quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

NICOLAU GRANDE E NICOLAUZINHO - CONTOS DE ANDERSEN

         Moravam em uma aldeia dois homens que tinham o mesmo nome: eram tocaios, pois ambos foram batizados com o nome de Nicolau. Um deles, porém, possuía quatro cavalos, enquanto o outro tinha apenas um. Para diferençá-los, começou o povo a chamar ao dono dos quatro cavalos Nicolau Grande, e ao pobre, que só tinha um, Nicolau Pequeno; e por fim este sendo o Nicolauzinho.
     Vamos ver agora o que aconteceu aos dois tocaios, porque esta história é verdadeira.
      Durante toda a semana o Nicolauzinho era obrigado a lavrar a terra do Nicolau Grande, e ainda por cima emprestar-lhe o seu único cavalo; em troca , o Nicolau Grande o ajudava, emprestando-lhe os quatro que tinha - mas isso somente uma vez por semana, e aos domingos.
    E era coisa digna de se ver quando o Nicolauzinho lavrava a sua terra,e estalando o chicote no lombo dos cinco cavalos, pois naquele dia todos eram tão bons como o seu! E viva!
    O sol irradiava, soberbo; os sinos repicavam, chamando os fiéis, que lá se iam em suas roupas domingueiras e seus livros de orações. Iam ouvir o sermão. De caminho viam o Nicolauzinho lavrando, com seus cinco cavalos. O homem não cabia em  si de alegria e de orgulho. Agitava no ar o chicote que caía mil vezes sobre os cinco cavalos. E dizia:
    - Upa, meus cinco cavalos! Upa!
     - Pára com essa história- disse-lhe o Nicolau Grande. - Se repetires isso, dou tamanha pancada na cabeça do teu cavalo que o deixo morto!
     - Prometo não repetir - disse Nicolauzinho.
     Mas  no que avistou outra pessoa que se aproximava e lhe dava os bons dias, ficou tão cheio de si por se ver lavrando o seu campo com cinco cavalos, que se pôs de novo a gritar:
     - Upa, meus cinco cavalo! Upa!
      - Espera que vou te dar "Upa, meus cinco cavalos!" Espera! - disse o Nicolau Grande.
       E, pegando num malho, descarregou-o com tanta força sobre a cabeça do cavalo de Nicolauzinho, que animal caiu morto ali mesmo.
       - Oh! Já não tenho cavalo nenhum! - exclamou o Nicolauzinho, chorando.
       Mas depois esfolou o cavalo morto, secou o couro ao sol, meteu-o em saco e seguiu para a cidade a  ver se o vendia.
       Era  longe a cidade e o caminho passava por dentro de um mato extenso e sombrio. O tempo transtornou-se, sobreveio uma tempestade e ele se perdeu. Antes que tornasse a achar o caminho chegou a noite, e agora não podia prosseguir viagem para a cidade nem voltar para casa.
     Perto da estrada viu uma bela granja; estava fechada as persianas, mas a luz coava-se pelas frinchas e aparecia no alto das janelas. O homem foi bater à porta pensando que talvez lhe  permitissem passar a noite ali.
     Veio a dona da casa e, ouvindo o pedido, disse logo que não podia atendê-lo, porque o marido não estava em casa e não permitia que se albergasse gente estranha na sua ausência.
      - Terei então de ficar cá fora mesmo - resmungou o Nicolauzinho.
       Ali perto se erguia um grande galpão, ligado à casa por um passadiço coberto de palha.
       Poderei dormir ali, pensou ele; será ótima cama, contanto que aquela cegonha não me belisque as pernas.
         Porque avistara já uma cegonha  de pé no palhiço, de guarda ao seu ninho.
         Subiu, pois para aquele teto de colmo e tratou de se acomodar nele o melhor que pode. E, virando-se para ficar mais a agosto, descobriu que as persianas não iam até o alto da janela, de modo que podia ver o inteiro da sala, onde estava posta uma mesa bem servida; havia carne assada, peixe de excelente aparência, e vinho.
       A mulher do granjeiro enchia de vinho o copo do conviva, que não era outro senão o coveiro enquanto ele mesmo, se servia de peixe, que parecia ser o seu prato favorito. ceavam sozinhos, pois não havia mais ninguém à mesa.
    - Ah! Quem me dera apanhar um bocado daqueles! - suspirava o Nicolauzinho, esticando o pescoço para ver melhor.
     E que havia ele de avistar? Um soberbo pastelão, grande e apetitoso! Tratavam-se bem, na verdade, aquele dois!
     No mesmo instante ouviu um tropel de cavalo: alguém se dirigia à granja. Era o granjeiro que voltava.
     Não era mau homem o granjeiro; mas tinha certas manias: por exemplo, não podia suportar a vista de um coveiro. Se por acaso encontrava um, enfurecia-se. Por isso o homem aproveitava a sua ausência para visitar a senhora, e esta, por sua vez, como era muito bondosa, obsequiava-o com tudo o que tinha de melhor na despensa. E foi por causa daquela esquisitice do granjeiro que ficaram muito assustados ao ouvi-lo chegar. A mulher pediu ao coveiro que se escondesse dentro da mala que ali estava. Tratou ele logo de obedecer, pois sabia bem a aversão do granjeiro pelos da sua profissão. E, enquanto ele se escondia, ela ocultava os manjares dentro do forno, porque se o marido visse aquela ceia indagaria certamente para quem fora preparada.
  - Adeus, ceia! - suspirou Nicolauzinho, vendo-a assim desaparecer no forno.
   - Quem está aí? - perguntou o dono da casa, olhando para cima.
    Deu com o Nicolauzinho no telheiro  e disse-lhe:
    - Mas que estás fazendo aí? É melhor que desças e venhas comigo para dentro da casa!
  Contou-lhe então o homem que se perdera e pediu-lhe uma pousada por aquela noite.
   - Sim, sim, mas o que temos de fazer primeiro é comer alguma coisa.
    Recebeu-os a mulher muito amavelmente, pôs logo a tolha na mesa grande e serviu-lhes um prato de  mingau. O granjeiro estava com fome e comeu-o com apetite, mas o Nicolauzinho não podia afastar da ideia o bom assado, o peixe e o pastelão, que sabia estarem escondidos no forno.
 Depôs o saco em que levava o couro do cavalo para vender, debaixo da mesa ao alcance dos pés. Não lhe era possível engolir aquele mingau; apertou com o pé o saco e o couro seco que estava lá dentro, deu um estalido.
   - Cala-te! - disse então, olhando para o saco.
    Mas ao mesmo tempo pisava mele com mais força, para que rangesse mais alto.
   - Mas que levas aí nesse saco? - perguntou o granjeiro.
    - Ora, é um feiticeiro; diz ele que não precisamos comer mingau, porque encantou o forno, que está cheio de assados, de peixe e de pastelão.
    - Que me dizes! - exclamou o granjeiro, apresando-se em abrir o forno.
    Lá encontrou, de fato, todos os bons manjares que sua esposa escondera, mas supondo, naturalmente, que era obra do feiticeiro oculto no saco.
    A mulher não se atreveu a dizer palavra e foi levando os pratos para a mesa; os dois homens comeram à vontade - carne assada,pescado e pastelão. ali a pouco o Nicolauzinho tornou a pisar nos saco, que deu outro estalido forte.
    - Que diz ele, agora? - indagou o dono da casa.
    - Diz  que  também encantou três garrafas de vinho para nós, lá mesmo dentro do forno.
     E a mulher teve de trazer para a mesa também o vinho que tinha escondido, e o granjeiro, bebendo-o, ficou muito alegre. Quem lhe dera possuir um feiticeiro como o que  o Nicolauzinho levava no saco! E indagou então:
    - Ele pode chamar também o Diabo? Estou agora tão legre que não me importaria se ele aparecesse.
    - Oh! Certamente! - apressou-se o outro a responder. - Meu feiticeiro faz tudo quanto se lhe pede!
    E, apertando mais que nunca os saco, continuou, dirigindo-se a ele:
    - Não é verdade? Mas fala, responde!
     E, virando-se para o dono da casa, explicou:
    - Diz ele que o diabo é tão feio que não vale a pena vê-lo.
    - Ora, eu não tenho medo dele. Com quem se parece?-----
      - Vou falar nisso ao meu feiticeiro - respondeu o outro, apertando o saco.
      - Que o senhor pode abrir a mala que está lá no canto e verá o diabo, todo encolhido; mas que deve segurar bem a tampa senão ele se escapa.
     - Queres ajudar-me?
      E o granjeiro caminhou em direção à mala onde a mulher tinha escondido o homem, que tremia de medo. Pegou a tampa, abrindo apenas uma frestinha e espiou para dentro. Imediatamente recuou, estremecendo.
     - Ai! É verdade, está lá!
     Para se refazer do susto, teve de tornar a beber. Assim ambos ficaram à mesa, a beber e a dar a língua, até alta noite.
     - Tens de me vender o teu feiticeiro- disse por fim  o dono da casa. - Darei por ele o que me pedires. Ofereço-te por ele uma boa soma.
      - Não, não o vendo! Veja quanto serviço ele me presta!
       - Mas eu desejo tanto possuir um - disse o granjeiro.
       E tanto teimou que o outro acabou por dizer:
       - Pois bem, foi tão hospitaleiro comigo que quero corresponder-lhe de alguma maneira. Vendo-lhe meu feiticeiro por uma fanga de moedas. Mas olhe: há de ser bem cheia, até a beirada!
       - Bem cheia! - concordou o granjeiro. - Mas hás de levar também a mala. Não quero em casa nem mais uma hora! Quem pode saber se ele ainda não está lá dentro?
       Deu-lhe pois o Nicolauzinho o saco com o couro seco e recebeu as moedas. A medida estava tão cheia que o granjeiro ainda lhe forneceu um carrinho de mão para levar tudo aquilo, e mais  a mala.
       - Adeus! - disse o Nicolauzinho.
        E lá se foi levando o dinheiro e a enorme mala, com o homem dentro.
        Passando o mato havia um rio largo e profundo. Tão rápida era a correnteza, que era muito difícil nadar rio acima. Tinham construído há pouco uma grande ponte e o Nicolauzinho começou a atravessá-la. Chegando ao meio parou e disse muito alto, para que o outro ouvisse:
      - Ora, para que quero eu esta malha velha? Pesa mais do que se estivesse cheia de pedras! Já estou cansado de carregar tanto peso inútil... Vou atirá-la ao rio: se for flutuando rio abaixo chegará assim à minha casa; se não aparecer...pouco se perde!
      Segurou então na alça da mala, erguendo-a um pouco, como se fosse jogá-la à água.
       - Não, não! Deixa-me sair! Espera! - gritou uma voz lá dentro.
      - Oh! - exclamou o Nicolauzinho, fingindo-se assustado. - Ainda está lá dentro! Vou atirá-lo ao rio para que se afogue duma vez!
       - Não, não! Gritou o coveiro. - Dou-te uma fanga cheia de dinheiro se me deixares sair daqui!
       - Oh! Isso é  que é falar! - disse o Nicolauzinho, abrindo a mala.
         O Nicolauzinho acompanhou o coveiro até a casa deste.
          Paga a importância, ficou o carrinho bem cheio de moedas.
         - Afinal, recebi muito bom preço pelo  meu cavalo! - dizia o Nicolauzinho consigo.
         Chegando em casa, despejou o carrinho em um canto do quarto. Vendo tanto dinheiro, pensou:
         - Que raiva não sentiria o Nicolau Grande quando souber que enriqueci com o meu único cavalo!
       Mandou então um rapazinho pedir ao Nicolau Grande que lhe emprestasse um almude.
       - Para que quererá ele a medida? - disse consigo o outro.
       E esfregou sebo em um canto da medida. Quando a recebeu de volta viu que brilhavam no fundo três moedas de prata, muito lustrosas. Precipitou-se imediatamente para a casa do outro.
        - Mas que é isto? - exclamou ele. assombrado. - De onde tiraste tanto dinheiro?
        - Do couro do meu cavalo. Vendi-o ontem.
