se tornaram verdade.
   Havia começado  a série de bailes e festas. Os senhores mal tinham chegado à cidade, quando, em meio àquela magnificência toda, faleceu o velho dono do morgado- e sua esposa nem teve oportunidade de usar os esplêndidos vestidos. Andava de luto fechado, de roupas pretas da cabeça aos pés; não tolerava nem sequer uma renda branca. Todos os criados usavam crepes, e até a carruagem de gala foi revestida de negro.
    Era uma noite fria de inverno; a neve cintilava à luz das estrelas. O carro fúnebre - novo em folha- transportou o féretro da cidade para a igreja do morgado, onde seria feita a inumação no jazigo da família. O administrador das terras e o burgomestre da aldeia vinham à frente do cortejo, a cavalo, com tochas acesas. A igreja estava iluminada. O pároco, no portão aberto, aguardava a chegada do morto. O caixão foi colocado em um catafalco, no meio do templo. A congregação toda o rodeou. Fez-se um belo necrólogo e cantou-se um salmo. A senhora também estava presente às cerimonias fúnebres; acompanhara a translação do féretro na carruagem de gala revestida de preto, por dentro e por fora. A congregação nunca presenciara uma solenidade assim, com tanta pompa. Durante todo o inverno se falou do enterro.
     - Por aí se vê o prestígio que tinha o finado - dizia a gente da aldeia. - Nasceu de família distinta e teve um enterro de verdadeiro fidalgo.
   - Que adianta? - retrucava o alfaiate. - Agora ele não possui nem vida nem fortuna. A nós, pelo menos, resta a vida.
    - Não fales assim - lhes disse Maren. - Ele tem a vida eterna, lá no outro mundo.
    - Como sabes isso? - perguntou o alfaiate. - Um homem morto dá mas é um bom adubo. E até para isso o morgado era fino demais. Tiveram de enterrá-lo na cripta...
   - Deixa de proferir blasfêmias! - acudiu a mulher. - Repito: ele tem agora a vida eterna.
  - Como sabes isso? - insistiu o alfaiate.
 Maren cobriu com o avental a cabeça do pequeno Rasmus, para que o menino não ouvisse as palavras do pai. Levou-o ao galpão e explicou-lhe, em voz baixa:
    - O que acabas de ouvir, meu filho, não foi dito por teu pai. O diabo é que passou pela sala e imitou a voz dele. Reza comigo um Padre- Nosso.
    E ela juntou as mãos da criança, para a oração.
   - Bem, estou contente outra vez - disse Maren.
   Terminara o ano de recolhimento e pesar. A senhora do morgado trajava meio-luto, e a alegria começou a voltar ao seu coração. Comentava-se que havia um pretendente e que já pensavam nas bodas. No Domingo de Ramos, à hora do sermão, deviam ser feitos os proclamas. Segundo se soube, o novo dono das terras era canteiro ou escultor: a gente do lugar não sabia bem como chamar àquela profissão. O noivo, diziam ainda, não pertencia à alta aristocracia, mas tinha uma bonita figura e era dono de grande saber.
   - Que adianta? - disse o alfaiate.
   Os proclamas foram feitos no Domingo de Ramos. A igreja estava cheia de fies. Lá se achavam também o alfaiate, Maren e Ramus. Nos último tempos a família do alfaiate tivera de reduzir as despesas com o vestuário. As roupas haviam sido viradas uma e outra vez; depois foram cerzidas e remendadas. Agora, pai , mãe e filho andavam de roupas novas: mas essas roupas eram pretas, como se eles estivessem de luto. É que haviam aproveitado. o revestimento da carruagem fúnebre. Ninguém devia saber isso, mas todo o mundo descobriu. A sábia Stine e outras mulheres - também sábias, embora não fizessem profissão disso - disseram que aquelas roupas trariam enfermidades à casa do alfaiate.
   A Joana do tamanqueiro chorou ao ouvir essas palavras. E, realmente, a profecia cumpriu-se: no primeiro domingo depois da Trindade falecia o alfaiate Olsen. Maren tinha agora de cuidar de tudo; e foi o que fez, corajosamente.
    Um ano após seguia Rasmus para o seu estágio de aprendizagem na casa de um mestre, na cidade. É certo que esse alfaiate tinha apenas um oficial e não dez. Mesmo assim, Rasmus ficou contente, e estava sempre de cara alegre. Joana, entretanto, chorava. Ela mesma não sabia que lhe ia custar tanto a separação. Maren ficou na velha casa, atendendo  o antigo negócio.
   Por aqueles tempo, a nova estrada foi concluída. A velha, que passava pelo salgueiro e pela casa do alfaiate, tornou-se um carreiro invadido pelo capim. Lentilhas dos rios estenderam-se na superfície do lago. O marco milionário caiu, já que terminara a sua função. Mas a árvore conservou-se bela e vigorosa. O vento murmurava nas folhas e nos longos galhos do velho salgueiro.