          -Foi bem pago, na verdade! - exclamou o Nicolau Grande.
         Correu a casa, pegou na machadinha e matou seus quatro cavalos. Tirou-lhes o couro e lá se foi para cidade vendê-los.
        - Peles, peles! Quem compra peles? - apregoava pelas ruas.
        Corriam logo sapateiros e curtidores a perguntar o preço.
         - Uma fanga de prata cada uma.
         - Está louco? Pensas que temos dinheiro para medir alqueires?
         Mas ele continuava o seu pregão:
          - Peles! Peles!
        E a quantos lhe perguntavam o preço dava resposta:
       - Uma fanga de prata.
         Mas ele que  divertir-se à nossa custa! - diziam todos.
        Os sapateiros pegaram no tirapé e os curtidores no avental de couro e saíram-lhe no encalço. Surram-no a valer, gritando por escárnio:
       - Peles, peles! Pois toma peles! Agora vais ver o que é pele esfolada! Toma! E fora da cidade!
       E o Nicolau Grande teve de correr a toda velocidade para salvar a própria pele: nunca na vida apanhara tamanha sova!
       Ao entrar em casa dizia, furioso:
      - O Nicolauzinho há de me pagar esta! Hei de matá-lo!
       Ora, nesse dia tinha morrido a avó do Nicolauzinho. Posto que ela nunca tivesse sido boa para ele, ainda assim ficou muito triste. Deitou-a na sua própria cama, para ver se com o calor a avó se reanimava. e resolveu passar aquela noite sentado em uma cadeira, onde várias vezes já tinha dormido. Noite alta abriu-se a porta e entrou o Nicolau Grande, armado de machado. Sabia bem onde ficava a cama do Nicolauzinho. Dirigindo-se para aquele lado, descarregou com toda a força uma machadada na cabeça da velha avó morta, julgando que matava o outro Nicolau.
     - Toma! É para não tornares a me enganar! - gritou ele.
      E foi embora.----------------
     - Que malvado! - exclamou o Nicolauzinho. - Vinha para me matar! Por sorte a coitada da avó já estava morta senão o bruto a mataria!
    Vestiu então a vó morta o seu vestido domingueiro, pediu um cavalo emprestado a um vizinho, atrelou-o a um carrinho, botou nele o cadáver, bem recostado para não cair, e lá se foi pela estrada do mato. Ao nascer do sol chegava a uma pousada. Parou o carrinho e entrou para comer alguma coisa.
     O albergueiro era um homem muito rico e também muito bom: mas tinha um gênio tão arrebatado como se fosse feito de pimenta e rapé.
    - Bom dia - foi logo dizendo ele. - Como vens cedo e tão faceiro!
    - É que vou de viagem para a cidade com minha avó; ela ficou sentada  lá no carrinho, por que não quer entrar. Pode levar -lhe um copo de hidromel? Mas tem de gritar muito, pois é surda.
      - Pois sim, levo- disse o estalajadeiro.
      Encheu um copo de hidromel e foi levá-lo à avó morta, tão bem recostada no carro como se estivesse comodamente sentada.
     - Aqui está um copo de hidromel que seu neto lhe manda - disse o albergueiro.
    Mas a velha morta ficou bem quieta, sem nada responder.
    - A senhora não ouve? - gritou o dono da casa mais alto que pode. - Seu neto lhe manda um copo de hidromel!
     E tornou a gritar com quanta força tinha, sem que a velha se mexesse.
    Então o homem  irritou-se e atirou o copo cheio ao rosto da mulher; e não só a molhou toda, mas ainda a atirou do carro abaixo, porque estava apenas encostada e não amarrada.
     Nisto saiu da estalagem o Nicolauzinho, gritando:
    - Socorro! Socorro!
     E, agarrando o homem pelo pescoço, disse-lhe:
    - Como! O senhor matou minha avó! Olhe a brecha que lhe abriu na testa!
     - Ah! Que infelicidade! - dizia o homem, torcendo as mãos. - A culpa toda é do meu gênio arrebatado! Oh! Meu querido Nicolauzinho, dar-te-ei uma fanga  cheia de  dinheiro, e enterrarei tua avó como se fosse a minha própria se me prometeres não dizer nada a ninguém! Porque se contares o caso me cortam a cabeça- e isso não é nada agradável, não é?
     E o Nicolauzinho recebeu mais uma fanga de dinheiro. O estalajadeiro fez o enterro da avó do outro como faria o da sua própria;  e o Nicolauzinho ao chegar à casa mandou outra vez pedir a medida emprestada ao outro Nicolau.
    - Como? - exclamou este. - Então não o matei? Vou eu mesmo verificar que história é esta!
    E foi em pessoa levar o almude.
   - De onde tiraste tanto dinheiro? - perguntou, mais uma vez assombrado ao ver aquele montão de moedas.
   - É que mataste minha avó pensando que me matavas a mim. Eu a vendi e deram-me por ela quatro alqueires de dinheiro.
    - Isso é o que se chama bom preço! - disse o outro.
    E voltou correndo para casa, pegou na machadinha e matou a avó de um golpe. Colocou-a em um carro e foi para a cidade; parou na farmácia e perguntou ao boticário se queria comprar uma pessoa morta.
     - Mas quem é? E de onde a trouxeste? - indagou o negociante.
     - É minha avó; matei-a e quero ver se me dão por ela uma fanga de dinheiro.
      - Valha-nos Deus! Mas o senhor está louco! Não repita isso senão o levarão para o hospício! Ou pode ser enforcado!
     E explicou que praticara um grande crime, pelo que devia ser castigado. O Nicolau Grande assustou-se tanto que saiu correndo da farmácia, trepou no carrinho de um salto, fustigou os cavalos e voltou a toda a brida para casa. Na farmácia pensaram todos que ele era louco, por isso não o perseguiram. Mas, correndo pela estrada, ia dizendo o Nicolau:
    - Vais me pagar tudo por junto. Nicolauzinho!
    Chegando a casa , pegou em um grande saco - o maior  que encontrou- e foi procurar o outro:
- Mais uma vez me enganaste! Primeiro matei meus cavalos, agora matei minha avó! E és tu o único culpado de tudo isto. Mas agora não tornarás a rir de mim!
   E, pegando o Nicolauzinho pela cintura, meteu-o no saco e deitou-o às costas, dizendo:
  - Vais parar no rio!
    Mas o rio ficava longe e o Nicolauzinho não era carga muito leve. A estrada passava por uma igreja e lá de dentro vinham os sons do órgão. O Nicolau Grande pensou que  não seria de todo mau ouvir um hino antes de ir adiante; deixou, pois, o saco ao pé da porta e entrou na igreja: o Nicolauzinho não podia sair do saco por si e todo o mundo àquela hora estava lá dentro.
    E o Nicolauzinho, dentro do saco, mexia-se para todos os lados, a ver se desatava a corda que fechava a boca. E gemia:
    - Pobre de mim! Pobre de mim!
     Nesse instante ia passando um vaqueiro, um velho de cabeça branca, com um longo cajado ao ombro. Conduzia uma ponta de bois e vacas. Os animais esbarraram no saco e derribaram-no. E lá de dentro vinham os lamentos:
   - Pobre de mim! Sou ainda tão jovem para morrer! Ainda é muito cedo para ir para o céu!
   - Pois amigo - disse o vaqueiro, sou já tão velho e ainda não consegui ir para lá!
     - Então abra o saco- gritou o Nicoauzinho. - Fique no meu lugar que não tardará em chegar ao céu.
     - Era isso mesmo que eu queria - disse o velho, desfazendo os nós e abrindo o saco. O Nicolauzinho não se fez de rogado para sair de dentro. O velho perguntou-lhe ainda:
      - Mas tu te encarregas do gado?
      E, à resposta afirmativa, entrou num instante para o saco, que o Nicolauzinho amarrou bem, antes de se por a caminho com a ponta de gado.
     Pouco depois saía da igreja o outro Nicolau; ao erguer o saco observou que pesava menos, pois o velho vaqueiro era muito mais leve que o Nicolauzinho.
     - Como parece leve, agora! - pensou ele. - Certamente é porque estive na igreja, e rezei.
      Chegando ao rio, que era largo e profundo, lançou à água o saco com o velho vaqueiro. E gritou, pensando que falava com o Nicolauzinho.
      Agora não tornarás a me enganar!
     E rumou para casa. Mas ao chegar à encruzinlhada encontrou o Niclauzinho, que ia guiando o seu gado.
    - Mas o que é isto? Então não morreste? Mas eu te afoguei!
     - É verdade; não faz mais de meia hora que me atiraste ao rio!
     - Mas de onde tiraste tão belos animais?
      - Ah! É gado do mar -disse o outro. - Devo agradecer-te por me haveres afogado, pois foi graças a isso que cheguei onde queria e acho-me agora rico. Pois é o caso que me vi morto de medo, quando me achei no saco, sentindo o ar silvar nos meus ouvido, no momento em que me lançaste à água. Fui de vereda ao fundo; não me pisei, porque a grama lá é macia; e tão linda...Imediatamente o saco foi aberto por uma donzela muito formosa, vestida com uma roupagem da cor da neve e tendo uma grinalda verde sobre a cabeleira úmida. pegando-me na mão, disse-me ela:
     - Tu por aqui, Nicolauzinho? Aqui está este gado para ti, e uma légua mais longe encontrarás outra tropa maior que também te ofereço.
        Só então notei que o rio era uma grande estrada para as gentes do mar. Andavam pelo leito do rio, subindo da embocadura para a nascente; e lá era tudo coberto de lindas flores e de grama macia. os peixes nadavam abaixo e acima, e, ao passar por mim, pareciam pássaros voando no ar. Queria que visses como é bela a gente de lá e também o gado que pasta nos vales!
     - Mas então por que tornaste a subir à terra? Eu não votaria tão cedo, se tudo lá é assim tão agradável!
       - Ah! - disse o outro Nicolau - isto foi uma esperteza minha. Já te contei que a ninfa do mar me disse que a uma légua de distância eu acharia uma grande ponta de gado à minha espera. Ela falava em estrada, sim, mas queria dizer - rio- pois é só por onde pode transitar. Mas eu sei que a corrente dá voltas e mais voltas, alongando o caminho. Indo por terra, encurto muito a distãncia, atravessando os campo e indo ter de novo ao rio. Poupo assim meia milha de caminho e entro mais cedo na posse do meu gado.
     - Mas que homem de sorte! - disse o Nicolau Grande. - E achas que eu também poderia ganhar algumas cabeças desse gado do mar se descesse ao fundo do rio?
       - Com certeza! Mas eu não te levo até lá no saco, porque és muito pesado. Agora, se quiseres acompanha-me até a margem e entrar tu mesmo no saco, posso atirar-te ao fundo do rio - e o farei com o maior prazer, podes crê-lo!
      - Obrigado! Mas se eu não encontrar gado nenhum quando chegar ao fundo, fica certo de que te darei uma boa sova quando eu voltar!
     - Oh! Não sejas tão severo comigo!
     Dirigiram-se para o rio. E assim que o gado avistou  a água, atirou-se a ela com sofreguidão, pois os animais estavam sedentos.
    - Vê como correm- disse o Nicolauzinho. - Estão com pressa de voltar de novo ao fundo.
     - Não; tens de me ajudar primeiro a descer, senão sovo-te aqui mesmo!
     E o Nicolau Grande meteu-se a toda a pressa no saco, que estava sobre  o lombo de uma vaca.
afunde - recomendou ele.
     - Mete dentro uma pedra grande, pois receio que não
     - Não, não há perigo! - respondeu o Nicolauzinho.
     E, se bem o outro o disse, melhor fez ele; meteu uma pedra grande dentro do saco, amarrou bem a boca, e - zás! - o Nicolau Grande caiu na água e foi direito ao fundo.
    E, enquanto tangia o seu gado, a caminho da aldeia, ia o Nicolauzinho dizendo com os seus botões:
    - Receio muito que ele não ache por lá nem uma única vaca...

     




 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

À SOMBRA DO SALGUEIRO - CONTOS DE ANDERSEN

           A terra que cerca a cidadezinha de Kjoege, na Ilha de Seeland, é toda nua. A cidade fica à beira do oceano. O panorama do mar é sempre uma bela coisa: mas a praia de Kjoege bem podia ser mais bonita. Onde quer que a vista se estenda, não acha mais que uma planície lisa; nada mais que campos sem nenhuma árvore. E o mato mais próximo fica bastante longe.
      Contudo, quem ama o recanto onde nasceu, descobre sempre nele alguma coisa encantadora, que mais tarde há de desejar rever, mesmo que venha a morar nas mais belas regiões.
      E há, de fato, em Kjoege, no extremo da cidadezinha, costeando o regato que vai lançar-se no mar, alguns jardinzinhos singelos, onde, no verão, a gente pode, com alguma boa vontade, imaginar-se no paraíso.
      E era isso mesmo que pensavam duas crianças sozinhas, que iam lá brincar, atravessando a sebe de groselheiras que separavam os jardins de seus pais. Em um deles havia um sabugueiro, no outro um velho salgueiro. E era à sombra do salgueiro que as crianças gostava de estar. Tinham licença de brincar debaixo do salgueiro, apesar de ficar na água; mas o olho de Deus vela sobre as criança. A não ser assim , elas seriam dignas  de lástima.
     Alias, as duas  crianças evitavam aproximar-se do regato. O menino tinha mesmo tanto medo da água , que não havia meio de conseguir, no verão entrar no mar, onde as crianças gostavam tanto de patinhar. Debalde os outros riam dele; tinha de suportar os motejos com paciência.
   Mas Joana, sua pequena companheira, sonhou um dia que ia vogando em um barco, acima das ondas, e que o menino, o pequeno Knoud, lhe vinha ao encontro. A água subia-lhe já até o pescoço, depois cobriu-lhe a cabeça, e ele acabou por desaparecer. E quando Knoud ouviu isso, não quis mais suportar as caçoadas dos outros rapazinhos. Ele tinha estado dentro d'Água; Joana o vira em sonho. Em realidade, jamais se arriscou a afrontá-la; mas  como se sentia orgulhoso do que tinha feito no sonho da sua amiguinha!
     Os pais, que eram pobres, viam-se seguidamente. Knoud e Joana brincavam juntos nos dois jardins e na estrada, cujas bordas eram plantadas de salgueiros. Não tinham estes lá grande aparência, com a cabeça descoroada; também não estavam lá ostentação, mas para proveito. O velho salgueiro do jardim, esse sim, era mais bonito; os longos ramos formavam um berço, onde as duas crianças gostavam de se aninhar.
     Há na cidadezinha uma grande praça. No tempo da feira viam-se ali longas ruas formadas de tendas e barracas, onde eram expostas fitas, brinquedos, calçados, e tudo o que se possa desejar. E era uma multidão de gente em roda das tendas.
       Entre as lojas havia uma muito grande, de pão-de-mel. E, o que era fortuna sem igual, o mercador de pão-de-mel costumava hospedar-se, durante a feira, em casa dos pais do menino. Por isso Knoud ganhava, de vez em quando, um bom pedaço daquele bolo, e Joana recebia, naturalmente, a sua parte.
      Mas o que era talvez mais encantador ainda é o que o mercador sabia toda a espécie de contos, sobre todas as coisas imagináveis, até sobre seu pão-de-mel. Uma noite contou ele uma história que fez tão profunda impressão nas duas crianças, que elas não a esqueceram jamais. E o melhor é contá-la agora, tanto mais que longa.
    "Eu tinha na vitrina da minha loja - disse ele- duas figurinhas de pão-de- mel: uma era um homem de chapéu, a outra uma mocinha sem chapéu. Não tinham figura humana senão de um lado: do outro, era melhor não olhar. Afinal, os homens também são assim: não é bom olhá-los do avesso. O rapaz tinha à altura do peito uma amêndoa amarga : era o coração. A senhorita era toda amassada com mel. Estavam na vitrina para amostra; ficaram lá tanto tempo que acabaram por se enamorar um do outro. Mas não deram demonstração desse sentimento. Entretanto, se queriam que aquele amor desse algum resultado, deviam dizer alguma coisa.
    "A ele, como homem, competia dizer a primeira palavra, na opinião da jovem, que só desejaria saber se ele lhe pagava a ternura na mesma moeda.
    "Quanto as ideias do moço, eram mais vastas, como são em geral as do sexo varonil. Sonhava que era um moleque da rua, como via tantos que passavam por ali, e que possuía um níquel, com o qual compraria a senhorita e a comeria.
   "Continuaram assim por dias e semanas, na minha vitrina. Por fim foram secando. As ideias da jovem iam ficando cada vez mais ternas, mais dignas de uma mulher:
     "- Já sou muito feliz - suspirava ela - por ter passado tempo ao pé dele!
      "E crac! Eia-la que se parte  ao meio e morre.
       "Enquanto isso, dizia o outro:
      "- Ah! Se ela tivesse sabido do meu amor, teria provavelmente suportado  melhor a existência        "E aí está  a história e aqui estão os dois heróis -- conclui o mercador. - Estes não são pães-de- mel sem eira nem beira: são personagens notáveis, que dão testemunho de que o amor mudo jamais dá resultado. Aqui estão eles: são para vocês. "
       Deu a Joana o homenzinho, ainda perfeito; e Knoud recebeu os dois pedaços que outrora tinham formado a senhorita. Mas as crianças ficaram tão comovidas com essa história tocante que não tiveram coragem de comer os dois namorados.
      No dia seguinte levaram ao cemitério os dois bonecos. Sentaram-se na grama, perto da parede da igreja que, inverno e verão, estava sempre coberta de viçosas grinaldas de hera. Colocaram os pães-de-mel em um nicho, no meio da verdura, em pleno sol, e começaram a contar as outras crianças que lá estavam a história do amor, mudo, que não vale nada.
    Todas acharam a história encantadora; mas quando quiseram ver outra vez o par infeliz, verificou-se que a moça tinha desaparecido: um rapaz já grandinho a devorara, de pura malvadez. Knoude e Joana chegaram a chorar! Depois, certamente para não deixar o moço sozinho no mundo, comeram-no; mas a história, essa não a esqueceram jamais.
   Continuaram a brincar juntos à sombra do sabugueiro e do salgueiro. A meninazinha cantava as canções mais belas do mundo com uma voz tão clara como o som de um sino de prata; Knoude não tinha voz para cantar, mas sabia de cor as palavras, o que já é alguma coisa. Os habitantes de Kjoege, até a mulher do fabricante de brinquedos, que já morara na capital, pararam para escutar o canto de Joana.
    - Essa menina - dizia a dama - tem na verdade uma linda voz!
     Eram dias felizes, aqueles. mas  pouco duraram. As duas famílias separaram-se. Morreu a mãe de Joana, e o pai, que tinha a intenção de casar de novo, resolveu mudar-se para a capital. Lá, segundo lhe diziam, poderia ganhar melhor o pão, empregando-se como mensageiro em uma boa casa  - emprego lucrativo, que lhe haviam prometido.
       À despedida, os vizinhos derramaram muitas lágrimas. As crianças, essas, desataram em soluços. Houve promessas de cartas, uma vez por ano.

                                                     II
      Knoud entrou de aprendiz na casa de um sapateiro. estava muito crescido para andar correndo os campos, sem nada fazer. Nunca tinha visto a capital, apesar de ficar distante apenas cinco milhas da cidadezinha. Quando o dia  era bem claro podia avistar, para além do golfo, as altas torres de Copenague. Como seus pensamentos voava então para Joana!...
     Lembrar-se-ia ainda dele? Sim: pelo Natal chegou uma carta do pai, anunciando que iam muito bem em Copenague, e que Joana, principalmente, por causa da sua bela voz, podia vir a ter uma boa sorte. Tinha já um emprego na Comédia, naquela onde se canta; ganhava algum dinheiro e enviava aos caros vizinhos de Kjoege um escudo para se divertirem no dia de Natal. Pedia-lhes que bebessem à sua saúde; isso vinha num pós-escrito pela própria mão de Joana, que rematava: "muitas saudades a Knoud."
       À leitura dessa carta toda a família chorou. Eram, contudo, boas notícias; mas é que choraram de alegria. Joana ocupava os pensamentos de Knoud o dia inteiro; agora ela dera prova de que também pensava nele.
      Quanto mais se aproximava o termo da sua aprendizagem, tanto mais evidente lhe parecia que ela devia ser sua esposa. A essa ideia um alegre sorriso lhe aflorava aos lábios.O rapaz puxava o fio com força redobrada; e mais de uma vez, apoiando-se com toda  a violência no tira-pé, enterrou profundamente a sovela no dedo! Mas isso não impressionou. Dizia consigo que não havia de fazer o papel de mudo, como tinha acontecido com os namorados de pão-de-mel. Aquela história lhe servira de lição.
     Passou, enfim, a oficial. Lá vai ele, de saco às costas; dirige-se pela primeira vez à capital, onde já está contratado para a casa de um mestre. Como Joana vai ficar surpreendida e alegre! Terá agora dezessete anos, e ele já fizera dezenove.
      Queria comprar em Kjoege um anel para ela; mas refletiu melhor: acharia em Copenague um muito mais bonito. Despediu-se dos pais , e num dia de outono chuvoso, deixou sua cidade natal. Ia a pé. Caíam as folhas das árvores. Chegou à capital todo molhado e dirigiu-se logo à casa do seu novo patrão.
      No primeiro domingo preparou-se para fazer uma visita ao pai de joana. Vestiu a roupa nova e um belo chapéu, que comprara em Kjoege e que lhe ficava muito bem; até então só usura boina.
      Achou a casa e subiu muitas escada. Parecia-lhe que ia ter uma vertigem. Considerava, não sem espanto, como se empoleiravam as pessoas, umas famílias sobre as outras, naquela grande e terrível capital!
    Na sala tudo respirava bem-estar. Recebeu-o o pai de Joana muito amistosamente. Sua nova esposa não conhecia Knoud; mas isso não a impediu de lhe dar um aperto  de mão e de lhe oferecer uma boa taça de café.
   - Joana vai ficar muito contente de te tornar a ver - disse o pai. - Estás, na verdade, um belo rapagão! Vais vê-la. É uma filha que me dá muita alegria, e que, com o favor de Deus, ainda me dará venturas maiores.
 Joana tem ali um quarto só para si, e é ela mesma quem paga aluguel.
   O bom homem bateu discretamente à porta, como um estranho e entraram. Como tudo era encantador naquele quartinho! Knoud pensava consigo que não se poderia ver nada mais belo em casa da rainha; era impossível! Havia tapetes,cortinas que desciam até o chão, uma cadeira coberta de veludo; flores tão grande que até corria perigo de se bater com o pé: era um espelho do tamanho de uma porta.
    Knoude viu todas essas maravilhas num relance; não tinha olhos senão para Joana, que estava diante dele. Era uma senhorita, muito outra, muito diferente do que Knoud imaginava, mas muito mais bela. Em toda a cidade de Kjoege não havia nem uma só moça que se  lhe igualasse; tinha um ar tão distinto que até parecia imponente. Olhou para Knoud, admirada,  mas somente por um momento: precipitou-se depois para ele, como se fosse beijá-lo; não o fez, mas chegou quase a fazê-lo. Sim, regozijava-se de todo o coração de rever seu amigo de infância. Não tinha olhos molhados de lágrima? E quantas perguntas lhe fez! Pediu notícias de todo o mundo, dos pais de Knoud, do pai Salgueiro e da mãe Sabugueira, como chamavam outrora às suas queridas árvores, como se fossem seres viventes.
      - E afinal -disse ela- por que não seriam dotados de vida, uma vez que até os pães-de-mel naquele tempo se animavam?
      Joana lembrava-se dos bonecos do negociante da feira, do seu amor mudo, do longo tempo que ficaram juntos na vitrina, até que um deles se quebrou em dois pedaços. Ria, à recordação dessa história. Quanto a Knoud, sentia o sangue lhe subir ao rosto e o coração bater-lhe duas vezes  mais depressa. e dizia consigo:
     - Não! Deus seja louvado! Ela não ficou orgulhosa! E foi ela, notou-o bem, foi ela quem fez os pais convidá-lo para passar com eles o serão. Mais tarde Joana tomou um livro e leu-o em voz alta. Pareceu-lhe que o que ela lera tinha relação com o seu amor, de tal modo as ideias do autor se assemelhavam às suas. Depois a moça cantou uma canção muito simples, mas para Knoud aqueles versos tão curtos eram todo um poema em que , supunha ele, o coração da jovem transbordava. Certamente ela o amava, não havia dúvida alguma. A esse pensamento as lágrimas corriam, pelas faces do moço, sem que ele pudesse retê-las. também já não era capaz de dizer uma só palavra. Pareceu-lhe que se tornara completamente estúpido; mas Joana apertou-lhe a mão, dizendo:
      - Tens um coração sensível, Knoud; fica sempre tal como és.
       E que serão, aquele! Dormir, depois de uma noite assim? Nem falar nisso! E Knoud, é claro, não conciliou o sono a noite inteira.
      À despedida, dissera-lhe o pai de Joana:
       - E agora não nos esqueças; não deixes passar o inverno inteiro sem vir aqui.
       Pareceu-lhe que, depois daquelas palavras, podia muito bem voltar lá no domingo seguinte; era essa a sua intenção, mas isso não o impedia de ir dar um passeio, depois de acabado o trabalho - posto que este se prolongasse com a luz acesa - passando sempre pela rua onde morava Joana. Olhava para as janelas do seu quarto, quase sempre iluminadas. Uma vez percebeu distintamente a sombra da moça, que se projetava na cortina. Que bela noite foi aquela!
      A senhora do patrão não gostava nada daquelas saídas contínuas, a tardias horas; sacudia a cabeça em sinal de mau presságio. Mas o patrão dizia, sorrindo:
    - Ora, ele é moço; é preciso aproveitar a mocidade.
      - No domingo ver-nos-emos! - pensava Knoud .- Dir-lhe-ei que ela é dona de minha alma e que deve casar comigo. Não sou mais que um pobre oficial de sapateiro; mas dentro em breve serei mestre. Hei de trabalhar, hei de suportar tudo o que for preciso. Sim: vou falar-lhe francamente. O amor mudo de nada serve. A história dos pães-de-mel provou-me isso há muito tempo.
     Chegou domingo. Knoud apresentou-se na casa da moça: mas que pena! Estavam todos convidados para uma reunião na cidade. E como Knoud não se despedia, foi preciso dizer-lho. Joana apertou-lhe a mão e perguntou:
     - Já foste ao teatro? É preciso ires uma noite. Canto na quarta-feira, e se estiveres livre nesse dia, mando-te uma entrada. Meu pai sabe onde mora o teu patrão.
    Que lembrança afetuosa, a dela! Na quarta-feira, ao meio-dia, recebia ele, de fato, um envelope fechado, sem uma palavra escrita; mas o bilhete de entrada lá estava. Foi naquela noite, pela primeira vez, ao teatro, e lá viu Joana. Como estava graciosa! É verdade que em cena casara com um estranho, mas aquilo era só comédia, que não passa de fingimento, bem o sabia ele. Senão ela não teria certamente coragem de lhe enviar um bilhete para ele fosse ver com seus próprios olhos semelhante coisa...Todo o mundo bateu palmas e se extasiava, falando em altas vozes. Knoud gritou:
    - Viva!
     Sim, o próprio rei sorria para Joana, mostrando quanto lhe agradava ouvi-la! E Knoud se sentia tão pequenino! Contudo, dizia consigo:
     - Mas eu a amo tanto e ela também me ama muito: isso nivela tudo. Entretanto, compete ao homem pronunciar a primeira palavra: é o que pensava a mocinha de pão-de- mel. Sua história encerra mais de uma lição.
      No domingo seguinte Knoud voltou à casa dos seus amigos. Joana estava sozinha e recebeu-o; não podia ser melhor ocasião.
     - Foi bom que aparecesses- disse ela. - Pensava em pedir a meu pai para te procurar, mas tinha um pressentimento de que virias hoje. Porque queria comunicar-te que parto para a França; é preciso, para que eu chegue a ser alguma coisa na vida.
    Foi como se tudo no quarto dançasse em roda de Knoud. Pareceu que o coração se lhe ia despedaçar. Nem uma lágrima lhe subiu aos olhos, mas via-se bem quão profundo era o seu desgosto.
     - Como és meu amigo! - disse ela.
      E aquelas palavras desataram a língua do moço. Disse-lhe com que ardor a amava e que era preciso que casasse com ele.
     Mas assim que pronunciou essas palavras, viu que Joana mudava de cor, tornado-se  muito pálida. Retirou a mão e respondeu, com expressão séria e aflita:
    - Não te tornes infeliz, Knoud, e não me faças infeliz também. Serei para ti uma boa irmã, em quem podes ter confiança, mas nada mais.
     E depois continuou:
     - Deus dá-nos a força precisa para vencer os momentos dificieis, contanto que tenhamos a vontade e a coragem de enfrentá-los.
     Naquele momento entrava na sala sua madrasta, e Joana disse-lhe:
    - Knoud está fora de si porque vou partir. tem coragem, meu amigo!
     E ela punha a mão no ombro dele, fingindo que não se tinha falado senão da viagem. E continuou ainda:
     - És uma criança. Mas é preciso que sejas agora bom e razoável, como dantes, à sombra do salgueiro quando éramos pequenos.
     Parecia a Knoud que o mundo saíra fora dos eixos. Seus pensamentos eram como um fio solto que esvoaçava ao vento. E ele ali estava, indeciso; não sabia mais se o tinham convidado a ficar; mas  Joana e sua madrasta foram muito amáveis e compassivas. A moça serviu-lhe chá e cantou. Sua voz já  não soava como antigamente, mas era incomparavelmente bela. E o coração do moço dilatava-se ao ouvi-la. Quando se separaram, ele não estendeu a mão a Joana, que o compreendeu e disse-lhe:
     - Mas deves apertar a mão de tua irmã, na despedida, meu velho camarada de infância!
     E sorria por entre as lágrimas que lhe molhavam as faces, repetindo aquele nome de irmã. Sim, era uma bela consolação!
     E foi assim que se separaram.
                                                                  III