   Foram-se as andorinhas; foram-se os estorninhos. Mas voltaram na primavera; e quando voltaram pela quarta vez também Rasmus regressou ao lar. Passara pelo exame de oficial. Tornara-se  um rapaz bonito e esbelto. Tencionava preparar-se para uma viagem ao estrangeiro. Mas a mãe o reteve: seus irmãos se haviam sumido e, sendo ele o único que lhe restava, deveria ficar em casa. Poderia arranjar bastante trabalho pelas redondezas, costurando ora numa quinta ora noutra. Isso também era viajar. E Rasmus segui o conselho da mãe.
    Assim, tornou a dormir sob o antigo teto; tornou a sentar ao pé do velho salgueiro, e a ouvir o murmúrio do vento nas folhas verdes. Rasmus, além de ser um rapaz de bela aparência, sabia cantar que nem um pássaro; era entendido em velhas e novas canções. A sua chegada causava sempre alegria nas quintas grandes, principalmente na de Klaus Hansen, o segundo em fortuna entre os camponeses da aldeia.
   Klaus tinha uma filha, Elsa, bela como as rosas do jardim e alegre como um pássaro em liberdade. É verdade que algumas pessoas maliciosas diziam que ela vivia rindo para exibir a alvura dos dentes; mas o que é certo é que aquele modo brincalhão assentava bem na sua pessoa.
  Elsa e Ramus enamoraram-se um do outro; mas nenhum dos dois se atreveu a falar. E foi daí que ele se tornou melancólico: herdara uma parte demasiada da mentalidade do pai. Só estava alegre quando via Elsa. Então cada qual ficava mais contente; riam, gracejavam e até pequenas diabruras faziam um para o outro. Mas, apesar das melhores oportunidades, ele não lhe disse palavra alguma sobre o seu afeto. " Que adianta? " - remoíam seus pensamentos. "Os pais dela hão de exigir que o pretendente seja rico. Seria melhor que eu me fosse embora. " Mas era incapaz de apartar-se da moça.
   Joana, a filha do tamanqueiro, servia como criada, e por sinal das mais humildes, na mesma quinta. Empurrava o carro do leite até o curral, onde ordenhava as vacas, em companhia de outras serviçais. Tinha também de remover o esterco, e só raras vezes via a Rasmus e Elsa. Notou, entretanto, que ambos se queriam como noivos.
   - Que sorte Ramus! - disse ela consigo. - E ele bem merece.
   Mas seus olhos estavam rasos de lágrimas, embora nada houvesse de que chorar.
   Havia uma feira na cidade. Klaus Hansen convidou Rasmus para ir no seu carro . E ele se viu sentado ao lado de Elsa, tanto na ida como na volta. O contentamento transparecia no rosto do rapaz; e no entanto ele não dizia palavra sobre o seu amor.
    - Ele tem de ser o primeiro a falar - pensava Elsa: e nisso tinha razão. - Se não quiser abrir a boca, vou dar-lhe um susto.
   E logo correu o boato pela quinta de que o proprietário mais rico da aldeia pedira a mão de Elsa - o que era verdade. Mas ninguém conhecia a resposta que ela lhe dera.
  Os pensamentos faziam a zunir a cabeça de Rasmus. Certa noite Elsa enfiou no dedo um anel de ouro e perguntou-lhe o que significava aquilo.
   - Um noivado - disse ele.
   - E com quem achas que seja? - perguntou a moça.
    Rasmus, contra a vontade, disse o nome do pretendente.
     - Adivinhou - disse ela, fugindo da sala. 
     Mas ele também se sumiu. Voltou para casa, atordoado de desespero e de mágoa. e  preparou o saco de viagem. Nada adiantaram as lágrimas da mãe. Queria correr  mundo.
   Quando cortou um bordão do grande salgueiro, Rasmus assobiava, como se estivesse contente por poder partir  e ver as maravilhas todas de outras terras. Despediu-se da mãe e ganhou a estrada nova. Joana vinha por ali com um uma carroça cheia de estrume. Ela não lhe notara  a presença e ele fez como se não a visse. Escondeu-se atrás da sebe e ali ficou, até que Joana passasse...
    Ramus saiu, assim, para o mundo, sem que ninguém soubesse para  onde se dirigia.
   A mãe estava certa de que ele votaria antes do fim do ano.
    - De que qualquer jeito, voltará; não pode abandonar nem a mim nem a casa.