    Joana embarcou para França. Todos os dias knoud errava longo tempo nas ruas de Copenague. Os outros aprendizes da oficina perguntavam-lhe por que passeava assim, sempre mergulhando nas suas reflexões. E incitavam-no a partilhar os seus prazeres:
     - É preciso que a gente se divirta enquanto é jovem!
       Foi com eles à sala de dança. Havia lá muitas moças bonitas. Nenhuma era, porém, tão linda como Joana. E ali, onde julgava poder esquecê-la, tinha , ao contrário, sua imagem mais presente no pensamento.
      -Deus nos dá forças -dissera ela - contanto que tenhamos vontade e coragem.
       E ele se lembrava daquelas palavras, que deviam fortalecer-lhe o ânimo. Os violinos ressoaram naquele momento e as moças dançaram uma ronda. Ele estremeceu de espanto. Parecia-lhe que estava em um lugar onde não teria podido levar Joana. Entretanto ela lá estava pois que a levava no coaração. Saiu e foi correndo pelas ruas. Passou diante da casa onde a moça tinha vivido; estava tudo escuro ali; tudo vazio e deserto. O mundo seguia seu caminho.
     Veio o inverno e as águas gelaram. A natureza mudou de aspecto; parecia que por toda a parte só se viam preparativos fúnebres. Mas quando a primavera voltou e o primeiro barco a vapor saiu do mar, Knoud se viu tomado de desejo ardente de viajar, de ir longe, longe, de ir para outra parte.
      Afivelou o saco de viagem e foi-se, através da Alemanha, de cidade em cidade, sem parar em nenhuma. Quando porém, entrou na antiga e curiosa Cidade de Nuremberg, pareceu-lhe que tornava  a ser senhor de seus pés; e então decidiu ficar ali.
     Nuremberg é uma cidade singular; parece uma figura recortada de alguma velha crônica histórica.
     As ruas vão serpenteando ao sabor do seu capricho. As casa, sobrecarregada de esculturas bizarras, ostentam estátuas nas fachada. E do alto dos tetos, de estrutura singular, surgem gárgulas em forma de dragão, de lebre, de cão de pernas compridas.
     De saco às costas, Knoud parou na Praça do Mercado. Ali ficou junto de uma fonte antiga, ornada de soberbas estátuas de bronze. Uma bonita rapariga aparava água justamente naquele instante. Knoud, fatigado da marcha, sentia uma sede devoradora; ela lhe deu de beber e ofereceu-lhe também uma rosa que trazia na mão. Isso pareceu de bom augúrio ao viajante.
     De uma igreja próxima vinham harmoniosos sons de órgão, familiares ao seu ouvido. Pareciam-lhe iguais aos que ressoavam na igreja de Kjoege... Entrou no vasto santuário. O sol  penetrava pelos vitrais de cor, iluminando as filas de pilares altos e imponentes. o moço sentiu a piedade tomar-lhe os pensamentos, e a paz e o repouso lhe voltarem ao coração.
      Procurou e achou em Nuremberf um bom patrão. Ficou na sua casa e aprendeu a língua alemã.
     Os antigos fossos que cercavam as fortificações da cidade foram divididos e convertidos em hortas; mas as  altas muralhas com suas forças maciças ainda estão de pé. E ainda existe o caminho coberto. E lá que o cordoeiro torce suas cordas. Nas fendas das velhas muralhas crescem os sabugueiros em moitas espessas, estendendo os galhos por cima das casinhas baixas em que se encostam às fortificações. Em uma dessas casinhas morava o patrão de Knoud. Acima da mansarda onde o moço se sentava, um belo sabugueiro estendia sua folhagem.
     Ficou ele lá um verão e um inverno; mas veio depois a primavera e Knoud não pode mais conter-se. O sabugueiro floresceu; encheu o ar de perfume. Recordava a Knoud outro sabugueiro e ele se sentia transportado para o jardinzinho de Kjoege. Deixou então o mestre sapateiro e foi procurar outro no interior da cidade, onde não cresciam sabugueiros.
      Sua nova oficina ficava perto de uma ponte velha; abaixo dela rolava rápidas as águas de um regato, que faziam girar ruidosamente uma roda de moinho. As águas passavam entre casas de empenas tão estragadas, que pareciam a todo o instante se despenhar no arroio.
      Ali não vicejava nenhum sabugueiro, mas bem em frente a oficina seguia-se  um salgueiro velho, que se segurava pelas raízes à casa para não ser arrastado pela torrente. E, como o salgueiro do jardim de Kjoege, mergulhava parte da sua ramagem no regato.
      Sim: Knoud passara de mãe Sabugueira para o pai Salgueiro. Nas noites de luar o salso tinha alguma coisa que lhe ia direito ao coração, enternecendo-o e desanimando-o. Não pode ficar ali. Por que? que o diga o salgueiro; que o diga o sabugueiro em flor.
    Despediu-se do patrão e deixou a Cidade de Nuremberg. A ninguém falava de Joana. Enterrara seu desgosto no fundo do próprio ser. Vinha-lhe muitas vezes à memória a história dos pães-de-mel, cujo sentido profundo compreendia melhor agora. Sabia por que o homenzinho tinha uma amêndoa amarga à altura do peito. Seu coração estava também cheio de amargura. Joana, ao contrário, sempre tão doce e afetuosa, não era ela toda açúcar e mel como a mocinha da ingênua narração?
     Esses pensamentos deixaram-no oprimido. Mal podia respirar. Atribui isso à correira do saco e desafivelou-a. Mas nada lhe serviu. Para ele havia agora dois mundos diferentes, nos quais vivia: o mundo exterior, que o cercava, e o que trazia
      Ao avistar porém, as altas montanhas, seu espirito se desprendeu desses pensamentos melancólicos, começando então a dar atenção ao que o cercava. Diante daquele espetáculo grandioso sentiu os olhos cheios de lágrimas.
      Apareciam-lhe os Alpes como as asas desdobradas da terra.
     - Que sucederia se ela distendesse de repente essas  asas imensas, com  suas florestas sombrias, suas torrentes, suas massas de neve? Sem dúvida a terra, no dia do juízo, se elevará assim, erguida para o infinito, e, como uma bolha de sabão ao sol, se dispersará em milhões de átomos, aos raios dos relâmpagos divinos...
      E concluiu, suspirando:
   - Quem dera que fosse hoje o dia do juízo!
      Atravessou uma região que lhe aparecia como um pomar magnifico. Do alto dos balcões dos chalés as moças que batiam o cânhamo o cumprimentavam; respondia-lhes simplesmente, sem jamais acrescentar uma palavra amável, como costumam fazer os outros moços.-------------------
      Quando vistou, através da espessa folhagem, os grandes lagos de águas esverdeadas, lembrou-se do mar que banha a praia onde nascera e da baía de Kjoege. Sentia uma profunda melancolia, mas já não era mais a dor.
      Viu o Reno precipitar-se em cheio do alto de um rochedo, dispersando-se em milhões de partículas, que formam uma massa branca e brumosa, através da qual brincam as cores do arco-íris, como uma fita esvoaçante no ar. Aquele espetáculo imponente lembrou-lhe a cascata rumorosa e espumejante do regato que agita as rodas do moinho de Kjoege. por toda a parte o perseguia a saudade do lugar onde nascera.
     Gostaria de ficar em uma daquelas tranquilas cidade das margens do Reno; mas cresciam lá muitos sabugueiros, muitos sabugueiros. Continuou a viajar. Atravessou altas montanhas, andando por caminhos que costeavam rochas cortada a pique, como uma goteira que guarnece a beirada do teto. Via-se acima das nuvens, que lhe flutuavam abaixo dos pés; ouvia a uma profundidade prodigiosa o fragor das torrentes que rolavam no fundo dos vales. Nada o espantava, nada o assombrava. por sobre os vértices nevados onde florescia a rosa dos Alpes ia andando para os países do sol. Disse adeus às regiões do Norte, e chegou, à sombra de alamedas de castanheiros enlaçados de vinhas, aos campos de milho. montes escarpados o separavam, como uma muralha imensa, dos lugares que tinham deixado tão tristes recordações. e dizia consigo:
     - É bom que assim seja!
                         IV
    Diante dele estava uma grande e magnífica cidade; os habitantes chamavam-na  Milão. Encontrou um patrão alemão que lhe deu trabalho. Era um homem bom e sua mulher também era boa e piedosa. Os dois velhos tomaram afeição ao operário estrangeiro que falava pouco, mas por isso mesmo trabalhava e levava vida honesta e cristã.
     Parecia a Knoud que Deus lhe livrara o coração do pesado fardo que o oprimia. Seu maior prazer era subir à Catedral, de mármore tão alvo como a neve do seu país. Andava por entre as torrinhas pontudas, as agulhas e as arcadas. Em cada recanto, em cada ogiva, sorria-lhe uma estátua branca. Acima, o céu azul; abaixo, a cidade; depois, para além, a planície imensa da verde Lombardia, e, mais ao longe, altas montanhas. pensava na igreja de Kjoege, nas suas paredes vermelhas cobertas de hera: que diferença entre ela e a catedral milanesa! Não tornaria a vê-la. não desejava mais voltar. Aqui, atrás daquelas montanhas, é que queria ser enterrado.
      Fazia já um ano que estava naquela cidade e três que deixara a pátria. Um dia o patrão, para o distrair, levou-o- não ao circo, para os execícios equestres - mas à Opera. A sala era na verdade digna de ser vista. Tem sete ordens de camarotes, todos guarnecidos de belas cortinas de seda. Da primeira fila até a última, no topo do edifício, estavam sentadas damas elegantes, adornadas como se fossem a um baile. Os cavalheiros vestiam também trajes de cerimônia; muitos deles tinham vestimentas recamadas de ouro e de prata. Era tão claro lá dentro como o dia; e soava uma música magnífica. era muito mais belo do que a Comédia de Copenague. Sim, mas lá estava Joana!
      Parecia um encantamento! Subiu o pano e eis que aparece Joana, coberta de sedas e pedrarias, tendo à cabeça uma cora de ouro. Ela cantou como só os anjos do céu sabem cantar. Avançava até a borda do proscênio e sorria como só Joana sabia sorrir. Olhava justamente para Knoud. O pobre rapaz pegou na mão do patrão, gritando alto:
      - Joana!
      Mas apenas o velho o ouviu: a música abafou-lhe a voz. E o patrão, fazendo a cabeça um sinal afirmativo, disse:
      - Sim, sim, ela se chama mesmo Joana.
      Tirou do bolso um papel impresso e mostrou o nome que ali estava...todo o nome de Joana.
      Não, não era sonho os espectadores estavam transportados de entusiamo. Lançavam-lhe flores, ramalhetes, coroas. cada vez que Joana deixava o palco, tornavam a chamá-la; ela vinha, desaparecia, tornava a voltar.
    Terminado o espetáculo, as pessoas se amontoavam ao redor da sua carruagem. Desatrelaram os cavalos para conduzi-la. knoud lá estava, na frente , mais alegre, mais excitado que os outros. quando a carruagem parou, diante de uma casa esplendidamente iluminada, ele foi colocar-se ao pé da portinhola. Joana desceu. Caía-lhe a luz sobre sobre o rosto. ela sorria, agradecia a todo o mundo com uma graça suave. knoud olhou-a nos olhos e ela também o olhou; mas, comovida como estavam não o reconheceu. Um moço com uma  estrela resplandecente de diamantes no peito ofereceu-lhe o braço, enquanto diziam na multidão:
      - São noivos.
       Knoud volta apressadamente ao seu quarto e prepara o saco de viagem. Queria - era-lhe agora absolutamente necessário - voltar para sua terra, para o sabugueiro, para o salgueiro. Ah! à sombra do salgueiro, em uma hora, um homem pode repassar em espírito sua vida inteira.
     As pessoas da casa onde morava instaram com ele para ficar, mas não conseguiram retê-lo. observaram-lhe que o inverno se aproximava, que já caía a neve na montanha. Mas Knoud retrucou:
      - As caruagens terão de abrir passagem na neve; no sulco que elas deixaram, saberei achar meu caminho.
                                          V
     Tomou o saco e o bastão e encaminhou-se para as montanhas. Subiu montanha e desceu montanha. Iam-lhe diminuindo as forças e ainda não avistava nem aldeia nem casa. Seguia para o Norte. As estrelas cintilavam ao redor dele. Vacilavam-lhe as pernas, andavam-lhe a cabeça à roda. No fundo do vale brilhavam também estrelas, como se houvessem outro céu lá embaixo. Sentia-se doente. Os pontos luminosos lá de baixo aumentavam sem cessar e se moviam para um lado e para outro. Era uma cidadezinha. quando knoud o reconheceu, procurou reunir as forças que lhe restavam a fim de chegar a um albergue humilde.
      Passou ali a noite e o dia seguinte. Tinha necessidade de repouso e de cuidados. Já começara o degelo; chovia no vale. Na manhã seguinte chegou ao albergue um homem com uma sanfona e tocou uma ária muito semelhante a uma melodia dinamarquesa. Então foi impossível a knoud ficar ali mais tempo; pôs-se a caminho para o Norte. Caminhou dias e dias, com pressa, como se receasse que todos morressem na sua terra antes que lá chegasse.
      Não falava a ninguém sobre o que o impelia. Pessoa alguma suspeitava a causa do seu desgosto. Uma dor assim não interessa o mundo, nem mesmo os nossos amigos, e em verdade Knoud não tinha amigos. Como estrangeiro, atravessava os países estrangeiros, marchando sempre para o Norte.
      Sobreveio a noite. Seguia ele pela estrada real. Sentia de novo a neve a cair. A região ia ficando plana. Viam-se campos , pastagens. À beira da estrada erguia-se um grande salso. Tudo aquilo recordava a Knoud a sua  terra. Sentou-se debaixo da árvore; estava tão fatigado....curvou a cabeça e o olhos se lhe fecharam: ia dormir.
     Não deixou de observar, entretanto que o salgueiro se abaixava e estendia os galhos acima dele. Aparecia-lhe aquela árvore como um ser grandioso. Sim, era o pai Salgueiro; erguera-o nos braços e o levara, aquele filho cansado e esgotado, para a pátria, para a praia lisa de Kjoege. Sim, era o pai Salgueiro em pessoa, que tinha percorrido o mundo, em busca do seu knoud, que o achara e o transportara para o jardim, à beira do regato; e lá estava Joana em todo o seu esplendor, com a coroa de ouro à cabeça, tal como ele a vira pela última vez. e ela lhe gritou de longe:
      - Bem-vindo sejas!
      Diante dele se erguiam também duas figuras singulares. Conhecia-as desde a infância; tinham, porém, muito melhor aspecto do que então. Haviam mudado muito, e com vantagem. Eram os dois pães-de-mel, o homem e a mulher; ele os via do lado bem-feito, e pareciam, na verdade, muito bem dispostos.
      - Nós te agradecemos - disseram-lhe ele; - tu nos prestaste um grande serviço : desamarraste nossa língua; ensinaste que não devemos calar nossos pensamentos - senão eles de nada servem. Foi assim que atingimos nosso fim e agora somos noivos.
      Dito isso, atravessaram as ruas de Kjoege, de mãos dadas. Tinham um ar muito digno. Encaminharam-se para a igreja: Knoud e Joana seguiram-nos, também de mãos dadas. A igreja lá estava , como outrora, com as paredes cobertas de hera verdejante, A grande porta abriu-se de par em par. Ouviu-se o som do órgão.
     Entraram na nave. Abrindo lugar para ele, disseram os pães-de-mel:
     - Os amos vão adiante.
    E Knoud e Joana ajoelharam-se diante do altar.
      knoud despertou e achou-se sentado à sombra do velho salgueiro, em país estrangeiro, numa noite fria de inverno. Das nuvens caíam granizos que lhe fustigavam o rosto gelado.
      - Foi esta a hora mais bela de toda a minha vida! - exclamou ele. - E foi um sonho... Meu Deus! Fazei-me sonhar sempre assim!
      Fechou de novo os olhos, adormeceu e sonhou.
      De manhã caiu neve. O vento lançou-se sobre o moço adormecido. E ele continuava a dormir. Moradores das aldeias vizinhas que se dirigiam para a igreja, passaram ali e viram uma pessoa estendida à beira da estrada. Era um operário . Estava morto.
      Morrera de frio. à sombra do salgueiro.
   

                         



sábado, 19 de dezembro de 2015

O PORCO DE BRONZE- CONTOS DE ANDERSEN

   Na cidade de florença, não muito longe da Piazza del Granduca, fica uma pequena travessa. Creio que lhe dão o nome de Porta Rosa. Ali, em uma espécie de mercado de verduras, está um porco de bronze, artisticamente trabalhando. Escorre-lhe da boca um fio de água clara e fresca, e o animal, com a idade, foi tomando uma cor-negra. Só o focinho brilha ainda, como se fosse polido, e de fato o é: centenas de crianças e de lazzaroni( mendigos) o seguram com as mãos, enquanto unem a boca ao focinho do animal, para beber. E é um quadro realmente belo o que apresenta aquele animal tão talhado, abraçado por um bonito menino seminu, que lhe roça pelo focinho os lábios frescos
       Quem visita Florença encontra facilmente aquele sítio. Basta perguntar a qualquer mendigo onde fica o porco de bronze e achá-lo-á logo.
        Era à boca da noite, já no fim do inverno. Estavam as montanhas cobertas de neve, mas havia luar; e a luz do luar italiano vale tanto ou mais que a de um dia nublado do inverno setentrional. Lá o ar cintila e nos eleva da terra, ao passo que na Norte a fria coberta de cinza que pesa sobre nós, aperta-nos contra a terra fria e úmida, que um dia há de pesar também sobre o nosso caixão.
      No jardim do castelo do grão-duque estivera sentado o dia intero um meninozinho todo esfarrapado; bem podia ele servir de símbolo da Itália: bonito, sorridente , e contudo sofria. Tinha fome e sede, mas ninguém lhe dava esmola; e ao escurecer, à hora de fechar o jardim o porteiro enxotou-o. Ficou ele muito tempo parado, absorto em cismas, na ponte que atravessava o Arno, olhando para as estrelas que cintilavam na água , aquém da suntuosa Ponte Della Trinità.
     Dali seguiu o caminho que vai dar ao porco de bronze. Meio ajoelhado, cingiu-lhe o pescoço com os braços e, encostando a boca no focinho reluzente, bebeu a grandes sorvos  a água fresca. Ao pé estavam algumas folhas de alface e castanhas: era seu jantar. Além dele não havia ninguém na rua: pertencia-lhe toda, portanto. Confiante o menino sentou-se nas costas do porco, curvou-se para a frente, descansando a cabeça crespa sobre  a  do animal. E, sem dar tino do que fazia, adormeceu.
    Era agora meia-noite. O porco de bronze mexeu-se. O menino ouviu distintamente estas palavras:
     - Agora, meninozinho, segura-te bem, porque vou correr!
     E lá se foi o porco correndo, com ele às costas. Foi um passeio maravilhoso! Primeiramente chegaram à Piazza del Granduca; e o cavalo de bronze, que a estátua do duque cavalga, relinchou fortemente. Os brasões multicores da antiga Casa Do Conselho Municipal pareciam quadros transparentes. O David de Miguel Angelo brandia a funda. E havia estranha agitação. Os grupos de bronze que representam Perseu e o Rapto das Sabinas pareciam vivos: erguia-se deles um brado de medo mortal, que ecoava por toda a praça.
    Junto ao Palazzo degli Uffizi, sob as arcadas, onde a aristocracia costuma reunir-se para os divertimentos carnavalescos, o porco de bronze estacou. Depois, disse ao menino:
    - Segura-te bem! Segura-te bem, pois vamos subir a escada!
     E o menino, meio assustado, meio alegre, nada dizia.
   Entraram em uma extensa galeria, onde ele já estivera, cujas paredes estavam cheias de pinturas. Ali se viam bustos e estátuas, banhadas em uma luz esplêndida, como a luz do claro dia. Mas o mais lindo foi quando se abriu a porta de uma das salas laterais.O menino já conhecia toda a magnificência que ali reinava, mas nessa noite via as coisas no auge do esplendor.
     Ali estava, de pé, uma bela mulher sem vestes, tão bela como a natureza e o maior dos mestres da escultura a poderiam plasmar. Aos seus suaves movimentos, delfins saltitantes cercavam-lhe os pés; nos seus olhos fulgia a imortalidade. O mundo chama-a a Vênus de Médici. Aos seus lados, estavam estátuas de mármore inteiramente impregnados da vida do espírito. Eram homens nus, maravilhosos; um deles afiava a espada e chamam-no de o Afiador; os gladiadores em luta formavam  outro grupo. E aquela espada  que se afiava, e aquela luta que se tratava - era tudo pela deusa da beleza.
    Tanto esplendor deslumbrou o menino. As paredes resplandeciam de tantas cores. Tudo ali era vida e movimento. Mas nenhum dos quadros ousou sair inteiramente da moldura. A própria deusa da beleza, os gladiadores e o afiador permaneciam nos seus lugares, imobilizados pela glória irradiada da Madona, de Jesus e de São João. As imagens dos santos já não eram mais imagens: eram os próprios santos.
       Que esplendedor e que beleza, de sala em sala! O menino tudo contemplava, pois o porco de bronze ia andando passo a passo, através de toda aquela magnífica pompa. Uma visão substituía outra visão. Mas um único quadro gravou-se profundamente na alma do menino, e isso sobretudo por causa das crianças alegre e felizes que nele apareciam.
     É possível que muita gente passe por aquele quadro sem lhe prestar atenção. E contudo, encerra ele um tesouro de poesia: representa Cristo, que desceu ao limbo. Aqueles que o rodeiam não são os condenados, mas os pagãos. Pintou-o florentino Angiolo Bronzino. O que nele aparece de mais belo é a expressão da fisionomia das crianças; a confiança plena de que entrarão no céu. Duas meninas já se abraçaram ; um menino estende a mão a outro, que está mais abaixo, apontando com o dedo para si mesmo, como se dissesse: " Eu entrarei no céu!" Os mais velhos mostram uma atitude de incerteza; esperam e curvam-se diante  do Salvador em humilde adoração. O olhar do menino fixou-se naquele quadro mais tempo do que nos outros. O porco de bronze permanecia imóvel. Ouviu-se então um leve suspiro. Vinha do quadro, ou saíra do peito do animal? O menino ergue as mãos para aquelas crianças risonhas; mas nesse momento o animal levou-o , a correr , para o vestíbulo aberto.
      - Muito agradecido! Abençoado sejas, maravilhoso animal! - disse o menino, acariciando o porco de bronze que, com ele às costas, ia pela escada abaixo.
       - Abençoado sejas tu! - respondeu o porco. - Prestei-te um serviço e tu me fizeste outro, pois é somente com uma criança inocente no dorso que adquiro forças para correr. Vês? Posso entrar até no nimbo dos raios da lâmpada que arde em frente da imagem da Madona: só não posso entrar na igreja. Mas enquanto estás comigo posso deitar um olhar pela porta aberta. Não desças das minhas costas! Senão fIcarei como morto, como vês o dia inteiro, na Porta Rosa.
      - Não, ficarei contigo, meu querido porco! - disse a criança.
       E lá se foram correndo a bom correr, pelas ruas de  Florença; chegaram assim à praça, em frente à igreja da Santa Croce.
       Repentinamente abriu-se a porta e a luz dos círios do altar estendeu-se até a praça deserta.
       De um monumento sepulcral, na nave lateral esquerda, irradiou um esplendor maravilhoso. Eram milhares de estrelas móveis que circundavam um túmulo, formando uma auréola: era o túmulo , de Galileu. É um monumento simples, mas a escada vermelha que fica ao fundo tem muita significação: é o símbolo da arte, pois indica um caminho que, por uma escada de brasas, conduz ao céu. Todos os profetas do espírito buscam o céu, como profetas Elias.
      Na nave da direita, as estátuas , dentro de seus ricos sarcófagos, pareciam dotadas de vida. Lá estava Miguel Ângelo, mais além Dante , coroado de louro: Alfieri, Maquiavel: jazem ali, lado a lado, os grandes homens que são orgulho da Itália. É uma igreja magnífica, muito mais bela, ainda que menor do que a catedral de mármore de Florença.
      Parecia que aquelas vestes de pedra tinham movimento, e que os vultos sublimes iam erguendo a cabeça, cada vez mais alto, mais alto , para contemplar, por entre os sons da música e dos cânticos, o radiante altar multicor, onde os meninos vestidos de branco agitam os turíbulos de ouro. E o aroma arrebatador encheu a igreja, transbordando para a vasta praça.
     Mas quando o menino estendeu a mão para aquele esplendor, o porco deitou de novo a correr e ele teve de se segurar com toda a firmeza. Soprava-lhe o vento nos ouvidos e ainda ouviu o rangindo dos gonzos da porta, que se fechava. Naquele mesmo instante pareceu-lhe que perdia o conhecimento; um frio glacial despertou-o e ele abriu os olhos.
     Era já dia. Estava ainda deitado no dorso do porco de bronze, mas escorregara um pouco por sobre o animal. que ainda lá estava no mesmo lugar em que costuma repousar, na Rua Porta Rosa.
      Ao lembrar-se daquela a quem chamava mãe, e que na véspera o mandara sair em busca de dinheiro, encheu-se o menino de terror. Não tinha nada: só fome e sede! Abraçou ainda uma vez o pescoço do porco de bronze e beijou-lhe o focinho. E com um gesto de adeus foi-se dali para uma das vielas mais estreitas, que mal dava passagem a burro carregado. Chegou  a uma grande porta entreaberta; subiu a escada de pedra, entre paredes sujas; servia de corrimão uma corda. Chegou a uma galeria aberta, onde se via farrapos estendidos. Dali outra escada levava ao pátio , onde havia um poço, do qual partiam cabos de ferro para todos os andares da casa. E os baldes oscilavam no ar, enquanto a roldana guinchava, derramando a água sobre o pátio. Outra escada velhíssima levava para cima. Dois marinheiros russos, muito alegres, que iam descendo, aos pinotes, quase deitaram abaixo o pobre menino. Atrás deles apareceu uma mulher, já não muito moça, mas cheia de vida; seus cabelos eram negros e abundantes.
       - Que trazes? - perguntou ao menino.
       - Não fiques zangada? - suplicou ele. - Não ganhei nada, nada!
       E segurou o vestido da mãe, fazendo menção de beijá-lo.
       Entraram num quarto pequenino, um quarto que nem quero descrever. Direi apenas que havia lá uma panela de alças , cheia de brasas, daquelas a que chamam marito. A mulher pegou nela, para aquecer os dedos, e , dando uma cotovelada no menino, disse-lhe:
      - É claro que trouxeste dinheiro
       A criança pôs-se a chorar e a mulher deu-lhe pontapés e mais pontapés, até fazê-la gritar.
      - Cala a boca, senão quebro-te a cabeça, gritalhão!
       E, enquanto dizia, ia agitando o fogareiro. Com um grito de terror, o menino abaixou-se; nesse momento ia entrando a vizinha, que também trazia o marito na mão.
        - Felicita! Que fazes à criança?
       - A criança é minha. Posso matá-la se quiser  - e a ti também, Giannina!
        E brandia o fogareiro, enquanto a outra levantava o seu para se defender. As panelas entrechocaram-se com tanta violência que voaram pelo quarto os cacos , cinzas e faíscas, Mas o menino esgueirou-se pela porta, atravessou o pátio e saiu para a rua. Correu, correu, até perder o fôlego. Parou diante da igreja, cuja grande porte lhe abrira à noite, e entrou. Lá dentro tudo resplandecia. Ajoelho-se junto do primeiro túmulo à direita . o de Miguel Ângelo e desatou a chorar.
           Entrava e saía gente. Terminou a missa . Ninguém deu pela presença da criança, a não ser um um burguês idoso, que parou e o olhou um instante. Depois foi andando, como os outros.