     Elsa, porém, tinha menos confiança, depois de um mês de ansiosa espera, foi consultar, clandestinamente, a sábia Stine. A velha nada mais sabia além do Padre-Nosso, mas era capaz de, benzendo, provocar, milagres e de interpretar as cartas e a borra de café. Por esse meio, chegou a ver Rasmus, através da borra de café. Estava numa cidade estrangeira, cujo nome, entretanto, não conseguiu identificar. Ali havia soldados e belas raparigas, e ele tencionava tomar o fuzil ou uma dentre as jovens.
    Elsa não podia suportar essa ideia. Estava disposta a dar todas as suas  economias para vê-lo regressar. Mas ninguém deveria saber da sua interpretação.
    E a velha Stine explorava o caso, afirmando que sabia um meio, se bem que perigoso para aquele a quem se destinava a magia. Contudo, não havia outro remédio. Ela poria no fogo uma panela, e a faria ferver em direção a Rasmus. Nesse caso, ele tinha de regressar, por mais longe que se encontrasse. Poderiam decorrer meses, é verdade; mas que ele voltaria, isso podia garantir, se ainda estivesse vivo.
   Então ele teria de caminhar sem trégua nem descanso, de dia e de noite, através de montes e lagos, ao longo de caminhos escorregadios e pedregosos, por mais fatigado que se sentissem seus pés. Mas deveria regressar! Não poderia senão regressar!
   A lua se achava no primeiro quarto. A velha Stine asseverou que essa era a época mais apropriada para começar o trabalho. Lá fora uivava a tempestade, sacudindo o velho salgueiro. A feiticeira cortou um galho e dobrou-o, fazendo um nó, para que Rasmus sentisse necessidade de tornar à casa da mãe. Foram procurar no telhado musgos e sempre-vivas, que atiraram na panela de barro posta ao fogo. Elsa teve de arrancar uma página do seu livro de orações. Por acaso, tirou a última, a das erratas.
   - Não faz mal- disse a velha, ao deitá-lo também à panela.
     Muitas coisas entrava na cocção, que tinha de ferver e continuar a ferver até o regresso de Rasmus. O galo preto da feiticeira teve de desfazer-se da sua crista vermelha, que entrou na panela de barro.  O anel de ouro de Elsa teve igual destino. Ela nunca tornaria a vê-lo, preveniu a velha. Sim, senhores! Era muito sábia a velha Stine. Mas muitos outros ingredientes, que não sabemos mencionar, foram fervidos na panela de barro, que sempre se achava ao fogo, sobre carvões em brasas ou cinzas quentes. Apenas Elsa e a feiticeira sabiam da história.
     Chegou a lua nova, e chegou a lua cheia. E Elsa sempre a perguntar:
   - Ainda não o vês chegar?
   - Vejo muita coisa - era a resposta.- Só não posso enxergar a distância que ele tem à sua frente. Agora já passou pelos primeiros montes. Acha-se no mar, com tempo desfavorável. Ah! agora atravessa grandes florestas. Ele anda com bolhas nos pés e febre na cabeça, mas tem de tocar para a frente.
   - Não, não! - gritou Elsa. - Isso não!
    - Agora não pode mais parar - tornou a feiticeira. - E se nós suspendêssemos com isto ele caíra morto na estrada.
    Decorreram dias e decorreram anos. A lua brilhava redonda e cheia. O vento murmurava no velho salgueiro. No céu apontou um arco-íris.
  - É um sinal!- afirmou Stine. - Agora Rasmus há de chegar.
   Mas ele não chegou.
   - Estou farta disso! - queixou-se Elsa.
   Ia à casa da velha mais espaçadamente, e já não levava presentes para ela. O seu pesar foi amortecedor, e um belo dia toda a gente da aldeia soube que Elsa estava noiva do rico proprietário, seu antigo pretendente.
    O banquete de bodas durou três dias. Dançava-se ao som de violinos e flautas. Nenhum morador do lugar ficara esquecido. Maren Olsen também esteve presente e, finda a festa, lá voltou ela, com o pacote que recebera das sobras.
  A tranca fora retirada na sua ausência e o portão se achava aberto. Rasmus estava sentado no seu quarto. Regressara justamente nesse dia!
   - Rasmus! - gritou a mãe. - És tu mesmo? Estás doente? Mas ainda assim eu me sinto tão feliz por teres vindo!
   Ele contou que nas últimas semanas o seu pensamento se voltava sem sossego para a mãe; sentia saudades da casa, da velha árvore. Era estranho como o salgueiro lhe aparecia repetidamente em sonhos; e, sempre, à sua sombra, a pobre da Joana. Não falou, porém, em Elsa.
   Rasmus estava doente e teve de ficar de cama. Naturalmente não fora por influência da panela de barro, embora a velha Stine e Elsa acreditassem nisso. Mas tanto uma como outra silenciaram a respeito.
  A febre que atacara Rasmus era contagiosa; por isso ninguém o visitava, com exceção da Joana do tamanqueiro, que chorou ao Vê-lo naquele estado. O médico receitara um remédio, mas o doente não quis tomá-lo.