           Torturado pela fome e pela sede, o menino sentia-se doente; parecia-lhe que ia desmaiar. Foi-se arrastando para um canto entre os monumentos de mármore, e ali pegou no sono. Já à tarde acordou-o um leve puxão. Viu então, sobressaltado, que estava ao seu lado aquele mesmo burguês idoso.
        - Que é isto? Estás doente? Onde moras? Passaste o  dia inteiro aqui?
        Foram essas algumas das perguntas que o velho fez. Respondeu-lhe o menino e o velho levou-o consigo para a sua casinha, que ficava perto, em uma travessa. Entraram em  uma oficina  de luveiro, onde estava uma mulher costurando diligentemente. Um pequeno lulu da Pomerânia, tosquiado tão rente que se via a pele rosada, saltou para cima da mesa e foi parar em frente ao menino.
       - As almas inocentes se reconhecem - disse a mulher, acariciando a cachorrinha e a criança. Deu-lhe aquela boa gente um prato de comida, e depois que comeu e bebeu disseram-lhe que podia passar a noite ali. Deram-lhe uma caminha pobre, mas que para ele, que tantas vezes dormira no frio chão de lajes, representava luxo principesco. E o rico sono dormiu, sonhando com os belos quadros e com o porco  de bronze!
      No dia seguinte, de manhã, o pai Giuseppe saiu. A pobre criança não se alegrou nada com essa saída, pois sabia que dela resultaria a sua volta para o poder da mãe. Abraçou-se então com a cachorrinha brincalhona, e a mulher olhava para ambos com bondade.
      Que resposta teria trazido o pai Giuseppe?
      Falou demoradamente com a mulher, que fez sinal de assentimento com a cabeça, acariciando o menino. Depois ela disse:
     - É uma criança magnífica, que pode  vir a ser um luveiro tão bom como  tu foste. Tem os dedos delicados e flexíveis: Nossa Senhora destinou-o para luveiro.
     O menino ficou com eles e a  mulher ensinou-lhe a costura. Comia e dormia bem; tornou-se uma criança alegre e mexia com Belíssina- a cachorrinha - até que a mulher, ameaçando-o com o dedo, zangou-se um dia e ralhou com ele.
     O menino tomou aquilo a sério. Ficou pensativo no seu cubículo, que dava para a rua, onde secavam peles. As janelas eram barradas por grossas varas de ferro. Ele não pode conciliar o sono: vinha-lhe sempre à ideia o porco de bronze. De repente ouviu um ruído que vinha de fora: " Claque, claque, claque! " Era um porco, não havia  dúvida! Correu à janela, mas nada viu: acabaram-se o ruído.
    - Ajuda o senhor a levar a caixa de tintas - disse no dia seguinte a luveira ao menino.
     O moço vizinho, que era  pintor, ia passando; levava na  mão a caixa e uma grande tela enrolada. O pequeno pegou na caixa e acompanhou o moço. Escolheu este o mesmo caminho da galeria e subiram a mesma escada que o menino conhecia tão bem, desde aquela noite em que montara o porco de bronze. Conhecia também as estátuas e os quadros,  a  bela. Vênus de mármore e aquela outra, que vivia em cores. E tornou a ver a Madona, Jesus e São João.
       Pararam diante do quadro de Bronzino, em que se vê Cristo no limbo e as crianças sorrindo em roda dele, na doce expectativa do céu. E o pobrezinho também sorriu.
      - Agora podes ir para casa - disse o pintor, quando viu que o menino ficara a seu lado, enquanto ia armando o cavalete.
       - O senhor dá-me licença de olhar enquanto pinta? - perguntou a criança. - Posso ver como é que prende a tela no quadro?
      - Ainda não vou pintar - respondeu o moço, tirando o creiom da caixa.
       Movia-se rapidamente a mão; tomando a olho as medidas do quadro grande, começou o trabalho. E, se bem que apenas aparecesse um traço muito fino, foi surgindo o Cristo, a pairar, bem como se via no quadro colorido.
       - Mas vai-te embora, afinal! - disse o pintor.
       E a passos silenciosos, lá foi indo o menino para casa; sentou-se, para aprender...a coser luvas.
        Mas o dia inteiro seus pensamentos vagaram pela galeria de quadros. Daí resultou que picou o dedo com a agulha, mostrando-se desajeitado. Mas em compensação não buliu mais com a Belíssima.
       Ao escurecer, vendo aberto o portão, saiu . Ainda fazia frio, mas o brilho das estrelas era belo e alegre. O menino andou peregrinando pelas ruas já desertas; achou-se em frente ao porco de bronze; curvou-se para lhe beijar o focinho polido e sentou no seu dorso.
      - Ó animal abençoado! quanta  saudade tenho tido de ti! Hoje vamos dar um passeio. Mas o porco de bronze permaneceu imóvel, a brotar água fresca do focinho O menino, escarranchado sobre o animal, sentiu que lhe puxavam o casaco. Era a Belíssima! A pequena Belíssima, de pelo tosquiado, ladrando como se dissesse:
      - Olha, vê que também eu estou aqui! Por que estás neste lugar?
       Um dragão, vomitando chamas, não teria espantado mais o menino do que ver a cachorrinha ali. Imagine, ! A Belíssima na rua , sem estar vestida, como costumava dizer a mulher! Que iria resultar daquilo? A cachorrinha nunca saía no inverno sem estar abrigada em uma pele de ovelha, cortada e cosida especialmente para ela. A pele, toda guarnecida de guizos e laçarotes, era presa do lado de baixo e no pescoço por meio de fitas vermelhas. A cachorrinha parecia um cabrito, quando saía na rua, sem estar vestida! Que iria acontecer agora? Foram-se-lhe todas as fantasias. o menino deu mais um beijo no porco de bronze e pegou a cachorrinha, que tiritava; saiu então a correr com ela nos braços.
     - Que levas aí, fugindo assim? - gritaram dos soldados da guarda-civil, no caminho.
      A cachorrinha ladrou, furiosa! Tirando-a do menino, perguntaram ainda:
     - Onde roubaste esta cachorrinha tão bonita?
      E como o menino pediu-lhes, chorando, que lha devolvessem, declararam:
      - Pois se não a roubaste, podes avisar em casa que a procurem na Delegacia.
       Deram-lhe o endereço e foram-se, levando Belíssima.
        E foi uma coisa horrível! O menino não sabia se devia afogar-se no Arno ou se tonava a casa e confessava tudo. Com certeza iam matá-lo! Por fim decidiu:
      - Mas era melhor que me matassem mesmo! Eu quero morrer, pois assim irei para perto de jesus e de Nossa Senhora...
    E por esse motivo foi que voltou: para ser morto.
   Encontrou o portão fechado e não pode alcançar a aldrava. Não parecia ninguém na rua. Afinal achou uma pedra e com ela batendo portão, atroadoramente.
     De dentro perguntaram?
    - Quem é ?
     - Sou eu ! A Belíssima fugiu. Abram e matem-me! Grande foi o susto na casa, mas quem se horrorizou foi a senhora, pois olhando imediatamente para a parede, para o lugar onde estava habitualmente pendurada a roupa da cachorrinha, viu que lá estava  a pele de ovelha.
        - A Belíssima a Delegacia! - exclamou a mulher. - Ó menino malvado! Como foi que levaste de casa? Agora ela vai morrer de frio....Um animal tão mimoso no meio daqueles soldados!
           Teve o marido de sair imediatamente; a mulher lamentava-se, o menino chorava, Reuniram-se
todos os moradores da casa, entre eles estava o pintor, que chamou o menino e o colocou entre os joelhos para interrogá-lo,. Foi somente aos trancos que conseguiu apanhar todas a história do porco de bronze e da galeria- história que lhe pareceu um tanto fantástica. Consolou o menino e procurou sossegar a velha. Mas esta não se deu por satisfeita enquanto não chegou o pai Giuseppe com a Belíssima , que estivera no meio dos soldados! Grande foi então a alegria. O pintor acariciou o menino e deu-lhe um punhado de desenhos.
      Que coisas maravilhosas! Quantas cabeças engraçadas! E lá estavam também o porco de bronze. Não se podia imaginar nada mais lindo. Fora fixado no papel mediante muito poucas linhas, e ali estava também esboçada a casa que lhe ficava por detrás.
             Ah! Quem soubesse desenhar e pintar seria capaz de reunir ao redor de si o mundo inteiro!
           No primeiro momento em que  se viu só , no dia seguinte, o menino pegou no lápis e procurou copiar o esboço do porco de bronze no lado em branco de um dos desenhos. Conseguiu-o, mas o desenho saiu meio  torto e desajeitado; uma perna era muito grossa, outra muito fina. Mas ainda assim, reconhecia-se o porco e o menino exultou de alegria. observou que o lápis não se movia exatamente como era preciso, mas no dia seguinte surgiu outro porco de bronze ao lado do primeiro e cem vezes melhor. e o terceiro já saiu tão bom que todo o mundo pode identificá-lo.
         Mas a costura das luvas ia piorando e os recados pela cidade eram feitos com muita lentidão. O porco de bronze ensinou-lhe que todas as figuras podem ser representadas no papel, e a cidade de Florença é um livro de figuras! é só querer folheá-lo. Na Piazza della Trinitù erguia-se uma coluna esguia, pedestal da deusa da Justiça, que lá está de olhos vedados e balança na mão. Também ela um dia apareceu fixada no papel - desenhara-a o pequeno aprendiz de luveiro. Ia crescendo a coleção de quadros, mas até então só continha reprodução de coisas mortas. mas um dia em que Belíssima andava aos pulinhos em roda do menino, disse-lhe ele:
       - Fica quietinha, que vais entrar na minha coleção de quadros e vais ficar muito bonita.
         Mas a cachorrinha não quis ficar quietinha. E ele teve  de amarrá-la, prendendo-a pela cabeça e pelo rabo. Ela latia e dava pulos e o menino viu que tinha de retesar a corda. Nesse instante entrou a mulher do luveiro.
      - Ah! bandido! Coitado do animalzinho!
        E foi só o que pode dizer. Empurrou o menino para um lado, a pontapés, enxotou-o de casa, chamando-o de menino ingrato, que não prestava para nada, criança ímpia. E beijava , lavada em lágrimas, a sua pequena Belíssima, quase estrangulada.  
            Ia o pintor entrando, de volta a casa, e ... foi aqui que esta história tomou outro rumo.
         No ano de 1834 houve uma exposição na Academia delli Arti, em Florença. Dois quadros, colocados ao lado um do outro, atraíam a atenção de grande número de visitantes. No menor aparecia um meninozinho alegre, sentado a desenhar. O modelo era um lulu da Pomerânia, branco, com o pelo tosquiado de uma maneira muito esquisita. Como o animalzinho não quisera ficar quieto, o menino amarrara-o com um barbante,pela cabeça e pela cauda. Havia naquele quadro um cunho de verdade, que a todos agradava.
       Contava-se que o pintor era um jovem florentino, que em criança fora encontrado na rua e criado por um velho luveiro, e  que aprendera o desenho sem mestre. Um pintor, ora célebre, descobrira-lhe o talento no dia em que o enxotavam de casa, por ter ele amarrado, para lhe servir de modelo, o luluzinho, que era o mimoso da mulher do luveiro.
              O aprendiz de luveiro chegara a ser um grande pintor, como o demonstravam aquele dois quadros, sobretudo o maior. Neste via-se uma única figura - um belo menino coberto de andrajos, que dormia, sentado em plena rua, recostado no porco de bronze da Rua Porta Rosa. Todos conheciam aquele lugar. A criança, descansava os braços sobre a cabeça do porco e dormia profundamente. O lampião que arde em frente à imagem de Nossa Senhora lançava uma luz forte  de grande efeito, sobre o pálido e magnífico rosto da criança. Era um quadro maravilhoso.
         Circundava-o uma grande moldura dourada, a qual estava suspensa uma coroa de louros . Mas por entre as folhas verdes serpeava uma fita preta - um longo crepe; o jovem pintor morrera poucos dias antes.
FIM




sábado, 12 de dezembro de 2015

O MELHOR SALTO - CONTOS DE ANDERSEN

UM DIA A PULGA - ou antes, o pulgo - o gafanhoto e o grilo resolveram verificar qual deles dava o pulo mais alto; convidaram todo mundo e mais alguém que quisesse assistir ao espetáculo podia ir. Eram na verdade três saltadores famosos os que estavam ali reunidos!
     - Darei a minha filha ao que der o salto mais alto -disse o rei- porque não teria graça nenhuma que esta gente desse pulos assim, por nada.
      Foi o pulgo quem saltou primeiro. Tinha muito boas maneiras; cumprimentou a toda a assistência, com muita elegância, porque tinha nas veias sangue nobre, que lhe vinha do lado materno e estava habituado à sociedade das criaturas humanas - o que traz muita diferença!
      Veio depois o gafanhoto. Era, está visto, um tanto pesado, mas ainda assim fazia muito boa figura, realçada por um uniforme verde, muito distinto. Além disso, aquele cavalheiro sustentava que pertencia a uma família do Egito, muito antiga, e que lá naquela terra era ele tido em muito alta conta. E tanto isso era verdade que tinham ido buscá-lo ao prado, e deram-lhe por moradia uma casa de campo, de três andares, feita de cartas de baralho, com os lados das figuras virados para dentro. E as portas e janelas eram recortadas mesmo no corpo do rei de copas.
       - Eu canto tão bem - dizia ele- que dezesseis grilos nativos, que tinham trilado desde a mais tenra infância , sem obter um chalé, emagreceram tanto que ficaram ainda mais finos do que já eram, depois de me ouvirem.
        Pulgo e gafanhoto proclamaram, pois, no devido tempo, quem eram, e ambos declararam que se julgavam com direito à mão da princesa.
         O grilo nada disse, mas achava , é claro, que não lhes ficava atrás; e o cão de guarda , mal o farejou , declarou logo que o grilo era de boa família, tirado do osso do peito de um ganso real. O velho senador, que obtivera três mandados para ficar calado, sustentava que o grilo era dotado do poder de profecia, e que por meio do seu osso a gente podia saber se o inverno iria ser suave ou rigoroso, coisa que ninguém podia deduzir dos ossos daquele que escreve o almanaque!
      - Oh! Eu por mim não digo nada- disse o velho rei -mas sigo meu antigo costume, e tenho cá minhas ideias, como as outras pessoas.
         E chegou a hora da prova. O pulgo saltou tão alto, que ninguém pode ver até onde chegou, e por isso teimavam que ele não tinha  dado pulo algum, coisa digna de desprezo naquelas regiões.
       O gafanhoto não chegou nem à metade daquela altura, mas pulou direito ao rosto do rei - procedimento que sua majestade considerou altamente incorreto.
       O grilo ficou quieto ainda um bom pedaço, ao que parecia, perdido em cismas; e já todos se inclinavam a crer que ele  não podia dar salto algum.
      - Tomara que ele não tenha adoecido! - disse o cão de guarda, farejando-o de novo.
       Mas- Vrrrrrr!... e lá saltou o grilo, meio de lado para o regaço da princesa, que estava timidamente sentada em um tamborete de ouro.
      Então o rei declarou:
      - O salto mais alto foi o que alvejou minha filha, porque significa um delicado cumprimento . Para ocorrer uma ideia  assim é preciso que a pessoa tenha cabeça! E o grilo provou que tem cabeça!
       Foi, pois , o grilo quem obteve a mão da princesa.
       - E no entanto - dizia o pulgo - eu saltei mais alto! Mas não faz mal .....Ela que fique lá como osso de ganso, com caixinha de música e tudo ! Quem deu o salto mais alto fui eu! Mas neste mundo a gente precisa ter um corpo volumoso, que apareça, é o que é!
        E o pulgo foi servir no estrangeiro e dizem que por lá morreu.
       O gafanhoto sentou-se a beira de uma vala, meditando sobre os costumes do mundo. E também ele dizia:
      - O corpo é tudo neste mundo! O corpo é tudo!
       E pôs-se a cantar sua canção melancólica - que foi de onde tiramos esta história.
        Mas, ainda que ela tenha sido impressa, talvez não seja absolutamente verdadeira. Não é bom  fiar!

A MARGARIDA - CONTOS DE ANDERSEN

     Escuta  a minha história!
     Lá no campo, à beira da estrada, há um chalezinho de veraneio; e sabes que na frente do chalé fica o jardinzinho, cheio de flores. fechado por uma  cerquinha de sarrafos brancos, não é? Pois em um montículo de terra, fora da cerquinha, no meio da grama verde e fresca, nasceu uma margarida. O sol espalhava seus raios quentes e brilhantes por igual sobre as grandes e esplêndidas flores do jardim e sobre a margarida, e por isso ela cresceu rapidamente; e foi assim que uma manhã estava completamente desabrochada, com suas delicadas pétala alvas e lustrosas, que cercavam o pequenino sol amarelo do centro.
    Nunca a florzinha se lembrou de que ninguém a via, assim escondida no meio da relva; vivia contente. Voltava-se para o sol que a aquecia, olhava para ele, e ouvia o rouxinol que cantava no ar.
   A margarida sentia-se tão feliz como se fosse um dia de grande festa, e contudo era apenas segunda-feira. Todas as crianças estavam na escola; e enquanto lá estavam, sentadas nos bancos, aprendendo as lições, a florzinha, na sua haste verde, aprendia com o sol ardente e com tudo o que rodeava, como Deus é bom.
     Entretanto o pequenino rouxinol exprimia clara e lindamente tudo o que ela sentia em silêncio! E a flor olhava para cima com uma espécie de respeito para  o feliz passarinho, que podia voar e cantar. Não se entristecia de não poder fazer o mesmo, porque pensava:
     - Poso  ver e ouvir; o sol brilha e me aquece , e o vento me beija. Oh! Sou abençoada com tamanha riqueza!
       Lá dentro do jardim cercado erguiam-se algumas flores grandes e de haste rígida; e quanto menos fragrância, mais orgulhosas eram! As peônias enchiam-se de vento, para ver se ficavam maiores do que as rosas. As tulipas ostentavam as cores mais alegres de todas; e, como sabiam disso, erguiam-se direitas como velas, para serem bem vistas de todos. Nem sequer sabiam da existência da florzinha que viva fora do cercado, e que olhava sempre para elas, dizendo consigo:
      - Como são lindas! E ricas! Sim, aquele nobre passarinho certamente vai descer para vê-las. Como sou feliz por viver tão perto delas e poder ver tanta beleza!
       Justamente nesse momento ouviu-se um ruído que vinha do alto.
       E o rouxinol voou para o chão; contudo não procurou as peônias e tulipas; não, ele voou para a humilde margaridinha da grama, que até se assustou, de pura alegria. Não sabia o que havia de pensar daquilo, de tão surpreendida.
        O passarinho ia saltando em roda dela e cantando:
         - Oh! Que relva macia! E que linda florzinha, com o coração de ouro e toda vestida de prata!
       Porque o centro amarelo da margarida parecia mesmo de ouro, e as pequeninas pétalas que o cercavam brilhavam como alva prata.
        E que feliz era ela! Ninguém pode imaginar como era feliz. O passarinho beijou-a com o bico, cantou para ela, e depois tornou a subir para o céu azul. E passou-se um quarto de hora inteirinho , antes que a flor se recobrasse. Meio vexada , e ainda cheia de felicidade, olhou para as outras flores, as do jardim; certamente tinham visto a honra e a felicidade que lhe tinham sido conferidas, e deviam saber como se sentia feliz. Ma as tulipas esticavam-se , com o dobro da rigidez anterior, e tinham as faces vermelhas de raiva. Quanto às broncas peônias, era bom, na verdade , que não pudessem falar, porque senão a pequenina margarida não havia de ouvir coisas muito agradáveis. Bem via a pobre florzinha que estavam todas de mau humor e isso muito afingiu.
      Logo depois entrou no jardim uma menina, trazendo uma faca brilhante e aguçada; foi para as tulipas e cortou-as, uma  por uma.
     - Ai! Que coisa horrível! - suspirou a margarida; agora para elas está tudo acabado!
     A menina foi embora, levando as tulipas. E a margarida ficou muito alegre de ter nascido na grama , fora do cercado, e de ser uma florzinha desprezada! Sentia-se realmente grata por isso; e quando o sol e escondeu no poente, dobrou as pétalas e adormeceu, e sonhou toda noite com o sol e com o lindo passarinho.
      No outro dia, quando a nossa pequenina flor, fresca e cheia de alegria, tornou a abrir suas brancas pétalas para o sol brilhante e o claro ar azulado, ouviu a voz do passarinho; mas seu canto era triste, E o pobre rouxinol tinha razão para estar triste: fora apanhado em um laço e posto em uma gaiola perto da janela aberta. Ele cantava, cantava as alegrias do voo livre e ilimitado; cantava a beleza do trigo novo nos campos e o prazer de alçar-se no espaço sem fim. O pobre passarinho era certamente muito infeliz . - prisioneiro naquela gaiolinha estreita!
     Bem quisera- e com que vontade! - a pequenina margarida ajudá-lo, mas que podia ela fazer? Não o sabia , não: mas esqueceu imediatamente como tudo era lindo ao redor dela, como o sol brilhava, e esqueceu-se até da alvura e beleza de suas pétalas. Ela só pensava agora no passarinho prisioneiro, ao qual não podia auxiliar de modo algum.
     Saíram do jardim dois meninozinhos; um trazia na mão uma faca, aquela com que a menina tinha cortado as tulipas. Foram direto à pequenina margarida, que não podia imaginar o que pretendiam fazer. E um deles disse:
     - Aqui podemos cortar um lindo torrão para o rouxinol.
       E começou a cortar ao redor da margarida, deixando-a no centro do torrão.
       - Arranca a flor - disse o outro.
        A margaridinha estremeceu de medo, porque sabia que se fosse arrancada morreria, e desejava tanto viver, pois que ia ser posta dentro da gaiola do rouxinol.
       -  Não, deixa-a aí! - disse o primeiro. - É tão bonita!
        E assim foi: deixaram-na ali, e posta dentro da gaiola.
         Mas o pobre passarinho lamentava a perda da liberdade, batendo as asas contra os arames da gaiola; e a florzinha não podia falar- não podia  dizer uma só palavra de conforto, como tanto desejava...E assim se passou toda a manhã.
       - Não há água aqui! - gemia o rouxinol cativo; foram embora e esqueceram-se de mim; nem uma só gota de água para beber! Tenho a garganta seca e ardente! Tenho fogo e gelo dentro do corpo! E não posso respirar!" Ai! Vou morrer! Tenho de deixar o calor do sol, as frescas árvores verdes, todas as lindas coisas que Deus criou!    
      Meteu o bico na relva fresca, para se refrescar um pouco... e então avistou a margarida; cumprimentou-a, beijou-a com o biquinho e disse-lhe:
      - Tu também, tu também, pobre florzinha, vais murchar e secar aqui! Cada talinho, cada folhinha de  relva, há de ser para mim como uma árvore verde, e cada uma das tuas pétalas brancas, como uma flor perfumada! Mas ah! Tu me avivas ainda mais a recordação do que perdi!
       - Se eu pudesse consolá-lo! - pensava a margarida.
       Contudo não podia mover uma pétala... mas o passarinho notou a sua dedicação e , ainda que tivesse despedaçado as folhinhas de relva, na angústia da sede, não tocou na flor.
          Chegou a hora do crepúsculo, mas ninguém trouxe para o pobre passarinho uma gota d'Água ; ele distendia as lindas asas, batendo-as convulsivamente ; seu canto era um gemido lamentoso; a cabecinha inclinou-se para a flor, e seu coraçãozinho despedaçou-se de sede e de angústia. Agora a flor não podia, como fizera na véspera, fechar as pétalas para dormir: triste e aflita, prendeu para o chão.
     Os meninos só apareceram na manhã  seguinte; e quando acharam o passarinho morto, choraram muitas lágrimas. Cavaram um pequenino túmulo, que adornaram de pétalas de flores; meteram o cadáver em uma caixinha vermelha, muito linda - e foi um enterro principesco, o enterro do pobre passarinho!
      Enquanto ele ainda vivia e cantava, esqueceram-no deixaram-no padecer na sua gaiola- e agora, que estava morto, cobriam-no de enfeites e de lágrimas.
      Mas o torrão de terra com a margarida, esse foi atirado à estrada: ninguém se lembrou daquela que mais lamentara a sorte do pobre rouxinol e que tanto desejara consolá-lo.
 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