  - Que adianta? - disse ele.
   - Assim não te podes curar - observou a mãe. - Confia  em ti e no bom Deus! Quando novamente te ouvir cantar e assobiar, morrerei de bom grado.
   E Rasmus se refez da enfermidade. Mas a mãe, por sua vez, adoeceu; e Deus a chamou.
   A solidão reinava agora na casa; e a indigência ali entrou.




    No estrangeiro, ele vivera uma vida desregrada. Isso, e não o cozimento da panela de barro, lhe devorara a medula e acendera a febre em seu corpo. Rasmus tinha agora o cabelo ralo e grisalho. não trabalhava, nem tinha gosto para isso.
  - Que adianta? - dizia ele, preferido a taverna à igreja.
   Uma noite de outono, ia ele para casa, de volta da taverna, cambaleando, debaixo da tempestade e da chuva. Já fazia muito tempo que perdera a mãe. As andorinhas e estorninhos, sempre tão leais, haviam desaparecido. Mas Joana, a filha do tamanqueiro, essa não se fora. Ela o alcançou e seguiu um bom pedaço lado a lado com ele.
   - Endireita-te, Rasmus! - disse ela.
    - Que adiante? - retrucou ele.
    - Essa locução é feia- tornou Joana. - Lembra-te das palavras de tua mãe: " Confia em ti e no bom Deus!" Não é isso o que andas fazendo, Rasmus. mas tens de te corrigir. Não tornes nunca a dizer: " Que adianta?" E assim hás de arrancar a raiz dessa fraqueza.
    Ela o acompanhou até a porta e seguiu para a sua casa. Rasmus não entrou. Foi direito ao velho salgueiro e sentou-se na pedra do marco miliário, que caíra ao solo. O vento murmurava nos galhos da árvore; parecia que contava uma história. Rasmus respondeu ao vento, falando alto. Mas ninguém o ouviu, a não ser o próprio vento e o velho salgueiro.
  - Como faz frio! Está na hora de ir para a cama. Dormir, dormir!
   E lá se foi, ele não porém em direção à casa, mas ao charco, em cuja beirada tropeçou e caiu. A chuva batia e o vento era de enregelar. Ao nascer do sol, quando os galhos voavam sobre o lamaçal, Rasmus acordou.
   Foi nesse dia que Joana se instalou na casa do alfaiate.
   - A gente se conhece desde criança, Rasmus. Tua mãe me deu de comer e beber, e eu nunca poderei retribuir-lhe isso, Serei a tua enfermeira; e tu não morrerás, não.



    E Deus quis que ele vivesse. Mas passou-se muito tempo, até que apresentasse alguma melhora. Seguido tinha colapsos, ou fantasiava coisas confusas.
   Iam e voltavam andorinhas e estroninhos; e tornavam a ir embora. Rasmus envelhecera antes do tempo. A sua casa estava também cada vez mais decadente. E ele se via agora mais pobre do que a pobre Joana, a filha do tamanqueiro.
  - Tu não tens fé! - disse ela. - Se nós não tivéssemos Deus, que nos restaria então? Deves acompanhar-me à Comunhão, Rasmus.
   - Que adianta! - replicou ele.
   - A mim sempre me dá consolo - respondeu ela, sentida.
   - Joana tu te conservaste a mais fiel dentre todos.
   E ele a olhou, com os olhos fatigados e enternecidos.
   Rasmus tornara-se um homem velho. Mas Elsa, tampouco, ficara jovem. É preciso que a mencionemos, porque Rasmus nunca o fazia. Era avó, e tinha uma netinha muito galante. Um dia, brincava ela na rua, com outras crianças. Rasmus foi em sua direção, apoiando-se na bengala. Contemplou-a um instante e sorriu. Mas a neta de Elsa apontou com o dedo para ele, gritando: - Rasmus, o doente! - As demais crianças imitaram-lhe o exemplo, e começarem: - Rasmus, o doente! Rasmus, o doente! 
   Vieram dias cinzentos e frios, mais raiou por fim uma manhã cheia de sol.
   A igreja estava enfeitada de verdes ramos de bétula. O cheiro do bosque passava pelo recinto, enquanto o sol luzia através dos vitrais. Ardiam grandes círios no altar. Era o momento da Comunhão. Joana achava-se entre os fieis; mas Rasmus não estava presente. Foi justamente a essa hora que Deus o chamou para si.
   Desde então se passaram muitos anos. A casa do alfaiate ainda está de pé, mas ninguém a habita, e ela pode desmoronar à primeira tempestade. O charco está coberto de junco e trevo. o vento murmura uma cantiga na velha árvore. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana ali do Asilo, a Joana do tamanqueiro...
   Que coração leal!
FIM