O SINO - CONTOS DE ANDERSEN

Isto se passou em uma grande cidade de ruas estreitas.
  À hora do lusco-fusco, em que as nuvens brilhavam como ouro entre as chaminés, algumas pessoas ouviam um som singular, como o de um sino de igreja; ora um ora outro o  ouvia, mas sempre durava apenas um momento, porque era tanto o estrépito dos carros e o barulho das vozes , que os ruídos mais leves eram abafados. E o povo dizia:
   _ O sino da tarde está tocando; o sol vai entrar.
    Os que andavam pelos arredores da cidade, onde as casas eram mais raras e tinham jardins e quintaizinhos de permeio, podiam apreciar melhor a beleza e a amplidão do céu à hora do crepúsculo e ouvir o sino muito mais distintamente. O som parecia vir de uma igreja escondida nas profundezas da floresta, e o povo olhava naquela direção, sentindo que a hora era solene.
    Passou-se algum tempo; e as pessoas diziam muitas vezes:
    - Haverá alguma igreja no meio do mato? O sino tem um som tão suave e tão lindo... E se fossemos escutá-lo de mais perto?
     E foram . Os ricos iam de carro, os pobre a pé; mas parecia-lhes que o caminho não acabava nunca. E quando alcançaram um grupo de salgueiros que ficavam na orla da mata, sentaram-se para descansar, e, olhando para aqueles longos galhos pendentes, pensavam que já  estavam no coração da floresta. Um confeiteiro da cidade foi também, e armou ali uma tenda ; veio um rival e armou também a sua, pendurando no alto uma sineta, previamente alcatroada, por causa da chuva - mas não tinha badalo. E quando toda aquela gente voltou para casa dizia que tudo era muito romântico e que não era apenas um piquenique; era uma coisa muito melhor do que tomar chá no campo, simplesmente. Três pessoas declararam que tinham explorado a floresta até o outro lado, e que sempre ouviam o som peculiar daquele sino, mas que agora parecia vir da cidade. Um deles escreveu um poema; aí dizia que o sino parecia a voz de uma mãe falando a um filho bem-amado; e que não havia no mundo melodia mais suave do que o som daquele sino.
     Até o imperador começou a interessar-se por aquele caso, e declarou que daria o título de "Sineiro Universal" a quem quer que descobrisse de onde procedia o estranho som, ainda que não houvesse sino algum no caso.
     Muita gente correu para a floresta, na esperança de obter a nomeação; mas só um apresentou uma espécie de explicação do mistério. Nenhum deles tinha ido até o interior do mato- nem ele próprio ; ainda assim, podia dizer que o som provinha de uma grande coruja que vivia no oco de uma árvore. Era  uma coruja sábia, que batia continuamente a cabeça na árvore; agora se o som resultante vinha da cabeça da ave ou do tronco oco, era coisa que ele não pudera distinguir. Foi, contudo, nomeado "Sineiro Universal": e todos os anos escrevia um tratado sobre a coruja. mas ninguém se achou mais esclarecido com isso.
        Chegara o dia da confirmação. O pastor falou com muita eloquência e os que se confirmaram ficaram muito impressionados - porque era um dia solene para todos  eles. Era como se aquelas crianças se tivessem transformado de repente em gente grande; como se se  dissesse que seus espíritos infantis assumiam de um instante para outro os atributos de pessoas de juízo maduro. Transformava-se assim em seres responsáveis.
     Era um dia de sol ardente. Os jovens que se haviam confirmado foram dar um passeio fora da cidade, e ouviram o som do grande sino desconhecido que vinha da floresta: tinha um cunho de solenidade excepcional. Sentiram-se as crianças tomadas do desejo de ouvi-lo de mais perto, e assim resolveram ir lá -todas , menos três. Uma destas tinha de ir para casa para provar o vestido de baile, porque o único motivo que  a levara à confirmação fora justamente esse: a festa e o traje de baile. A não ser isso, não teria tomado parte na cerimonia desta vez. Outro- um menino pobre - tinha pedido emprestados o casaco e os sapatos do filho do senhorio, para a confirmação, e tinha de devolvê-los a uma hora determinada. O terceiro declarou que nunca ia a lugares estranhos sem os pais; que sempre fora menino obediente, e agora , que estava confirmado, assim queria permanecer; e que ninguém devia rir dele por isso - o que não impediu, afinal, que todos os outros se divertissem à sua custa.
     Houve três, portanto, que desistiram de ir; mas os outros empreenderam a jornada fatigante. O sol brilhava no firmamento: os passarinhos cantavam, e as crianças recém- confirmadas também cantavam, e   iam indo, de mãos dadas,porque nenhuma delas tinha ainda emprego importante, e todas eram de igual categoria aos olhos de Deus.
    Aconteceu, porém, que dois dos meninos menores cansaram e voltaram para cidade. Duas meninas sentaram-se para tecer grinaldas e não continuaram a viagem . E quando os outros chegaram aos salgueiros, onde ficava a tenda do confeiteiro, disseram:
     - Chegamos à floresta! Não há aqui sino nenhum era apenas ilusão daquela gente!
    Mas naquele mesmo instante o sino tangeu no mais profundo da floresta; e o som era tão lindo, tão solene, que cinco ou seis crianças resolveram penetrar mais a dentro. As árvores eram tão copadas e tão juntas que se tornava difícil andar entre elas; os narciso e as anêmonas cresciam a grande altura, e as ipomeias floridas e as framboesas pendiam em longos festões, unindo entre si as árvores, em cujos galhos brincavam os raios do sol e cantavam os rouxinóis. Era muito lindo, tudo aquilo, sim - mas não era lugar para  as meninas, que iriam rasgar os vestidos a cada passo. Grandes blocos  de pedra cobertos de musgo de variadas cores, surgiram por toda a parte; e o fresco arroio murmurava, parecendo cantarolar um gorjeio.
      - Será isto o sino, afinal? - disse uma das crianças, deitando-se para escutar. - Creio que vale a pena estudar isto!
       E ali ficou, enquanto os outros continuavam a andar .
       Chegaram a uma cabana , feita de galhos e de casca de árvores. Uma grande macieira silvestre estendia os galhos por cima do chalezinho, como se quisesse chover bençãos sobre o teto, coberto por uma roseira em flor. Os galhos floridos enroscavam-se no beiral, onde estava amarrada uma sineta.
     - Seria aquele o sino que as pessoas ouviam? Sim; todos concordaram, exceto um, que achou a sineta muito pequena e muito frágil para ser ouvida a tão grande distância. E disse ainda que o som era muito diferente daquele outro, que tocava, que tocava tão profundamente o coração humano. Era um princepezinho o que falara; e os outros disseram que aquela espécie de gente sempre quer ser mais entendida do que as outras pessoas.
    Deixaram-no , pois, prosseguir sozinho; e quanto mais se internava na floresta, tanto mais o impressionava aquela solidão. Mas ainda ouvia a sineta que tanto tinha agradado aos outros. De vez em quando o vento soprava do lado da tenda do confeiteiro, ouvia, também os cantos dos que ficara lá tomando chá. Mas o som profundo do sino elevava-se, mais alto; parecia que havia um órgão a acompanhá-lo. E aqueles sons vinham do lado esquerdo, quer dizer, do lado em que fica o coração.
    Ouviu-se um rumor nos arbustos e um menino parou na frente do filho de rei; um menino de tamanquinhos e com um  casaco tão curto, que deixava aparecer todo o punho da camisa.   Ambos se conheciam: o que trajava modestamente era aquele que não pode reunir-se aos outros. porque tinha  de voltar para restituir  o casaco e os sapatos que lhe emprestara o filho do dono da casa. Feito isto, voltara, com seus tamanquinhos e a roupa surrada, porque o sino estava tocando com um som tão profundo e com tamanho poder que ele não pode resistir.
     - Pois então- disse o filho de rei podemos agora ir juntos.
     Mas o menino pobre estava muito envergonhado; olhou para os pés, puxou as mangas da jaqueta e disse que talvez não pudesse caminhar mais longe; além disso achava que o sino devia ser procurado para o lado direito, porque naquela direção ficava a parte mais bela da floresta.
     - Então provavelmente não tornaremos a nos encontrar - disse o filho de rei, cumprimentando o menino pobre.
      Este entranhou-se nas profundezas do mato, onde os espinhos lhe rasgavam a roupinha pobre, arranhando-lhe o rosto, as mãos e os pés, até fazer sangue. O filho de rei também não se livrou de algum arranhão, mas o sol brilhava no caminho ; e nós vamos segui-lo, porque é um rapaz excelente e resoluto.
    - Eu tenho de achar - e hei de achar o sino! - disse ele. - Nem que precise ir ao fim do mundo!
     Uns macacos muito feios, que estavam encarrapitados nas árvores, fizeram-lhe caretas, dizendo uns para os outros:
     - Nós não vamos dar-lhe pancadas? Não vamos dar nele? É o filho de rei!
       Mas ele continuou a andar, destemeroso, cada vez mais para o interior da floresta, onde vicejavam as mais estranhas flores. Ali havia lírios alvos, com estames vermelhos como sangue; tulipas da cor do céu, que brilhavam , quando a brisa as roçava; e macieiras, cujas frutas pareciam grandes e brilhantes bolhas de sabão. Imagine-se como não cintilavam aquelas árvores ao sol! Ao redor de lindos prados verdes, onde os veados brincavam , erguiam-se carvalhos e faias magníficos; e nas fendas da casca das mais antigas brotavam trepadeiras e aninhavam-se musgo. Haviam ainda lagos serenos, onde nadavam cisnes brancos, que batiam as asas no ar. O filho de rei parou muitas vezes, ficando quieto, a escutar. Julgava que o som do sino vinha daqueles lagos, mas verificou então que procedia de muito mais longe, do fundo da mata.
       Já o sol declinava. O ar era agora flamejante e a floresta profundamente silenciosa; ele caiu de joelhos, fez a sua oração da noite e disse:
       - Nunca acharei o que procuro! A noite , a noite escura se aproxima. Mas...quem sabe se ainda poderei ver por um instante o sol vermelho antes que se suma no horizonte! Vou subir aquele rochedo, que é tão alto como as árvores mais altas.
     Segurou-se, conforme pode, às raízes e trepadeiras, e foi escalando as pedras escorregadias; viu ali cobras-d'água enroladinhas e sapos do mato que pareciam coaxar para ele. Mas alcançou o pico antes  que o sol mergulhasse no horizonte.
     E que vista magnífica, daquela altura! O mar, o mar imenso, sem limites, que atirava suas ondas à praia, estendia-se diante dele. E além, no ponto onde mar e céu se encontram, o sol, como um grande altar resplandecente, fundia tudo quanto o cercava em cores maravilhosas. A floresta cantava, o oceano cantava, e o coração do menino juntou também o seu cântico aqueles hinos de louvor.
      Toda a natureza era como um vasto templo sagrado : pilares eram as árvores; e as nuvens flutuantes, o musgo e as flores , magníficas tapeçarias de veludo; abóbada , o céu sem limites. Agora as cores brilhantes iam desmaiando; mas milhões de estrelas se acendiam- milhões de lâmpadas de diamante, iluminado a cúpula gloriosa.
     E o filho de rei estendeu os braços para o céu, e para o mar, e para a floresta.
    Justamente nesse instante , do caminho que ficava à direita, surgia o rapaz pobre, o das mangas curtas e dos tamanquinhos. Viera por outro caminho, mas chegara ao mesmo tempo que o filho de rei.
     Correram então um para o outro; e ali ficaram, de mãos dadas, no vasto templo da natureza e da poesia. E acima deles, e por toda a parte , soava o sino invisível e solene. Espíritos sagrados flutuavam ao redor deles, erguendo suas vozes em um cântico de aleluia!